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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Alegrete - Rio Grande do Sul (21/06/2025)

 

"Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu."
Mário Quintana

Se me perguntarem onde fica o Alegrete, como no clássico nativista “Canto Alegretense” (dos conterrâneos Nico e Bagre Fagundes), responderei que fica, sim, bem longe de Porto Alegre. Em razão de um adorável compromisso profissional que tive na cidade encravada no Pampa gaúcho, a ministração do meu curso de cinema negro junto ao Sesc Alegrete, pude, igualmente, conhecer um pouco desta cidade tão emblemática na história do Rio Grande do Sul por ser a terra de ninguém menos que gente ilustre como o poeta Mário Quintana, mas também Paulo César Pereio, Sérgio Faraco, João Saldanha e Osvaldo Aranha. Muita história. 

Já encerrada minha atividade, ocorrida na parte relativamente nova da cidade, atravessando-se o Rio Ibirapuitã - povoada muito em razão da chegada da universidade pública, a Unipampa, há 15 anos -, pude, então, fazer uma breve mas proveitosa deriva pela região central de Alegrete. As paisagens do campo, das fazendas e estâncias típicos do Pampa, aquelas que se veem pela janela enquanto se chega ou retorna, claro, estas não as vi a olho nu. 

Mas essas poucas horas de apreciação do olhar me trouxeram satisfação em conhecer um Centro que, distante 500 quilômetros de Porto Alegre, fez-me lembrar da capital em alguns momentos. Um Centro tomado basicamente por casas, em que se enxerga a rua adiante mirando das esquinas, um Centro cujas ruas (Andradas, Venâncio Aires, Getúlio Vargas, Joaquim Nabuco) se assemelham não só nos nomes como nas formas e modos. Mas um Centro que guarda ainda a memória, mesmo que descuidadamente, relação com sua abandonada estação férrea, essencial nos tempos antigos e responsável pelo crescimento econômico e social de muitos municípios do interior, assim como Alegrete, ainda hoje forte na agricultura.

Agora que estive lá (e muito bem recebido fui), se me perguntarem onde fica o Alegrete poderei dizer, sem pestanejar, parafraseando a velha canção gauchesca, que meus pés, em deriva, seguiram o rumo do meu próprio coração.


Largo da antiga estação férrea


Prédio da estação férrea. Deteriorando-se


Os trilhos. Para onde se vai mesmo?


Fim de tarde na antiga estação


Sol alaranjado na velha caixa d'água...


...iluminando também os trilhos abandonados


"Anarquia, Oi!"


Uma informação, por favor: para onde vai este trem?


Passarela para o nada


Art nouveau, vieille art


Tranquilidade para pastar, que o trem não virá hoje


Como fazer agora para calçá-los?


Saindo para o trabalho


Voltando do trabalho


Porta com porta


Equilibrando-se no tempo


Nas (es)quinas


Os homens velhos e a máquina velha


Dois cinco quatro


Fim de tarde, janelas fechadas


Mensagem importante


Numa charmosa esquina de Alegrete... ou seria São Paulo?


E ele ainda não chegou em casa


A rosazul


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Argemiro Patrocínio - "Argemiro Patrocínio" (2002)

 

“Eu só faço samba sobre coisas que me inspiram.”
Argemiro Patrocínio

Existem talentos especiais que passam pela Terra quase despercebidos. Embora esse descuido possa ocorrer em qualquer canto do planeta, não é difícil de se supor que os vícios de alguns lugares favoreçam a que preciosidades sejam obscurecidas – às vezes, por uma vida inteira. O Brasil, país jovem e com sérias dificuldades históricas de autoidentificação, é prodígio quando o assunto é apagar seus próprios iluminados, quanto mais, os da cultura popular. Com o samba, que sofreu por décadas perseguição, proibição e preconceito, a demora no reconhecimento de atores fundamentais para a construção do gênero musical mais original e identitário brasileiro promoveu um atraso quase irrecuperável. Dona Yvone Lara, Adoniran Barbosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus e Nelson Sargento, por exemplo, só lançaram seus discos de estreia na terceira idade. A vida humilde, a discriminação e a ralação do dia a dia sempre lhes foi uma realidade inescapável.

