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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ATRIZ
MELHOR ATOR COADJUNVANTE
MELHOR TRILHA SONORA
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
MELHOR MONTAGEM
MELHOR FOTOGRAFIA
MELHOR FIGURINO
 

Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.

O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.

Llly no papel da rica indígena Mollie:
atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.

Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.

A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo,
15 filmes com Scorsese

Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.

Foto dos verdadeiros Osage usadas
de forma documental no film
e
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.

A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha. 

Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.

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trailer de "Assassinos da Lua das Flores"




Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

"Coringa", de Todd Phillips (2019)




Uma obra de arte perigosa

por Vagner Rodrigues

Gotham City, 1981. Em meio a uma onda de violência e a uma greve dos lixeiros, que deixou a cidade imunda, o candidato Thomas Wayne (Brett Cullen) promete limpar a cidade na campanha para ser o novo prefeito. É neste cenário que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência de talentos, com um agente social o acompanhando de perto, devido aos seus conhecidos problemas mentais.

Uma direção perfeita, tecnicamente impecável, uma atuação espetacular, uma das melhores construções de arco de personagem que já vi, fazem de “Coringa” uma obra de arte, que, no entanto, pode vir a se tornar extremamente perigosa se for interpretado de certas maneiras.

É, mas o fato de classificá-lo como perigoso, não deixa de ser também um mérito, uma vez que mostra o personagem principal como um homem que apenas está respondendo, tomando ações para confrontar a forma com que pessoas e o sistema, o tratam, levando um cidadão a atitudes e ações extremamente violentas, que na obra, dentro deste contexto, acabam mostrando-se justificadas. E digo que pode ser perigoso, no caso de qualquer um assistir ao filme e acabar se identificando com Arthur (o que é bem possível devido ao realismo da trama) e tudo aquilo servir como inspiração e um gatilho para atitudes parecidas. Então, cuidado! Procure conversar com alguém sobre o filme, ok?

Como obra cinematográfica, o longa chega perto da perfeição. Desde de um roteiro bem escrito, uma fotografia sublime, e uma direção que sabe o que quer, onde pretende chegar e nos levar. Mas o que torna o filme realmente memorável é atuação de Joaquin Phoenix. O homem está possuído em cena! Tudo, definitivamente TUDO, que ele faz no filme é ESPETACULAR! Uma atuação com o corpo todo, uma fisicalidade assustadora e visceral. Seus olhares, suas falas, até os momentos que está em silencio conseguem ser espetaculares. Me chamou muito atenção a mudança de postura de Arthur quando se transforma em Coringa: deixa de ser aquela pessoa com aparência fraca, corcunda para se tornar um homem poderoso, intimidador.

Um dos melhores estudos e construção de personagem dos últimos tempos no cinema. Um protagonista que sai do ponto A e vai até o ponto B muito bem conduzido pelo roteiro e direção, o que é ótimo de observar. Ver que ao final da história, não só o personagem mudou você também mudou. Isso é cinema e o seu melhor como arte. Aquilo que instiga, faz refletir e ainda é delicioso de se assistir. E como se não bastasse tudo isso, "Coringa" é uma bela homenagem a Scorsese e seu cinema da nova Hollywood.

Vá com calma, acompanhe toda jornada desse palhaço louco, tenha medo, mas não deixe de acompanhá-lo pelas perigosas ruas de  Nova..ops.. , quero dizer... Gotham.

Pura genialidade! Uma aula de atuação.
Algo que não se esquece tão cedo.


