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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Criolo - “Convoque seu Buda” (2014)

 

'Convoque seu Buda' fermenta a massa modelada no antecessor 'Nó na Orelha', álbum que projetou e consagrou Kleber Cavalcante Gomes, cantor e compositor das quebradas que, comendo pelas beiradas, vem flertando com ícones da linha de frente da MPB.  'Convoque...' jamais ultrapassa a fronteira delimitada por 'Nó...', mas aprimora a receita sonora do álbum anterior."
Mauro Ferreira, crítico musical

Quando “Convoque seu Buda” foi lançado, no final de 2014, Criolo já ocupava seu merecido lugar no panteão dos grandes da música brasileira. “Nó na Orelha”, seu antecessor de três anos antes, havia garantido este posto ao cantor e compositor paulista ao lado de colegas do gabarito de Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Obras como “Subirodoistiozin”, “Não Existe Amor em SP” e “Grajauex” eram provas incontestes de que, depois de muitos anos, havia surgido um talento acima da média na já tão bem representada MPB, mas carente de novas referências.

Só status, contudo, não era suficiente para Criolo. Para um artista de alto nível e, principalmente, honesto consigo e para com seu público, contentar-se com a atribuição externa seria impensável. Ainda mais porque, indiretamente, espera-se, sim, que grandes artistas sigam produzindo bem e, consequentemente, evoluindo. Por isso, fazer um novo disco só para cumprir tabela lhe soaria, ao mesmo tempo, a mediocridade e calvário. O que se vê em “Convoque...”, além de um Criolo totalmente consciente de seu universo sonoro, é a manutenção de parte da estrutura narrativa da estreia, bem como da veia contestadora e do rap como força-motriz. Mas com acréscimos.

A pegada hip hop está lá, preservada, como na faixa-título e de abertura. Porém, já aí se nota um Criolo mais maduro e dono de uma musicalidade talvez menos instintiva. As referências não-óbvias ao rap samurai da Wu-Tan Clan, bem como a seus ídolos Sabotage e Racionais, chamam o ouvinte para uma experiência diferente. Na letra, a pungência onírica improvável de sua poética: "De uzi na mão, soldado do morro/ Sem alma, sem perdão, sem jão, sem apavoro/ Cidade podre, solidão é um veneno/ O Umbral quer mais Chandon/ Heróis, crack no centro/ Da tribo da folha favela desenvolvendo/ No jutsu secreto, Naruto é só um desenho".

Pronto: foi dada a largada para um novo grande disco de Criolo, que definitivamente não se resume ou se estreita, como “Nó...” já sugeria, apenas ao rap, sua raiz das quebradas paulistas. A musicalidade brasileira afro se homogeneíza fortemente agora. Caso evidente da obra-prima “Esquiva da Esgrima”. Misto de rap e candomblé. E que letra, que refrão! “Hoje não tem boca pra se beijar/ Não tem alma pra se lavar/ Não tem vida pra se viver/ Mas tem dinheiro pra se contar/ De terno e gravata teu pai agradar/ Levar tua filha pro mundo perder/ É o céu da boca do inferno esperando você”. E mais uma evolução visível: Criolo está cantando melhor. Seja nos detalhes de overdubs, nas variações de timbre e até na extensão, seu belo timbre está mais bem trabalhado e aproveitado.

Sem dar fôlego, Criolo apresenta aquela que é ao mesmo tempo a mais pop e uma das mais críticas do álbum: a sarcástica “Cartão de Visita”. Rap de excelente arranjo e cantado por ele com uma debochada voz afetada sobre a frivolidade perversa da alta sociedade, tem a parceira de Tulipa Ruiz no marcante refrão: “Acha que 'tá mamão, 'tá bom/ 'Tá uma festa/ Menino no farol se humilha e detesta/ Acha que 'tá bom/ Não é não nem te afeta/ Parcela no cartão/ Essa gente indigesta”. Nada menos que genial.

Mas Criolo estava, definitivamente, disposto a fazer história. “Casa de Papelão” pode não se tratar da melhor do disco, mas certamente a mais radical aproximação com aquilo que se entende por MPB. O arranjo, primoroso, lembra os dos clássicos discos dos anos 70 assinados por Rogério Duprat, Edu Lobo, Wagner Tiso ou Francis Hime. A música soa épica, densa, imponente. O forte teor social, igualmente, retraz as denúncias musicais e a atmosfera grave dos Anos de Chumbo, como "Cala a Boca, Bárbara", "Demônio de Guarda", "Sacramento", "Café". Deste nível. Criolo, que à época já ensaiava parcerias com Milton, Arthur Verocai e Tom Zé, chegava, sozinho, àquilo que seus mestres o ensinaram.

