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segunda-feira, 22 de agosto de 2022

50º Festival de Cinema de Gramado - Bastidores e Premiados

 

Muito se fala sobre cinema e arte cinematográfica em razão do Festival de Cinema de Granado. Por óbvio. Porém, após ter participado como jurado na edição de 2021, realizada ainda de forma online em virtude da pandemia da Covid-19, motivei-me a, finalmente, fazer algo que nunca tinha conseguido: estar presencialmente no festival. Motivos pra isso, não faltavam: este ano, realizou-se a histórica 50ª edição do festival mais longevo ininterruptamente do Brasil e por ter me tornado este ano secretário da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), apoiadora institucional do festival e responsável por algumas das curadorias, juris e premiações. Outra motivação não menos substancial era o lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, ao qual participo como um dos autores e que era importante marcarmos esse momento dentro do principal festival de cinema do nosso Estado. Afora isso, queria saber como era a emoção de viver o Festival de Gramado, ainda mais assim, no auge do inverno, em que tanta gente visita a cidade, que é a mais procurada pelos turistas no Brasil esta época.

Nós da ACCIRS, no espaço
Elizabeth Rosenfeld, lançando
o livro em Gramado

Com o socorro do amigo José Carlos Sousa, o querido Zeca, que nos ofereceu transporte de ida e um ótimo pouso, fomos Leocádia e eu. Cheios de incertezas de como seriam as movimentações por lá, partimos, na cara e na coragem, para conferir o primeiro final de semana do festival. Mesmo não sendo possível assistir à maioria dos filmes, principalmente os longas-metragens brasileiros e internacionais que rodariam diariamente até a semana seguinte, os pouco mais de dois dias a que nos programamos nos oportunizaria ver pelo menos duas das estreias de longas brasileiros, curtas-metragens nacionais e os curtas-metragens gaúchos, que passam na seção vespertina no segundo e terceiros dias. Igualmente, podemos pegar também a tão badalada abertura do festival, o que, convenhamos, embora menos apoteótico, é quase tão emocionante quanto estar no encerramento.



A emoção de pisar pela primeira vez no 
tapete vermelho do
Festival de Gramado

Se coube a nós apenas o começo do festival, no entanto, nosso batismo foi com a devida graça dos deuses do cinema. Na sala de imprensa, logo após termos tirado nossas credenciais para podermos pisar o tão famoso “tapete vermelho” que dá acesso ao Palácio dos Festivais – ou seja, logo que conseguimos confirmar que poderíamos, sim, participar efetivamente do festival, o que haviam nos dito que talvez não fosse possível por ainda não termos credenciais até então – conversávamos com o colega de ACCIRS Paulo Casanova e somos surpreendidos pela atriz Marcélia Cartaxo, que veio em nossa direção como se nos conhecesse. “Será que ela se enganou?”, pensamos. Mas acho que não. Ao que disseram, é muito o modo de ela ser, assim, despachada e extrovertida, e prefiro acreditar que aquela foi uma bênção de Macabea ou de Pacarrete que recebemos por estarmos estreando no festival. Após o choque de ter sido procurado por Marcélia (que, aliás, ganhou mais uma vez o Kikito de Melhor Atriz, como já o havia feito por "Pacarrete", em 2018) para ganhar um abraço, atentado por Leocádia, fui atrás dela novamente para fazermos um registro daquele momento – afinal, todo mundo deve ter uma foto de seu batizado. Ao lhe abordar, agradeci por sua existência em nossos corações como personagens tão memoráveis. Ela retribuiu, generosamente, agradecendo também.

Leocádia e eu recebendo a bênção do festival de Gramado da divina Marcélia

O talentoso Palmeira recebendo
uma das principais honrarias do
cinema brasileiro, o Oscarito
Após o batismo inicial, assistimos filmes, conhecemos outros artistas, vimos Marcos Palmeira receber o Troféu Oscarito – e passar por nós, a questão de metro, e olhar-nos no olho em agradecimento às palmas. Os filmes que mais conseguimos ver foram os curtas gaúchos, com coisas bem boas, como o tenso e tecnicamente perfeito “O Abraço”, prenunciando um dos próximos realizadores de longas no Rio Grande do Sul como recentemente alçaram nomes como Davi Pretto e Felipe Matzembacher; o curto mas tocante “A Diferença entre Mongóis e Mongoloides”, de Jonatas Rubert, documentário pessoal de animação sobre a relação do diretor com seu irmão e seu tio, ambos portadores de TEA (transtorno do espectro autista); e o grande premiado do Prêmio Assembleia Legislativa — Mostra Gaúcha de Curtas: “Sinal de Alerta: Lory F”, de Fredericco Restori, que conta a meteórica vida da artista que lhe dá título, uma lenda do rock gaúcho. Mais uma das magias que Gramado nos proporcionou: na fila para entrar para a seção do primeiro dia de curtas gaúchos, conversávamos com dois jovens atrás de nós que logo revelaram serem os responsáveis pelo filme. Leocádia, sagaz, providenciou de que eu tirasse uma foto com eles, uma vez que tanto ela quanto eu temos relação com personagens do filme: o filho de Lory, meu ex-colega e amigo Ricardo, e o ex-marido dela, Ricky Bols, artista visual já falecido com quem Leocádia trabalhou e também nutria amizade. E não é que justo eles ganhariam, no dia seguinte, o principal prêmio entre os curtas gaúchos?

Ao lado de Natália Pimentel e Restori, de "Lory F..." - antes de ganharem o prêmio!

Sem se estender muito, cabe comentar que os dois longas brasileiros, que passam na programação noturna, agradaram. O triste e revoltante “A Mãe”, de Cristiano Burlan, que traz Marcélia como uma mãe em busca do filho desaparecido na periferia de São Paulo; e o cômico “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti, adaptação e Luis Fernando Verissimo. A difícil tarefa de adaptar o autor do Analista de Bagé foi bem executada pelo diretor, embora o filme perca um pouco do ritmo do meio para o fim, mas consiga terminar bem. O grande trunfo de “O Clube...” é, porém, seu elenco. Nada mais nada menos que Otávio Muller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira, César Melo, Ângelo Antônio, Samuel de Assis, António Capelo e André Abujamra

Este último, aliás, merece um aparte, pois tornou-se um novo amigo. Ao ver Abujamra no tapete vermelho (aliás, corrijo: Leocádia que o avistou e me avisou) abordei-o e, fã, quis entrevistá-lo para meu programa, Música da Cabeça. Fizemos ali mesmo, em meio à algazarra do público, mas deu tudo certo e a entrevista foi curta mas ótima. Justifiquei a Abujamra que se eu já tinha entrevistado Maurício Pereira e Pena Schmidt, os outros dois responsáveis pela lendária Os Mulheres Negras, não poderia perder a oportunidade de fazer o mesmo com ele.

Abu e eu: sintonia e entrevista em pleno tapete vermelho

Tudo isso para confirmar o que disse no início: muito se fala em cinema no Festival de Gramado, mas estar lá, poder conviver ao menos um pouco com artistas, realizadores, colegas críticos, jornalistas, organizadores do evento e toda aquela turba de pessoas que lotam a cidade nesta época, caminhar pelas ruas, observar as reações, frequentar o comércio em alto movimento; prova que o festival é muito mais do que as sessões de cinema. É, sim, essa atmosfera, essa egrégora misto de encanto, excitação, surpresa, expectativa – e até certa afetação, confesse-se. O que tiro é que a experiência foi linda, a ponto de nos programamos para, em próximas edições, talvez voltarmos não só para a abertura, mas esticar um pouco mais e até cobrir todos os sete dias de evento. 

O Kikitão e eu em pleno tapete vermelho

O consagrado "Noites...",
o grande vencedor 

A solenidade de premiação ocorreu no dia 20 e pude assistir pela televisão. O grande vencedor foi o amazonense “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho, que não pudemos ver mas fiquei curiosíssimo desde que soube da existência. Outra produção que também se destacou dos longas foi “Marte Um”, de Gabriel Martins (MG), que se mostrou muito querido do público por, assim como o lindo “O Novelo”, que concorreu no ano passado na mesma categoria, traz a vida de uma família de negros, mas sem recorrer aos chavões de submundo, pobreza, violência, etc. Também não vi, mas o bom é que este estreia em circuito nacional esta semana. Louco pra ver.

Por ora, segue aqui a lista de premiados com os Kikitos desta histórica edição de meio século de Festival de Gramado. Quem sabe, ano que vem não esteja lá mandando just in time essa lista?

*********

LONGA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Melhor Direção – Cristiano Burlan, por “A Mãe”
Melhor Ator – Gabriel Knoxx, de “Noites Alienígenas”
Melhor Atriz – Marcélia Cartaxo, de “A Mãe”
Melhor Roteiro – Gabriel Martins, de “Marte Um”
Melhor Fotografia -Rui Poças, de “Tinnitus”
Melhor Montagem – Eduardo Serrano, de “Tinnitus”
Melhor Trilha Musical – Daniel Simitan, de “Marte Um”
Melhor Direção de Arte – Carol Ozzi, de “Tinnitus”
Melhor Atriz Coadjuvante – Joana Gatis, de “Noites Alienígenas”
Melhor Ator Coadjuvante – Chico Diaz, de “Noites Alienígenas”
Melhor Desenho de Som – Ricardo Zollmer, de “A Mãe”
Júri da Crítica – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Júri Popular – “Marte Um”, de Gabriel Martins
Prêmio Especial do Júri – “Marte Um”, de Gabriel Martins, que nos trouxe o afeto para a tela.
Menção Honrosa a Adanilo, por “Noites Alienígenas”, pela excelência da construção da linha do personagem e interpretação.

CURTA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Melhor Direção – Leonardo Martinelli, por “Fantasma Neon”
Melhor Ator – Dennis Pinheiro, de “Fantasma Neon”
Melhor Atriz – Jéssica Ellen, de “Último Domingo”
Melhor Roteiro – Fernando Domingos, de “O Pato”
Melhor Fotografia – Fernando Macedo, de “Último Domingo”
Melhor Montagem – Danilo Arenas e Luiz Maudonnet, de “O Elemento Tinta”
Melhor Trilha Musical – “Nhanderekoa Ka´aguy Porã” Coral Araí Ovy e Conjunto Musical La Digna Rabia, por “Um Tempo pra Mim”
Melhor Direção de Arte – Joana Claude, de “Último Domingo”
Melhor Desenho de Som – Alexandre Rogoski, de “O Fim da Imagem”
Júri da Crítica – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Júri Popular – “O Elemento Tinta”, de Luiz Maudonnet e Iuri Salles.
Menção Honrosa – “Imã de Geladeira”, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico
Prêmio Especial do Júri – “Serrão”, de Marcelo Lin. Pelo frescor da narrativa a partir de um olhar ressignificado, emergente e com o coração no lugar certo
Prêmio Canal Brasil de Curtas – “Fantasma Neon” Leonardo Martinelli

LONGA-METRAGEM ESTRANGEIRO 

Melhor Filme – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Melhor Direção – Néstor Mazzini, de “Cuando Oscurece”
Melhor Ator – Enzo Vogrincinc, de “9”
Melhor Atriz – Anajosé Aldrete, de “El Camino de Sol”
Melhor Roteiro – Agustin Toscano, Moisés Sepúlveda e Nicolás Postiglione, de “Inmersión”
Melhor Fotografia -Sergio Asmstrong, de “Inmersión”
Júri da Crítica – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Júri Popular – “La Pampa”, de Dorian Fernández Moris
Prêmio Especial do Júri a Direção de Arte de Jeff Calmet, de “La Pampa”

LONGA-METRAGEM GAÚCHO

Melhor Filme – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Melhor Direção – Bruno Gularte Barreto, por “5 Casas”
Melhor Ator – Hugo Noguera, de “Casa Vazia”
Melhor Atriz – Anaís Grala Wegner, de “Despedida”
Melhor Roteiro – Giovani Borba, de “Casa Vazia”
Melhor Fotografia – Ivo Lopes Araújo, de “Casa Vazia”
Melhor Direção de Arte – Gabriela Burk, de “Despedida”
Melhor Montagem – Vicente Moreno, de “5 Casas”
Melhor Desenho de Som – Marcos Lopes e Tiago Bello, de “Casa Vazia”
Melhor Trilha Musical – Renan Franzen, de “Casa Vazia”
Júri Popular – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Menção Honrosa – Clemente Vizcaíno, por “Despedida”, pela presença destacada no filme e por sua importância na história do cinema gaúcho
Menção Honrosa – “Campo Grande é o Céu”, de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux, pelo resgate da tradição de cantorias e da importância das comunidades quilombolas daquela região do Rio Grande do Sul

CURTA-METRAGEM GAÚCHO - PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA — MOSTRA GAÚCHA DE CURTAS

Melhor filme: "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção: Jonatas Rubert - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor ator: Victor Di Marco - "Possa Poder"
Melhor atriz: Valéria Barcellos - "Possa Poder"
Melhor roteiro: Jonatas Rubert, - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor fotografia: Flora Fecske - "O Abraço"
Melhor montagem: Frederico Restori - "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção de arte: Gabriela Burck - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor trilha sonora: Gutcha Ramil, Andressa Ferreira e Ian Gonçalves Kuaray - "Mby Á Nhendu - O Som do Espírito Guarani"
Melhor desenho de som: Andrez Machado - "Fagulha"
Melhor produção executiva: Henrique Lahude - "Drapo A" 
Menção honrosa: "Drapo A" 
Prêmio da crítica (ACCIRS): "Apenas para Registro"

LONGA-METRAGEM DOCUMENTAL

Melhor Filme – “Um Par Pra Chamar de Meu”, de Kelly Cristina Spinelli.                 
Menção Honrosa – “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad, pela valorização do compositor, parceiro dos grandes nomes da música popular brasileira, e também pelo rigor formal e criativo na recriação visual da vida e das grandes composições de Elton Medeiros, que faleceu em 2019. Parabéns ao diretor Pedro Murad e equipe.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e ACCIRS

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Música da Cabeça - Programa #228

 

A gente não é talibã invadindo o Afeganistão, mas também promovemos nossa invasão. Mas de música boa, claro. No MDC de hoje, Black Sabbath, Ryuichi Sakamoto, João Donato, Sérgio Ricardo, Michael Jackson e outros estão nessa com a gente. Também tem nossos quadros fixos e um "Cabeça dos Outros" rolando Nei Lisboa. O programa toma conta do campinho da Rádio Elétrica às 21h com produção e apresentação (e pé na porta) de Daniel Rodrigues.

Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




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Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Gal Costa - "Legal" (1970)

 

“Entramos em campo com o que tínhamos na mão. Gal já era a maior cantora do Brasil naquele momento e esse trabalho foi muito especial, pois nós juntamos os melhores músicos da época, como Chiquinho de Moraes e Lanny Gordin. A gente procurou pensar que tínhamos que fazer o melhor naquele clima de ditadura militar: Caetano e Gil exilados, a Copa do Mundo em cima, uma confusão danada. E fizemos o nosso trabalho".  
Jards Macalé

“Genial, contemporâneo e perturbador”. 
Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, sobre “Legal”

Ao mesmo tempo em que começa a se tornar cada vez mais comum ver os ídolos brasileiros da geração dos anos 50/60 se irem, caso de João Gilberto, Sérgio Ricardo, Moraes MoreiraLuiz Melodia e, mais recentemente, Gerson King Combo, em contrapartida, é uma enorme satisfação presenciar estas mesmas figuras referenciais chegarem à idade avançada. É mais do que só um motivo de comemoração, e sim de emoção. Caso da "água viva" da MPB: Gal Costa, que, mais do que viva, está operante e produzindo muito bem, obrigado. Gal chega aos 75 anos de idade e 55 de carreira celebrada como uma das maiores vozes do Brasil, posto que ocupa desde os anos 60 quando, junto com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Mutantes e toda a turma da Tropicália, revolucionou a musica brasileira para sempre. Parte dessa revolução, contudo, está de aniversario junto com ela: o genial disco da artista “Legal”, de 1970, que completa 50 anos de lançamento.

O contexto no qual o lançamento de “Legal” ocorreu, no entanto, não foi nada festivo. O que faz aumentar ainda mais seus méritos. AI5 em vigor há pouco mais de um ano; Caê e Gil exilados em Londres; Allende eleito no Chile; Seleção de Pelé e Jairzinho fazendo a alegria do povo; Estados Unidos bombardeando o Vietnã; Roberto Carlos tornando-se um rei “adulto”. Tudo isso sob a capa negra da “linha dura” da Ditadura Militar, que reprimia, perseguia, sequestrava, torturava e matava. Afora esta pior parte das violações à liberdade imposta pela ditadura, a repressão recaía, em maior ou menor grau, sobre qualquer um que se opusesse ao Estado. Para isso, os militares contavam, inclusive, com o policiamento da própria sociedade civil. Gal, que permaneceu no Brasil com a missão de manter tesa a sina do tropicalismo, não o fez sem vigília ou pressões. Ela conta que chegou, àquela época, a ser quase linchada em praça pública por "cidadãos do bem", que a viam como uma hippie subversiva e comunista. Afinal, pensar definitivamente não é um atributo de quem domina pela força.

Gal em 1970: cabelos repartidos
ao meio em novo visual, que
inspirou Oiticica
Toda essa brutal condição de medo e tensão – mas também de orgulhos e belezas inexoráveis – era despejada imediatamente na musica de Gal, e “Legal” é o seu álbum que melhor sintetiza esse momento. Amplificando a psicodelia e a postura rebelde dos seus trabalhos imediatamente anteriores, de 1968 e 1969, Gal vinha para não fazer concessões. Agora, ela explodia. A doce cantora que começara a carreira seguindo o estilo cool da bossa nova de João Gilberto agora soltava a voz da maneira mais aguerrida como jamais havia feito até então. Estridente, raivosa, intensa, provocadora - mas também doce quando quer. Com o auxílio nos arranjos e na banda dos igualmente arrojados Lanny Gordin – o histórico guitarrista inglês da Tropicália responsável aqui também pelas ensandecidas guitarras do disco – e do "maldito" Jards Macalé – antecipando o que este faria dois anos depois noutro LP clássico da música brasileira, “Transa”, de Caetano –, a “divina maravilhosa” baiana torna-se, agora, “terrível”. É com o então recente sucesso de Roberto que ela, num arranjo monstruoso, inicia o disco. Se “Eu Sou Terrível” soava como um ato de rebeldia na voz do seu careta autor, na de Gal, transformava-se num manifesto anti-ditadura. Na boca dela, versos como: "Estou com a razão no que digo" ou "Não tenho medo nem do perigo" significavam muito mais do que a mera e ingênua afirmação sexista da original. Ressignificadas, as palavras querem dizer, sem hesitação: "Não adianta me perseguir, que sou mais forte que vocês" e "vocês é que devem ter medo de mim".

E Gal tinha urgência. O rock com influências soul dessa indignada Etta James dos trópicos tem nos sopros arranjados por Chiquinho de Moraes e na guitarra rascante de Lanny a velocidade certa para acompanhar a cantora. Ou seja: com muita rapidez! Os garotos que andavam ao seu lado tinham certeza que ela andava mesmo apressada. Em resposta, a banda pratica o que em teoria musical se chama de “antecipação”, quando se encurta o tempo entre os acordes e joga-se uma nota estranha à harmonia, a qual, se verá logo em seguida que pertence ao acorde seguinte. Se Gal havia permanecido no Brasil, sua terra, ouvi-la dizer “Eu corro mesmo aqui no chão” fazia realmente muito sentido.

Se “Legal” começa assim, mostrando que não veio para brincadeira, o negócio era prender o fôlego e acostumar-se, pois seria assim até a última rotação da agulha no sulco. Em novo recado pros militares, Gal manda na sequência “Língua do Pe”, do exilado Gil. Já que o parceiro não podia como ela estar no seu próprio país, Gal dava um jeito de materializá-lo. Um novo rock se anuncia... só que não! Subvertendo a si mesma, de repente, a música torna-se um xaxado “pé de serra” animado no melhor estilo Luiz Gonzaga: zabumba, triângulo e sanfona. A letra, cifrada, tirava um sarro dos milicos: “Garanto que você/ Nãpão vapai não vai/ Compomprepeenpendeper/ Bulhufas”. Não compreenderam bulhufas, mesmo.

Não precisa mais do que duas faixas pra se notar que “Legal”, contrariamente ao vocábulo, não se presta a ser nada amigável com os hipócritas devotos da moral e dos bons costumes. De pura ironia e musicalidade, “Love, Try And Die”, este Broadway jazz chistoso tem a luxuosa participação de dois mitos da música pop brasileira: o jovem Tim Maia, que recém havia lançado seu exitoso disco de estreia, e de Erasmo Carlos, que, na direção oposta do pop romântico de Roberto no pós-Jovem Guarda, corajosamente alinhava-se aos tropicalistas. Autoria de Gal com seus fiéis escudeiros Macalé e Lanny, lembra a invencionice transgressora de "Cinderella Rockfella", de Rogério Duprat com os Mutantes, de 1968, e a galhofa que os próprios Roberto e Erasmo criariam em 1971 com a canção "I Love You", o solfejo tropicalista de RC.

Novos petardos: uma versão futurista de “Acauã”, de Zé Dantas, reafirmando a cultura do Nordeste como desde o início propôs o tropicalismo. A pegada regionalista, contudo, vem empunhando uma peixeira como Lampião. Inversamente a “Língua do Pe”, que inicia rocker e depois alivia, aqui é o folk regional que prevalece até boa parte da faixa, mas que ganha uma reviravolta para um baião-heavy de dar inveja a qualquer guitar band enfezada. Bem que dava para desconfiar quando Gal, no começo da música, calmamente entoa os versos: “Teu canto é penoso e faz medo/ Te cala, acauã/ Que é pra chuva voltar cedo”.

Mais uma inédita de Gil: a psycho-bossa “Mini-Mistério”. Uma só dele seria pouco pra confrontar os militares. E se “Língua do Pe” soa quase anedótica, o recado desta é bem mais direto: "Compre, olhe/ Vire e mexa/ Não custa nada/ Só lhe custa a vida". Ou que tal isso aqui?: “Procure conhecer melhor/ O cemitério do Caju/ Procure conhecer melhor/ Sobre a Santíssima Trindade/ Procure conhecer melhor/ Becos da tristíssima cidade/ Procure compreender melhor/ Filmes de suspense e de terror”. E Gal, que não tinha medo nem de filmes de suspense e de terror, repete ostensivamente a última palavra: “Terror, terror, terror, terror”. Afinal, este era o melhor termo para definir o sentimento que tomava conta daquele Brasil de terríveis minimistérios: delações, perseguições, olhos vigiando por todos os cantos, amigos presos, “amigos sumindo, assim, pra nunca mais”. Sob um suingue jazzístico acachapante, Gal ainda aconselha: “Ande muito/ Veja tudo/ Não diga nada/ Além de dois minutos”.

Gal e Macalé: alta qualidade musical contra a repressão

Jards, totalmente presente na concepção do disco, vem com outras duas suas. Primeiro, a emblemática e não menos provocativa “Hotel das Estrelas” (“No fundo do peito esse fruto/ Apodrecendo a cada dentada/ Mas isso faz muito tempo...”), que o próprio gravaria apenas dois anos depois em seu primeiro álbum solo. Interpretação tristonha e sensual de Gal na primeira parte, quando um blues jazzístico. Mas o andamento é bem mais variante que isso, e a banda acelera o ritmo para entrar numa soul quase gospel e, daí, voltar novamente à melancolia. Um arraso! De Jards e de Duda Mendonça também é o falso jazz “The Archaic Lonely Star Blues”. Falso até no idioma, pois, iniciando com versos em inglês, envereda, em seguida, para um samba-canção em que Gal deita e rola na interpretação sob o arranjo de cordas primoroso de Chiquinho de Moraes.

Transgressão pouca era bobagem para a combativa Gal. Ela guardava ainda mais munição em sua metralhadora sonora e poética. E, como as canções de Gil, vinham encomendadas também da Inglaterra as do mano Caetano. Primeiro, a carnavalesca “Deixa Sangrar”, cujo duplo sentido do título, obviamente, não é mera coincidência: “Deixa o coração bater, se despedaçar/ Chora depois, mas agora deixa sangrar/ Deixa o carnaval passar”. Alguma semelhança com a situação política de então? Neste aspecto, “Legal” ainda se beneficia pelo fato de ter sido lançado logo após o endurecimento da ditadura, ainda muito mais preocupada em reprimir a luta armada do que necessariamente censurar músicas – isso, até perceberam em seguida que o “perigo” era justamente a junção dos dois. Talvez por isso (e pela letra em inglês, esta na totalidade) tenha-se liberado “London London”, o tristonho canto de exílio de Caetano que atravessou o Atlântico trazendo ao Brasil os gélidos ventos do Velho Mundo poucos meses depois do próprio autor tê-la gravado no seu álbum londrino. Nesta rumba desenhada pela guitarra de Lanny e uma gaita de boca bem rithum n’ blues, toda a estridência que domina boa parte do disco dá lugar de vez à cantora melodiosa e de profundo apuro técnico. 

Igual à matadora versão de “Falsa Baiana”, reduzindo de vez o compasso em alta voltagem que havia iniciado o disco lá em “Eu Sou Terrível”. Bossa nova pura. Leve e melodiosa. Um contraste tremendo com o fervente início do disco. Os distraídos podem até achar que se trata de uma contradição por não perceberam mais uma ironia. “Falsa baiana” não é necessariamente aquela que "requebra direitinho", mas a que, contrariando a pecha de um povo "preguiçoso" e "acomodado", se levanta contra a atrocidade humana. Fora isso, Gal, saudavelmente apressada de novo, antecipa justamente seu mestre João Gilberto, que gravaria este samba de Geraldo Pereira somente três anos depois em semelhantes moldes.

Arte de Oiticica completa, com as
duas faces: capa e contracapa
A capa, autoria do célebre artista visual Helio Oiticica – pivô acidental no episódio da boate Sucata motivador da expulsão de Caetano e Gil do Brasil meses antes – emula o policulturalismo da capa clássica de "Sgt. Peppers", dos Beatles, ao reproduzir diversas fotos de referências constituidoras daquela proposta de obra. No entanto, além das diferentes figuras – por exemplo, Elis Regina, James Dean e a Marcha dos 100 Mil no lugar de Bob Dylan, Marylin Monroe e Karl Marx –, a arte de Oiticica direciona incisivamente esta intenção ao impregnar essas imagens fragmentadas nos cabelos de Gal (visual trazido de Londres, de onde ela recentemente viera de uma viagem) e cuja metade do rosto se agiganta em relação a todo o resto. O mundo pertence a ela, esta Medusa empoderada e resistente. Metáfora cortante de um álbum que cumpre a corajosa missão de falar por todos os exilados, os de fora e os de dentro do país. Se as vozes restavam sufocadas pelo poder das armas, havia a de Gal para representar-lhes. E acelerada, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Em “Legal”, como nunca ela foi porta-voz de toda uma geração. E quanta voz tem essa (verdadeira) baiana para portar!


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Gal Costa cantando "Acauã", programa Ensaio (1970)


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FAIXAS:
1. “Eu Sou Terrível” (Erasmo Carlos, Roberto Carlos) - 2:30
2. “Lingua Do P” (Gilberto Gil) - 3:40
3. “Love, Try And Die” (Gal Costa, Jards Macalé, Lanny Gordin) - 2:23 – partic.: Tim Maia e Erasmo Carlos
4. “Mini-Mistério” (Gil) - 4:16
5. “Acauã” (Zé Dantas) - 2:49
6. “Hotel Das Estrelas” (Duda Machado, Jards Macalé) - 4:22
7. “Deixa Sangrar” (Caetano Veloso) - 2:53
8. “The Archaic Lonely Star Blues” (Duda, Macalé) - 3:03
9. “London, London” (Caetano) - 4:00
10. “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira) - 2:11


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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues