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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Banda Black Rio - Blues Bossa Jam Session POA - Teatro do Bourbon Country - Porto Alegre/RS (1º/10/2025)

 

Sonho realizado. Ao longo dos anos, ver a Banda Black Rio, desde que a banda voltou, no final dos anos 90, e passou a se apresentar mais, tornou-se mais do que um desejo, mas um desafio. Isso porque, das várias vezes que viajamos ao Rio de Janeiro, nunca coincidia de pegarmos um show deles. Ou tinham se apresentado antes ou se apresentariam depois de retornarmos a Porto Alegre, onde, aliás, nunca tinham vindo. Essa realidade mudou com a primeira descida da Black Rio à capital gaúcha, dentro do projeto Blues Bossa Jam Session POA, quando pudemos Leocádia e eu conferi-los numa concorrida e feliz noite no Teatro do Bourbon Country. E foi uma festa.

Com uma considerável presença de um público preto – coisa meio rara em Porto Alegre, ainda mais de pessoas pretas de bom nível social – e bastante aguardados pelos gaúchos - que, como nós, queriam muito vê-los há muito tempo - a Black Rio subiu ao palco comandada por seu cabeça, o tecladista William Magalhães, responsável pela retomada do mítico grupo fundado por seu pai, o precocemente falecido Oberdan Magalhães, este, um dos maiores músicos que o Brasil já teve. 

Cumprindo muito bem a missão de prosseguir com a arte maior da Black Rio, com o groove inconfundível da grande banda da história da soul brasileira, William e seus competentes companheiros músicos começaram com alguns números do seu clássico álbum, “Maria Fumaça”, de 1977. Este marco na história da música brasileira conquistou, mesmo sem vocal ou letra, crítica e público, chegando a ser trilha de abertura de novela da Globo (“Locomotivas”, aliás, a primeira a conseguir esse feito). Foi a música que dá título ao cultuado primeiro disco da Black Rio, inclusive, que iniciou a apresentação. Um desbunde total de musicalidade, mas um pouco atrapalhado pelas as falhas técnicas no som tanto do teclado, que mal se ouvia no início, mas principalmente da guitarra. Não dava para ouvir direito justamente o marcante riff com som ecoado da guitarra. Uma pena.

Depois desse número inicial, o som melhorou, mas ainda apresentava algumas falhas, com William tendo que chamar o roadie algumas vezes para resolver problemas. Imagino que seja um pouco difícil equalizar satisfatoriamente todos os instrumentos para uma banda como a Black Rio, em que cada mínimo som é importante para o contexto sonoro. Porém, é inexplicável que não se tenha testado e ajustado isso tudo antes. Mas, tudo bem. A festa prosseguiu com outras três de “Maria Fumaça”: a estonteante “Mr. Funky Samba”, bem como as não menos impressionantes “Leblon Via Vaz Lobo” e “Casa Forte”.

Após estas, entrou no palco o ótimo cantor Marquinho Osócio, integrante oficial desde o começo dessa segunda fase, marcada pelo lançamento do álbum “Movimento”, de 2001. Embora muito competente, o show seguiu praticamente só com as músicas “novas”, o que poderia ter sido um pouco diferente em se tratando de uma estreia em solo gaúcho. O público, maior parte formada por fãs dos tempos antigos da Black Rio, esperavam, se não mais músicas de “Maria Fumaça”, como “Na Baixa do Sapateiro” e “Baião”, pelo menos coisas dos outros dois discos da fase clássica, “Gafieira Universal”, de 1978 (“Chega Mais”, “Samboreando”, “Expresso Madureira”, quem sabe) e “Saci Pererê”, de 1980, em que podiam ter resgatado o lindo reggae que lhe dá título feito por Gilberto Gil especialmente para o conjunto, ou “De Onde Vem” e “Amor Natural”, todas em que o vocal de Osócio se encaixaria bem ao formato atual.

O sentimento de que podiam ter maior trato no set list, no entanto, não tirou o brilho do show. Do repertório recente, eles tocaram números como “Nova Guanabara”, “Carrossel”, “Sexta Feira Carioca” e “América do Sul”, sempre contagiando a plateia. Ainda teve maravilhosas interpretações de "Boa Noite", de Djavan, e de “Tomorrow”, de Cassiano, música responsável pela volta da banda em 1999, quando o célebre compositor de “A Lua e Eu” chamou a então inoperante Black Rio para tocar com ele na TV. 