“Convoque...” tem, assim como “Nó...”, mais uma vez a mão dos produtores Daniel Ganjaman e de Marcelo Cabral nos arranjos, instrumentos e coautorias. Mas não se resume a estes, pois novos parceiros são, como o título sugere, convocados. A turma originalíssima da Metá Metá, donos da musicalidade afro mais raiz da música brasileira, são alguns deles. Seus integrantes, Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal, aparecem em mais de uma faixa e em momentos fundamentais. É o que se vê noutra excelente do repertório, “Pegue pra Ela”, com a sonoridade folclórica dos pífaros tocados por França e a percussão marcante de Maurício Badé, bem como em “Pé de Breque”, dub jamaicano tal como reggae “Samba Sambei” do álbum anterior, compondo uma variação estratégica na narrativa sonora.

O samba, claro, está novamente presente. Repetindo também a "fórmula" de “Nó...”, que trazia o partido-alto "Linha de Frente", agora é vez da sociopolítica “Fermento pra Massa”, crônica urbana que defende em seus versos o direito à greve para se obter melhores condições de trabalho. Interessante que a música tem relação com o que Criolo fez antes, mas também com o que faria depois, a se ver por seu disco só de sambas “Espiral da Ilusão”, que lançaria 4 anos depois, e canções atuais.

Outra com olhar para a música brasileira de outros tempos, “Plano de Voo” carrega na lírica com uma letra extensa e densa que conta com ajuda do rapper Síntese. Encaminhando-se para o fim, a forte “Duas de Cinco” traz o sampler da canção "Califórnia Azul", de Rodrigo Campos, com a voz de Luísa Maita – filha de Amado Maita e de visível semelhança ao timbre da saudosa Beth Carvalho – para abrir a música com um canto melancólico e circunspecto, que dá lugar, aí sim, ao Criolo rapper. "Ela conta uma epopeia sem Ulisses", diz Criolo sobre seu rap-denúncia-confissão. Afinal, o narrador é um sujeito impregnado de "realidade", um sujeito comum que vivencia os fatos fractalmente narrados, sem a homérica intenção de heroísmo. 

A excelente “Fio de Prumo (Padê Onã)”, com os vocais de Juçara e arranjo de Dinucci, inundam de signos brasileiríssimos e põem na boca de Juçara as palavras nagô: "Laroyê eleguá/ Guarda ilê, onã, orum/ Coba xirê desse funfum". Ancestralidade poética, musical, cultura. Resistência, ode, memória. Que forma de terminar um grande disco, aquele que punha definitivamente Criolo entre os maiores. Se “Nó...” serviu para ele abrir a porta ao de muito desvalorizado rap como sendo pertencente ao universo da música brasileira, “Convoque...” solidificou sua posição e desfez de vez qualquer preconceito musical, artístico ou cultural. E pode-se dizer hoje: sim, a linhagem de Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil e outros gigantes fez-se preservada em Criolo.

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FAIXAS:
1. “Convoque Seu Buda” - 3:51 (Criolo e Daniel Ganjaman)
2. “Esquiva Da Esgrima” - 4:29 (Criolo, Ganjaman e Marcelo Cabral) 
3. “Cartão De Visita” - 3:26 (Criolo, Ganjaman e Cabral)
4. “Casa De Papelão” - 4:59 (Criolo, Ganjaman, Cabral e Guilherme Held)
5. “Fermento Pra Massa” - 3:41 (Criolo)
6. “Pé De Breque” - 4:06 (Criolo)
7. “Pegue Pra Ela” - 4:25 (Criolo)
8. “Plano De Voo” - 3:39 (Criolo, Síntese, Ganjaman, Held e Cabral) 
9. “Duas De Cinco” - 3:45 (Criolo, Rodrigo Campos, Ganjaman e Cabral)
10. “Fio De Prumo (Padê Onã)” - 4:09 (Criolo e Douglas Germano)

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Edu Lobo & Chico Buarque - "O Grande Circo Místico” (1983)



 

Acima, capa do vinil original de 1983; a outra,
capa da versão em CD
"O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa."
Versos de abertura do poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, 1938

"Uma enciclopédia da música brasileira."
Antônio Carlos Miguel, jornalista e escritor

Não é incomum ouvir de admiradores da música brasileira que “O Grande Circo Místico” é o melhor disco já produzido no Brasil. Mesmo que nessa seara naturalmente venha à mente obras como “Elis & Tom”, “Acabou Chorare” ou “Getz-Gilberto”, não é descabida a consideração atribuída a esta obra. Afinal, em que projeto se reuniu para cantar boa parte do primeiro escalão da MPB, leia-se Gilberto Gil, Tim Maia, Gal Costa, Milton Nascimento, Simone, Jane Duboc e Zizi Possi? E quando que esse time de estrelas estaria junto para interpretar temas de uma peça infanto-juvenil feita para o curitibano Teatro Ballet Guaíra sobre um poema clássico da língua portuguesa? Mais: quando contariam com o reforço de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes, Cristóvão Bastos, Marcio Montarroyos, Antonio Adolfo, Leo Gandelman, Hélio Delmiro, entre outros? E, mais ainda: em que ocasião tudo isso gravitou em torno de um repertório inédito e tão qualificado, que é o sumo de uma então recente parceria de dois gênios da música do século XX?

Pois este disco adorado pelos fãs e cheio de significados chega a 40 anos de lançamento no mesmo ano em que um de seus artífices, Edu Lobo, completa o dobro de idade. Na linha do que foi produzido nos anos 70 e 80 para o público infantil, ”O Grande...” traz o espírito de especiais clássicos como “Plunct Plact Zum”, “A Arca de Noé” e “Pirilimpimpim”, a começar pelo primor musical e estético que não subestima o bom gosto da criança. Porém, neste caso, tal atmosfera vem encapsulada por um diferencial: o encontro de Edu com seu melhor parceiro: Chico Buarque. A dupla cria 11 temas novinhos em folha com o mais alto nível não apenas para aquilo que pode ser classificado como “música infanto-juvenil”, mas em toda a história da música popular brasileira. 

Se hoje esta dobradinha dourada se tornou uma das mais celebradas da MPB, muito se deve a ”O Grande...”. Até então, os caminhos de Edu e Chico haviam se cruzado apenas duas vezes: na orquestração que Edu fizera para a peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra, em 1973, e numa única e frutífera composição, a música “Moto-Contínuo”, que o segundo gravara em seu disco “Almanaque”, de 1981. Pronto: estava dada a magia! Edu, que já havia produzido a excelente trilha para o balé Guaíra “Jogos de Dança”, sem letras e usando apenas as vozes dentro do arranjo instrumental, foi novamente convidado pelo cenógrafo, dramaturgo e figurinista Naum para um novo projeto da companhia. Porém, tratava-se de uma adaptação do singular poema surrealista de mesmo nome de 1938, de autoria do poeta modernista Jorge de Lima, composto de uma estrofe e 45 versos. O texto conta a trajetória de Knieps, que abandona a corte e a medicina, apaixonando-se pela equilibrista Agnes, começando a dinastia do Grande Circo Místico. Algo que Edu, desde os anos 60 envolvido com teatro, normalmente delegava a parceiros, como a Gianfrancesco Guarnieri em “Arena Canta Zumbi” (1965) e a Vinícius de Moraes em “Deus lhe Pague” (1975). 

Edu e Chico no início dos anos 80: encontro que não
os separaria jamais
Para aquela nova empreitada, a bola da vez era o mais recente parceiro. Afeito ao texto para palco, haja vista que já havia escrito, além de “Calabar”, ”Roda Viva”, em 1968, Chico também era mestre nas adaptações para teatro. Escreveu sozinho todas as composições sobre o poema de João Cabral de Melo Neto para “Morte e Vida Severina”, em 1966, adaptou, com Paulo Pontes, “Medeia” de Eurípides em “Gota D’Água” para a voz de Bibi Ferreira, em 1975, e trouxe Bertold Brecht e John Gay para a realidade brasileira noutro musical, “Ópera do Malandro”, de 1978. Porém, mais do que todos estes exemplos – que já seriam suficientes para justificar um convite –, Chico sabia lidar com o universo infantil. Além do livro “Chapeuzinho Amarelo”, que lançara em 1979, o pai de Sílvia, Luísa e Helena já tinha realizado, dois anos antes, a deliciosa peça musical “Os Saltimbancos”, inspirada no conto "Os Músicos de Bremen", dos irmãos Grimm, junto a Sergio Bardotti e Luis Bacalov, amigos italianos dos tempos de autoexílio na terra de Michelangelo. Ali se revelava mais uma faceta do Chico plural: afora o malandro, o militante político, o cronista, o amante, a voz feminina e vários outros, via-se agora o autor para os pequenos. Edu, que enfileirara parceiros da categoria de Joyce, Cacaso, Dori Caymmi, Ferreira Gullar, Paulo César Pinheiro e outros, sabia ter achado a pessoa ideal para letrar suas músicas.