Se com esses grandes nomes quase não deu tempo de aproveitá-los, imagine-se com os sambistas de comunidade, menos midiáticos. É o caso de Argemiro Patrocínio, também conhecido por Argemiro do Pandeiro, Argemiro da Portela ou, simplesmente, Seu Argemiro, como era chamado em Madureira e Oswaldo Cruz, chão dos portelenses. De uma geração à frente de Monarco ou Candeia, dois referenciais bambas da Escola, Argemiro foi um compositor de mão cheia, mas que nunca teve espaço suficiente para desaguar suas autorias fora da quadra da escola. Os mais atentos podem lembrar dele na capa do disco de estreia de D. Yvone, “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, de 1978, atrás dela, à direita e junto com outros companheiros de samba, em que aparece meio de soslaio quase escondido pelo inseparável chapéu. Ou na cena dos partideiros no pátio da casa de Candeia no filme “Partido Alto”, de Leon Hirszman, de 1982. Como se vê, aparições sempre secundárias: integrado ao grupo, mas dissolvido nele.

Argemiro, contudo, começou cedo sua relação com o samba. Foi levado, nos anos 50, pelos históricos Paulo da Portela (então diretor) e Betinho (diretor de bateria) para a Portela, passando a integrar a Ala dos Pandeiros. Pai do Mestre Sala Jerônimo (da Portela e Imperatriz Leopoldinense), mais tarde entrou na Ala dos Compositores e também na velha-guarda da Escola, a qual, apadrinhada por Paulinho da Viola, se tornou uma referência entre as velhas-guardas cariocas a partir dos anos 70.

Homem de pouco estudo, mas de enorme sabedoria e inteligência, Argemiro trabalhou duro como técnico em refrigeração, profissão pela qual se aposentou de forma humilde. Isso explica em parte porque só começou a compor aos 56 anos, no final dos anos 70. Não demorou para que suas músicas, as mais de 100 que anotava com esmero num caderno, fossem reconhecidas. Em 1980, a madrinha do samba Beth Carvalho gravou a primeira composição sua, “A Chuva Cai”, parceria com Casquinha. Entre discos da Velha Guarda da Portela, participações em trabalhos de Zeca Pagodinho, Teresa Cristina e Grupo Semente, ganhou reconhecimento como o autor original que é, principalmente, na virada para o século 21. Ou seja: já na velhice. Não somente ele, como também os companheiros de Velha Guarda Casquinha e Jair do Cavaquinho, que tiveram, após o lançamento do álbum “Tudo Azul”, da Velha Guarda, em 2000, seus também primeiros discos gravados todos pelo selo Phonomotor, de Marisa Monte, um em 2001 e outro em 2002. Argemiro, que esperara oito décadas para isso, foi o terceiro da fila e não desperdiçou a oportunidade de marcar de vez seu nome na história da discografia do samba.

Poeta romântico e melodista precioso, Argemiro abre o disco com um soar de cavaquinho e a voz às vezes sôfrega e sibilante, mas naturalmente elegante e carregada de experiência vocal (e de vida). Ele canta os poéticos versos, que impressionam pela concisão das poucas palavras: “Não sei/ Porque/ Tudo de mal/ Acontece comigo/ Tentei/ Mudar/ Em vão/ Mas não consigo”. E arremata: “Ninguém pode fugir do seu destino/ Esse meu sofrimento é desde os tempos de menino”. Argemiro dá o tom da sua poética, calcada na tradição do samba de terreiro: o amor não correspondido, o sofrimento do coração partido, a mulher que abandona. Emendada, “Tudo Mudou Tão de Repente", uma das parcerias com outro célebre portelense, Chico Santana, segue na mesma linha: “Eu não sei se é meu destino/ Desde os tempos de menino/ Vivo sofrendo assim”. A sina do sambista, este eterno sofredor.

O violão de Paulão 7 Cordas, o cavaquinho de Mauro Diniz (filho de Monarco) e a “cozinha” de Felipe D’Angola e Marcelo Moreira dão a Argemiro o espaço necessário para ele entrar com seu pandeiro e sua voz. A magnífica “Solidão”, de tão classuda, ganha o toque do violoncelo de Jacques Morelenbaum. E olha que poética! “Um fantasma que mata/ E que maltrata o coração/ É dor, angústia e sofrimento O tédio é um eterno tormento/ Assim é a solidão”. Sua clássica "A Chuva Cai”, já ouvida na voz de Beth Carvalho, Renata Arruda, Grupo Explosão do Samba, Régis Clemente e outros, tem agora, enfim, a do seu próprio autor. A história da música no Brasil devia isso ao samba.