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A descida ao inferno

por Daniel Rodrigues

Poucos filmes me geraram tamanha expectativa antes de assisti-lo como “Coringa”, de Todd Phillips. Mas neste caso, foi mais do que expectativa: foi medo mesmo. Medo de ficar decepcionado com a comum ideologização permeada de parcialidade do cinema comercial norte-americano, com a superficialidade com que tratam muitas vezes assuntos profundos ou, pior, com a recorrente banalização de temas ricos como se fossem apenas produtos de entretenimento. Geralmente tento estar com a mente aberta ao que o filme me trará, não raro sem ler nada a seu respeito antes. Mas com Coringa era impossível, pois tinha receio que o deturpassem, e isso me irritaria muito, uma vez que me é um personagem caro. Já não basta o que fizeram com o seu arquirrival, Batman, cuja DC Comics, sem controle de seu personagem mais icônico na transposição para o cinema – diferentemente da Marvel para com as suas marcas – deixou que o Homem-Morcego fosse mais inexpressivo que os vilões nas versões de Tim Burton, virasse um existencialista falastrão na trilogia de Christopher Nolan e alterasse totalmente o porquê de seu embate com Superman por pura falta de colhões em reproduzir a obra original dos quadrinhos.

Com o Coringa não podiam cometer o mesmo erro. Não podiam desperdiçar uma mitologia tão rica, a oportunidade e contar uma história inigualavelmente promissora como ainda não se tinha feito. Quem como eu acompanhou os HQ’s de Batman nos anos 80 e 90 sabe o quanto este personagem é especial e – mesmo com o fio condutor que monta a sua biografia desde que foi criado – complexo. E foi exatamente isso que o filme de Phillips conseguiu: construir um personagem denso e crível, não apenas respeitando a sua saga como amarrando aspectos sociológicos e psicológicos com surpreendente minúcia. 

O ponto que mais me preocupava antes de assistir era o de se querer dar a um maníaco assassino como Coringa um caráter meramente vitimista para sustentar o clichê de que a sociedade moderna é a principal responsável por criar monstros como ele. Subterfúgio, claro, usado unicamente para imobilizar as consciências e manter tudo como está em favor daqueles que comandam o sistema. É quase isso, uma vez que a opressão social, política, ideológica e a consequente invisibilidade que esta condição subalterna dá aos desfavorecidos ou diferentes como ele é, sim, combustível para a formatação da persona Coringa a que o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) acaba por assumir em sua caminhada de loucura e dor. O problema é que Coringa é um velho conhecido, uma vez que não se trata de um personagem como os de vários filmes em que os elementos narrativos vão dando subsídios para que se construa do zero na cabeça do espectador o psicológico e a identidade dele. Trata-se, no caso do principal vilão dos quadrinhos do Batman – quiçá de toda a história dos HQ’s – de uma “pessoa” a quem já se sabe onde vai chegar e quais os traços essenciais o compõem enquanto sujeito. Ou seja: precisavam ser bastante críveis para me convencer.

Por isso, a questão é mais profunda quando se fala em Coringa. Entretanto, o roteiro do filme é muito feliz ao abarcar todos esses aspectos e ir ao cerne das coisas. Além da visível esquizofrenia e a propensão à psicopatia, controladas até certo ponto pelo sistema através não só de medicações como da opressão social, há nele uma motivação estritamente subjetiva e humana, que é a família. O histórico de maus tratos, o desajuste familiar e a condição de pobre, inadequado e fracassado poderiam até ser equalizadas se continuasse levando uma vida medíocre e sem visibilidade como de fato tinha. 

Mas é a perda da figura central da mãe (a quem ele duplamente perde, simbólica e materialmente, uma vez que ele mesmo a mata) a chave para o desencadeamento do que lhe havia de pior, para que se concretizasse o Coringa que conhecemos. Representa a ruptura, a definitiva descida ao que estava represado, a qual o cenário da escadaria simboliza na trama o caminho: para cima, a redenção, para baixo, o inferno. A mãe, única pessoa a quem ele podia dedicar carinho, era a como o pino de uma granada: se fosse removida, a bomba explodiria. E foi. Uma justificativa altamente plausível que, aí sim, juntada aos fatores externos da igualmente violenta sociedade é um prato cheio para o surgimento de indivíduos perigosos como Coringa. Ele é vítima, sim, mas é também produto do descuido da sociedade para com o dessemelhante, o cidadão não-comum, que não se encaixa nos padrões estabelecidos. Fosse pelo talento de artista, a encarnação do dualístico e bufão clown, fosse pela loucura latente que lhe prejudicava a socialização, nunca lhe deram atenção. Ninguém. Sua resposta veio em forma de um empedramento doentio e de vingança. Agora teriam que lhe dar atenção, da pior maneira possível.

