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terça-feira, 10 de março de 2020

Marisa Monte - "Mais" (1991)



"Ela tem umas coisas
 que nasceram com ela:
carisma, uma beleza calma
e uma enorme cultura musical."
Nelson Motta




Ela já havia interpretado uma música deles em seu álbum de estreia e, não muito tempo depois, um encontro num especial da Rede Globo que a colocava no mesmo palco com os Titãs, além de servir de alavanca para o namoro com o baixista Nando Reis, encaminharia a parceria que se materializaria objetivamente, logo ali adiante no excelente álbum "Mais", de 1991 e ainda abriria o caminho para, mais futuramente, o projeto Tribalistas, já mencionado aqui nos A.F., de Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que faz a percussão em grande parte das músicas. "Mais" pode até parecer, num primeiro momento, uma espécie de projeto alternativo dos Titãs com outro tipo de concepção vocal, dada a quantidade de músicas em que eles têm, no mínimo, participação nas composições. Causa ou consequência da então recente relação de Marisa com Nando, a parceria com os Titãs refletiria na linguagem do trabalho como um todo, até mesmo, de certa forma nas versões de outros artistas. Com exceção de "Rosa", de Pixinguinha, de estrutura mais complexa e letra rebuscada, a maioria das outras covers poderia caber, sem problemas num disco do octeto paulista, como no caso de "De Noite na Cama", de Caetano Veloso, por exemplo, a adaptação do folclores nordestino, "Borboleta", e até mesmo, por incrível que pareça, "Ensaboa", de Cartola, que dentro do espectro da obra do mestre da Mangueira, pode ser considerada uma de suas letras mais minimalistas e de estrutura diferenciada. Mas seria uma injusta simplificação reduzir o trabalho a uma experimentação titânica. "Mais" é muito mais! Marisa Monte canta, encanta, brinca, emociona, impressiona. Com produção do norte-americano Arto Lindsay, o disco é eclético sem ser pretensioso e tem um equilíbrio perfeito entre as faixas o que faz com que seja prazeroso e mantenha um frescor mesmo para quem já o conhece de muitas audições.
"Beija Eu", com letra de Arnaldo Antunes, comprova que o mesmo cara que fazia coisas como "Saia de Mim", era capaz de compor algo tão belo e delicado como aquela faixa de abertura, que, por sinal, não merecia outra interpretação que não à de Marisa Monte, doce e graciosa. "Volte para o seu lar", rebelde e impositiva, é a mais titânica das músicas do disco, contando com uma leitura musical perfeita de Marisa que dosou com sabedoria a melodiosidade com a pungência da letra ("Aqui nessa casa/ Ninguém quer a sua boa educação/ Nos dias que tem comida/ Comemos comida com a mão...", "Aqui nessa tribo/ Ninguém quer a sua catequização/ Falamos a sua língua/ Mas não entendemos o seu sermão"...). "Ainda Lembro", canção de amor elegante e de muito bom gosto, conta com a luxuosa participação de Ed Motta compõe com Marisa um dueto que pode se incluído entre os grandes da música brasileira. Em "De noite na cama", Marisa dá um ar leve à canção de Caetano Veloso, inúmeras vezes regravada na discografia nacional, desta vez com uma interpretação bem solta e alegre; e a "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Cruz, a confere senão a versão definitiva, no mínimo uma das mais memoráveis. E em "Borboleta", cantiga tradicional do nordeste, Marisa Monte começa fazendo a voz pairar suavemente sobre nosso jardim sonoro para em seguida, sobre uma base acústica, desfilar seu canto doce e gracioso.
Marisa começa esticando a voz em "Ensaboa", sugerindo um cântico de lavadeiras, a música ganha um coro no refrão que também remete a um canto do trabalho conjunto na beira do tanque e de ribeirões, e culmina num pout-pourri, simplesmente extático, com "Lamento da Lavadeira", "Colonial Mentality", "Marinheiro Só", "A Felicidade" e "Eu Sou Negão". Espetacular!
"Eu não sou da sua rua", outra muito titânica, é uma espécie de "Lugar Nenhum"l mais leve e melancólica. "Diariamente", de Nando Reis, uma das melhores do disco, usa um formato em lista, como era característico dos Titãs em músicas como "Nome aos bois", do próprio Nando, só que aqui com atividades e situações rotineiras, numa anáfora conduzida de maneira brilhante pela cantora sobre uma base de violão constante e repetida.
Marisa se aventura pela primeira vez em uma composição solo e se sai bem na gostosa "Eu Sei";
"Tudo pela metade", parceria de Marisa com Nando, talvez seja a mostra mais perfeita no álbum do êxito da combinação de seu estilo com o dos Titãs, ficando bem evidenciado o ponto onde acaba um, começa o outro e onde se fundem. Um pop delicioso de refrão cativante e que fica mais bacana ainda na última vez em que se repete com um coro de crianças bem espontâneo e "bagunçado"; e "Mustaphá", uma balada zen, tranquila, com um belíssimo trabalho de violão, fecha o disco com competência.
"Mais" era a confirmação de Marisa Monte. Se passara uma boa impressão com o primeiro disco "MM", um ao vivo só de versões de outros artistas, mas deixara uma certa dúvida sobre ser ou não um daqueles fenômenos efêmeros que parecem de vez em quando, este disco mostrava que ela não era só mais uma cantora de um ou dois hits. Ela chegara para ficar. Era mais uma das grandes mulheres da música brasileira. Uma mulher com M maiúsculo! M de música, M de Marisa, M de Mais.

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FAIXAS:
1."Beija Eu" -  Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Arto Lindsay (3:10)
2."Volte Para o Seu Lar" - Arnaldo  Antunes (4:41)
3."Ainda Lembro" - (participação especial de Ed Motta) - Marisa Monte, Nando Reis (4:05)
4."De Noite na Cama" - Caetano Veloso (4:24)
5."Rosa" - Pixinguinha, Otávio de Souza (2:43)
6."Borboleta" - Folclore Nordestino (1:56)
7."Ensaboa (Lamento da Lavadeira)" - Cartola, Monsueto Menezes (4:15)
8."Eu Não Sou da Sua Rua" - Branco Mello, Arnaldo Antunes (1:29)
9."Diariamente" - Nando Reis (4:05)
10."Eu Sei (Na Mira)" - Marisa Monte (2:40)
11."Tudo Pela Metade" - Marisa Monte, Nando Reis (4:11)
12."Mustaphá" - Marisa Monte, Nando Reis (2:23)
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Ouça:
Marisa Monte - Mais


Cly Reis

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Tribalistas - "Tribalistas" (2002)


“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”. 
Da canção “Mary Cristo”

Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.

A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.

A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.

Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.

Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual
na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.

Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos  - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.

A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.

"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).

Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.

Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.

O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.

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Clipe de "Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"


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FAIXAS:
1. "Carnavália" - 4:16
2. "Um a Um" - 2:41
3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10
4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54
5. "O Amor É Feio" - 3:11
6. "É Você" - 2:51
7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36
8. "Mary Cristo" - 3:00
9. "Anjo da Guarda" - 2:47
10. "Lá de Longe" - 2:17
11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58
12. "Já Sei Namorar" - 3:16
13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Tribalistas - "Tribalistas"

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

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FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Velha Guarda da Portela – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (28/11/2014)




A Velha Guarda no palco da Redenção
(foto; Tita Strapazzon)
Corri pra ver, pra ver quem era/
Chegando lá era a Portela”.

Como são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80 anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.

Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
 Comandada pelo mestre Monarco (que também completou indizíveis 80 primaveras em 2014), a Velha Guarda da Portela agitou e emocionou, pondo pra sambar e cantar o grande público que esteve presente naquela noite ao ar livre. Sou apaixonado pelo conjunto desde os anos 90 quando, assistindo a um programa Ensaio, da TV Cultura, os descobri cantando junto com um de seus vários integrantes que já foram, Manacéa (o qual estava presente não só em sons como na pessoa de sua filha, Áurea Maria, uma das três pastoras do grupo). Fiquei tão maravilhado com o que vi que, guri afoito por registrar aquilo que gostava, pus um VHS para gravar o restinho de programa, que já havia começado. Bem fiz. Pude, com isso, conhecer, dentre algumas outras, pérolas como a tocante “Quantas lágrimas” (“Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber que não posso mais/ Reviver o meu passado...”) e o poup-pourriMau Procedimento/ Mulher ingrata/ Nega Danada”, ambas tocadas no show.

Mas foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2 horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção, que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais. Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com “O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não terminariam por aí.

Obras da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim, Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”, de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi, obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente: “Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas.
(foto: Tita Strapazzon)
Paulinho, aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no set-list, pois soou extremamente adequada àquele público ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS. Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele, também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.

Em meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim” (“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem, Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também “Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.

A comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”), clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase: “Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”. Simplistamente um espetáculo.

A delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe. Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela histórica noite na (ou “de”) Redenção.




quarta-feira, 12 de maio de 2021

Música da Cabeça - Programa #214

 

Paulo Gustavo, Cassiano, Luis Vagner "Guitarreiro"... pra compensar tanta perda só mesmo trazendo essa gente toda no MDC. Além deles vai ter também muita coisa legal, como Black Alien, The Glove, Elis Regina, Lee Morgan, Marisa Monte e mais. Tem homenagens no "Sete-List" e no "Música de Fato" e tem até Fausto Fawcett com letra sua no "Palavra, Lê". Sobrevivendo na garra, o programa vai ao ar hoje, 21h, na vivíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


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quarta-feira, 15 de julho de 2020

Música da Cabeça - Programa #171


Pereira, Jones, Reed, Buarque, Nascimento, Guðmundsdóttir e Drumont são alguns dos sobrenomes de sangue universal que estarão hoje no programa. Já deu pra suspeitar do que estamos falando, né? De música, claro! Para isso, vamos ter a ajuda destes e de Antônio Carlos Jobim, Adriana Calcanhotto, Ray Charles, Marisa Monte e mais. Também, “Música de Fato”, abordando as manifestações de racismo meio cultural gaúcho, “Cabeça dos Outros” com Caetano Veloso e “Palavra, Lê” em homenagem aos 40 anos da morte de Vinicius de Moraes. Tudo hoje, 21h, na nobre senzala da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alforria: Daniel Rodrigues.



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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Jorge Ben, "Samba Esquema Novo" (1963)



“Uma noite no Bottle’s Bar, ainda meio vazio, ouvi um mulato forte e bonito cantando e tocando um violão muito diferente(...) Ele não dedilhava o violão mas tocava-o com a mão inteira, rítmico e percussivo, à maneira dos bluesmen. Mas o que ele tocava era indiscutivelmente samba, mas um samba muito diferente...”
Trecho de “Noites Tropicais”,
de Nélson Motta


Acabei de adquirir, há poucos dias, substituindo o meu “piratinha”, um dos mais importantes álbuns da discografia nacional; um daqueles discos revolucionários em linguagem, estilo e inovação. Trata-se do clássico “Samba Esquema Novo” disco de estréia de Jorge Ben, lançado em 1963 mas que permanece vanguardista e influente até hoje.
Toda essa onda de samba-rock; Seu Jorge, Otto, Lenine, Mundo Livre S/A; todos estes e muitos outros não seriam quem são nem teriam feito o que fazem sem a existência do “Samba Esquema Novo”. Diria mais: talvez de forma indireta, talvez por conexões desconhecidas, talvez pela própria expansão natural interfronteiras da música ou por correntes marinhas do Atlântico, mas vejo no pop rock inglês, principalmente do início dos ’90, muito da linguagem proposta neste álbum e que viria a se aprimorar e ficar mais clara nos discos seguintes, principalmente no grande "Tábua de Esmeraldas" de ‘74.
Sempre lembro da descrição de Nélson Motta, no seu ótimo “Noites Tropicais”, da primeira vez que ouviu Jorge Ben: “ele não dedilhava o violão, mas tocava com a mão inteira”. Tocava samba como se tocasse rock. E seria simplificar dizer que aquilo se resumisse a um dos dois estilos ou que fosse apenas uma conjugação dos dois. Era mais. Era jazz, funk, soul, blues, gafieira e um “misto de maracatu” como anunciava a letra da sua “Mas que Nada”. Jorge Ben talvez não soubesse o que estava fazendo ali, mas com “Samba Esquema Novo” ele revolucionava de novo a música brasileira, mesmo inserido num contexto absolutamente criativo e inovador como era a Bossa-Nova.
A já citada “Mas que Nada”, abrindo o disco, já dava o cartão de visitas, apresentando todo aquele misto inusitado até então. “Tim Don Don”, que a segue, é a única não composta por Jorge, mas se presta perfeitamente para esmiuçar a levada, com onomatopéias atribuídas ao som do violão que quase explicavam o som que o garoto estava fazendo ali.
“Rosa, Menina Rosa”, uma das melhores do disco, que acrescenta à mistura do cantor uma atmosfera meio espanhola por conta de seus metais, dá o recado de que aquele samba é capaz de passar muita gente pra trás. “Menina Bonita Não Chora” é outra das grandes do álbum, e as conhecidas “Chove Chuva” e “Balança Pema”, regravada depois por Marisa Monte, são outros grandes momentos do álbum. “Por Causa de Você, Menina”, que encerra a obra em grande estilo, traz aquele “voxê” que o cantor fazia em homenagem a uma pequena fã, e que muita gente na época acreditava ser um problema de dicção. Mesmo que fosse isso... Mesmo que fosse gago, não invalidaria o baita disco que é esse “Samba Esquema Novo”.

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FAIXAS:
1. Mas que Nada (Jorge Ben)
2. Tim dom dom (João Mello - Clodoaldo Brito)
3. Balança Pema (Jorge Ben)
4. Vem Morena, Vem (Jorge Ben)
5. Chove Chuva (Jorge Ben)
6. É Só Sambar (Jorge Ben)
7. Rosa, Menina Rosa (Jorge Ben)
8. Quero Esquecer Você (Jorge Ben)
9. Uala Ualalá (Jorge Ben)
10. A Tamba (Jorge Ben)
11. Menina Bonita Não Chora (Jorge Ben)
12. Por Causa De Você, Menina (Jorge Ben)

“O samba de Jorge Ben, da batida de seu violão à linha melódica e letra de suas composições revela um novo caminho nos horizontes de nossa música popular. É o esquema novo do samba(…) Seu inato talento musical proporcionou-lhe descobrir uma nova puxada para o nosso samba, fazendo do violão um instrumento, sobretudo, de ritmo (…) Somente o violão de Jorge já da a necessária marcação dispensando, portanto, aquele instrumento de ritmo. O balanço do acompanhamento repousa quase sempre no seu violão”.
Trecho do texto da contracapa original de 1963, de Armando Pittiglianni

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quarta-feira, 25 de março de 2020

Música da Cabeça - Programa #155


Quem foi que disse que não dá pra dar uma bela saída mesmo estando em isolamento? Basta ouvir o Música da Cabeça, que a gente providencia esse passeio musical sem que você saia do conforto do lar. Damos uma passada na Inglaterra de Amy Winehouse e The Smiths, na Islândia de Björk, na Alemanha da Die Krupps, na Escócia da Cocteau Twins e noutros destinos. Ah, claro: não deixamos de fora os EUA de Bob Dylan e o quintal de casa, com Marisa Monte, Cazuza, Black Alien e mais. Sentiu aquela vontade louca de uma banda? Calma, a gente te ajuda. É só sintonizar às 21h na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. All abourd! #ficaemcasacomMDC


Rádio Elétrica:
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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Titãs - "Cabeça Dinossauro" (1986)

O MELHOR DISCO NACIONAL DE TODOS OS TEMPOS
"Oncinha pintada,
zebrinha listrada,
coelhinho peludo,
Vão se foder!"
letra de "Bichos Escrotos"


"Cabeça Dinossauro". Assim mesmo, sem a preposição. O nome já dava mostra do que estava contido ali dentro daquela capa genial e incomum que ao mesmo que impactava pelo grotesco, completava o conceito geral da obra: a cabeça dinossauro era uma transfiguração, uma metamorfose em monstro, um retorno ao primitivo, era uma digressão à língua, um não aos padrões. A própria canção homônima que abria o disco com sua batida tribal e letra 'primitiva' era retrato fiel e confirmação da proposta.
Letras simples, versos curtos, mínimos e minimalistas, aliterações, repetições e discursos diretos. Assim os Titãs deram uma reviravolta na própria carreira, até então sem uma personalidade musical definida, e construíram um dos discos mais notáveis e criativos do rock nacional. Aquilo era butal, era violento na essência, era agressivo como nunca a música popular ousara ser a tal ponto, disparando contra religião, autoridades, estado, família e capitalismo com doses variadas de desprezo, ira e ironia. Quer mais que afirmar que não gostavam de Cristo; mandar dar porrada em quem não desse nenhuma contribuição ao mundo; ou mandar os bichinhos fofinhos se foderem? Aliás, "Bichos Escrotos", que trazia este xingamento, ainda que não fosse a mais brilhante do disco, não pode deixar de ser mencionada sobremaneira por uma quebra definitiva de paradigmas na mídia por conta do "FODER" de sua letra que era cantado incessantemente pela garotada, independente da proibição de execução pública expressa na contracapa. Num país com a democracia recém instaurada e uma liberdade de expressão ainda combalida, o resultado foi que sua popularidade foi tanta, a música era tão conhecida e entoada por todos que mesmo sem ser revogada, sua proibição caiu por terra naturalmente e a faixa passou a tocar sem corte em muitos segmentos dos meios de comunicação. E, ao contrário do que soava aos pais e moralistas de plantão naquele momento, "Bichos Escrotos" não se limitava a um palavrão gratuito: aquele grito era um não à beleza artificial, ao padrão estético, uma convocação à atitude, sendo um dos mais significativos símbolos da virada que os Titãs davaam com aquela obra.
Outro momento marcante da obra é a descontrolada "A Face do Destruidor", um hardcore extremamente agressivo e veloz na execução e na duração (apenas 34 segundos) que de certa forma justificava que nada se cria e tudo se transforma mas que às vezes é importante botar tudo abaixo para construir novamente. E era o que eles estavam fazendo.
"Cabeça..." ainda traz um dos maiores clássicos do rock brasileiro de todos os tempos que ganhou inúmeras regravações, homenagens, referências, performances de todo o tipo e qualidade de artistas, de Sepultura a Marisa Monte: "Polícia"; um punk rock implacável que incrivelmente venceu no mundo pop sem fazer concessões de letra nem estilo, gravando na memória do Brasil dos refrões mais conhecidos e populares da música nacional.
Fruto da multiplicidade de estilos de um time de oito cabeças com origens, inspirações e gostos musicais distintos e da mão certeira do produtor e parceiro Liminha, "Cabeça Dinossauro" era punk na maior parte das vezes mas era tão fora dos padrões que podia trazer um raggae como "Família", um ska como "Homem Primata" ou "O Quê?", um funk estraçalhador com uma linha de baixo toda quebrada, cheio de teclados e uma interessantíssima mescla de bateria acústica com eletrônica, delineando um inquietante jogo de palavras que não cansava de perguntar e ao mesmo tempo responder "o que é que não pode ser?". E o que é que não poderia ser depois daquilo? Podia-se tudo e aquela obra ajudava a afirmar isso.
Até mesmo como resultado de experiências como a de "O Quê?", os Titãs chegariam a resultados, talvez, melhores tecnicamente com seus dois álbuns de estúdio seguintes, "Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguleas" e "Õ Blésq Blom", mas "Cabeça Dinossauro" já tinha metido o pé na porta e por este rompimento, por sua profusão de ideias e estilos, pela sua reconceituação num dos momentos mais importantes da retomada do rock brasileiro, seu impacto e reflexos, este é, minha opinião, simplesmente o maior disco do rock brasileiro de todosos tempos.

FAIXAS:
1. "Cabeça Dinossauro" (Arnaldo Antunes, Branco Mello, Paulo Miklos) – 2:20
2. "AA UU" (Marcelo Fromer, Sérgio Britto) – 3:01
3. "Igreja" (Nando Reis) – 2:48
4. "Polícia" (Tony Bellotto) – 2:06
5. "Estado Violência" (Charles Gavin) – 3:10
6. "A Face do Destruidor" (Arnaldo Antunes, Paulo Miklos) – 0:34
7. "Porrada" (Arnaldo Antunes, Sérgio Britto) – 2:51
8. "Tô Cansado" (Arnaldo Antunes, Branco Mello) – 2:18
9. "Bichos Escrotos" (Arnaldo Antunes, Sérgio Britto, Nando Reis) – 3:13
10. "Família" (Arnaldo Antunes, Tony Bellotto) – 3:32
11. "Homem Primata" (Ciro Pessoa, Marcelo Fromer, Nando Reis, Sérgio Britto) – 3:27
12. "Dívidas" (Arnaldo Antunes, Branco Mello) – 3:08
13. "O Quê" (Arnaldo Antunes) – 5:40

FORMAÇÃO (em 1986)
Arnaldo Antunes: vocal
Branco Mello: vocal
Charles Gavin: bateria e percussão
Marcelo Fromer: guitarra
Nando Reis: baixo e vocal
Paulo Miklos: baixo (em "Igreja") e vocal
Sérgio Britto: teclado e vocal
Tony Bellotto: guitarra

PRODUZIDO POR LIMINHA

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