Marisa Monte, produtora do disco, sabia dessa importância histórica e dá ao conteúdo musical e até antropológico o devido capricho. Marisa, por sinal, vinha de alguns anos encabeçando o projeto de valorização da Velha Guarda da Portela. Primeiro, com o disco “Tudo Azul”, também produzido por ela. Mais tarde, os de Casquinha, Jair do Cavaquinho e este, além do belo documentário “O Mistério do Samba”, de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor, de 2008, que a tem como cicerone. É neste filme, aliás, que Argemiro ganha seu primeiro protagonismo em vida, tratado como um dos personagens centrais da Portela. Constantes no filme, "Deslize Da Vida" (“A vida/ Não é somente doçura/ Tem que haver amargura/ Para se dar o valor”) e a maravilhosa "A Saudade me Traz", com direito a "clipe", tem a ilustre participação de Zeca Pagodinho e das vozes femininas da Velha Guarda, as Pastoras – leia-se Tia Doca, Tia Eunice, Tia Surica e Áurea Maria. Uma das melodias mais bonitas da história do samba carioca e com uma letra, que é um show de domínio de prosódia e sintaxe: “A saudade me traz/ Quero rever alguém/ Que do meu coração não sai/ Eu vivo nessa agonia sem fim/ Eu canto, eu bebo para esquecer/ Mas nem assim”. Luxo só.

trecho do filme "O Mistério do Samba" com o "clipe" "A Saudade me Traz"

Capricho também se vê no arranjo especial dado a cada faixa. "Cadê Rosalina", um samba-de-roda com ares rurais, recebe, além das vozes tão afinadas quanto agudas das Pastoras, o acordeom de Waldonys. Trato semelhante em conceito tem “Vem Amor”, samba cadenciado em que o violino de Nicolas Krassik escreve frases líricas sobre a base de tamborim e o limpo cavaquinho de Mauro Diniz; bem como o samba romântico "Dizem Que o Amor", toda na voz delicada de Marisa e cujo arranjo valoriza as cordas do cavaquinho, do violão e do cello de Jacquinho. Por falar em voz feminina, é a da fã e parceira Teresa Cristina que aparece em “Amém” para dividir os microfones com o ídolo. Um samba recente, mas com cara de clássico das antigas.

Galanteador, malandro da velha estirpe e cheio de histórias, Argemiro transpõe para seus sambas embates amorosos como o de ‘Nuvem que Passou”. "Essa saiu de repente, inteira por causa de uma mulher que não deu certo. Nós nos encontramos, ela veio com saudade, mas eu não quis dar o braço a torcer", resume. Outra nesta linha é a divertida (mas não menos melodiosa) “Saia da Casa dos Outros”, na qual Argemiro lembra outra companheira que era frequentadora assídua da vizinha, em frente a uma vila em que ele morava em Oswaldo Cruz.

O próprio Argemiro comanda o pandeiro – e apenas mais o cavaquinho – em "Lamento de um Portelense", quase uma vinheta, que antecede outra das joias do álbum: "Em uma Noite de Verão". Samba-canção valseado, com harmonia complexa e engenhosa e de letra de alta expressividade e lirismo. “Até o brilho das estrelas/ Se fez presente aos olhos meus/ Como foi maravilhoso vê-las/ Que bom seria se não fosse o adeus”. É ou não é de dar inveja em muito compositor/letrista com bastantes mais condições na vida?

E o que dizer da maestria de "Vou-me Embora pra Bem Longe"? Esta é tão melodiosa e especial, que rendeu não uma faixa, mas duas no disco. A primeira, na voz de Moreno Veloso, com breve participação do seu autor. A segunda, num eletro-samba remixado por Marcelo D2 que, esta sim, traz o vocal inconfundível de Seu Argemiro. A letra? Essa maravilha aqui: “Vou embora para bem longe/ Não posso mais ficar/ Você não me corresponde/ E os meus anseios não podem esperar”. Note-se o domínio do fraseado e do bom uso dos recursos linguísticos (mesmo que isso se dê de forma totalmente inata): “Amar, como eu amei/ Até pensei que fosse minha um dia/ Cantar, também cantei/ Extravasei a minha alegria/ Mas tudo não passou de fantasia”. Uma estrutura literária própria dos grandes poetas.