O ótimo resultado de “Coringa” é em grande parte fruto da atuação exuberante de Phoenix – o que, aliás, mesmo com a desconfiança do que o filme apresentaria, tinha certeza de que seria brilhante. A construção que Phoenix dá a Coringa considera a trajetória dos HQ’s, a literatura, o imaginário social e todos os outros que vestiram o personagem antes dele no audiovisual. É possível enxergar Jack Nicholson, Heath Ledger, Cesar Romero e Jared Leto, assim como estão ali o Coringa dos HQ’s “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham” ou “O Cavaleiro das Trevas”. Porém, Phoenix, até por esta capacidade cênica muito sensível de síntese, consegue o feito de superar todos. 

Mas fora o encanto que protagonista causa, tudo funciona em “Coringa”. A obra, mesmo que tenha na atuação justificadamente a sua maior força, é incrivelmente coesa, harmônica, forte e crítica. Um tapa na cara sem concessões ao modo de vida norte-americano e ao que a nação mais rica do mundo vende ao mundo como modelo de felicidade. Além disso, a fotografia suja e fantasmagórica, a trilha sonora econômica e muito bem escolhida, a direção de arte impecável e a edição, que faz questão de deixar subentendimentos em nome do foco da narrativa, são igualmente destaques. 

Dentro da crítica aos modelos norte-americanos que o longa traz, a referência a dois filmes de Martin Scorsese – não à toa ambos estrelados por Robert De Niro, brilhante no papel do apresentador de tevê Murray Franklin – são sintomáticas. Primeiro, “Taxi Driver” (1976), quando Arthur, em seu mundo interno, aponta um revólver para a televisão e para os “inimigos imaginários” de sua sala. A condição de degradação mental a que o ex-combatente do Vietã vivido por De Niro e a de um rejeitado como Arthur são sujeitados expõe o quanto a política dos Estados Unidos é capaz de gerar indivíduos tão desassistidos e doentes. Igualmente, “Coringa” retraz, ao abordar o stend-up comedy e os programas de auditório em que as massas riem do que lhe é imposto como piada, o controvertido “O Rei da Comédia” (1983). Naquele, a piada sem/com graça é o sequestro do astro da televisão Jerry Langford (Jerry Lewis) pelo obsessivo e igualmente invisível Rupert Pupkin (De Niro) para que este apresentasse seu número no lugar do apresentador oficial. A reflexão que “Coringa” levanta, assim como o filme de Scorsese, é um questionamento do que é “felicidade” numa sociedade acrítica e controlada pela indústria do entretenimento como a atual.

“Coringa” não tem nada a ver com os filmes de super-heróis explosivos, frenéticos e plastificados como os que Hollywood vem fazendo às pencas. É um drama sobre uma pessoa inventada mas talvez tão mais real quanto um ser humano de carne e osso. Um drama sobre um triste arquétipo da doença e da violência as quais somos submetidos hoje. Um drama sobre alguém que bem que poderia existir. E será que não existe mesmo?

