"Seus olhos se iluminavam e você podia ver as veias se incharem no seu pescoço e, irmão, sua alma inteira se concentrava naquela canção. Ele cantava com a danada da alma." Sam Phillips, da gravadora Sun Records, descrevendo Howlin' Wolf
Um uivo de lobo.
Uma voz potente.
Um homem transfigurado em animal no estúdio.
Assim era Chester Arthur Burnett, mais conhecido como Howlin' Wolf, um dos maiores nomes do blues de todos os tempos. Artista de admiráveis qualidades vocais, exímio manejo da guitarra e performances arrasadoras em shows, Wolf que começara na Sun, gravadora que revelou Elvis Presley, teve, no entanto, seu período de maior sucesso pelo famoso selo Chess, de Chicago, curiosamente levado pelas mãos do, sabidamente um arquirrival, Muddy Waters.
Rivalidades à parte, cada um com seus talentos, muitos diga-se de passagem, havia espaço para os dois na Chess. A maioria dos músicos do staff da gravadora gravavam as canções do baixista da casa e compositor Willie Dixon, mas poucos como Wolf tiraram tanto proveito desta parceria. Saíram das maos de Dixon alguns dos maiores sucessos de Howlin' Wolf e diga-se de passagem, em contrapartida, são dele algumas das melhores interpretações das músicas de Dixon.
Wolf já havia gravado um disco desde sua chegada à Chess mas que ainda trazia heranças da Sun Records, sua antiga gravadora, e contava apenas com as composições do próprio cantor, mas foi com o disco conhecido popularmente como "The Rockin' Chair Blues" que Wolf alçou voo definitivamente no universo do blues muito em função das composições de Dixon e de seu dedo na produção.
O disco abre com a excitante "Shake For Me", uma incitação à libido e já traz na sequência o clássico "The Red Rooster" cantado de maneira arrastada por Wolf com o acompanhamento de por uma slide guitar matadora do próprio cantor. A música ganharia inúmeras versões posteriores, nas quais ganharia o diminutivo pela qual é mais conhecida ("Little"), dentre elas a suingada de Sam Cooke, a suja do Jesus and Mary Chain e a maliciosa dos Rolling Stones.
"Who's Been Talkin'", um blues lento, quebrado com um toque latino é uma das duas, apenas, de autoria do próprio cantor no disco, e ""Wang Dang Doodle", que a segue é pegada, cheia de embalo, com uma guitarra vibrante e um refrão contagiante.
Outra que já foi regravada incontáveis vezes, por Etta James, Who, pelo Cream de Eric Clapton, mas que tem na versão deste blueseiro do Mississipi, a primeira, diga-se de passagem, uma de suas melhores interpretações, é a magnetizante "Spoonful", mais uma das obras-primas de Dixon imortalizada pelo vocal singular do Lobo.
Na chorosa "Going Down Slow" onde o vocalista praticamente apenas declama a letra, o que destaca-se mesmo, desde a introdução martelada, é o piano; já em "Back Door Man", Howlin' Wolf retoma o protagonismo e encarna o personagem soltando ganidos arrepiantes numa canção que é uma espécie de assombração sensual e sedutora e que cuja versão, talvez, mais conhecida seja a da banda The Doors gravada logo em seu álbum de estreia.
Bem ritmada, embalada, impetuosa, "Howlin' for My Baby" (que também é conhecida com a variação de "... My Darling"), talvez a melhor tradução da fusão de estilos do blues do Delta para o de Chicago, encaminha com grandiosidade o final do disco para que "Tell Me", a outra composição de autoria de Wolf no disco, um gostosíssimo blues com uma levada apaixonante de harmônica se encarregue de fechar de forma magistral.
Um daqueles caras para o qual a alcunha lenda do blues cabe perfeitamente, ainda mais reforçada pelo nome sugestivo que carregava, pelas performances insanas no palco, pelo feitiço que impunha às mulheres e pelos uivos quase animalescos que emitia em suas interpretações. Seria aquela figura na verdade uma criatura entre o home e o lobo? Teria ele, como o outro legendário Robert Johnson, feito algum pacto sinistro cujo preço seria que dividisse sua forma entre o humano e o bestial, metamorfoseando-se depois de determinada hora, em determinados dias, em dada fase lunar? Ficaria ele assim, mesmo em sua forma humana com traços do animal o que explicaria seus grunhidos, uivos e rosnados característicos e sua forma gigantesca e quase gutural? Bobagem, bobagem. Mas, ei... Alguém aí ouviu um uivo?
********************** FAIXAS:
"Shake for Me" – 2:12
"The Red Rooster" – 2:22
"You'll Be Mine" – 2:25
"Who's Been Talkin'" (Howlin' Wolf) – 2:18
"Wang Dang Doodle" – 2:18
"Little Baby" – 2:45
"Spoonful" – 2:42
"Going Down Slow" (St. Louis Jimmy Oden) – 3:18
"Down in the Bottom" – 2:05
"Back Door Man" – 2:45
"Howlin' for My Baby" – 2:28
"Tell Me" (Howlin' Wolf) – 2:52
* todas as faixas compostas por Wilie Dixon, exceto as indicadas
Dia desses, arrumando minha coleçãozinha de blues e topando com meus CD's de Muddy Waters e Howlin' Wolf acabei lembrando de um filme muito legal e que nenhum fã de blues pode deixar de assistir. Trata-se de "Cadillac Records, filme da diretora norte-americana Darnell Martin, que de forma apaixonante apresenta a formação do blues de Chicago nos anos 50 e a criação da Chess Records, selo que foi berço de grandes nomes do gênero contribuindo para a divulgação e popularização do estilo e de seus praticantes pelos Estados Unidos.
O filme centra-se mais na figura de Muddy Warters, sua descoberta, sua ascensão, seu sucesso e seus conflitos amorosos e musicais, mas também destaca Howlin' Wolf e sua rivalidade com Muddy; um neguinho chamado Chuck Berry que misturava blues com "música de brancos", o alcoolismo do gaitista Little Walter e seu estilo inovador no instrumento e no estúdio; o talento e o affair de Etta James, com o chefe, Leonard Chess; e até um certo grupo inglês chamado Rolling Stones.
"Cadillac Records tem momentos tristes, alegres, divertidos, emocionantes, trágicos e conta com interpretações extremamente competentes como a de Jeffrey Wright como Muddy, intensas como a de Eammon Walker na pele de Wolf, e surpreendentes como a de Beyoncé (olha só!) vivendo Etta James. Adrien Brody é que está meio insosso como Leonard Chess mas nada que seja suficiente para fazer alguém não gostar do filme por causa disso.
Mas e o Cadillac? O que é que o Cadillac tem a ver com tudo isso? Foi o presente de Chess para Muddy, seu primeiro contratado, assim que alcançaram o primeiro grande sucesso. Depois disso todos que emplacavam um grande hit passaram a querer o seu. Tornara-se uma tradição na gravadora e aí só dava "crioulo" transitando de Cadillac nas barbas da sociedade racista dos anos 50. Teriam que engolir a "negrada". Ah, teriam. E aquilo era só o início.
e quereis satisfazer os desejos de vosso pai” citação do livro de João, da Bíblia,
no encarte da edição original do álbum
Dia desses estava eu numa loja de CD’s comprando uma
camiseta do Johnny Cash, e como não raro acontece, o som que tocava na loja me
chamou a atenção. Um metal semi-acústico alicerçado no blues, interpretado com
ênfase, paixão e vigor. Interessantíssimo aquilo! Fui até o balconista e
perguntei do que se tratava, ao que ele me respondeu que era Danzig. Ora, já
havia ouvido falar da banda mas nunca efetivamente havia escutado. A surpresa
foi agradabilíssima. Perguntei o nome da música. Aquela chamava-se “I’m the
One”. Estusiasmante, extasiante! Ao melhor estilo dos blueseiros da antiga mas cantado com a
força do metal.
Procurei saber de onde era aquela música e a mesma fazia
parte do álbum chamado “Lucifuge” que, já na primeira audição, ratificando a
boa impressão inicial apresentava-se como um maravilhoso exemplar de uma
espécie de blues-metal bastante original na sua concepção, execução e interpretação.
Embora utilizando-se, sim, de instrumentos elétricos, de
peso e vocais impetuosos, A produção caprichada do ótimo Rick Rubin (de "BloodSugarSexMagik" dos Chilli Peppers e a série "American" de Johnny Cash , por exemplo) estreita de maneira admirável as correntes do metal com as características mais primárias do bom e velho blues tradicional dos grandes mestres, isso sem falar nas temáticas, é claro, sinistras, cheias de lendas e demônios comuns a ambos os estilos.
Além da já citada “I’m the One”, minha favorita, destaque
especial também para a primeira “Long Way Back from Hell” um metal galopante, potente, forte e vigoroso; para a balada “Blood
and Tears”; para o ótimo blues-metal apocalíptico "777"; e para a excelente “Killer Wolf”, referência ao lendário blueseiro
Howlin’ Wolf, pelo título e pela interpretação. No restante, todas são boas
canções mas, se pode-se apontar um defeito é que, talvez uniformes demais, algumas acabem soando muito parecidas com as outras. Mas nada que desdoure ou invalide todos os méritos
deste ótimo trabalho.
Só algum tempo depois de conhecer o Danzig foi que descobri
que o líder, vocalista, idealizador, Glen Danzig era o vocalista do extinto
Misfits, que para falar a verdade, nunca me agradou muito. Já o Danzig, bastou
um pouquinho daquele blues diferente, envenenado, sujo, satânico pra me pegar pelos
ouvidos.
2015 acabou e como sempre, fazemos aqui no ClyBlog aquele balanço da movimentação dos álbuns fundamentais no ano anterior: artistas com mais discos na nossa lista, países com mias representantes, o ano e a década que apresentam mais indicados e outras curiosidades. O ano abriu com a publicação de número 300 dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que teve a especialíssima participação do escritor Afobório falando sobre o grande "Metrô Linha 743", resenha que marcou assim a estreia, mais que merecida, de Raul Seixas no nosso time de fundamentais. Outros que já estavam maIs que na hora de entrarem pra nossa lista e que finalmente botaram seu primeiro lá foram a musa punk, Patti Smith; o poeta do rock brasileiro, Cazuza; a banda cult Fellini; o grande Otis Redding, os new wave punk do Blondie; os na´rquicos e barulhentos Ratos de Porão; o mestre do blues Howlin' Wolf; e em especial o Mr. Dynamite, James Brown, com seu clássico no Apollo Thetre. Alguns, por sua vez, se afirmaram entre os grandes tendo enfim seu segundo disco indicado pra mostrar que não foi acaso, como é o caso de Cocteu Twins, Chico Science com sua Nação Zumbi, Lobão e Björk. Com o ingresso, em 2015, do ótimo Ouça o que eu digo: não ouça ninguém", os Engenheiros do Hawaii finalmente completam sua trilogia da engrenagem; Bob Dylan que foi o primeiro a ter dois álbuns seguidos nos Álbuns Fundamentais, lá em 2010, depois de um longo jejum finalmente botou seu terceiro na lista, o clássico "Blonde On Blonde"; já John Coltrane que passou um bom tempo apenas com seu "My Favourite Things" indicado aqui, de repente, num salto, apenas em 2015, teve mais dois elevados à categoria de Fundamental, muito por conta do cinquentenário destes dois álbuns, bem como de outro cinquentão da Blue Note que também mereceu sua inclusão em nossa seleção, o clássico 'Maiden Voyage" de Herbie Hancock, alem do fantástico The Shape of Jazz to Come" como homenagem merecida a Ornette Coleman, falecido este ano. Por falar em falecido recentemente, não tem como deixar de falar em David Bowie que deixa este mundo na liderança dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mostrando que toda a idolatria e reconhecimento do qual gozava não era a toa. Mas ele não está sozinho na ponta! Alavancado pela inclusão de seu ótimo "Aftermath", os Rolling Sones alcançam os líderes e empatam com Bowie e com seus "rivais", os Beatles, prometendo grandes duelos para as próximas edições dos A.F. Como curiosidades, se no ano passado tivemos mais trabalhos de séculos passados, no último ano os A.F. tiveram um certo crescimento o número de álbuns produzidos no século XXI. Muito por conta de uma nova galera talentosa que vem surgindo por aí como Lucas Arruda e Tono que tiveram seus álbuns, "Sambadi" e "Aquário", respectivamente, reconhecidos e incluídos no hall dos grandes álbuns. Os garotos também colaboraram para um fato interessante: o altíssimo número de discos nacionais neste ano. Foram 15 no total, empatando com o número dos norte-americanos neste ano e deixando bem para trás os ingleses com apenas 3 em 2015. O pulo brasileiro refletiu-se na tabela geral e pela primeira vez desde o início da seção o Brasil está à frente da Inglaterra em número de discos. A propósito, falando de Brasil, se formos falar em termos nacionais, a principal mudança foi a elevação de Caetano Veloso, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia à vice-liderança, dividindo-a ainda com Gil, Legião e Titãs. Na ponta, segue firme o Babulina, Jorge Ben, com 4 álbuns fundamentais. E aí? O que será que nos reserva 2016? Como será a batalha Beatles vs Stones? Alguém alcançará ou passara Jorge Ben na corrida nacional? E os ingleses reagirão contra os brazucas e mostrarão que são a terra do rock? Aguarde as próximas postagens e acompanhe o ClyBlog em 2016. Por enquanto ficamos com os números de 2015 e uma visão geral de como andam as coisas nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS.
PLACAR POR ARTISTA (GERAL)
The Beatles: 5 álbuns
David Bowie 5 álbuns
The Rolling Stones 5 álbuns
Stevie Wonder, Cure, Led Zeppelin, Miles Davis, John Coltrane, Pink Floyd, Van Morrison, Kraftwerk e Bob Dylan: 3 álbuns cada
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
Jorge Ben (4)*
Titãs, Gilberto Gil*, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e Tim Maia; 3 álbuns cada
*contando o álbum Gil & Jorge PLACAR POR DÉCADA
anos 20: 2
anos 30: 2
anos 40: -
anos 50: 13
anos 60: 63
anos 70: 90
anos 80: 82
anos 90: 62
anos 2000: 8
anos 2010: 7
*séc. XIX: 2 *séc. XVIII: 1 PLACAR POR ANO
1986: 15 álbuns
1985 e 1991: 13 álbuns cada
1972 e 1967: 12 álbuns cada
1968, 1976 e 1979: 11 álbuns cada
1969, 1970, 1971, 1973, 1989 e 1992: 10 álbuns cada
PLACAR POR NACIONALIDADE*
Estados Unidos: 125 obras de artistas*
Brasil: 85 obras
Inglaterra: 80 obras
Alemanha: 6 obras
Irlanda: 5 obras
Canadá e Escócia: 4 cada
México e Austrália: 2 cada
Suiça, Jamaica, Islândia, Gales, Itália e Hungria: 1 cada
Ele é considerado o "Rei da Slide Guitar"! Sabe aquela escorregada do dedo pelas cordas da guitarra com um tubo de metal? Pois é. Isso é o slide guitar. Não que ele tenha inventado a técnica, mas poucos a utilizaram como ele nenhum outro bluesman a tornou tão popular. Outra contribuição técnica de Elmore James foi a que, de certa forma, ele foi meio que um precursor da distorção na guitarra. Não a inventou, não chegou a usá-la efetivamente, e, na verdade, o recurso só veio a ser criado bastante tempo depois, mas Elmore, apaixonado pelo instrumento, curioso e inventor, trabalhando numa oficina de aparelhos eletrônicos, desenvolveu algumas técnicas e fez alguns experimentos que aprimorarem o som da guitarra e tornaram seu som singular dando o primeiro passo na direção de intervenções de outros elementos no som final do instrumento.
Só por aí já vê-se porque Elmore James é considerado um dos nomes mais influentes não somente do blues como da música, num todo. Mas no que diz respeito especificamente ao estilo que veio da alma dos negros do Mississipi, Elmore James, com seu vocal rascante e seus acordes hipnóticos, se destaca entre os pioneiros da popularização do blues, ainda nos anos '30, passando de coadjuvante de nomes como Sonny Boy Williamson e Howlin' Wolf, para quem tocara integrando suas bandas, a protagonista, reconhecido pelo estilo e pelos sucessos, especialmente por "Dust my Broom", inúmeras vezes regravada ao longo dos tempos na história da música. A canção, uma variação de "I Believe I Dust my Broom", de Robert Johnson, carrega, até por isso mesmo, uma certa controvérsia quanto à sua autoria, influência ou inspiração original. Quem teria "copiado" de quem? Polêmicas à parte, o fato é que era bem comum numa época muito primeva, muito amadorística, sem direitos autorais, que artistas incorporassem uma coisinha aqui outra ali de algo que ouviram em outra cidade, que gravaram com um parceiro, conheceram por acaso, etc. Mas, no caso específico..., quem se importa? São duas excelentes versões e a de Jones, certamente é das mais conhecidas e cultuadas. Mas muito se engana quem acha que o repertório de Elmore James não se limita a "Dust my Broom". A fantástica "The Sky is Crying", a contagiante "Rollin' and Trumblin'", de Sonny Boy Williamson, a intensa "I'm Worried" com seu riff estridente, e a instrumental "Bobbie's Rock", são apenas algumas que também merecem todo a atenção e a consequente admiração do ouvinte.
Elmore gravou em uma época em que albuns não eram comuns e cantores normalmente gravavam compactos, assim, não existe, efetivamente, nenhum registro seu de longa duração em seu auge. No entanto, a coletânea "The Sky is Crying", lançada pouco depois de seu falecimento, em 1965, traz algumas das mais importantes canções gravadas por ele e alguns de seus maiores sucessos. Ouvindo Elmore James a gente entende porque adjetivos como lenda, mestre, gênio são atribuídos a caras como ele. E aí não resta muito a dizer além do óbvio: Lenda! Mestre! Gênio!
Os olhos percorreram o lugar com desconfiança. Não dizem que os bichos pressentem quando algo está para acontecer? Pois então... O cão hesitou à porta, deu um passinho receoso para o interior e dois para atrás. Foi puxado enfim para dentro pela corda que lhe envolvia o pescoço. O homem que o conduzia, um negro corpulento de modos tímidos, penetrou no modesto barraco de madeira quase às escuras, apenas iluminado por uma meia dúzia de velas, e postou-se sentado de frente para uma figura um tanto pitoresca, um homem já de idade avançada, olhos apertados pelos anos, pele enrugada na qual o tisnado contrastava radicalmente com a brancura dos pelos da cara e da cabeça. - Dexa o animarzinho aí. Po'deixá. - orientou pitando o cachimbo logo em seguida. - Mas, Bo, eu não quero fazer esses acordos que nem fazem por aí, que nem aquele outro fez... - argumentou com uma voz fraca, quase fugidia. Riu-se o velho. - Não, não. É otra cousa. É cousa diferente. - esclareceu vagamente soltando uma baforada. Tossiu, balançou a cabeça negativamente, não sei se reafirmando o equívoco da desconfiança do visitante ou lamentando o efeito que o fumo fazia em seus frágeis pulmões, mas mesmo assim prosseguiu: - O bichinho é um agrado pro Aiê. Não quer voz de cantor? Dá o vira-lata pro Aiê que ele atende ocê. Convencido, ou talvez nem tanto, mas o suficiente para manter firme o intento, entregou a corda que segurava o cão para o feiticeiro. O velhote ergueu-se, não sem algum esforço, da caixa de madeira em que estava sentado e dirigiu-se, conduzindo o bicho para um compartimento ao fundo do casebre. Percebendo o rapaz ainda assuntado e confuso, voltou-se mais uma vez, como que para esclarecer a situação e definitivamente tranquilizá-lo. - Some por uns tempo. Ocê vai perceber a muda da voz... Aos pôco, aos pôco. Depois procura gente da música. Desses que grava disco. O Aiê garante, ocê vai entrá. E puxando o cão pela guia, transpôs a cortina que separava os cômodos e penetrou na escuridão. O homem, aquele que encomendara o trabalho, já havia se levantado e ia se dirigindo à saída, quando ouviu ainda: - Ocê vai tê um uivo de lobo! Um uivo de lobo!
“Rock and roll é uma explosão nuclear de realidade em um mundo mundano onde ninguém pode ser magnífico.”
“Provavelmente, sou um dos últimos humanos que cheira à imortalidade e magnificência.”
Kim Fowley
O punk e o glitter rock tem muito mais em comum entre si do que as aparências supõem. Se a radicalidade anti-sistema de um confrontava com a conformidade capitalista de outro, no fim das contas, as distâncias não eram tão grandes assim. A New York Dolls, surgida em meio à efervescência tanto de um quanto de outro movimento, foi a mais efetiva junção desses dois gêneros. Seu figurino carregado, casado com o som agressivo e intenso, não deixam mentir. Mas mesmo aqueles mais identificados com o glam, como David Bowie, T. Rex e Roxy Music, seguidamente davam passos com suas plataformas extravagantes pelo lado selvagem trilhado por Velvet Underground, The Stooges, MC5, Dictators e outros precursores do punk. Quem escuta "Suffrgatte City", de Bowie, pode tranquilamente dizer que se trata de uma música da MC5 ou de Johnny Thunders. A inglesa Bauhaus, em sua fase mais punk, antes de darem a guinada dark à sua sonoridade, gravavam "Telegrama Sam" de Marc Bolan apenas acelerando ligeiramente o compasso. O “punk pub” da Dr. Feelgood, igualmente, bem podia ter saído da mente de Gary Glitter.
Estas semelhanças sonoras de intercâmbio entre punk e glitter, entretanto, quando no campo da indústria musical operava de forma bem mais desigual. E quem levava a melhor era, claro, a turma da purpurina, por natureza mais afeita aos holofotes e ao circo do mainstream - o qual não raro era, pelo contrário, odiado e até combatido pela galera de coturno e jeans rasgadas que frequentava o CBGB. Quem sabia transitar por estes dois mundos, o imundo e o radiante, com naturalidade era Kim Fowley. E o fazia por um simples motivo: como um bom roqueiro indolente e narcísico, Fowley não estava nem aí pra um ou pra outro. Rótulos? Que se danem! Fowley queria saber mesmo era de uma boa contradição.
Figura dândi e entrincheirado à turma da glam, este californiano excêntrico e múltiplo se valia de sua imagem outsider e da menor visibilidade na comparação com astros pop como Bowie e Kiss para não se comprometer com classificação alguma. Depois de quatro álbuns solo, “Love Is Alive and Well”, de 1967, “Born to Be Wild”, “Good Clean Fun” e “Outrageous”, os três no mesmo ano de 1968, e “The Day The Earth Stood Still”, de 1970, Fowley chuta o balde e produz o disco que pode ser classificado como "creep glitter" ou “glam maldito”: "I'm Bad". O nome não poderia ser mais sarcástico. Afinal, o que esperar de um artista que se autointitulava "pedaço de merda" e, noutra hora, de “muito mais interessante do que tenho o direito de ser”? Rock n roll na veia.
Fowley, antes de assumir a própria carreira, no entanto, cuidou muito mais da dos outros. Empresário e produtor, deu luz a trabalhos de Alice Cooper, Kiss, The Modern Lovers, Kris Krostofferson e Soft Machine e lançou bandas como a The Runnways, seu mais célebre feito à indústria fonográfica. A bagagem acumulada desde os anos 50 - a qual contava também com experiências com figuras míticas como Phil Spector, Frank Zappa e Gene Vincent - foi trazida para sua obra própria com muita noção de síntese. Rockabilly, psicodelia, R&B, punk, garage, barroco... tudo arrecadado das experiências sonoras e sensitivas de Fowley ao longo dos anos seja como produtor, compositor ou simplesmente ouvinte. Dono de um modo muito eficiente e direto de compor, Fowley chega em “I’m Bad” pronto para forjar um trabalho que não precisa muito para soar como o mais puro rock. Baixo, guitarra e bateria (quando muito, um piano e uma gaita de boca). Para arrematar, a voz ineditamente rasgada de Fowley, Imagine-se em Captain Beefheart cantando como Iggy Pop de “Raw Power”. Ou um Howlin’ Wolf colérico como Rob Tyner. Um Tom Waits três vezes mais rouco e bêbado. Pois é: este é Kim Fowley em “I’m Bad”. Ele nunca havia cantado assim por mais de raras frases de algumas músicas anteriores. Grave, cavernoso, áspero, ruidoso. Voz de homem "mau”.
“Queen Of Stars” abre os trabalhos dando o recado que Fowley estava determinado a passar. Riff simples a la Stones e uma bateria marcada e ligeira, "pogueante". Uma guitarra na base e outra fazendo contraponto ou solando. Um baixo firme no comando. Uma bateria seca. Tudo sujo, sem requintes de produção. E isso basta. “Forbidden Love”, mais cadenciada, tem a slide guitar arábica e aguda de Warren Klein sobre uma levada nos chipôs da bateria de Dreshan Theaker. Exímio produtor que era, Fowley usa de um artifício muito interessante ao transformar o som de ar comprimido de um sintetizador com a emissão do sopro dos próprios pulmões. Isso, para terminar a faixa imitando estranhos grunhidos de porco (!).
Já “Man Of God” volta à pauleira, tanto na pulsação quanto na simplicidade inteligente do riff. O baixo de Peter Sears é um dos destaques. Interessante notar que a produção não é nada sofisticada, até grosseira, com visível desleixo, ainda mais sendo produto de alguém que sabe como poucos operar uma mesa de estúdio. Neste caso, a sujeira é totalmente proposital para demarcar essa ponte entre punk e glitter rock – a qual Fowley acabava de dinamitar. “Human Being Blues” é bem isso: um blues glam ao estilo do que Bowie e Slade inundariam as rádios naquele mesmo ano de 1972. A faixa-título, na sequência, não podia ser mais simbólica. Ouvir Fowley quase se esgoelando para dizer “I’m so bad” sobre os estampidos secos de Theaker e as guitarras rascantes é didático para qualquer músico do rock até hoje.
Com outro grande riff, que conjuga as duas guitarras e o baixo, “California Gypsy Man” é mais um blues-rock envenenado, enquanto a deliciosa “It's Great To Be Alive”, com seu pianinho maroto, resgata o rocker Fowley forjado no rock dos anos 50. Os Ramones certamente adorariam ter escrito essa música. “Red China”, outro bluesão carregado, traz a guitarra de Klein como protagonista e apenas um leve efeito na bateria, um pequeno detalhe para a sonoridade invariavelmente crua do disco.
No seu estilo ambíguo, Fowley abre “Gotta Get Close To You” sentenciando a divergência: “Life/ Death/ Low/ Loud”. Outra levada de baixo empolgante de Sears, com as guitarras tanto a solo de Klein quanto a de Mars Bonfire, encarregado da base, improvisando sobre a cadência blueser. Fowley, em sua rouquidão espasmódica, faz lembrar o canto de Dr. John, só que bem mais endemoniado. Para finalizar, o autor não dá respiro e convoca os deuses negros do blues californiano para um encerramento contagiante. Guitarras extasiadas. Piano estraçalhando acordes. Baixo suingado. Canto performático.
Fowley, morto em 2015, vítima de um câncer na bexiga, definitivamente não veio para explicar e, sim, para confundir. Controverso e polêmico, haja vista as desavenças com Joan Jett e acusações de abuso sexual que pesavam sobre ele por parte das The Runnways, até o final da vida disse tudo o que queria e também desdisse tudo o que queria. Glam, punk, pós-punk, garage, new wave... Para o inferno com todas essas convenções! O negócio de Fowley, conhecido como “lorde do lixo”, era cumpriu a ingrata missão dos roqueiros de verdade neste mundo. Mundo que talvez não os mereça, mas eles, homens maus como Fowley, contrariam e rolam suas pedras musicais mesmo assim. O mundo que aguente tamanha grosseria. E poesia.
Tinha eu tenros 11 aninhos de idade quando ganhei meu toca-discos Phillips, daqueles cuja caixa de som é a tampa, bem pequeno, mas que me servia muito bem na época. Como não tinha muita grana pra comprar LPs, comecei a atacar as discotecas dos primos. As primeiras vítimas foram a Tania e o Clebar Derivi Barros, que moravam na César Lombroso. Peguei emprestado com eles três discos: "The Best of The Ventures", com a banda de surf music tocando o tema da série Batman; o disco psicodélico dos Stones, "Their Satanic Majesties Request", e o "Led Zeppelin II".
Fiquei fissurado pelos três mas o Led Zeppelin me impressionou, porque era “roquenrou” de verdade. Peso, muito peso. De cara, curti "Living Loving Maid" e "Whole Lotta Love". Aos poucos, fui entrando no clima da banda e passei a ouvir com atenção "The Lemon Song", "Heartbreaker", "Ramble On" e mais o resto do disco. Posso dizer que este LP preparou minha pobre cabecinha de guri para o que vinha pela frente. Continuei comprando os compactos da moda e ouvindo a Continental mas nunca mais me recuperei do "trauma" de ouvir Led Zeppelin aos 11 anos.
Tempos depois, aos 17, quando estava no cursinho IPV, a Yes Discos ainda na Rua da Praia fez uma superpromoção com todos os discos do Led sendo vendidos a um precinho razoável. Tentei convencer minha mãe a me dar de presente mas ela achou muito caro. Me vinguei anos depois, na era do CD, comprando TODOS os discos oficiais da banda. E descobri que alguém mais gosta de Led, especialmente do "Led IV", que sumiu lá de casa.
******************* FAIXAS: 1. "Whole Lotta Love" (Jimmy Page/Robert Plant/John Paul Jones/John Bonham/Willie Dixon) - 5:34 2. "What Is and What Should Never Be" (Page/Plant) - 4:47 3. "The Lemon Song" (Page/Plant/Jones/Bonham/Howlin' Wolf) - 6:20 4. "Thank You" (Page/Plant) 4:47 5. "Heartbreaker" (Page/Plant/Jones/Bonham) - 4:15 6. "Living Loving Maid” (“She's Just a Woman”) (Page/Plant) - 2:40 7. "Ramble On" (Page/Plant) 4:35 8. "Moby Dick" (instrumental) (Page/Jones/Bonham) - 4:25 9. "Bring It On Home" (Page/Plant/Dixon) - 4:19
- É meio incerto, mas acreditamos que
tenha sido com o advento de um tipo de arquivo físico chamado fita
cassete. O conceito de álbum, obras musicais produzidas pelo
artista, muitas vezes conceituais, pensadas da capa à última
música, começou a desmoronar. As pessoas tinham 60, 90 minutos para
gravar o que quisessem e muitos faziam coletâneas descriteriosas.
Mas não foi tão grave, muitos ainda gravavam LP's nas fitas e
tinham discotecas portáteis. Contudo, o compact disc, um disco
digital com maior capacidade e possibilidades de armazenamento, só
veio a piorar as coisas: eram 80 minutos no mínimo ou horas
intermináveis com os tais arquivos MP3, este por certo você já
ouviu falar?
O homem de uniforme laranja concordou
com a cabeça e então o outro prosseguiu:
- Este sim foi o começo do fim: o MP3.
Cada vez mais compactaram-se aparelhos, as possibilidades de
agrupamentos de arquivos musicais eram infinitas. Aparelhos portáteis
cada vez menores no tamanho mas com cada vez maior capacidade
interna. Todos só faziam compilações pessoais. Os álbuns foram
deixando de existir. Para eles, lá em cima, era perfeito. Enquanto
as pessoas ouvissem música em seus aparelhos apenas para ir ao
supermercado, correr, fazer musculação, cada vez mais iam perdendo
os critérios, o senso crítico, iam pensando cada vez menos...
Baixou a cabeça como a lamentar pelo
que estava relatando mas tomou novo fôlego e continuou:
- Mas não era suficiente, você
entende? Tinham que se certificar que não estivéssemos ouvindo uma
obra inteira nos nossos aparelhos, que não tivéssemos a contestação
sarcástica de um Dylan, a fúria de um Kurt Cobain, o ódio de um
Johnny Rotten, a politização de um Bob Marley. Nada que nos fizesse
pensar. Aí começaram as proibições. Primeiro passou a ser
proibido ter aparelhos antigos em casa. Toca-discos, 3 em 1,
gramofones, tudo o que tocasse os antigos discos de vinil.
- O que eram esses... discos de vinil?
- perguntou o ouvinte.
- Eram os LP's dos quais falei. Discos,
disco mesmo. De mais ou menso 30 cm de diâmetro, havia menores, os
compactos, mas a maioria eram os grandes, conhecidos como bolachões.
Tinham faixas gravadas em ambos os lados e eram reproduzidos em aparelhos giratórios, mais comumente a 33 e 1/3 rotações por minuto, pelo
contato de uma agulha que lia sua superfície. A agulha ia deslizando
da borda externa para dentro e assim que chegava no limite interno
era necessário que se levantasse a agulha, virasse o disco para se
ouvir o outro lado.
- Pouco prático, não? - observou o
outro que até então apenas ouvia atento.
- Até pode parecer, mas você não
imagina o prazer que dava em sentir o primeiro contato da agulah com
o vinil. O chiado que fazia ao roçar nele, a expectativa para o
final de cada lado e para o início do outro...
Montag não entendeu muito bem mas
acreditou que provavelmente tratasse de algo especial.
- Mas então? Como chegamos a este
ponto? Como as coisas são hoje.
Retomou então o homem:
- Bem... não é difícil imaginar. Em
seguida aos discos proibiu-se os CD's, os dispositivos portáteis, a
compra de arquivos em bloco ou de um mesmo artista, os downloads
passaram a ser monitorados pelo governo, foram proibidas então as
músicas com letra, instrumentos e por fim, percebendo que até um Beethoven, um
Sivuca ou um Glass podem estimular pensamentos mesmo sem palavras,
resolveram criar a Rádio Estatal e esse o som que sai das paredes. O
único som que é permitido. É lobotômico, você sabia? Deve-se
evitar ouvi-lo prolongadamente. Mas a população ouve. Gostaram da
música do governo. Aliás o povo sempre foi assim, gosta do que der
pronto para ele.
Suspirou fundo, olhou na direção das
árvores:
- O K7 até voltou a ganhar alguma
força no submundo mas tão logo os homens souberam iniciaram uma
nova onda de perseguições e buscas. E é aí onde você entra.
- Mas eu não sou mais um coletor –
defendeu-se rapidamente Montag – Eu, eu... durante uma busca para
coleta eu peguei um aparelho. Eu não o coloquei na prensa. Guardei
no bolso. Eu o levei para casa e consegui ouví-lo. Ainda usei os
fones de ouvido da Central, mesmo. Os que usamos para sermos avisados
das buscas. Eu ouvi.
- O que você ouviu, Montag. É este o
seu nome, não? Montag?
- Sim, é. No aparelho, um reprodutor
de MP3 havia um arquivo chamado “Help”. Eu ouvi aquilo... havia
uma música chamada “Yesterday”. Ela simplesmente... me fez
chorar. Não sabia que músicas podiam fazer isso com a gente.
- Oh, sim... Eles eram conhecidos como
The Beatles. Dizem que foram os maiores. “Help!” foi um grande
álbum – confirmou o outro com ar de satisfação – A música é
muito poderosa. Por isso não querem que as ouçamos.
- Quer ficar conosco?
- Adoraria. Ainda mais agora que sou
uma espécie de “ameaça ao governo” - riu.
- Pois bem, aqui somos apenas uns 80,
mas há muitos outros em muitas outras colônias clandestinas como
esta pelo mundo afora. Pessoas dispostas a manter vivo o encanto, a
magia e o ideal dos artistas e das suas obras fonográficas. Não foi
pensado! Na verdade tudo começou meio que por acaso. Um homem aqui,
outro ali, amante incondicional de música tratou de guardar no lugar
mais seguro e intransponível, seu cérebro, no mínimo, uma música
que amasse muito. Todos os detalhes possíveis, a melodia, a
entonação, a batida, um ruído secreto. São homens-música. Deu-se
que calhou de juntarmo-nos aqui e nestes outros lugares que falei,
onde o governo ignora ou prefere que fiquemos desde que não
“importunemos” sua ordem. O que eles não sabem é que assim que
temos notícia de que uma outra “música” que faça parte de uma
obra esteja pronta, tratamos de trazê-la para cá ou levá-la para
onde possa compor um álbum. A propósito, não me apresentei, sou
“Águas de Março” de Tom Jobim.
E apontou adiante mostrando:
- Aquele ali é “Non, Je Ne Regrete
Rien”, de Édith Piaf; aquele outro sentado é “Little Red
Rooster”, de Willie Dixon, na versão de Howlin' Wolf; aquele outro
é “Anarchy in the U.K. Dos Sex Pistols; aquela moça bonita de
vermelho é “Venus In Furs” do Velvet Underground. E vê aqueles
todos juntos? Aquelas nove peassoas? Conseguimos reunir todas as
músicas do “Let It Bleed” dos Rolling Stones – sorriu com
satisfação.
- Não é fácil – continuou- Nem
sempre conseguimos reunir álbuns inteiros, às vezes temos 4, 5
homens-música mas os outros estão espalhados por aí, por outras
colônias, ou simplesmente vagando solitários com sua música
favorita guardada em sua cabeça até que um dia as músicas sejam permitidas novamente e que aqueles clássicos possam voltar a serem gravados. Você ainda tem o aparelho? O
arquivo?
- Sim, sim. Eu trouxe na fuga –
apressou-se em mostrar, tirando do bolso.
- Acha que pode decorar sua letra,
melodia, os detalhes de sua percussão? Acha que consegue identificar
os instrumentos?
- Creio que sim.
- Pois então, ouça bem, ouça quantas
vezes precisar e trate de gravar na sua mente. Assim que tiver
terminado faremos o que você sempre fez, destruiremos o arquivo para
que o governo não tenha motivo para prender qualquer um de nós.
Temos alguns fones velhos se precisar.
- Eu gostaria muito.
- Vamos lá. Vamos à cabana buscar –
conduzindo Montag com a mão em seu ombro.
No caminho para a choupana que lhes
servia de alojamento, passaram por uma menina de uns dezessete anos
que cantarolava alto o suficiente apenas para que quem estivesse
perto dela conseguisse ouvir, “in dreams i walk with you...”.
Era “In Dreams” de Roy Orbison.
Quando assisti ao ótimo bluesmanKenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show
fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi
Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de
Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava
por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra
boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som
de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde
tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além
destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita
combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o
MDBF, vontade alimentada há anos.
Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma
programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações
internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o
MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos)
que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso
é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso
ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de
apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento,
fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o
local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato
cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela
sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía
ajudou a aumentar o clima cinematográfico.
Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das
pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que
ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85
anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente
por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de
irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições
deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja
vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele
referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um
caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul
norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e
trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do
início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se
sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.
Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em
si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e
chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado
blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado,
repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e
apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto.
Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo,
orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the
blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua
voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter,
“Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que,
além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”,
autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia
outro episódio importante horas depois...
"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage,
iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli,
ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das
apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e
que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que
assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por
ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa:
Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide
guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música
que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de
rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano
Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele
velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia
observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando
empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.
Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou
ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua
guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno
palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de
“Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante
quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o
baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e
sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião,
também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias
vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy
Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.
'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no
Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais
atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan"
Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse
apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e
passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito
rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só
corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite
uma sequência de notas, sempre com muito groove.
Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra
imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.
Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um
pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor),
que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o
que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais
para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra
das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a
cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles
vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para
Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi
tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym
n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no
sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua
poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a
plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de
sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com
repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a
excelência da voz de Zora.
A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia
ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com
receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a
equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir
Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais...
Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar
do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali,
sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas
que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar
a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de
verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado
no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora
e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco,
estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu,
abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.
"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento
compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o
MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu
mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer
Leocádia: “Oh, baby, don't you want to
go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet
home, festival?”