A notoriedade que Argemiro recebeu, enfim, ainda em vida, infelizmente durou pouco. Em 2003, ao lado de Teresa Cristina, Jair do Cavaquinho e Grupo Semente, apresentou-se no Centro Cultural Carioca, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Pouco depois, vítima de uma parada cardíaca, viria a falecer, aos 81 anos, meses depois de lançar seu único disco solo. Quase não deu tempo de registrar essa preciosidade da música brasileira.

Ah, mas Seu Argemiro sempre tinha mais uma história! E esta aqui envolveu Vinícius de Moraes. Depois do sucesso de “A Chuva Cai”, Paulinho da Viola levou Argemiro num bar onde estavam Vinicius e Chico Buarque para apresentar-lhes o "novo compositor". Provocador, Vinícius, informado da capacidade de Argemiro fazer samba de partido-alto, aquele inventado na hora, olhou para ele e falou. “Faz música, mesmo? Então faz uma sobre essa garrafa aí na mesa”. Argemiro fechou o semblante e respondeu que não ia escrever sobre a garrafa, pois não estava sentido nada por ela. Ficou um climão, mas Argemiro foi para casa com aquilo na cabeça. Na semana seguinte, pediu para Paulinho levá-lo novamente àquele bar. Ao chegar, retirou a caixa de fósforo do bolso e batucou para a seleta plateia em que estavam novamente Vinicius e Chico o samba que havia composto naquela semana. Era “Minha Inspiração”, que fecha este disco em um canto a capella de Argemiro:

“Eu direi vocês estão enganados
Não faço sambas fabricados
Compreendendo vão me dar me razão
 
Somente escrevo que sinto
Falo a verdade não minto
Culpada é a minha inspiração
 
Já procurei escrever de outro jeito
Nada saía perfeito, porque não estava em mim
Não adianta eu forçar a minha natureza
Se o melhor do samba é a sua pureza
E eu forçando seria meu fim”.
 
Chico, impressionado, o olhou e disse. “Precisava isso tudo?”


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FAIXAS:
1. Pot-pourri: "Meu Sofrimento” (Argemiro Patrocínio) / “Tudo Mudou Tão de Repente" (Argemiro/Chico Santana) - 3:03
2. "Solidão" - Participação: Jaques Morelenbaum (Argemiro) - 3:26
3. "A Chuva Cai" (Argemiro, Casquinha) - 2:20
4. "Vem Amor" (Argemiro, Armando Santos) - 2:42
5. "Dizem Que o Amor" – Participação: Jaques Morelenbaum e Marisa Monte (Argemiro/Chico Santana) - 2:18
6. "Cadê Rosalina" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela e Waldonys (Argemiro, Paulo Vizinho) - 3:54
7. "Saia da Casa dos Outros" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela 
(Argemiro, Darcy Maravilha) - 3:01
8. "Deslize da Vida" (Argemiro/Chico Santana) - 3:17
9. "Lamento De um Portelense" (Argemiro/Chico Santana) - 0:55
10. "Em Uma Noite de Verão" (Argemiro) - 2:53
11. "Amém" - Participação: Teresa Cristina (Argemiro, Teresa Cristina) - 3:34
12. "Nuvem que Passou" (Argemiro) - 3:43
13. "Vou-me Embora pra Bem Longe" - Participação: Moreno Veloso e Rildo Hora (Argemiro, Guaracy, Renato Fialho) - 3:13
14. "A Saudade me Traz" - Participação: Pastoras Da Velha Guarda Da Portela e Zeca Pagodinho (Alberto Lonato, Argemiro) - 2:10
15. "Minha Inspiração" (Argemiro) - 0:22
16. "Vou-me Embora pra Bem Longe (remix)" - Participação: Cleber França e Marcelo D2 - 2:59


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cartola - "Cartola" (1974)


“Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira”. 
José Ramos Tinhorão

“Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada". 
Carlos Drummond de Andrade

Há 50 anos o Brasil corrigia um erro crasso de, pelo menos, outro meio século anterior. Um dos maiores autores da música popular brasileira, finalmente, registrava sua obra pela própria voz: Angenor de Oliveira, o Cartola. Assim como ocorreu com outros sambistas prejudicados pela disfunção anacrônica da indústria fonográfica de um país desleixado com sua própria cultura (leia-se Nelson Sargento, Dª Ivone Lara, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa e outros velhos bambas desafortunados), Cartola, à exceção de uma rara gravação de 1965 junto ao coro da Escola de Samba do compositor Almeidinha, só pode realizar esse feito na terceira idade, aos 65 anos de uma vida sofrida e batalhada. Como a de todo brasileiro pobre, mas que, por mérito, deveria ser poupada a gênios como ele.

O ano foi 1974 e Sérgio Cabral, no texto da contracapa do LP, celebrava que, finalmente, havia um disco do grande Cartola. A realização deste feito, no entanto, se deve em grande parte ao destino e ao sentimento de dívida para com Cartola alimentado por algumas personalidades importantes da cultura carioca. O primeiro ė Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, jornalista e cronista que, em 1956, certa noite, descobriu que o já histórico compositor e fundador da Mangueira, dado por ele como morto, estava num subemprego de lavador de carros, ajudando-o, por fim, a retornar à carreira musical. Anos depois, nos anos 60, preterido pelos sambas-canções bolerizados e, principalmente, pela bossa-nova, Cartola se desilude, mas volta aos holofotes quando, em plena Ditatura Militar os jovens ligados ao CPC/UNE passam a valorizar artistas da velha-guarda do samba como ele. É quando participa, por iniciativa de Hermínio Bello de Carvalho, do memorável projeto "Fala, Mangueira" ao lado de outros bambas de seu calibre: Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça e Odete Amaral

Impossível não citar ainda outro ardoroso venerador de Cartola dos que lhe ajudaram em vida e que foi responsável por, enfim, colocá-lo num estúdio: João Carlos Botezelli. Produtor musical e fã, Pelão levou a ideia ao selo Marcus Pereira de gravar um LP da lenda viva do samba. As sessões ocorreram entre os dias 20 e 21 de fevereiro e 16 e 17 de março daquele ano, contando com as participações de exímios músicos, como o percussionista Mestre Marçal, o violonista e arranjador Dino 7 Cordas, o flautista Copinha e o trombonista Raul de Barros. Não havia músico no Rio que quisesse perder aquela oportunidade de participar de um momento histórico: Cartola lançaria seu primeiro álbum solo, que já nascia clássico.

Basta ouvir os primeiros acordes da faixa inicial, “Disfarça e Chora”, para perceber que se inaugurava ali uma era na música brasileira – ou melhor, se resgatava o tempo perdido. Samba elegante, letra exata, melodia engenhosa, poesia romântico-parnasiana. Que acordes bonitos e criativos! Nunca o samba, nem com Paulo da Portela, com Dª Ivone, com Candeia, com Wilson Batista, com Batatinha, havia sido tão lírico. Lirismo e perfeição, aliás, caminham juntos durante todo o álbum. O que dizer de cânones da MPB como “O Sol Nascerá (A Sorrir)”, dele e de Elton Medeiros, e seus versos infalíveis em melodia, harmonia e poesia? “Finda a tempestade/ O Sol nascerá/ Finda esta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar”.

Ou “Alvorada”? “Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo”. Parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, remete, em sua repetição harmoniosa de palavras e na economia harmônica de seus acordes, a simplicidade universal de outro sambista contemporâneo seu, o baiano Dorival Caymmi. É muita maestria.

E os clássicos só vão se avolumando. “Tive Sim”, uma das mais singelas declarações de amor da música brasileira e que pode ser considerada irmã de outra composição de Cartola, “Nós Dois”, de seu terceiro disco, “Verde que te Quero Rosa”, de 1977, pois conta sobre a felicidade de se ter um amor (Dª Zica, companheira do segundo casamento até sua morte) sem esconder que teve, sim, “um outro amor antes" daquele. Composta em 1968, a música participou da Primeira Bienal do Samba, defendida por Cyro Monteiro, e ficou em quinto lugar. Outra irreparável é “Corre e Olha o Céu”, com a bela introdução em que Copinha e Raul de Souza dão a deixa com seus sopros para Cartola entoar com a elegância de sempre os versos. “Linda!/ Te sinto mais bela/ Te fico na espera/ Me sinto tão só”. 

Porém, há os clássicos entre os clássicos. Isso é a mais certeira afirmação, pois trata-se da música chamada “Sim”. Samba de 1962, gravado originalmente por Gilberto Alves, é a exatidão da palavra cantada no ritmo mais afro-brasileiro por excelência. “Para ter uma companheira/ Até promessas fiz/ Consegui um grande amor/ Mas eu não fui feliz/ E com raiva para os céus/ Os braços levantei/ Blasfemei/ Hoje todos são contra mim”. Não são dignos de um Álvares de Azevedo estes versos?

E o que dizer, então, de “Acontece”? Um assombro a capacidade de Cartola de sintetizar em pouco mais de 1 min tamanha perfeição musical. Traços de Villa-Lobos emanam do morro. E que canto o de Cartola! Elegante, afinado, emotivo, seguro, dono da própria criação. "Esquece nosso amor, vê se esquece/ Por que tudo no mundo acontece". Sem dúvida nenhuma, top 10 entre as melodias mais bem construídas da música brasileira. Para um país que tem o privilégio de ter compositores do calibre de Caymmi, Gil, Edu, Garoto, Donato, Joyce, Chico, Tânia, Moacir, alguns destes, maestros formados, isso é bastante representativo. 

Mas tem mais. “Amor Proibido”, claramente uma forte inspiração para Paulinho da Viola em estilo melódico e cuja melodia é tão linda que ganhou, em 2008, uma versão apenas instrumental de Zé Paulo Becker, no disco-homenagem “Viva Cartola – 100 anos”. Ainda, outras preciosidades: “Quem Me Vê Sorrindo”, nova parceria com Carlos Cachaça, “Festa da Vinda”, um ano antes gravada por Elza Soares, e “Ordenes e Farei”, sua e de Aluísio Dias. Finalizando o disco, uma música de 1965 que, resgatada, traduzia o momento especial do velho bamba: “Alegria”. “Alegria/ Era o que faltava em mim”. Em depoimento a O Globo, o próprio falou sobre esse sentimento quando se deu conta de que era verdade o que vivia: “Me senti muito emocionado quando ouvi a minha voz no disco. Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar um disco”. Cartola, mesmo com cerca de meio século de atraso, estava de volta.

Até debutar em estúdio, Cartola já havia fundado, nos anos 20, uma das mais tradicionais escolas de samba cariocas – a qual ele mesmo, com seu senso estético apurado, escolhera as cores verde e rosa como símbolo. Já havia composto sambas-enredo campeões de diversos carnavais nas décadas de 40 e 50. Já havia inventado um ritmo, o samba-canção. Já havia posto sucessos nas vozes de artistas como Carmen Miranda, Noel Rosa, Francisco Alves e Aracy de Almeida. Já havia sido aprendiz de tipografia, pedreiro, pintor, guardador e lavador de carros, vigia de edifícios e contínuo de repartição pública. Já havia enviuvado e casado novamente, sido pai, dono da casa noturna Zicartola e radialista junto com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres. Tudo isso, toda uma vida antes desta estreia como artista solo. 

Isso é muito sério e diz bastante sobre o Brasil: rico em cultura, mas paupérrimo em autoestima. É como se a genialidade prodigiosa de Mozart, desperta na infância, fosse enclausurada na Áustria por uma vida inteira até ser revelada só quando este tivesse branqueado os cabelos. Não é exagero essa comparação, pois Cartola é o Mozart do samba. O maestro de música erudita britânico Leopold Stokowski, em excursão ao Brasil nos anos 50, já havia ficado impressionado com a musicalidade de Cartola. Nada mais do que a sua obrigação como homem da música em reconhecer o talento do brasileiro, considerou outro brasileiro genial, Carlos Drummond de Andrade. Aliás, é do poeta mineiro a definição mais sintética do que o admirável poeta do morro representa: “Cartola é daquelas criaturas que a música habita nelas”.

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FAIXAS:
1. "Disfarça E Chora" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:06
2. "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins) - 3:38
3. "Corra E Olhe O Céu" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:23
4. "Acontece" - 1:17
5. "Tive Sim" - 2:09
6. "O Sol Nascerá" (Cartola, Elton Medeiros) - 1:42
7. "Alvorada" (Carlos Cachaça, Cartola, Hermínio Bello de Carvalho) - 2:40
8. "Festa Da Vinda" (Cartola, Nuno Veloso) - 1:59
9. "Quem Me Vê Sorrindo" (Carlos Cachaça, Cartola) - 2:07
10. "Amor Proibido" - 2:37
11. "Ordenes E Farei" (Aluízio Dias, Cartola) - 2:21
12. "Alegria" (Cartola, Gradim)- 2:44
Todas as composições de autoria de Cartola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Cartola - "Cartola"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

“Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude (2023)

 

Dois curtas-metragens produzidos no Rio Grande do Sul em especial saltaram aos olhos na última edição do Festival de Gramado. O primeiro deles foi, obviamente, a grande revelação “Pastrana”. Vencedor do prêmio de Melhor Curta-Metragem na competição nacional, feito que não ocorria há anos no cinema gaúcho, o filme dos jovens diretores Melissa Brogni e Gabriel Motta ganhou, com total merecimento, ainda os Kikitos de Melhor Fotografia e Montagem, além de arrebatar a crítica na Mostra Gaúcha – Prêmio Assembleia Legislativa, levando o Prêmio ACCIRS, e mais o de Melhor Produção Executiva.

Porém, outro filme dessa recente leva gaúcha um pouco menos laureado, mas nem por isso, menor em relevância e qualidade, é, “Chibo”. Eleito melhor curta-metragem gaúcho no Prêmio Assembleia Legislativa, o filme dos também jovens realizadores Gabriela Poester e Henrique Lahude tem a potência inquietante do filmes de arte. Se “Pastrana” conquista o público em poucos minutos por sua montagem ágil, imagens impactantes e narrativa tocante ao prestar, num documentário muito pessoal, uma homenagem ao skatista de downhill Allysson Pastrana, falecido trágica e precocemente em 2018 durante uma competição, “Chibo”, por sua vez, vale-se de outras ferramentas para se erguer enquanto obra. O que faz com bastante originalidade.

O filme traz a história de uma família, que vive na fronteira entre Brasil e Argentina, às margens do rio Uruguai, e que trabalha com chibo - travessia clandestina de mercadorias para subsistência, comércio e pessoas. Dani, a filha mais velha, está prestes a concluir o ensino médio e enfrenta as decisões dessa fase da vida. Num realismo cru, fotografia que oscila entre o sujo e o poético e uma proposta de “dificultação” do olhar, “Chibo” capta tanto a questão identitária e socioeconômica do gaúcho quanto a feminina e a da juventude em busca de perspectivas. 

Em perspectiva de uma onda de produções gaúchas que vêm questionando valores arraigados (e, no mais das vezes, desgastados) do povo Rio Grande do Sul, como os longas “Casa Vazia” (Giovani Borba, 2021), “Rifle” (Davi Pretto, 2017) e os recentes “Além de Nós” e “Sobreviventes do Pampa”, ambos de Rogério Rodrigues, “Chibo” traz à tona uma outra perspectiva para essa saudável discussão. Num estado que recentemente viveu a maior catástrofe natural de sua história e tenta, a murros em ponta de faca, reconstruir-se, por que não, então, diante do presente sentimento de crise, voltar-se para dentro e repensar a si próprio? Afinal, o que é esse ser gaúcho? Filmes como “Chibo” trazem à tona um dos pontos essenciais dessa discussão, que é a questão do trabalho e sua precarização. Enquanto o agro monocultural e tecnológico (leia-se soja e pecuária) avança, para onde vão pessoas como Dani e seus familiares, à margem deste processo? Não à toa, simbólica e praticamente eles margeiam um rio que divide dois países vizinhos permanentemente em dificuldade econômica.

Cena de "Chibo": é preciso repensar o gaúcho

Além disso, “Chibo” também guarda um olhar muito apurado para a questão feminina. Que perspectiva de vida uma adolescente tem naquele fim de mundo pobre e sujeito a piorar? Causa uma desacomodarão ao espectador ver os momentos da protagonista em casa ou na lida com os bichos na pequena propriedade, ao passo que também é encantador vê-la nas interações com a irmãzinha imersas na paisagem bonita daquele local longe do mundo. 

Seja a emoção genuína que “Pastrana” causa no espectador, seja o desconforto propiciado por “Chibo”, o Rio Grande do Sul ganhou dois excelentes representantes do novo cinema este ano. E como curtas-metragens são a porta para realizações mais audaciosas futuras, que venham os desafios. Gabriela e Lahude, por sinal, já estão em desenvolvimento do longa-metragem "Caça". A se ver pelas mostras iniciais, o caminho foi muito bem aberto.


"Chibo"
Direção: Gabriela Poester e Henrique Lahude 
Gênero: Drama
Duração: 12 min.
Ano: 2023
País: Brasil

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde" (1977)

 

“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”. 
Danilo Caymmi

Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.

“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.

Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.

Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.

Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli. 

Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.

Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.

Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.

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FAIXAS:
1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25
2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45
3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05
4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44
5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54
6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55
7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37
8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16
9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07
10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15

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OUÇA O DISCO:

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"


Daniel Rodrigues


domingo, 2 de julho de 2023

Exposição "Nuances de Brasilidade: Repertório" - Centro Cultural PGE-RJ - Rio de Janeiro/RJ

 

Embora eu não entenda nada de astrologia, deve passar por alguma explicação neste sentido a minha ligação com o Rio de Janeiro. Digo frequentemente que, mesmo gaúcho, porto-alegrense nato, e com família e amigos que moram no Rio, ando por lugares que nem os cariocas circulam, o que me faz conhecer a cidade mais do que muitos deles. Numa dessas andanças cariocas na última vez que estive na cidade, saía eu de uma visita ao Paço Imperial, na Praça XV, no Centro (lugar que, sei, muitos turistas e nem os próprios cariocas vão) e, ao atravessar a 1º de Março, percebi no frondoso prédio da calçada oposta que havia uma entrada iluminada e convidativa. Parecia ser um espaço novo. E era: o Centro Cultural PGE-RJ, aberto em 2022 pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, atual responsável pelo prédio histórico. 

"Novo", modo de falar, pois o Centro Cultural PGE-RJ, recém-restaurado, fica no antigo Convento do Carmo, uma das mais antigas construções do país, cedido pelos monges carmelitas para servir de residência para D. Maria I quando da vinda da Família Real para o Brasil e datado da mesma época que o Paço, século XVII. Mas voltando à astrologia. Diz-se que o Rio de Janeiro tem como signo peixes, o que o faz ser uma cidade de belezas e mistérios. Afinal, não são à toa os versos: “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”. E o que me aconteceu naquele finalzinho de tarde em que saía do Paço Imperial foi de revelação de um desse tipo de mistério que o Rio guarda nas suas entranhas. Arrisquei e minha curiosidade foi recompensada pelo belo espaço expositivo que encontrei, o qual me lembrou os do próprio Paço Mais do que isso: a qualidade da exposição em si: "Nuances de Brasilidade: Repertório".

Não deu muito tempo para visitar, pois, como falei, já era fim de tarde e o horário de atividade estava se encerrando. Mas deu para apreciar a pequena e agradável mostra de 14 artistas brasileiros com obras cedidas por colecionadores particulares. Os trabalhos são de gente do calibre de: Abraham Palatnik; Emanoel Araújo; Frans Krajcberg; José Bechara; Luiz Zerbini; Miguel Rio Branco; OSGEMEOS; Rubem Valentim e outros. Só coisa fina.

Confiram algumas obras em exposição até setembro no belo espaço do casarão da PGE-RJ.

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Já de cara, um Palatnik (acrílica sobre madeira, 2015)

As formas orgânicas e perturbadoras de Krajcberg:
obra (pigmentos naturias sobre madeira) que é um dos destaques da mostra

A profusão ótica do paulista Zerbini ("Sem título", 2007)

A fotografia também presente na mostra pelas lentes de Luiz Braga
("Menino sentado no pneu", 1988)

A genialidade afro-simbolista de Emanoel Araújo, 
que marcou esta minha ida ao RIo em três expos diferentes

A arte d'OS GÊMEOS, "Gravidade Zero", técnica
mista sobre madeira (2012)

Outro gênio, Miguel Rio Branco, e suas imagens densas
que desafiam o conceito de fotografia ("Havana velha", 1994)

O baiano Valemtim, a quem me deparei também mais de uma vez,
com "Emblema 80", de 1980 (acrílica sobre tela)



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E
xposição "Nuances de Brasilidade: Repertório"
local: Centro Cultural PGE-RJ
Praça XV de Novembro – Centro (Rio de Janeiro)
período: até 16 de setembro de 2023
horário: de terça-feira a sábado, das 10h às 18h
ingressos: Gratuito

Daniel Rodrigues