Banda Black Rio tocando o mestre Djavan


Sonoramente falando, não se escuta mais tanto o baixo imponente como era o de Jamil Joanes antigamente. E há de se entender, haja visto que nada se compara ao som tirado por aquele baixista, cheio e ondulante. No arranjo atual, então, William e sua turma decidem equilibrar mais os teclados, a percussão e os metais, além de dar maior peso à melodia de voz. E tudo bem, uma vez que a formação atual é esta – e também porque, convenhamos, é impossível reproduzir o estelar time Oberdan, Jamil, Cristóvão Bastos, Cláudio Stevenson, Luiz Carlos e Barrosinho tocando juntos novamente. Nessa configuração do grupo, além de William, um fera, destaque para o trio dos sopros – Feldeman (trombone), LG (trompete) e Marlon Cordeiro (sax) – e para o excelente percussionista Marcos César. 

Mais para o fim, rolou uma lindíssima versão de “Mistério da Raça”, de Luiz Melodia, tocada por uma Black Rio com a autoridade de quem formava originalmente a banda de Melodia no álbum “Nós”, de 1980. No encerramento, outra obra a qual somente eles mesmos poderiam tocar com a dignidade de quem também escreveu aquela história: o hit “Sossego”, de Tim Maia, gravada pelo “Síndico” com eles no delirante “Tim Maia Disco Club”, de 1978.

Sim: sonho realizado de ver a Black Rio! Esses verdadeiros criadores do brazillian jazz, os caras que representam no nome mais do que uma banda, mas um movimento! Uma instituição da música brasileira. A Black Rio não é sé esse patrimônio cultural, mas uma prova viva da resistência negra e de sua cultura. Em uma entrevista tempo atrás, William disse ter orgulho de seguir a profissão e a própria banda fundada pelo pai. “Me sinto um herói da música preta”, disse ele. Concordamos plenamente. 

🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶🎶


A brilhante e resistente Black Rio entre no palco


Tocando clássicos instrumentais do disco "Maria Fumaça"


Um trechinho de "“Leblon Via Vaz Lobo”, 
do repertório antigo


William Magalhães comanda seu timaço de músicos


Marquinho Osócio entra para animar ainda mais a festa


Muito groove samba-soul no Bourbon Country


A contagiante "Sossego", hit de Tim Maia, 
que encerrou o espetáculo


Momento de agradecer a acolhida
- e nós, o belo show da lendária Black Rio



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

terça-feira, 24 de junho de 2025

Orquestra Petrobras Sinfônica apresentando "Na Trilha do Rock" - projeto Entre Notas BandNews FM - Theatro Municipal do Rio de Janeiro - 22/06/2025 - Rio de Janeiro/RJ

 


Pintou do nada a oportunidade de assistir, no último domingo, a Orquestra Sinfônica Petrobras executando clássicos do rock brasileiro no Theatro Municipal do Rio, em comemoração pelos 20 anos da Band News FM. Um amigo me avisou que ia rolar, conseguiu os ingressos online, me repassou e já era. Apareci por lá!

Tive o prazer de ir com a minha filha que, apesar dos 13 aninhos de idade apenas, curte de montão o som dos anos 80 e adorou ouvir com aqueles arranjos orquestrais grandiosos com aqueles instrumentos diferenciados naquele espaço nobre e altamente adequado para uma audição de qualidade, muitas das músicas que ela escuta, gosta e tira pra tocar na guitarra.

Numa proposta de muito bom gosto, a Orquestra Petrobras preparou arranjos acessíveis, nada excessivamente pomposo e embalou o público totalmente identificado com a época das canções na noite carioca do domingo. Desde o início o maestro Felipe Prazeres deixou claro que aquilo não seria um concerto tradicional, seria um concerto de rock e portanto o público podia deixar de lado a formalidade daquele espaço que tradicionalmente exige uma postura mais sóbria, e podia se soltar e cantar junto.

E foi o que todo mundo fez! Cantou junto com a Petrobras Sinfônica hits que embalaram os anos 80 e 90, como "Era Um Garoto que Como eu Amava os Beatles e os Rolling Stones", dos Engenheiros do Hawaii, "Como Eu Quero", do Kid Abelha, "Música Urbana", do Capital Inicial, "Lanterna dos Afogados", dos Paralamas, a santa padroeira do rock brasileiro Rita Lee com "Desculpe o Auê", e, como não podia faltar aquele tradicional pedido de "toca Raul", fizeram aquele "Maluco Beleza" pra galera.

"Bete Balanço" do Barão Vermelho, muito saudada, "Sonífera Ilha" dos Titãs num ótimo arranjo surpreendentemente imponente, e "Será", da Legião Urbana, cantada em uníssono pelo público, na minha opinião foram os pontos altos do concerto. A Orquestra preparou a saída com a "Saideira" do Skank, voltou para  fazer um verdadeiro baile no bis com "Whyski a Go-Go", do Roupa Nova, com as pessoas dançando entre as fileiras, e depois de outra saída do maestro, um derradeiro retorno para o número final com a popularíssima "Pelados Em Santos" dos infames Mamonas Assassinas que, particularmente não gosto, mas valeu pra fechar a noite em altíssimo astral.

Adorável noite de música, nostalgia e alegria num dos mais emblemáticos templos de espetáculos do Brasil, o sempre belíssimo Theatro Municipal do Rio de Janeiro.


Fique abaixo com alguns momentos da noite:


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O belíssimo saguão de entrada do Municipal.

A escultura em mármore, "A Verdade", no topo da escadaria central. 

Espaço interno do teatro visto do balcão superior

A riquíssima ornamentação dos lustres de cristal no centro do salão principal


Orquestra já posicionada para o concerto

O maestro não regeu apenas sua orquestra.
Regeu palmas e coros quase como o band-leader
de uma banda de rock

"Bete Balanço", uma das melhores do show

"Será", da Legião Urbana, um das que teve maior participação do público

Este blogueiro na escadaria, ao final do espetáculo.
Noite especial!

🎻🎻🎻🎻🎻🎻🎻🎻🎻🎻🎻




por Cly Reis
fotos e vídeos: Cly Reis e Luna Gentile


sábado, 24 de agosto de 2024

“Movimentos Migratórios”, de Rogério Cathalá (2022)


Ode ao não-Kikito

A participação de um filme em um festival não significa necessariamente ser esse seu apogeu. Afora o feito de figurar entre os selecionados, o que muitas vezes já e quase uma premiação, principalmente a realizadores estreantes e ainda em processo inicial de carreira, não quer dizer que o festival irá enxergar a obra na hora de julgar. Pode-se dizer que algo próximo disso ocorreu na Mostra de Curtas-Metragens Brasileiros do 52º Festival de Cinema de Gramado, encerrado no último dia 17. Dos 12 títulos concorrentes, 11 deles levaram para casa algum tipo de premiação, menos um: o baiano “Movimentos Migratórios”, de Rogério Cathalá. Justamente, o que talvez seja o melhor de toda a seleção.

O fato de “Movimentos...” ter saído de mãos vazias de Gramado não quer dizer, portanto, que não guarde qualidades. Muitas. Num preto e branco limpo, quase esmaecido pelo sol calcinante de Salvador, o curta traz a história de Pedro, um imigrante sul-americano que se esforça para se adaptar ao novo país. Numa manhã, antes de sair de casa, um andorinha cai na sua sacada, e ele, bom coração, divide-se entre a rotina de busca por emprego e a tentativa de salvar o pássaro, enfrentando obstáculos que refletem a sua própria condição.

A história é contada a partir do ponto de vista de Pedro, o qual se reflete simbolicamente na visão da ave presa à caixa de sapatos onde achou para acomodá-la. A prisão da diáspora social, a prisão de quem perde a identidade, de quem está machucado e não pode usar as próprias asas. Artista, além da caixa, Pedro também levava debaixo do braço um inseparável violão, cujos acordes, quando tocados por ele na rua em troca de algumas moedas, perfaz a única trilha sonora do filme forçosamente incidental. Um artista e um pássaro sem ninho (um artista-pássaro sem ninho).

O imigrante Pedro vivido por Arturo Campos Begazo,
falecido antes do filme estrear

A concepção fotográfica (Rafael MacCulloch) e artística (Eva Freire) concorda com a abordagem crítica desta pequena obra, visto que, ao mostrar a geralmente vibrante capital baiana seca e sem cores, corrobora com uma visão antropológica também pouco convencional quando se fala no povo nordestino: a de uma gente receptiva e calorosa. Na sua caminhada, Pedro é tratado como uma pessoa menor e mal quista pela sociedade brasileira preconceituosa e xenofóbica. Não há cor no sol de Salvador.

Capaz de tornar possível ainda mais simbologias em um filme tão breve, o movimento de migração ao qual o título alude ganha ainda dois contornos possíveis e que se complementam. O primeiro deles é o de transformação pessoal, uma vez que, feliz em sua empreitada, o protagonista consegue um paradeiro seguro ao amigo alado, o que é sensivelmente transmitido na inversão (única) do ponto de vista dele para o do pássaro, que agora o olha com gratidão de dentro da caixa-abrigo. Já o segundo senso que “Movimentos...” traz só se descortina nos créditos finais. É quando se descobre que o ator principal, Arturo Campos Begazo, havia morrido, e que o filme lhe é dedicado. Tocante. É como se Pedro houvesse se materializado para, em seguida, ajeitar as asas e alçar o voo derradeiro. Virar pássaro.

A despeito dos bem premiados "Pastrana", "Fenda" e "Ponto e Vírgula", que conquistaram mais de um  Kikito,“Movimentos...”, curiosamente, não levou nenhum, Nem considerando a política distributiva que festivais como Gramado adota ao contemplar o máximo possível que concorre. Mas tudo isso não faz diferença. A sensível produção de Cathalá (que está em desenvolvimento de seu primeiro longa, “Sombra no Espelho”) se credencia tranquilamente a outros festivais  em algum desses aspectos fílmicos aos quais tão bem responde, a começar pela direção. Contudo, prêmio não é o que determina a qualidade de um filme, definitivamente, a se recordar na história do cinema de tantos outros diversos casos, como ano após ano se vê em premiações mundiais como o Oscar. Um salve aos filmes sem prêmio!


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 27 de maio de 2024

Philip Glass - "Symphony Nº 4 'Heroes'” ou "'Heroes' Symphony - by Philip Glass from the Music of David Bowie & Brian Eno” (1997)



As várias capas e edições de "Heroes" pelos selos
Point Music, Orange Mountain, Universal e Decca
  
“A influência contínua destas obras, ‘Low’ e ‘Heroes’, garantiu a sua estatura como parte dos novos ‘clássicos’ do nosso tempo. Assim como os compositores do passado recorreram à música do seu tempo para criar novas obras, o trabalho de Bowie e Eno tornou-se uma inspiração e ponto de partida para uma série de sinfonias de minha autoria”.
 
Philip Glass

Chegados os anos 90, Philip Glass já era uma lenda digna da idolatria. Ligado à música de vanguarda da Costa Leste norte-americana, pela qual surgiu nos anos 60, o autor das “Glassworks” e de peças revolucionárias como “Music in Twelve Parts”, “Koyaanisqatsi” e "Metamorphosis" já havia ultrapassado a linha entre erudito e popular fazia muito tempo, desde suas trilhas sonoras marcantes para o cinema quanto por sua aproximação com o rock e a world music. Porém, afeito a desafios, Glass deu-se conta de um gap em sua já extensa obra àquela época: por incrível que parecesse, faltava-lhe ainda a composição de uma sinfonia. Sim, Glass havia escrito óperas, concertos, corais, peças para câmara e teatro, prelúdios, partitas, balês, sonatas, trilhas sonoras e toda categoria musical que se possa imaginar. Menos sinfonia, justamente o gênero que tanto consagraria os grandes nomes da música clássica, aquele pelo qual os fariam mundialmente conhecidos, como Beethoven (5ª e ), Mahler (Trágica), Mozart (41ª ou Júpiter), Berlioz (Fantástica) e Shostakovich (8ª).

Glass precisava preencher essa lacuna. No entanto, dada a importância deste tipo de obra para um autor do gabarito dele, entendia que precisava ser algo especial. O “coelho da cartola” foi, mais uma vez, a versatilidade e o ecletismo: usar o rock como base para isso. Igual ao que compositores clássicos antigos faziam ao se referenciarem na obra de seus ídolos, só que de uma forma bem inovadora. Sobre temas do clássico disco “Low”, de David Bowie, de 1977, gravado na Alemanha e cuja batuta de Brian Eno mereceu-lhe créditos de coautoria, Glass elaborou sua primeira sinfonia em 1992. Um sucesso de crítica e, principalmente, junto aos próprios Bowie e Eno, que adoraram a homenagem, O mais legal da rica versão de Glass para as faixas do Lado B de “Low”, as de caráter mais ambient e avant-garde do álbum, foi que ele não criou uma ópera-rock, dando somente um teor erudito a sonoridades pop mas, sim, extraindo o que havia de “erudito” de cada música, de cada detalhe, fosse na instrumentalização, no redesenho sonoro ou mesmo na escolha de quais faixas usar.

Caminho aberto para as sinfonias, e Glass, então, não parou mais. Escreveu, nos anos subsequentes, as de nº 2 (1994) e nº 3 (1995) - formando, atualmente, 14 peças neste celebrado formato. Porém, a talvez melhor de sua carreira seja a que veio logo a seguir, em 1997: a “Sinfonia nº 4” ou simplesmente “Heroes”. Animado com a primeira experiência sinfônica e encorajado pelos próprios autores, Glass repete a dose de se inspirar noutro álbum célebre de Bowie/Eno: “Heroes”, de 1978, que forma, junto com "Low" e “Lodger”, de 1979, a famosa trilogia alemã que redefiniu o futuro da música pop com sua ousada combinação de influências da world music, da vanguarda experimental e do rock.

A experiência das sinfonias anteriores - bem como dos trabalhos com grande orquestra, como as óperas - foi, contudo, fundamental para que Glass chegasse à sua quarta empreitada neste tipo de obra mais equipado musical, formal e esteticamente. Glass sabia exatamente como fruir os sons e arranjos das canções originais para criar uma peça ainda mais singular. Ele utiliza flautins, clarinetes baixos, metais (trompete, trombone, trombone baixo, trompa e tuba), percussões (tambor lateral, tambor tenor, bumbo, pandeiro, pratos, triângulo, vibrafone, tam-tam, castanholas e carrilhão), harpa, celeste e cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo).

O melhor exemplo é o tema-título, o "1º Movimento". Quem escuta os acordes orquestrados de Glass dificilmente identifica a música de Bowie, aquele glitter rock potente e dramático. Aliás, talvez a única característica mais visível que ele tenha mantido nos quase 10 minutos que se transcorrem (em detrimento dos aproximadamente 3min30' da versão comercial de Bowie ou, no melhor dos casos, dos pouco mais de 6min da versão estendida) seja a dramaticidade, tendo em vista que a transforma num adagio instrumental cheio de idas e vindas, volumes e variações de intensidade, Mas, principalmente: o veterano minimalista deu uma personalidade única à música, recriando-a. O entendimento de Glass sobre o que ele ouve em “Heroes” é tão singular quanto genial, coisa de quem tem ouvido absoluto ou uma outra percepção sobre as coisas: uma audição além daquilo que os reles mortais alcançam. 

A “Heroes” de Glass, por sinal, é mais colorida do que a séria expressividade dada pelo autor da canção. E não se ceda à tentação de cogitar que a “Heroes” sinfônica é meramente uma orquestração do tema que a originou, como se fosse possível encaixar uma sobre a outra. É, sim, uma outra “Heroes” - ou melhor, a mesma, só que sentida de outra forma. E embora as dessemelhança, por incrível que pareça, há ainda um fio de identificação, como que a "alma" da criação tivesse se mantido. A se pensar em outros trabalhos da música erudita dos anos 90, década pouco densa em obras significativas nesse campo em relação a suas antecessoras, “Heroes, Moviment I” é comparável a outras três marcantes obras: “Kristallnacht”, de John Zorn, "Food Gathering in Post-Industrial America, 1992", de Frank Zappa, e “Blu”, de Ryuichi Sakamoto.

Na sequência, “Abdulmajid”, de um arranjo primoroso, pega emprestada com suavidade a atmosfera árabe deste b-side de “Heroes”, uma world music bastante eletrônica em sua concepção primal, próximo ao som de Jon Hassell e Terry Riley. Ela ganha, agora, um conjunto de cordas em variações de 5 e 7 tempos, castanholas e uma percussão cintilante de sinos, esta última, executora do “riff”. Assim como o movimento inicial, este andante é prova da tarefa nada óbvia a que Glass se propôs, uma vez que seria, por exemplo, muito mais fácil arranjar para orquestra o tema de feições orientais (e já instrumental) “Moss Garden”, uma das faixas de “Heroes” de Bowie que não aproveitou. Já “Sense of Doubt”, originalmente instrumental, é provavelmente a que menos trabalho lhe deu em adaptar, visto que sua estrutura melódica forjada nos sintetizadores já intui o som da orquestra.

Para “Sons of the Silent Age”, mais uma das originalmente cantadas assim como “Heroes”, Glass suprime as vozes e dá a roupagem mais clássica de todas do repertório. Elegante, explora bastante os sopros doces em contraste com os registros graves de tuba e trombone baixo. Pode-se dizer um balê glassiano, que traz as repetições circulares de cordas e sopros, as quais dão a sensação hipnótica peculiar de sua música, mas ao mesmo tempo bastante renascentista, fazendo remeter a outros mestres formadores de sua musicalidade como Bach e Mozart.

Outra que Glass consegue unir a originalidade de seu olhar sobre a obra alheia e o frescor daquilo em que se baseia é “Neuköln”, a música que os ingleses Bowie e Eno compuseram em homenagem a um dos bairros de Berlim no período em que se refugiaram na capital alemã para produzir “Low/Heroes/Lodger”. Nesta, o compositor norte-americano se esbalda sobre a ideia-base, a de uma peça eletroacústica que conjuga sintetizadores, guitarras e frases arábicas de um áspero sax alto tirada do atonalismo de Cage e La Monte Young, admirados por Eno. Sabedor de todos estes caminhos como poucos, tanto dos antecessores quanto dos contemporâneos, Glass reúne as pulsões sonoras distintas e promove uma reunião de tempos e intenções, redimensionando a própria música. Ele não deixa de aproveitar nenhuma nota, nenhum som para atribuir a “Movement V - Neuköln” um caráter particularmente épico. 

Encerrando, outra na qual Glass mostra o quanto suas antenas são capazes de sintetizar mundos. Homenagem de Bowie e Eno aos pais do pop eletrônico, a banda alemã Kraftwerk, ‘V2 Schneider” (referência ao sobrenome de um dos fundadores e principais compositores dos “homens-máquina”, Florian Schneider) ganha uma retextura de Glass à sonoridade high-tech em um corpo sonoro tradicional e secular. Conforme diz o crítico musical especializado em música clássica Richard Whitehouse, “V2 Schneider” abre com movimentos rítmicos animados em metais e percussão, cordas e sopros trocando temas à medida que a música ganha em incisividade. “O movimento rítmico solidifica-se num ostinato pulsante, ao longo do qual a atividade ganha intensidade textural e dinâmica, construindo um pico de que é encimado pelo vigoroso acorde de encerramento, arredondando assim toda a obra com um efeito decisivo”, completa. Ao traduzir Bowie/Eno, Glass retraduzia o kratrock alemão presenciado in loco pela dupla britânica e, por tabela, todos os que inventaram a música eletrônica, como o “germaníssimo” Karlheinz Stockhausen e a turma da Música Nova de Darmstadt dos anos 50.

Em 1971, dois jovens músicos de aparência kitsch interessados em arte para além do rock assistiam empolgados à estreia em Londres de “Music in Changing Parts”, obra da primeira fase de Glass. Esses jovens eram David Jones e Brian de La Salle Eno, já artistas consagrados, mas nem por isso incapazes de admirar um de seus heróis na música. Tamanha reverência parece ter, de alguma forma, influído para que esse “herói” concretizasse, mesmo que apenas mais de três décadas depois, a autoexigência de compor sinfonias tendo como objeto exatamente aqueles dois rapazes fãs de tanto tempo. Sucessor de “Low” na fase alemã de Bowie, “Heroes” fazia-se, agora sinfônico, igualmente sucessor, mas na carreira de Glass - que ainda concluiria a veneração à trilogia berlinense com “Symphony Nº 12  - Lodger”, de 2022. Criadores e criaturas se intercambiam e se referenciam mutuamente. Como dizem os versos da música que dá nome a ambas as obras, a de Bowie/Eno e a de Glass, “Nós podemos ser heróis”. Todos são.

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Como ocorre com obras do catálogo ligado à música clássica, “Heroes Symphony” ganhou mais de uma edição. Em pelo menos duas delas, a peça vem acompanhada no CD de outras duas também orquestrais: o "Concerto para Violino", de 1987 (edição Deutsche Grammophon/Decca, de 2014), e outra em conjunto com “Low Symphony” (Universal, 2003). 

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FAIXAS:
1. “Movement I - Heroes” (David Bowie/Brian Eno) - 9:28
2. “Movement II - Abdulmajid” (Bowie/Eno) - 9:24
3. “Movement III - Sense of Doubt” (Bowie) - 7:29
4. “Movement IV - Sons of the Silent Age” (Bowie) - 8:37
5. “Movement V - Neukoln” (Bowie/Eno) - 7:58
6. “Movement VI - V2 Schneider” (Bowie) - 7:17

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Propriedade", de Daniel Bandeira (2022)

 

Não é coincidência que, numa das sessões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana, a chamada CPMI “da Terra”, em 2023, tenha-se recorrido a Karl Marx para evidenciar a incongruência daquela comissão. Constituída “com o objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores, assim como os movimentos de proprietários de terras”, a tal CPMI não apenas sucumbiu por falta de autossustentação como, no final do dia, não olhou para a prioridade: ser uma ferramenta para resolução da questão do campo no Brasil. Em depoimento, o presidente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, valeu-se dos conceitos do filósofo alemão para uma explicação bem didática sobre a estrutura sociopolítica contemporânea pautada pelos valores capitalistas. E isso por um simples, mas profundo fator: o de que o ideário marxista inclui, ineditamente na história da Sociologia, a classe trabalhadora no contexto desta reflexão. Depois de Marx, foi impossível dissociar o trabalhador das relações de poder e, consequentemente, relativizar o conceito de “propriedade”.

A própria investigação da CMPI em si, em pleno 2023, denota o quanto a questão fundiária no Brasil permanece mal resolvida. Está relacionada diretamente a chagas da sociedade provocadas pela histórica mentalidade escravista e potencializada pelas relações de poder capitalistas. Pois que a exploração de mão de obra, o monopólio da elite, as péssimas condições de trabalho e a alienação ao acesso à saúde e à educação, tudo isso está hibridizado num fundamental filme cujo título traz o cerne dessa questão: "Propriedade". A obra, do jovem cineasta pernambucano Daniel Bandeira, é, ao mesmo tempo, de uma enorme riqueza narrativa quanto, principalmente, de um realismo crível e tragicamente plausível. Em forma thriller à brasileira, o filme expõe situações prementes da sociedade brasileira atual, desde a escravidão moderna, a especulação imobiliária e o velho coronelismo, incrustado como uma doença secular na sociedade nordestina.

Na trama, a reclusa estilista Tereza (Malu Galli), esposa de um rico empresário e proprietário de terras (Tavinho Teixeira, como Roberto), deixa a cidade para refugiar-se com o marido em uma fazenda da família na tentativa de se recuperar. Mas, quando os explorados trabalhadores do local sabem da intenção do patrão de vender as terras e dispensá-los sem nenhum direito e indenização, um levante acontece. Para se proteger da violenta revolta dos trabalhadores, Tereza se enclausura em seu carro blindado. Mesmo separados por uma camada impenetrável de vidro, o conflito é inevitável e escalável, pois balizado por um elemento muito menos material e, sim, simbólico: a luta de classes.

Malu Galli como Tereza em cena tensa de "Propriedade": terror à brasileira

Segundo longa de Bandeira, "Propriedade" – provavelmente o melhor filme nacional de 2023 – tem o poder de consolidar uma época. Assim como outras escolas ou movimentos cinematográficos ao longo da história, o filme junta-se a obras irmãs, formando um panorama ideológico e produtivo robusto representativo do seu tempo/espaço. A exemplo do neorrealismo italiano, do novo cinema iraniano ou do Dogma 95 dinamarquês, cujos filmes dialogam entre si dentro de seus próprios círculos, "Propriedade" responde a temas muito caros a outros filmes da cinematografia contemporânea de Pernambuco, que se consolida como um dos mais frutíferos polos de produção de cinema no Brasil neste século. É fácil notar semelhanças com elementos da crítica social recorrentemente trazida pelos autores desta cena. "Piedade", de Cláudio Assis (especulação imobiliária), "Carro Rei", de Renata Pinheiro (repressão do Estado) e "Fim de Festa", de Hilton Lacerda (violência urbana), são alguns deles.

Porém, "Propriedade" traz ainda mais para próximo de si os filmes de Kleber Mendonça Filho, com quem Bandeira trabalhara desde 2002 no curta "A Menina do Algodão", o qual roteirizou e atuou. A referência temática e fotográfica a "Bacurau" (2019), de Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é notória, assim como soluções narrativas de desfecho, que interligam ainda mais ambos. Igualmente, "Aquarius" (2016), outro de Mendonça Filho, que também avança sobre a questão do oportunismo do setor imobiliário e da luta pela preservação cultural diante da modernização desenfreada do liberalismo. Contudo, "Propriedade" principalmente retraz a discussão basal de "O Som ao Redor" (2012), primeiro longa de Mendonça Filho, uma contundente crítica ao antagonismo entre público e privado, entre pobreza e riqueza, entre velho e novo, entre impotência e poder, entre humanidade e barbárie.

"Propriedade" e "Bacurau": semelhança temática, cenográfica e fotográfica
entre os filmes de Bandeira e Mendonça Filho

O que "Propriedade" expõe é o choque entre elite e proletariado, uma vez que o sistema vigorante favorece as desigualdades. Não apenas isso: baseia-se nelas. O capital supõe mediar um equilíbrio, mas só faz provocar revolta nos que o geram, mas não o detém, e medo nos que o detém, mas não o geram. A tensão é permanente e dos dois lados. Veja-se a frase que liga o automóvel de Roberto por meio de IA: o verso inicial da música "Dê um Rolê". Cantado por Gal Costa no clássico disco "Fa-Tal", de 1971, marco da resistência aos anos de chumbo no Brasil, o verso diz: “Não se assuste, pessoa”. Mostra da obviedade sem criatividade da elite, que se apropria do discurso dissonante da esquerda para vestir seus modos ideológicos distorcidos, a música é usada por ele como se esta condissesse com seu comportamento imperialista, distorcendo a essência da obra e, por consequência, transformando-a num mero produto de consumo.

Mas os vieses, claro, não são absorvidos por quem raciocina apenas a favor do (seu) capital. O fato de este pequeno enunciado servir como chave para acionar o veículo também funciona, noutro patamar, como uma chave muito mais simbólica, pois capaz de ativar de forma verbal o medo e a neura de uma fatia da sociedade hedonista, que se vitimiza, mas não questiona o quanto seu comportamento sustenta desigualdades que remontam à escravatura. Como Caetano Veloso escreveu certa vez para a voz da mesma Gal Costa: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo, mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”.

Trabalhadores rurais e os
limites das relações de poder
Quando trata da base da pirâmide, o filme traz à discussão um tema essencial e controverso, que é o direito à terra. O principal motivo que faz os campesinos se manterem na fazenda a qual já se sabiam dispensados é a presunção de que, por terem dedicado suas forças de trabalho de maneira tão intensa e indigna há tantos anos e gerações, mereciam tornarem-se eles os donos dela. Uma reparação a si e a todo um povo massacrado há séculos pelos poderosos. Reivindicação justa ou não, legal ou não, mas que encontra na ação presente do MST um fundo de verdade, uma vez que o movimento, muitas vezes acusado de fora-da-lei, é, por exemplo, o grupo que mais produz arroz orgânico no Brasil, correspondendo a 70% do grão produzido nacionalmente, segundo dados do Instituto Riograndense do Arroz (Irga).

Renovando a discussão sobre a reforma agrária, tão presente no cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 em filmes como "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Vidas Secas", "Maioria Absoluta" e "O País de São Saruê", Propriedade traz para o contexto do Brasil atual em que o liberalismo exerce forte influência no mercado e na sociedade. Não é de se estranhar que um filme tão agudo e necessário seja do mesmo ano em que se revelou, no Rio Grande do Sul, na rica e conceituada região da Serra, casos análogos à escravidão com trabalhadores rurais, mesmo quase 135 anos após a Abolição. E não para com conterrâneos gaúchos, mas justamente com imigrantes nordestinos sujeitos a condições desumanas longe de sua terra.

Em "Propriedade", o que se sugere é um momento de fratura. Rompidas as grades da “senzala” e da “casa grande”, ora representadas pela porteira da fazenda do interior e pelas torres residenciais da cidade, o que resta é a colisão entre estes dois opostos sociais, até que um enterre o outro. Nem vidros blindados ou camuflados são capazes de conter. A CPMI “da Terra”, por óbvio, inconclusiva, haja vista que originalmente mal sustentada, denota o quanto os ensinamentos de Marx prevalecem e que não cabe (como nunca coube ou deveria ter cabido) mais espaço para a iniquidade em tempos atuais. A feroz e coerente reação dos personagens revoltosos de "Propriedade", bem como a consequente escalada de violência da trama, serve como um aviso de que a questão da terra deve ser encarada de frente e sem filtros. Um “basta” para um problema basal da sociedade brasileira de difícil resolução, mas de necessária atenção. E a quem quiser prosseguir mantendo a desigualdade e o desrespeito aos direitos humanos, um alerta: assustem-se, pessoas. Não acreditem em Gal quando ela diz que a vida, assim, é boa.

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trailer de "Propriedade", de Daniel Bandeiras


Daniel Rodrigues

Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina/ Matina Jornalismo

terça-feira, 28 de novembro de 2023

“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)


Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*

“Nunca vamos nos transformar 
em bobocas como os adultos.” 

Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.

Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.

"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho

”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.

Peanuts e Ozu

Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro. 

A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças

Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo.. 

A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.

Rua Paulo

Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente. 

"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho

É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento –  tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal. 

Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.

Zero de conduta

Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?

Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?

Mark, Lebrac, Nemecsek

Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças. 

Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização

Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.

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trailer de "A Guerra dos Botões"


Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues