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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
Música da Cabeça - Programa #48
terça-feira, 14 de abril de 2015
Cazuza - "O Tempo Não Pára* " (1988)
"Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
A tua piscina tá cheia de ratos,
Tuas ideias não correspondem aos fatos
O tempo não para."
Cazuza
("O Tempo Não Para")
O repertório, considerando-se as
circunstâncias e condições de saúde do artista, é irrepreensivel
e muito oportuno, assumindo a iminente morte mas, diante dela,
tentando transmitir o máximo de 'lições de vida”, por assim
dizer. “Vida Louca Vida”, de Lobão, ganha, na excepcional
interpretação de Cazuza, muito mais significado do que jamais teve
até então, soando quase que como uma despedida ácida e ao mesmo tempo "leve, leve, leve", como o cantor faz no final da música, jogando com a leveza e o verbo levar;
“Boas Novas”, que a segue, convoca à vida, encara a morte e a
chama pra briga “Senhoras e senhores/ Trago boas-novas/ Eu vi a
cara da morte e ela estava viva/ Viva!”. O
pessimismo de “Ideologia” faz mais sentido do que nunca
naquele momento, mas chega a emocionar quando Cazuza dá ênfase à
palavra “viver”, repetindo como se a saboreasse ao final do
verso.
O tom de despedida dá lugar a um clima
mais romântico com duas baladas: “Todo Amor que Houver Nessa
Vida”, canção ainda do tempo do Barão Vermelho consagrada por
Caetano Veloso no álbum ao vivo “Totalmente Demais”, e que ganha
um tratamento mais blues na versão do próprio compositor; e
“Codinome Beija-Flor”, uma das
mais representativas do estilo letrístico de Cazuza.
Intensa, forte, dramática e
impactante, a faixa que tem o nome do disco parece ansiar por poder
conter todos os últimos recados urgentes do artista. Como diz na
letra, como uma “metralhadora cheia de mágoas”, ele
dispara para contra hipocrisia, preconceito, ganância, estagnação,
conformismo, e em mais uma das 'despedidas' do disco, se eterniza
definitivamente no panteão de grandes artistas brasileiros. “O
Tempo Não Para” ao mesmo tempo que destila uma inevitável
decepção e descrença pelo mundo, pela arte, pelas pessoas, carrega
consigo uma ponta de esperança e otimismo que é indesmentível seu
próprio nome que nos encoraja e convoca a tomar alguma atitude.
No blues “Só As Mães São Felizes”,
com sua incestuosa sugestão à The Doors, Cazuza também parece nos convidar a viver intensamente até o limite, ter experiências ruins e notar nas coisas que nunca olhamos antes enquanto ainda está em tempo.
As boas “O Nosso Amor a Gente
Inventa” e “Exagerado” encaminham o final de maneira agradável com dois hits pop, e o disco encerra com o clássico "meio bossa-nova e rock'n roll", “Faz Parte
do Meu Show”, escolha não menos feliz porque, no fim das contas,
não somente aquelas canções ali fizeram parte daquele espetáculo,
mas tudo aquilo, todo o repertório, toda a poesia, foi o que fizeram
a vida de Cazuza e, se ele teve um vida louca, decepções
ideológicas, desilusões amorosas, exageros, tudo isso fazia parte
do show.
Cazuza ainda lançaria, no ano seguinte, mais um álbum, "Burguesia", bastante irregular, em parte pelas limitações físicas e vocais que apresentava, já num estágio bastante avançado da doença, mas, mesmo já enfraquecido, abatido, desfigurado, em “O Tempo Não Pára” talvez tenha conseguido produzir seu álbum definitivo, um daqueles
discos que transcendem a mera condição de registro fonográfico e transforma-se quase em lenda. No
seu caso específico, além do significativo fato de ser o último
documento do artista diante do público e ainda na condição em que se apresentava, por tudo o que tenta comunicar e transmitir, pode ser considerado o mais perfeito epitáfio que o próprio artista poderia ter escrito para si próprio.
***********************
1. "Vida Louca Vida" - Vilhena, Lobão (4:19)
2. "Boas Novas" - Cazuza (2:46)
3. "Ideologia" - Frejat, Cazuza (4:12)
4. "Todo Amor que Houver Nessa Vida" - Frejat, Cazuza (2:49)
5. "Codinome Beija-Flor" - Reinaldo Arias, Cazuza, Ezequiel Neves (2:55)
6. "O Tempo não Para" - Arnaldo Brandão, Cazuza (4:37)
7. "Só as Mães São Felizes" - Cazuza, Frejat (3:48)
8. "O Nosso Amor a Gente Inventa" - Meanda, Cazuza, Rebouças (3:35)
9. "Exagerado" - Cazuza, Neves, Leoni (4:29)
10. "Faz Parte do Meu Show" - Ladeira, Cazuza (3:50)
**************************
Ouça;
* O álbum foi lançado antes da nova reforma ortográfica que exclui o acento de "pára" , no entanto
mantivemos a grafia antiga na publicaçãode modo a preservar o título original.
Cly Reis
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Música da Cabeça - Programa #223
A vida não tá fácil nem aqui e nem em Cuba, né minha filha? Para facilitar um pouquinho as coisas, a gente só traz coisa boa no MDC desta semana. Saca só: Cibo Matto, Electronic, Jorge Ben Jor, Miles Davis, MF DOOM, Barão Vermelho e mais. Tem também notícia e letra de música homenageando os 7.5 de João Bosco. Então, ouve o programa hoje, às 21h. É fácil: só sintonizar na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e una cuba libre bem gelada (que ninguém é de ferro): Daniel Rodrigues
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
sexta-feira, 26 de junho de 2020
Fausto Fawcett e Falange Moulin Rouge - Bar Opinião - Porto Alegre (1993)
foto de show em Baurú, em 1993
créditos: canal DJ Teruo (You tube)
|
E fui eu então ouvir o show no rádio... e para minha surpresa o negócio era bom! Bem bom!!! Uma mistura suingada de rock, soul, funk carioca, samba, incrementado por scatches, samples e uma percussão sempre bem oportuna, tudo com aquele vocal característico, quase narrado, e refrões improváveis e pegajosos de Fausto Fawcett. Quanto mais escutava, mais eu tinha vontade de estar lá vendo aquele show que além de passar, mesmo pelas ondas do rádio, uma vibração de entusiasmo e energia, era constantemente elogiado durante a trasnmissão pela comunicadora Katia Suman.
"Por que que eu não estou lá? Por que que eu não estou lá?"... Bom, eu não estaria lá naquela noite mas poderia estar na noite seguinte. Sim!!! Estavam previstas duas apresentações na cidade e diante daquela agradável surpresa sonora que o show me proporcionara pelo rádio, eu tinha oportunidade de presenciá-lo, in loco, no dia seguinte .
Aí então, eu e irmão Daniel, que também havia escutado o show pelo rádio e tivera a mesma sensação de boa surpresa, nos tocamos para o Bar Opinião, casa de espetáculos no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre e fomos ver o tal do show. Não vou negar que procurei um lugar interessante de onde pudesse apreciar os atributos físicos das louras pois, afinal de contas, por mais que tivesse posto em julgamento as verdadeiros propósitos daquele projeto, uma vez estando lá, queria, além de curtir a parte musical que havia me impressionado na noite anterior, me deliciar visualmente com o que o rádio não teve como me mostrar.
Inegavelmente o espetáculo tinha um apelo sensual, uma provocação dos instintos masculinos, uma vulgaridade medida, mas mesmo as apresentações das meninas não se limitavam a um bundalelê gratuito. Além das referências a clássicos mestres-de-cerimônia brasileiros como Chacrinha e Sargentelli, que utilizaram a figura da mulher bonita e sensual como suporte e alavanca para suas performances, algumas das garotas eram verdadeiramente talentosas e davam boa contribuição ao espetáculo, como é o caso da loura Luzia, que se destacava sobremaneira no tocante à dança, e da cacheadinha Kátia, sem dúvida a melhor cantora dentre todas elas. Outras como Regininha Poltergeist, claramente uma péssima cantora, davam sua contribuição, além de física e estética, é claro, pelo seu carisma e presença de palco; ou como a badalada Marinara, ex-esposa do jornalista e apresentador esportivo Fernando Vanucci, que havia ficado famosa por seu uma policial que havia posado nua para a revista Playboy, e que emprestava ao show a possibilidade de ter uma espécie de superstar brasileira do momento.
Além de criar versões para antigas composições suas, como para "Drops de Istambul", uma música menor do primeiro disco que, com inserções e recortes arábicos do DJ, que ficou bem mais interessante, Fausto, teve a perspicácia de criar um tema musical para cada garota explorando o melhor do personagem de cada uma delas. Regininha, cujo tema trazia algo de sincrético, místico, sobrenatural, e que carrega até hoje o apelido Poltergeist por conta da canção "Santa Clara Poltergeist", do próprio Fausto, do segundo disco, recriada para quela turnê, entrava no palco vestindo um hábito de freira e, com o desenvolvimento do número, se libertava do mesmo para deixar-se levar pelas forças que a tornavam aquela mulher sensual e irresistível que tomava conta do palco para a louvação daquele macharedo babão que, a reverenciando, repetia o refrão, "Amém, Regininha, amém!" (e, sim, eu participei da louvação). Gisele, descrita na letra como " a loura luz do fogo da inspiração", foi a mais "impressionante" fisicamente entre elas (entendedores entenderão) ganhando para si um sambinha gostoso, sem dúvida o tema individual e a performance mais sensuais da noite. Luzia, ilustrava um rock funkeado cheio de swing com menção a felinas selvagens; um soul bem embalado fazia Kátia, não a famosa Flávia, mas a apelidada "Talismã", mostrar porque era a melhor cantora do grupo; e a música de Marinara, como o compositor não poderia deixar passar, fazia menção à função de policial, sendo definida por ele como a "loira Majestade do lado da lei", num tema musical que aludia a escolas de samba cariocas e sambas de enredo, especialmente ao clássico "Peguei um Ita no Norte", do Salgueiro, associando seu famoso verso ao nome da loira e criando mais um de seu refrões inesquecíveis: "É Marinara, explode coração".
Mas não foram só as homenagens individuais para cada loira: Fausto Fawcett ainda usaria time inteiro em duas ótimas músicas, "Básico Instinto", um funk pesado com ótimas performances dos guitarristas, sample de Ennio Morricone e que fazia referência direta ao filme "Instinto Selvagem" trazendo à luz o excelente refrão "Sharon Stone, stone Me"; e a que fechou o show "KLGR"*, uma pedrada com um riffzaço poderoso, samples de Public Enemy, e que exaltava no refrão as quatro louras originais, uma vez que Marinara, além de ser a "estrela convidada", juntara-se à equipe durante a turnê. "Kátia, Luzia, Gisele, Regininha"*, cantava Fausto Fawcett encarnando o papel do "cafetão" e definindo aquele espetáculo todo de forma precisa como um grande "teatro de revista samba funk" para encerrar o show e fechar as cortinas.
Para quem achava que seria só um monte de bundas rebolando, o show de Fausto Fawcett com sua Falange Moulin Rouge acabou sendo uma agradabilíssima surpresa artística e musical. Uma ótima banda, qualidade musical, muito ritmo, provocações inteligentes sobre cultura e comportamento e,... bom, teve também um monte de bundas rebolando. E estaria mentindo se dissesse que não gostei.
* Ainda durante aquela turnê, Luzia foi substituída pela cantora e dançarina Luciana e Marinara foi efetivada como integrante fixa do grupo. Assim, esta música que naquela ocasião ainda contava com as iniciais das quatro integrantes originais, passou a se chamar "KGLRM" (Kátia, Luciana, Gisele, Regininha e Marinara), que foi a versão definitiva que entrou para o álbum "Básico Instinto".
Fausto Fawcett e Falange Moulin Rouge - Bar Opinião - Porto Alegre (1993)
áudio do show
Cly Reis
terça-feira, 17 de maio de 2016
João Bosco - "Acústico" (1992)
“Na direção de programação da
MTV,
participei da implantação de novos programas,
entre [estes] o Acústico.
Fiz a direção geral com Rogério Gallo
e a direção do programa ficou a cargo do
Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o
repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em
1990.
Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal
acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira
pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada
emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de
então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu,
trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas
alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas
novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e
do Jornalismo ou mesmo pela programação.
Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto
também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras
do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em
especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país
em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical
tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com
dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro
escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal
jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”,
se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”. Virtuose do violão e dono de estilos de tocar
e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um
apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele
que é talvez o melhor unplugged
realizado nesses pagos tropicais.
O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos,
por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no
qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no
palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta
percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há
nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos
dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do
lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já
acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com
parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após
uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde
dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas
tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo
e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz,
engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de
Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado
álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre
serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/
Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.
Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no
formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e
sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base
sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui
navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E
selvas, portos, places/ Línguas,
sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem
no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números
bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade
daquele público então presente.
Este papel de resgate cabe ao medley
com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha”
(1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele
com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança
da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito
por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa,
repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual
conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta
da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de
Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e
imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças
não-terrenas (“Òrun”). Os versos
dizem: “Exus na capa da noite soltara a
gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como
puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata
no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas
sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas
pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por
exemplo), alteram seu estado (“A doideira
da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que
admirável.
Outro medley traz as “líticas”
“Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças
essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a
do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo
tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E
que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência”
são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos
lindos e profundos esses: “Eu já esqueci
você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre,
busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.
“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos
anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que
são várias a disputar!). “Meu coração
tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e
a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o
tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes
as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de
pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e
estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre
acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência
melódico-harmônica sui generis, algo que
somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.
Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima
rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60)
em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e
Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações,
representadas ali pela jovem plateia: “A
blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se
as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que
partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo
tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras
com a voz a la Clementina de Jesus
típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o
que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial
ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock,
pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é
simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.
O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez
mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura
venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo
acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara
na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para
(mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram
a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando
totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi
a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda
uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos
principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que
enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma
contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música
brasileira.
********************
FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
2. Holofotes (João Bosco, Waly Salomão, Antônio Cícero)
3. Papel machê (Capinan, João Bosco)
4. Granito (João Bosco, Antônio Cícero)/ Jade (João Bosco)
5. Quilombo/ Tiro de misericórdia/ Escadas da Penha (João Bosco, Aldir Blanc)
6. Memória da pele (João Bosco, Waly Salomão)
7. E então que quereis...? (Maiakovsky – Versão: Emílio Guerra)/ Corsário (João Bosco, Aldir Blanc)
8. Eleanor Rigby (John Lennon, Paul McCartney)/ Fita amarela (Noel Rosa)/ Trem bala (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
****************
OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues
quarta-feira, 1 de agosto de 2018
Música da Cabeça - Programa #69
A última piada de mau gosto que corre por aí é que a escravidão no Brasil foi uma mentira, certo? Vamos rir pra não chorar, então? O Música da Cabeça evoca Castro Alves e seu "Navio Negreiro" na música de Caetano Veloso pra aplacar qualquer ofensa histórica. Também na linha de frente Titãs, The Prodigy, Lenny Kravitz, Barão Vermelho das antigas e um "Cabeção" com a música desafiadora da greco-americana Diamanda Galás. Só aqui no Música da Cabeça mesmo! É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e compromisso histórico: Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Jorge Ben - "África Brasil" (1976)
"O Jorge [Ben] é o cara que eu conheço
que consegue colocar mais
palavras num mesmo verso."
Jô Soares
que consegue colocar mais
palavras num mesmo verso."
Jô Soares
Se a expressão samba-rock pode ser atribuída à música de um artista, esse cara com certeza é Jorge Ben. Agora, se tem um disco para o qual esta mesma expressão possa ser aplicada com perfeição, esse álbum é o "África Brasil". Neste disco de 1976, Jorge Ben com a ajuda de uma banda de peso, cheia de suíngue, embalo, com músicos de diversas procedências e influências, trocava o violão pela guitarra elétrica e conjugava magistralmente os elementos básicos destes dois estilos, enriquecendo-os ainda com outros como funk, soul e jazz, obtendo um resultado absolutamente inigualável. Pode-se dizer que "África Brasil" é mais ou menos como Bob Dylan 'abandonado' as canções folk e pegando a guitarra... Só que aqui sem as vaias.
Com eletricidade, potência, ímpeto e pegada, "O Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)", que dá as boas-vindas no disco, é o sonho de qualquer banda que tenha tentado dotar seu rock de embalo. Com um riff contagiante e pungente, um baixo envolvente e uma cozinha que mescla funk, samba e batidas afro, a música que fala de um atacante carismático e goleador, a quem torcida saíra de casa somente para ver jogar, talvez seja o melhor exemplo dessa sonoridade pretendida e obtida por Jorge Ben neste álbum.
"Hermes Trismegisto Escreveu", uma das referências e amarração com o disco "A Tábua de Esmeralda" é uma incrível soul music da melhor qualidade onde reaparecem os interesses do cantor por assuntos místicos; já demonstrados em outros trabalhos; o futebol por sua vez, também volta a aparecer em "Meus Filhos, Meu Tesouro", batucada, carregada de brasilidade e ritmo, é interessantemente cantada à rock por Jorge Ben, chegando a rasgar a voz em determinados momentos, numa descontraída declaração de amor aos filhos. As boas "O Filósofo" e "O Plebeu" mantém a tradição do sambalanço de letras quase ingênuas características do cantor; e o clássico "Taj Mahal" ganha uma versão mais elétrica, mais guitarrada, mas interessantemente, cheia de cuícas.
"Xica da Silva", que serviu de trilha sonora para o filme homônimo, narra, em um samba manemolente e sensual, a história de uma negra que ascendeu à aristocracia brasileira graças a um caso com um nobre português na época do Império, bem naquele estilo característico de letra de Jorge Ben, de versos extensos com o máximo de palavras possíveis como observou muito bem certa vez o apresentador Jô Soares numa entrevista com o diretor do filme, Cacá Diegues.
Em "A História de Jorge", o cantor faz aquela tradicional auto-referência ("Jorge de Capadócia", "Jorge Well") dotando desta vez o personagem de mesmo nome que ele com o poder de voar; em "Camisa 10 da Gávea", Jorge Ben expressa mais uma vez sua paixão pelo futebol manifestando dessa vez sua admiração pelo ainda jovem craque rubro-negro, Zico, num samba-jazz cadenciado com mais um trabalho admirável do baixista Dadi, o Leãozinho da música de Caetano Veloso, ex-Novos Baianos e que viria a tocar em bandas como A Cor do Som e Barão Vermelho.
O Babulina faz a também costumeira homenagem a seu santo de devoção e igualmente xará, São Jorge, no rock-jazz-samba frenético e acelerado "O Cavaleiro do Cavalo Imaculado"; e fecha o disco com a faixa que lhe empresta o nome, "África Brasil", que na verdade não seria mais que uma versão da música "Zumbi", do álbum "A Tábua de Esmeralda", em outra referência-laço com aquele disco clássico, se não fosse sua agressividade rock, gritada e rasgada, a ponto de me lembrar "California Über Alles" dos Dead Kennedy's.
"África Brasil" foi o responsável pela retomada da minha coleção de LP's uma vez que há uns 3 anos atrás, numa exposição sobre vinil, no CCBB resolvi comprar a reedição em bolachão deste clássico que havia acabado de sair (cara $$$), antes mesmo de comprar um novo toca-discos. Mas agora tenho ambos, o LP e o toca-discos. Bom,... e na verdade tenho o CD também.
Por muitos, "África Brasil" chega a ser apontado como o melhor disco nacional de todos os tempos e embora não seja o meu, entendo a preferência e não considero nenhum absurdo. Com certeza é um dos grandes álbuns da discografia nacional e mais uma obra-prima da fase mais criativa de Jorge Ben.
Salve Jorge!
Salve a África!
Salve "África Brasil"!
*******************
FAIXAS:
01 – Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)
02 – Hermes Trismegisto Escreveu
03 – O Filósofo
04 – Meus Filhos, Meu Tesouro
05 – O Plebeu
06 – Taj Mahal
07 – Xica da Silva
08 – A História de Jorge
09 – Camisa 10 da Gávea
10 – Cavaleiro do Cavalo Imaculado
11 – Africa Brasil (Zumbi)
********************
Ouça:
Ouça:
Cly Reis
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
8º Mississipi Delta Blues Festival – Largo da Estação Férrea – Caxias do Sul/RS (28/11/2015)
Com Dylan no peito,
nada melhor para uma
noite de blues.
|
Quando assisti ao ótimo bluesman Kenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show
fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi
Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de
Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava
por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra
boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som
de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde
tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além
destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita
combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o
MDBF, vontade alimentada há anos.
Stroger, comandando o grupo no baixo. |
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma
programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações
internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o
MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos)
que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso
é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso
ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de
apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento,
fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o
local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato
cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela
sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía
ajudou a aumentar o clima cinematográfico.
Bob Stroger posando para as lentes. |
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das
pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que
ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85
anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente
por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de
irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições
deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja
vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele
referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um
caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul
norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e
trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do
início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se
sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.
Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados. |
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em
si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e
chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado
blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado,
repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e
apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto.
Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo,
orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the
blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua
voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter,
“Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que,
além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”,
autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia
outro episódio importante horas depois...
Sherman Lee Dillon, pura energia. |
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage,
iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli,
ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das
apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e
que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que
assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por
ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa:
Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide
guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música
que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de
rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano
Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele
velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia
observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando
empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.
Na bateria, Gutto Goffi. |
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou
ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua
guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno
palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de
“Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante
quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o
baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e
sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião,
também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias
vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy
Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.
'Super Chikan' no palco principal do MDBF. |
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no
Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais
atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan"
Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse
apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e
passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito
rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só
corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite
uma sequência de notas, sempre com muito groove.
Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra
imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.
Eu com Rip Lee Pryor. |
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um
pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor),
que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o
que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais
para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra
das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a
cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles
vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para
Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi
tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym
n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no
sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua
poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a
plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de
sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com
repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a
excelência da voz de Zora.
A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
|
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia
ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com
receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a
equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir
Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais...
Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar
do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali,
sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas
que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar
a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de
verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado
no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora
e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco,
estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu,
abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.
Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento
compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o
MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu
mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer
Leocádia: “Oh, baby, don't you want to
go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet
home, festival?”
Front Porch Stage, "this is my house". |
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa
domingo, 12 de junho de 2016
COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente
Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas
comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de
sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na
sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia
do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça
inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a
dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois
lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para
ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo
madrugada adentro. E não era com blockbusters
ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na
verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano,
alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo
produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa
representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais
lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque
adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor
sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro
que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica,
Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como
“Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e
“O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não
apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos,
nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario
Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só
havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já
tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto
o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda
mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha
gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que
fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo,
aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas
tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um
pouco acima da média, era naturalmente sexy
mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional:
bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada.
Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava
os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase
seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o
Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida,
faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara
a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e
sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de
comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim,
a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu
cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se
agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor
no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para
conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos,
como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los
com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais
ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd
de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo
corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que
comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva
da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída
Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que
entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo
americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com
zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo,
todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada
de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo
foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma
inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no
chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo
desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com
mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica
de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de
Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia
ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor
ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora
mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e
estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras
viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao
super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e
prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de
Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora.
Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos
amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e
mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava –
ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara
dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora,
em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente
sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma
hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada
pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não
tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo,
Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como
ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita
explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma
busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de
assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da
obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que
uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado
deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem
pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente
percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título:
“Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo
percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de
cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe
“Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo,
lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda
quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme
predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era
de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua
coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”,
então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo
foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas
moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou
com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já
se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir
atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo
cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no
site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria
da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer
nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está
disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do
filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um
VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar
em sites de torrent e, incrível: não
tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um
colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada
e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se
convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do
horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa
rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo
procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não
era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a
quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas
cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até
ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco
tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da
loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para
Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou
aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem
não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu
com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava
sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a
previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do
Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo
que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse
DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não
faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma
cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo
franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o
outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que
concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme
com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se
acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável
acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo
dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado
na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas
quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo
para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por
que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar
perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio
ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão
morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras
pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos,
ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma
caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo
lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do
carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive
uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei
a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo,
e os dois riram. – A propósito: tu te
lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É
Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava
muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente...
morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga
lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos
personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe,
né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas
coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo,
tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei
direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar
um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de
verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela,
interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro
velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto.
Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora,
convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que
estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui –
disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o
seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele
ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la
no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal
resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na
casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job
pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou
comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não
convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não
sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma
pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda,
mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa
numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra
fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho,
que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na
casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente
ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
- O “Parente... É
Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo.
Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas
caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo,
viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá
confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas
foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando
aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois
não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre
Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho
chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São
Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa
vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos
velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu.
Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda
nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado
novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo
deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva
no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora
para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se
encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a
porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha
porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava
saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas
daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria
voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É
Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete
escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava
para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses
fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim,
tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor
vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos
anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para
casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo.
Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo
uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme
mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar
aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da
janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto
revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá
fora molhavam a calçada.
para Luis.
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