Coringa na escadaria: a definitiva descida para o seu inferno interior


sexta-feira, 14 de setembro de 2018

"Você Nunca Esteve Realmente Aqui", de Lynne Ramsay (2017)




É uma ótima e estranha experiência a de entrar numa mente perturbada. “Você Nunca Esteve Realmente Aqui" vai bagunçar sua cabeça. Vai fazer você se questionar e imergir neste competente  e pesado drama psicológico.
Um homem, um veterano de guerra ganha a vida resgatando mulheres presas em cativeiros trabalhando como escravas sexuais. Após uma missão mal-sucedida em um bordel de Manhattan,  a opinião pública se volta contra ele e uma onda de violência se abate na região.
Sua linguagem nem um pouco casual pode causar um estranhamento de inicio, talvez até um certo desconforto, mas o melhor que você tem a fazer é deixar-se levar pelo filme. Um dos pontos que, mesmo sem ter culpa nenhuma, mas que, na minha visão, prejudica um pouco a caminhada do longa, foram as diversas comparações que o filme recebeu com o espetacular "Taxi Driver". Claro, faz sentido, ambos abordam um tema parecido com personagens parecidos, porém uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Um conselho: assista ao filme querendo ver “Você Nunca Esteve Realmente Aqui” e não “Taxi Driver”.
Que homem! Que atuação!
A construção do personagem Joe ao longo do filme é ótima. Pouco é revelado a seu respeito em palavras, contudo há muitos flashbacks revelando detalhes de seu passado e mesmo de seu presente.  E tem ainda a questão dos problemas mentais que está na magnífica atuação de Joaquin Phoenix, no seu olhar perdido, na maneira difícil de falar, como ele tem dificuldade de se expressar.
A direção de Lynne Ramsay é espetacular. Seu controle de câmera, os closes, os planos... Sempre devemos ressaltar a visão que ela dá à violência. Os momentos de maior ação não são mostrados para não gerar uma sensação de violência gratuita (tipo, “tem que matar todo mundo mesmo”), mas aquelas que são desagradáveis, que chegam a fazer dar um negócio ruim no estomago, ela faz questão de mostrar para que fique claro a violência não é bonita.
“Você Nunca Esteve Realmente Aqui” é uma obra que acontece na tela ao mesmo tempo que acontece na sua cabeça tentado entender Joe, o que é fascinante. Ótimos enquadramentos,  planos, a maneira que a câmera mostra Joe sendo observando e observando algo, o tempo todo é magnífico. Cinema sendo usado de uma maneira que extrapola os conceitos de simplesmente absorver idéias. Corra e vá olhar esse ótimo estudo da mente humana, ótimo estudo de personagem e ótimo filme.
Cena lindíssima do ótimo filme de Lynne Ramsay



por Vagner Rodrigues

sábado, 18 de novembro de 2017

Os 10 melhores filmes de Martin Scorsese



Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável.

Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:


por Paulo Moreira

1 – OS BONS COMPANHEIROS ("Goodfellas", 1990)

The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!

Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'

Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER (1976)


A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.


3 – CAMINHOS PERIGOSOS ("Mean Streets", 1973)

Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.

4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985)

Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.

5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980)

Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!

Com De Niro no ringue-cenário

Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983)


Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?

7 – CASSINO ("Casino", 1995)

"Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.


Com DiCaprio e Margot no set
8 – O LOBO DE WALL STREET ("The Wolf of Wall Street", 2013)


Uma das cenas mais engraçadas e trágicas do cinema ao mesmo tempo: Leonardo DiCaprio chapadaço tentando chegar em seu carro e não consegue descer a escada.

9 – OS INFILTRADOS ("The Departed", 2006)

Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.

10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991)

Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".


Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Os 12 personagens mais assustadores do cinema


O cinema é capaz de mexer com as nossas emoções como pouca coisa consegue, mesmo a gente sabendo que, na grande maioria das vezes, aquilo que estamos vendo seja apenas uma encenação. Somos, com total aceitação, levados a acreditar na “mentira” e com ela se comover. Jean-Claude Carrière, fascinado por essa magia que talvez apenas o cinema tenha no universo das artes, comenta em seu “A Linguagem Secreta do Cinema” que os instrumentos de persuasão do cinema podem parecer simples: emoção, sensação de medo, repulsa, irritação, raiva, angústia. Mas, pontua ele, “na realidade, o processo é muito mais complexo”, provavelmente até indefinível. “Envolve os mais secretos mecanismos do nosso cérebro, incluindo, talvez a preguiça, a natural indolência, a disposição para renunciar às suas virtudes por qualquer adulação.”

Isso explica em parte porque sentimos tanto medo de alguns personagens. E não estou falando apenas dos assassinos dos filmes de terror: há pessoas (afinal, acreditamos que elas, mesmo lá dentro da tela, existam de verdade) que, mesmo num drama ou outro gênero menos horripilante nos provocam igual sensação de temor. Quando essa magia intrínseca do cinema observada por Carrière se junta ao talento de cineastas e atores, a química é bem dizer infalível. Aí, soma-se a isso ainda nossa aceitação quase pueril ao que vemos e dá pra imaginar o que acontece: frio na espinha.

Ainda por cima, o universo dos vilões aterrorizantes é inegavelmente fascinante. Quem, mesmo tremendo as pernas a cada gesto que o dito cujo venha a dar, não aprecia (ou pelo menos reconhece que é sui genneris) a figura de um Freddy Krueger ou Michael Myers? Mas, como disse, não tratamos aqui somente dos carniceiros, afinal, destes é até previsível que imputem medo. Elencamos aqueles personagens e seus respectivos atores cujos papeis são tão críveis que não faríamos nenhuma questão de cruzar com eles algum dia na vida – e não precisa nem ser uma pessoa, inclusive.



O penetrante olhar do canibal Lecter.
1 – Hannibal Lecter (Anthony Hopkins)
O absolutamente frio psiquiatra, que atravessou a fronteira da sanidade para passar a matar por prazer – às vezes, até se alimentando de suas vítimas, dando-lhe o simpático apelido de Hannibal “Canibal” –, é provavelmente o mais célebre psicopata da história do cinema. Hopkins, com talento e muita sensibilidade, dá vida ao personagem do escritor Thomas Harris, o qual aparece pela primeira vez na tela no clássico “O Silêncio dos Inocentes” (Demme, 1991). Continuou assustador em outros longas, “Hannibal” (2001), “Dragão Vermelho” (2002) e “Hannibal - A Origem do Mal” (2007), mas vê-lo no primeiro e disparado melhor da série é até hoje imbatível em termos de qualidade cênica – e de medo também.





2 – Norman Bates (Anthony Perkins)
É inegável que as patologias psíquicas dão muito substrato para a criação deste tipo de personagem, seja na literatura ou no cinema. E claro que os diversos transtornos mentais existentes são um prato cheio para roteiristas. Norman Bates, psicótico atormentando pelo Complexo de Édipo encarnado como jamais o próprio Perkins conseguiu igualar, é até hoje um enigma que desafia os psiquiatras. Mas numa coisa todo mundo concorda: o cara dá medo pacas! Com a mão habilidosa de Alfred Hitchcock"Psicose", de 1960, tem talvez o melhor personagem de um thriller no melhor filme do mestre do suspense.


Monólogo final de Norman Bates - "Psicose"


Pacino, mais assustador que
muito serial-killer.
3 – Michael Corleone (Al Pacino)
Os filmes de máfia são recheados de personagens marcantes e não raro assustadores, pois altamente violentos. Porém, talvez pelo tratamento literário de drama dado por Mario Puzo, pela escolha acertada de Coppola do jovem Pacino para o papel e, obviamente, pelo talento do ator, nenhum se compare ao filho mais novo de Don Corleone. Empurrado pelo destino para o crime organizado, o ex-oficial do Exército tornou-se, mais do que qualquer outro de seus irmãos, o chefão mais impiedoso e frio da cosa nostra. Se no primeiro longa vê-se sua conversão à máfia até a natural sucessão ao pai, em "O Poderoso Chefão - parte 2", de 1974, ele está mais apavorante do que muito serial killer. Com um olhar, ele faz qualquer um congelar. Poderoso, dá-se direito a qualquer coisa, e nunca se sabe o que está maquinando naquela mente obsessiva. Coisa boa, não é. Seja nos acessos de raiva, seja no mais contido e calculista silêncio, Michael é apavorante.





Close com um sorriso nada covidativo.
4 - Alex Forrest (Glenn Close)
Não são apenas homens que fazem o espectador arrepiar. A maníaca de Alex Forrest, de “Atração Fatal” (Lyne, 1988), vivida por Glenn Close, é o melhor exemplo. Inconformada com um “pé na bunda” que levara de um homem casado, Dan Gallagher (Michael Douglas), com quem tivera um caso, ela passa a persegui-lo e a assombrar não apenas a ele, mas toda a sua família. Memoráveis cenas, como a do coelhinho de estimação da filha de Dan cozinhando na panela ou quando, depois de uma briga em que ele quase a estrangula, ela solta um sorriso horripilante, não deixam dúvida da força dessa personagem. Aliás, através da psicopatia, um símbolo à época do novo comportamento feminino, que não aceita mais a imposição machista nas relações. Não tem mais perdão: traiu, é penalizado.





5 - Alien (Bolaji Badejo)
Na magia do cinema, o medo pode vir da maneira que se bem entender. Pois não é a forma humana do ator nigeriano Bolaji Badejo que configura o seu personagem mais marcante. É a fantasia que ele veste, a do extraterrestre mais apavorante do cinema: Alien. Vários da mesma espécie dão as caras no bom “Aliens - O Resgate” (Cameron, 1986) e nas desnecessárias sequências. Mas nada se compara à excelente ficção-terror de 1979, de Ridley Scott, em que apenas um exemplar da espécie vai parar dentro da nave espacial em uma missão cheia de problemas. Um, aliás, é mais que suficiente para botar terror em todo mundo. O mais interessante é que o bicho não é muito visto, pois há o recurso fotográfico e cênico de dificultação do olhar, como pede um bom thiller. O vemos de fato, por inteiro e em luz suficiente, apenas mais para o fim da fita, quando o clímax já está lá em cima. Aí, só resta se segurar na poltrona.


Cena do gato de Ripley - "Alien, o oitavo passageiro"


O Cady da primeira e o da segunda vaersão.
6 - Max Cady (Robert De Niro)
Um dos maiores atores da história, De Niro de tempo em tempo encarna figuras assustadoras, desde o taxista louco de “Taxi Driver’ até o comerciante de escravos Rodrigo Mendoza de “A Missão”. Mas nada se compara a Cady, em que revive o já ótimo personagem de Robert Mitchum na versão que inspirou Martin Scorsese a rodar "Cabo do Medo", de 1991 (“Círculo  do Medo”, 1962). União de QI elevado e músculos, o algoz da família Bowden é capaz de, aliado à abordagem do roteiro, confundir os papeis de vilão e herói. Quem é mais filha da puta ali: o ex-presidiário que se vale da liberdade para perseguir os outros, o advogado que o prendeu deliberadamente, a esposa conivente ou as leis da sociedade, interpretáveis e permissivas?






7 - HAL-9000 (Douglas Rain – voz)
Quem disse que só a violência do homem ou a selvageria do bicho podem assustar? A inteligência, quando direcionada para o lado ruim, é devastadora. Ainda mais quando essa inteligência for artificial, como a do computador HAL-9000, o cérebro-mãe da nave especial de "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968). Kubrick e Clarke criam o personagem mais estático e, talvez até por isso, amedrontador do cinema moderno. Mirar aquele seu “olho” de plástico é deparar-se com a frieza inumana capaz das piores coisas. Através de meticulosos comandos, a máquina, rebelde e neurótica, põe à sua mercê toda a tripulação, afetando, mesmo depois de “morto”, toda a expedição. Detalhe: a voz original de Douglas Rain já é suficientemente aterradora, mas a da dublagem para o português, feita pelo célebre Marcio Seixas na clássica versão da Herbert Richards, consegue superar.

