"Ela tem umas coisas que nasceram com ela: carisma, uma beleza calma e uma enorme cultura musical." Nelson Motta
Ela já havia interpretado uma música deles em seu álbum de estreia e, não muito tempo depois, um encontro num especial da Rede Globo que a colocava no mesmo palco com os Titãs, além de servir de alavanca para o namoro com o baixista Nando Reis, encaminharia a parceria que se materializaria objetivamente, logo ali adiante no excelente álbum "Mais", de 1991 e ainda abriria o caminho para, mais futuramente, o projeto Tribalistas, já mencionado aqui nos A.F., de Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que faz a percussão em grande parte das músicas. "Mais" pode até parecer, num primeiro momento, uma espécie de projeto alternativo dos Titãs com outro tipo de concepção vocal, dada a quantidade de músicas em que eles têm, no mínimo, participação nas composições. Causa ou consequência da então recente relação de Marisa com Nando, a parceria com os Titãs refletiria na linguagem do trabalho como um todo, até mesmo, de certa forma nas versões de outros artistas. Com exceção de "Rosa", de Pixinguinha, de estrutura mais complexa e letra rebuscada, a maioria das outras covers poderia caber, sem problemas num disco do octeto paulista, como no caso de "De Noite na Cama", de Caetano Veloso, por exemplo, a adaptação do folclores nordestino, "Borboleta", e até mesmo, por incrível que pareça, "Ensaboa", de Cartola, que dentro do espectro da obra do mestre da Mangueira, pode ser considerada uma de suas letras mais minimalistas e de estrutura diferenciada. Mas seria uma injusta simplificação reduzir o trabalho a uma experimentação titânica. "Mais" é muito mais! Marisa Monte canta, encanta, brinca, emociona, impressiona. Com produção do norte-americano Arto Lindsay, o disco é eclético sem ser pretensioso e tem um equilíbrio perfeito entre as faixas o que faz com que seja prazeroso e mantenha um frescor mesmo para quem já o conhece de muitas audições.
"Beija Eu", com letra de Arnaldo Antunes, comprova que o mesmo cara que fazia coisas como "Saia de Mim", era capaz de compor algo tão belo e delicado como aquela faixa de abertura, que, por sinal, não merecia outra interpretação que não à de Marisa Monte, doce e graciosa. "Volte para o seu lar", rebelde e impositiva, é a mais titânica das músicas do disco, contando com uma leitura musical perfeita de Marisa que dosou com sabedoria a melodiosidade com a pungência da letra ("Aqui nessa casa/ Ninguém quer a sua boa educação/ Nos dias que tem comida/ Comemos comida com a mão...", "Aqui nessa tribo/ Ninguém quer a sua catequização/ Falamos a sua língua/ Mas não entendemos o seu sermão"...). "Ainda Lembro", canção de amor elegante e de muito bom gosto, conta com a luxuosa participação de Ed Motta compõe com Marisa um dueto que pode se incluído entre os grandes da música brasileira. Em "De noite na cama", Marisa dá um ar leve à canção de Caetano Veloso, inúmeras vezes regravada na discografia nacional, desta vez com uma interpretação bem solta e alegre; e a "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Cruz, a confere senão a versão definitiva, no mínimo uma das mais memoráveis. E em "Borboleta", cantiga tradicional do nordeste, Marisa Monte começa fazendo a voz pairar suavemente sobre nosso jardim sonoro para em seguida, sobre uma base acústica, desfilar seu canto doce e gracioso.
Marisa começa esticando a voz em "Ensaboa", sugerindo um cântico de lavadeiras, a música ganha um coro no refrão que também remete a um canto do trabalho conjunto na beira do tanque e de ribeirões, e culmina num pout-pourri, simplesmente extático, com "Lamento da Lavadeira", "Colonial Mentality", "Marinheiro Só", "A Felicidade" e "Eu Sou Negão". Espetacular!