Dublagem clássica de HAL-9000 - "2001: Uma Odisseia no Espaço"




8 - Zé Pequeno/Dadinho (Leandro Firmino da Hora/ Douglas Silva)
Tem que ser muito sem noção para dizer para um mal-encarado “como é que tu chega assim na minha boca?!” Não precisa ser cinéfilo pra conhecer a resposta que é dada, pois é naquela cena que um dos personagens mais incríveis do cinema dos últimos 30 anos surgia ainda mais temível. Se o pequeno Dadinho já apavorava por se ver uma criança com sede de matar nos olhos, o jovem traficante vivido magistralmente por Firmino em “Cidade de Deus” (2002), então, “lavou a égua” neste quesito. Violento, entorpecido, marginal, cruel. Como não esbugalhar os olhos quando esse cara manda matar uma criança pequena a sangue frio? Ninguém se meta com Dadinho! Ops! Agora é Zé Pequeno, foi mal aí.






O brilhante personagem de Barden.
9 - Anton Chigurh (Javier Barden)
Os irmãos Cohen são mestres do anticlímax, uma vez que seus filmes se valem largamente desse expediente, usado por eles com muita habilidade de forma a gerar impactos surpreendentes no espectador pelo jogo oportuno de quebra ou confirmação da expectativa. O personagem Anton Chigurh, encarnado por Javier Barden no faroeste moderno "Onde Os Fracos Não Tem Vez" (2007), é montado todo em cima dessa premissa. Absolutamente inexpressivo e unidirecional, o psicótico Anton não sente nada, apenas mata. A naturalidade com que ele elimina suas vítimas não tem glamour nenhum. Ele simplesmente pega e mata, e nada é capaz de freá-lo. Fora isso, dá um pavor danado sempre que ele aparece com aquela arma de ar comprimido.







10 - Harry Powell (Robert Mitchum)
“Lobo em pele de cordeiro” é a melhor definição para Harry Powell. Afinal, quem desconfiaria que um pastor aparentemente cheio de boas intenções se revelaria um tirano doméstico da pior espécie? Se a interpretação de Mitchum fora superada pela de De Niro como Max Cady, esta de "O Mensageiro do Diabo" (Laughton, 1955) fica para a história do cinema como uma das mais fortes e impressionantes já vistas nas telas. Filme impecável, também mas não apenas pelas atuações. Mas Mitchum, inegavelmente é o destaque.

"Amor-Ódio" - "O Mensageiro do Diabo"



Mais insano que qualquer outro Coringa.
11 – Coringa (Heath Ledger)
 O alucinado e diabólico vilão das histórias do Batman é um dos personagens mais originais da cultura pop mundial. Interpretá-lo é, obviamente, um privilégio. George Romero o fez muito bem na série e até o craque Jack Nicholson mandou muito bem no papel, mas nada se compara ao que Heath Ledger fez em "O Cavaleiro das Trevas" (Nolan, 2008). Ele encarna Coringa, a ponto de, dizem, amaldiçoar-se, haja vista que morreu logo depois das filmagens. Ledger achou como poucos atores para o limiar entre a loucura e a lucidez, entre o burlesco e o austero. Menção que não podia deixar de faltar na lista.






12 - Jack Torrance (Jack Nicholson)
Se Stanley Kubrick já conseguira assustar com um computador, imagina quando ele volta toda a história para isso. É o caso do perfeito "O Iluminado" (1979), outra das obras-primas do cineasta costumeiramente reconhecido como o grande filme de terror de todos os tempos e a melhor adaptação de Stephen King para as telas. Mas seu impacto certamente não seria o mesmo se não tivesse a força de Nicholson no papel de Jack Torrance. Ele vale-se de toda sua técnica e sensibilidade cênicas a serviço da construção do personagem que vai perdendo o controle de sua sanidade, pois, mediunicamente vulnerável, sucumbe aos espíritos “sanguessugas” ligados àquele que Jack foi na vida passada: um serial killer que matou toda sua família.

por Daniel Rodrigues