"Eu não sou da sua rua", outra muito titânica, é uma espécie de "Lugar Nenhum"l mais leve e melancólica. "Diariamente", de Nando Reis, uma das melhores do disco, usa um formato em lista, como era característico dos Titãs em músicas como "Nome aos bois", do próprio Nando, só que aqui com atividades e situações rotineiras, numa anáfora conduzida de maneira brilhante pela cantora sobre uma base de violão constante e repetida.
Marisa se aventura pela primeira vez em uma composição solo e se sai bem na gostosa "Eu Sei";
"Tudo pela metade", parceria de Marisa com Nando, talvez seja a mostra mais perfeita no álbum do êxito da combinação de seu estilo com o dos Titãs, ficando bem evidenciado o ponto onde acaba um, começa o outro e onde se fundem. Um pop delicioso de refrão cativante e que fica mais bacana ainda na última vez em que se repete com um coro de crianças bem espontâneo e "bagunçado"; e "Mustaphá", uma balada zen, tranquila, com um belíssimo trabalho de violão, fecha o disco com competência.
"Mais" era a confirmação de Marisa Monte. Se passara uma boa impressão com o primeiro disco "MM", um ao vivo só de versões de outros artistas, mas deixara uma certa dúvida sobre ser ou não um daqueles fenômenos efêmeros que parecem de vez em quando, este disco mostrava que ela não era só mais uma cantora de um ou dois hits. Ela chegara para ficar. Era mais uma das grandes mulheres da música brasileira. Uma mulher com M maiúsculo! M de música, M de Marisa, M de Mais.
“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”.
Da canção “Mary Cristo”
Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.
A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.
A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.
Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.
Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.
Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.
A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.
"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).
Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.
Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.
O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.
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Clipe de"Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"
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FAIXAS: 1. "Carnavália" - 4:16 2. "Um a Um" - 2:41 3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10 4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54 5. "O Amor É Feio" - 3:11 6. "É Você" - 2:51 7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36 8. "Mary Cristo" - 3:00 9. "Anjo da Guarda" - 2:47 10. "Lá de Longe" - 2:17 11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58 12. "Já Sei Namorar" - 3:16 13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes,
Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas
Existem talentos especiais que passam pela Terra quase
despercebidos. Embora esse descuido possa ocorrer em qualquer canto do planeta,
não é difícil de se supor que os vícios de alguns lugares favoreçam a que
preciosidades sejam obscurecidas – às vezes, por uma vida inteira. O Brasil,
país jovem e com sérias dificuldades históricas de autoidentificação, é
prodígio quando o assunto é apagar seus próprios iluminados, quanto mais, os da
cultura popular. Com o samba, que sofreu por décadas perseguição, proibição e
preconceito, a demora no reconhecimento de atores fundamentais para a
construção do gênero musical mais original e identitário brasileiro promoveu um
atraso quase irrecuperável. Dona Yvone Lara, Adoniran Barbosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus e Nelson Sargento, por exemplo, só lançaram
seus discos de estreia na terceira idade. A vida humilde, a discriminação e a
ralação do dia a dia sempre lhes foi uma realidade inescapável.
Se com esses grandes nomes quase não deu tempo de
aproveitá-los, imagine-se com os sambistas de comunidade, menos midiáticos. É o
caso de Argemiro Patrocínio, também conhecido por Argemiro do Pandeiro, Argemiro
da Portela ou, simplesmente, Seu Argemiro, como era chamado em Madureira e
Oswaldo Cruz, chão dos portelenses. De uma geração à frente de Monarco ou
Candeia, dois referenciais bambas da Escola, Argemiro foi um compositor de mão
cheia, mas que nunca teve espaço suficiente para desaguar suas autorias fora da
quadra da escola. Os mais atentos podem lembrar dele na capa do disco de
estreia de D. Yvone, “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, de 1978, atrás
dela, à direita e junto com outros companheiros de samba, em que aparece meio
de soslaio quase escondido pelo inseparável chapéu. Ou na cena dos partideiros no pátio da casa de Candeia no filme “Partido Alto”, de Leon Hirszman, de 1982. Como se
vê, aparições sempre secundárias: integrado ao grupo, mas dissolvido nele.
Argemiro, contudo, começou cedo sua relação com o samba. Foi
levado, nos anos 50, pelos históricos Paulo da Portela (então diretor) e Betinho (diretor de
bateria) para a Portela, passando a integrar a Ala dos Pandeiros. Pai do Mestre
Sala Jerônimo (da Portela e Imperatriz Leopoldinense), mais tarde entrou na Ala
dos Compositores e também na velha-guarda da Escola, a qual, apadrinhada por
Paulinho da Viola, se tornou uma referência entre as velhas-guardas cariocas a partir dos anos 70.
Homem de pouco estudo, mas de enorme sabedoria e
inteligência, Argemiro trabalhou duro como técnico em refrigeração, profissão
pela qual se aposentou de forma humilde. Isso explica em parte porque só
começou a compor aos 56 anos, no final dos anos 70. Não demorou para que suas
músicas, as mais de 100 que anotava com esmero num caderno, fossem
reconhecidas. Em 1980, a madrinha do samba Beth Carvalho gravou a primeira
composição sua, “A Chuva Cai”, parceria com Casquinha. Entre discos da
Velha Guarda da Portela, participações em trabalhos de Zeca Pagodinho, Teresa
Cristina e Grupo Semente, ganhou reconhecimento como o autor original que é, principalmente, na virada para o século 21. Ou seja: já na velhice. Não somente ele, como
também os companheiros de Velha Guarda Casquinha e Jair do Cavaquinho, que
tiveram, após o lançamento do álbum “Tudo Azul”, da Velha Guarda, em 2000, seus
também primeiros discos gravados todos pelo selo Phonomotor, de Marisa Monte, um em
2001 e outro em 2002. Argemiro, que esperara oito décadas para isso, foi o
terceiro da fila e não desperdiçou a oportunidade de marcar de vez seu
nome na história da discografia do samba.
Poeta romântico e melodista precioso, Argemiro abre o disco com um
soar de cavaquinho e a voz às vezes sôfrega e sibilante, mas naturalmente elegante e carregada de experiência
vocal (e de vida). Ele canta os poéticos versos, que impressionam pela concisão
das poucas palavras: “Não sei/ Porque/ Tudo de mal/ Acontece comigo/ Tentei/ Mudar/
Em vão/ Mas não consigo”. E arremata: “Ninguém pode fugir do seu destino/ Esse
meu sofrimento é desde os tempos de menino”. Argemiro dá o tom da sua poética,
calcada na tradição do samba de terreiro: o amor não correspondido, o
sofrimento do coração partido, a mulher que abandona. Emendada, “Tudo Mudou Tão de Repente", uma das parcerias com outro célebre portelense, Chico
Santana, segue na mesma linha: “Eu não sei se é meu destino/ Desde os tempos de
menino/ Vivo sofrendo assim”. A sina do sambista, este eterno sofredor.
O violão de Paulão 7 Cordas, o cavaquinho de Mauro Diniz
(filho de Monarco) e a “cozinha” de Felipe D’Angola e Marcelo Moreira dão a
Argemiro o espaço necessário para ele entrar com seu pandeiro e sua voz. A
magnífica “Solidão”, de tão classuda, ganha o toque do violoncelo de Jacques Morelenbaum. E olha que poética! “Um fantasma que mata/ E que maltrata o
coração/ É dor, angústia e sofrimento O tédio é um eterno tormento/ Assim é a
solidão”. Sua clássica "A Chuva Cai”, já ouvida na voz de Beth Carvalho,
Renata Arruda, Grupo Explosão do Samba, Régis Clemente e outros, tem agora,
enfim, a do seu próprio autor. A história da música no Brasil devia isso ao
samba.
Marisa Monte, produtora do disco, sabia dessa importância
histórica e dá ao conteúdo musical e até antropológico o devido capricho.
Marisa, por sinal, vinha de alguns anos encabeçando o projeto de valorização da
Velha Guarda da Portela. Primeiro, com o disco “Tudo Azul”, também produzido
por ela. Mais tarde, os de Casquinha, Jair do Cavaquinho e este, além do belo
documentário “O Mistério do Samba”, de Lula Buarque de Hollanda e Carolina
Jabor, de 2008, que a tem como cicerone. É neste filme, aliás, que
Argemiro ganha seu primeiro protagonismo em vida, tratado como um dos
personagens centrais da Portela. Constantes no filme, "Deslize Da
Vida" (“A vida/ Não é somente doçura/ Tem que haver amargura/ Para se dar
o valor”) e a maravilhosa "A Saudade me Traz", com direito a "clipe",
tem a ilustre participação de Zeca Pagodinho e das vozes femininas da Velha
Guarda, as Pastoras – leia-se Tia Doca, Tia Eunice, Tia Surica e Áurea Maria. Uma
das melodias mais bonitas da história do samba carioca e com uma letra, que é
um show de domínio de prosódia e sintaxe: “A saudade me traz/ Quero rever
alguém/ Que do meu coração não sai/ Eu vivo nessa agonia sem fim/ Eu canto, eu
bebo para esquecer/ Mas nem assim”. Luxo só.
trecho do filme "O Mistério do Samba" com o "clipe" "A Saudade me Traz"
Capricho também se vê no arranjo especial dado a cada faixa.
"Cadê Rosalina", um samba-de-roda com ares rurais, recebe, além das
vozes tão afinadas quanto agudas das Pastoras, o
acordeom de Waldonys. Trato semelhante em conceito tem “Vem Amor”, samba cadenciado
em que o violino de Nicolas Krassik escreve frases líricas sobre a base de
tamborim e o limpo cavaquinho de Mauro Diniz; bem como o samba romântico
"Dizem Que o Amor", toda na voz delicada de Marisa e cujo
arranjo valoriza as cordas do cavaquinho, do violão e do cello de Jacquinho.
Por falar em voz feminina, é a da fã e parceira Teresa Cristina que aparece em
“Amém” para dividir os microfones com o ídolo. Um samba recente, mas com cara
de clássico das antigas.
Galanteador, malandro da velha estirpe e cheio de histórias,
Argemiro transpõe para seus sambas embates amorosos como o de ‘Nuvem que Passou”.
"Essa saiu de repente, inteira por causa de uma mulher que não deu certo.
Nós nos encontramos, ela veio com saudade, mas eu não quis dar o braço a
torcer", resume. Outra nesta linha é a divertida (mas não menos melodiosa) “Saia da Casa dos Outros”, na qual Argemiro lembra outra companheira
que era frequentadora assídua da vizinha, em frente a uma vila em que ele
morava em Oswaldo Cruz.
O próprio Argemiro comanda o pandeiro – e apenas mais o
cavaquinho – em "Lamento de um Portelense", quase uma vinheta, que
antecede outra das joias do álbum: "Em uma Noite de Verão". Samba-canção valseado, com harmonia complexa e engenhosa e de letra de alta
expressividade e lirismo. “Até o brilho das estrelas/ Se fez presente aos olhos
meus/ Como foi maravilhoso vê-las/ Que bom seria se não fosse o adeus”. É ou
não é de dar inveja em muito compositor/letrista com bastantes mais condições na
vida?
E o que dizer da maestria de "Vou-me Embora pra Bem
Longe"? Esta é tão melodiosa e especial, que rendeu não uma faixa, mas
duas no disco. A primeira, na voz de Moreno Veloso, com breve participação do
seu autor. A segunda, num eletro-samba remixado por Marcelo D2 que, esta sim,
traz o vocal inconfundível de Seu Argemiro. A letra? Essa maravilha aqui: “Vou
embora para bem longe/ Não posso mais ficar/ Você não me corresponde/ E os meus
anseios não podem esperar”. Note-se o domínio do fraseado e do bom uso dos
recursos linguísticos (mesmo que isso se dê de forma totalmente inata): “Amar,
como eu amei/ Até pensei que fosse minha um dia/ Cantar, também cantei/
Extravasei a minha alegria/ Mas tudo não passou de fantasia”. Uma estrutura literária
própria dos grandes poetas.
A notoriedade que Argemiro recebeu, enfim, ainda em vida,
infelizmente durou pouco. Em 2003, ao lado de Teresa Cristina, Jair do
Cavaquinho e Grupo Semente, apresentou-se no Centro Cultural Carioca, na Praça
Tiradentes, no Rio de Janeiro. Pouco depois, vítima de uma parada cardíaca, viria
a falecer, aos 81 anos, meses depois de lançar seu único disco solo. Quase não deu tempo de registrar essa preciosidade da música brasileira.
Ah, mas Seu Argemiro sempre tinha mais uma história! E esta
aqui envolveu Vinícius de Moraes. Depois do sucesso de “A Chuva Cai”, Paulinho
da Viola levou Argemiro num bar onde estavam Vinicius e Chico Buarque para apresentar-lhes o "novo compositor". Provocador, Vinícius, informado da capacidade de Argemiro fazer samba de partido-alto, aquele inventado na hora, olhou para ele e falou. “Faz música, mesmo? Então faz uma sobre essa garrafa aí
na mesa”. Argemiro fechou o semblante e respondeu que não ia escrever sobre a
garrafa, pois não estava sentido nada por ela. Ficou um climão, mas Argemiro foi
para casa com aquilo na cabeça. Na semana seguinte, pediu para Paulinho levá-lo
novamente àquele bar. Ao chegar, retirou a caixa de fósforo do bolso e batucou
para a seleta plateia em que estavam novamente Vinicius e Chico o samba que havia composto naquela semana. Era “Minha Inspiração”, que fecha este disco em um canto a capella de Argemiro:
“Eu direi vocês estão enganados
Não faço sambas fabricados
Compreendendo vão me dar me razão
Somente escrevo que sinto
Falo a verdade não minto
Culpada é a minha inspiração
Já procurei escrever de outro jeito
Nada saía perfeito, porque não estava em mim
Não adianta eu forçar a minha natureza
Se o melhor do samba é a sua pureza
E eu forçando seria meu fim”.
Chico, impressionado, o olhou e disse. “Precisava isso tudo?”
Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.
Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007.
O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.
“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.
O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).
Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato.
Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.
Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio.
Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita.
Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.
********** FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
"A delicadeza visceral de
Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...)
Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do
malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro,
tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a
centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou
até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os
dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha,
outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também
soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade
O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que
proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como
exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o
guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do
alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para
alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De
fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a
ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que
chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de
classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a
música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e
a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como
pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do
justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais
genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente
para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística
definitiva deste Mozart do morro: Cartola.
Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a
consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando
negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a
capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente
nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em
1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67
anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a
isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi
o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a
discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram.
Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos
carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se
entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a
primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira,
época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen
Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às
vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os
estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai
meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo
desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o
descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos
botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia
conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores,
monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante
na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a
partir dali fadado finalmente só aos aplausos.
Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da
vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o
organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos
Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio
mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram
dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música
brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e
protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das
joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes –
“Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia,
1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares,
1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos
gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É
Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas
da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal
dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre
buscou. “Preste atenção querida/ De cada
amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo
que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e
admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo,
assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão
solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.
Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como
mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a
tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas
imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que
só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse
questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos
marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja
vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o
primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom
moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os
versos! “Pois então saiba que não
desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas
canções”.
Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela”
vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de
Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone
inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa
inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos;
Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento
originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino
7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula
de uso poético do idioma lusófono: “Pode
ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama
“rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde
sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.
Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta
por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente
gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro
mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de
um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro
de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de
“Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do
personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/
Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos
versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.
“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de
tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa,
seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra
(En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses
sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura
parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz,
ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade
superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um
Moinho” (e outras composições sui-generis
como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar
como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da
revista Rolling Stone Brasil.
Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não
parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por
Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e
pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da
melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar
algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para
tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado
a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes
de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O
arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o
brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza
literária desses versos: “Queixo-me às
rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume
que roubam de ti, ai”?
“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor
desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente
com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana,
repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista,
no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem
social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa
linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais
um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e
técnica, entre artista e sua arte. “Ai,
essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus
acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão,
compreende porque/ Perdi toda alegria”.
O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão
conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande
riqueza cultural”. Foi nesta época
que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba,
tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e
morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois
primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam
um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da
cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões
socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para
que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como
Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e
Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na
última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e
vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos,
em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E
se afama chegou até a porta de
Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência,
enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.
***************
FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço
todas as faixas compostas por
Cartola, exceto indicadas.
A Velha Guarda no palco da Redenção (foto; Tita Strapazzon)
“Corri
pra ver, pra ver quem era/
Chegando
lá era a Portela”.
Como
são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos
comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz
Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me
sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de
assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em
cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se
comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos
brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80
anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha
Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita
no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na
cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando
o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.
Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
Comandada
pelo mestre Monarco (que também completou indizíveis 80 primaveras
em 2014), a Velha Guarda da Portela agitou e emocionou, pondo pra
sambar e cantar o grande público que esteve presente naquela noite
ao ar livre. Sou apaixonado pelo conjunto desde os anos 90 quando,
assistindo a um programa Ensaio, da TV Cultura, os descobri cantando
junto com um de seus vários integrantes que já foram, Manacéa (o
qual estava presente não só em sons como na pessoa de sua filha,
Áurea Maria, uma das três pastoras do grupo). Fiquei tão
maravilhado com o que vi que, guri afoito por registrar aquilo que
gostava, pus um VHS para gravar o restinho de programa, que já havia
começado. Bem fiz. Pude, com isso, conhecer, dentre algumas outras,
pérolas como a tocante “Quantas lágrimas” (“Ah, quantas
lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber que não posso mais/
Reviver o meu passado...”) e o poup-pourri “Mau
Procedimento/ Mulher ingrata/ Nega Danada”, ambas tocadas no
show.
Mas
foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a
receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2
horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que
pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o
Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora
Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela
Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já
escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção,
que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha
de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a
empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União
da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais.
Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono
e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com
“O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois
chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do
gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não
terminariam por aí.
Obras
da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim,
Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes
dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a
Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”,
de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais
tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de
Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e
exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi,
obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da
Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado
seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi
mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado
de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos
só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a
Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para
homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente:
“Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da
Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas. (foto: Tita Strapazzon)
Paulinho,
aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha
Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos
grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio
Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da
Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de
Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no
set-list, pois soou extremamente adequada àquele público
ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS.
Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue
chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o
samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de
verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele,
também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela
impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não
adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.
Em
meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim”
(“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo
mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a
linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me
abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me
abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar
é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem,
Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não
faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o
repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também
“Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de
Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de
carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando
tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai
Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos
sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/
Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho
curto a minha dor”.
A
comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O
Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”),
clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e
Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo
mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase:
“Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e
branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”.
Simplistamente um espetáculo.
A
delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida
às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o
partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe.
Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do
trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a
Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras
que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como
Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua
existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de
Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos
tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como
nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela
histórica noite na (ou “de”) Redenção.
Paulo Gustavo, Cassiano, Luis Vagner "Guitarreiro"... pra compensar tanta perda só mesmo trazendo essa gente toda no MDC. Além deles vai ter também muita coisa legal, como Black Alien, The Glove, Elis Regina, Lee Morgan, Marisa Monte e mais. Tem homenagens no "Sete-List" e no "Música de Fato" e tem até Fausto Fawcett com letra sua no "Palavra, Lê". Sobrevivendo na garra, o programa vai ao ar hoje, 21h, na vivíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.