O resultado é um desbunde capaz de encantar crianças e adultos há quatro décadas. Começando pela instrumental “Abertura do Circo”, com fantástico arranjo escrito por Edu e orquestração do maestro Chiquinho de Moraes, um tema circense tão marcante, que dá a impressão de se tratar daquelas melodias folclóricas antigas e de autor desconhecido. Mas tem autor, sim, e é Edu Lobo. Na sequência, uma pausa na rotação do planeta, pois é Milton Nascimento cantando a balada “Beatriz”. “Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é o contrário/ Será que é pintura/ O rosto da atriz...” Considerada por oito entre 10 uma das maiores canções da música brasileira de todos os tempos, este clássico não pode ser classificado de outra coisa, que não de perfeito. Em melodia, em arranjo, em letra e, principalmente, na interpretação de Milton. A voz do gênio de Três Pontas é de uma afinação tão precisa e atinge registros tão improváveis, que fica impossível imaginar outro ser capaz de cantá-la. Além, claro, da emoção transcendente que Milton transmite. Uma obra-prima, que apenas Zizi, numa permissão para o Songbook de Chico, ousou regravar. Também, pudera.

Seguindo adiante, Jane Duboc entra no picadeiro e usa de toda sua brandura e sentimento na linda “Valsa dos Clowns”, cuja letra fala da famosa dicotomia da tristeza do palhaço, escondida por detrás da figura sempre engraçada: “Em toda canção/ O palhaço é um charlatão/ Esparrama tanta gargalhada da boca pra fora/ Dizem que seu coração pintado/ Toda tarde de domingo chora”. Cantada em coro, na sequência, "Opereta do Casamento”, como uma breve e alegre história popularesca, antecede outra história: a de Lily Brown. Personagem criada no poema de Jorge de Lima, mas cuja saga é totalmente inventada pela mente de Chico. Ele dá vida à “deslocadora” Lily Brown, a que “tinha um santo tatuado no ventre”, atribuindo-lhe contornos de uma moça sonhadora, que acredita ter encontrado o “homem de seus sonhos”. Ao fim, entretanto, não concordando com sua vida mambembe, ele a abandona. Num estonteante jazz bluesy, a melodia e o primoroso arranjo de Edu acompanham os versos de Chico, que deita e rola na poética. Por exemplo: o raro uso de rimas “preciosas”, que combina a fonética de palavras de idiomas distintos, é largamente usada. Caso de “cheese” com “feliz”, “dancing” com “romance” e “azul” com “flou”. Outro elemento-chave para a canção é, novamente, a adequação da interpretação, que não poderia ser mais exata, pois toda a sensualidade que a música exige está devidamente contida na voz de Gal e seu timbre de cristal.

Outra linda balada: a sentimental “Meu Namorado”, interpretada por Simone, é das mais perfeitas do repertório. Os teclados de Cristóvão Bastos comandam o toque da arpa, da gaita e das cordas, fazendo cama para os versos potentes e líricos emitidos pela voz da baiana: “Meu namorado/ Minha morada é onde for morar você”. De arranjo bem mais enxuto, mas não menos brilhante, "Sobre Todas as Coisas” tem no violão de Gil a única do álbum apenas com um instrumento acompanhando o vocal. De fato, não precisa mais, pois a genialidade do autor de “Aquele Abraço” é tão inata, que desta rara interpretação de Gil a uma canção de Chico e Edu sai o tema mais contemplativo e filosófico do disco. Gil dá ares de um spiritual à canção, tal uma canção-prece dos trabalhadores negros escravizados dos Estados Unidos, clamando pelo entendimento da existência e de um amor não correspondido. “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador”. Caetano Veloso bem captou tamanha profusão de significados ao mencionar na sua música “Pra Ninguém”, de 1997, em que enumera músicas de autores da MPB cantados por outros autores/cantores da música brasileira, justamente esta entre tantas que poderia escolher do vasto repertório de versões de Gil a outros compositores. 

Contracapa do álbum com desenhos de Naum,
que reproduzem a ideia da cenografia da pela

Congele-se o firmamento mais uma vez, pois é hora de Tim Maia soltar seu vozeirão para a incrível "A Bela e a Fera”. Jazz-soul surpreendente de Edu – ainda mais após um número tão melancólico como o anterior – com seu arrojado arranjo de metais a la Quincy Jones, a bateria suingada de Paulinho Braga e o baixo vivo e inconfundível do “Black Rio” Jamil Joanes. Toda esta qualidade a serviço do “Síndico” em uma de suas melhores performances. Tim escalando as notas para cantar versos como: “Ouve a declaração, ó bela/ De um sonhador titã/ Um que da nó em paralela/ E almoça rolimã” é simplesmente histórico! Chico, também em uma de suas melhores letras, repete a dose em uma nova rima “preciosa” ainda mais improvável: “rolimã” com “Superman”! Musicando a saga do bruto boxeur Rudolf, da história original, Chico recria o personagem sob a perspectiva da famosa fábula do século 16, produzindo versos de admirável beleza como: “Não brilharia a estrela, ó bela/ Sem noite por detrás/ Sua beleza de gazela/ Sobre o meu corpo é mais/ Uma centelha num graveto/ Queima canaviais/ Queima canaviais/ Quase que eu fiz um soneto”. Para terminar arrebatando e elevando a emoção, Tim promove um dos lances mais sublimes da música brasileira, aumentando cirurgicamente o registro vocal para dizer: “Abre o teu coração/ Ou eu arrombo a janela”. De arrombar o coração, sim. O de quem escuta!

Quebrando mais uma vez a sequência rítmica, aquela que certamente é a mais infantil de todo o repertório. Se “Opereta...” contava com coro adulto, "Ciranda da Bailarina” traz agora vozes de crianças sobre uma lúdica ciranda de tons medievais, ainda mais pela sonoridade marcante de cravo e flauta doce forjados no sintetizador. E quem são as crianças? Os filhos de Chico e Edu, mais a pequena Bebel Gilberto (desde sempre envolvida com a música) e outros dois meninos. A sessão com a criançada é tal como recentemente a turma experimentava na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, que Chico versara de sua peça para o famoso quarteto humorístico um ano antes. E que versos! Semelhantemente aos “Saltimbancos”, a letra de “Ciranda...” era, ironicamente, a mais política de todo o disco. Mesmo se tratando da aparentemente mais ingênua faixa, “Ciranda...” foi a única afetada pela ainda ativa censura. A palavra “pentelho”, ridiculamente, foi cortada na execução, provocando um hiato bizarro na audição. Se nos Anos de Chumbo uma música como esta seria sumariamente vetada pelo simples fato do autor se chamar Chico Buarque, ao menos os ventos da Abertura Política não a subtraíram totalmente. E ainda bem que, anos depois, com a democracia conquistada e consolidada, foi possível regravá-la e reencená-la diversas vezes, incluindo as belas versõesde Adriana Partimpim, em 2009, e a do próprio Edu, em 2013.

Poster original do show no Teatro Guaíra,
em Curitiba
Quase finalizando, Zizi vocaliza com brilhantismo o tema-título, o preferido do disco para o próprio Edu. Mas para finalizar mesmo, não havia de serem outros, que não os autores. Intercalando uníssonos e combinações vocais, "Na Carreira” é uma comovente marchinha circense de despedida, que deixa um sabor de pipoca e algodão-doce na boca ao final do espetáculo. Uma tradução poética da vida mambembe: “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ Arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. A arte do palhaço presente em “Piruetas”, que Chico coescrevera para “Os Saltimbancos Trapalhões” (”Salta sobre a arquibancada/ E tomba de nariz/ Que a moçada/ Vai pedir bis”) empresta inspiração para “Na Carreira” quando esta diz: “Palmas pro artista confundir/ Pernas pro artista tropeçar”. Pode-se ler, aliás, como uma metáfora de artistas brasileiros como eles, saídos da Ditadura e vislumbrando um país livre e democrático com a então nascente campanha das Diretas Já!. Artistas estes que, igual ao que as duas músicas tratam, não desistem de apresentar sua arte, independentemente das condições. “O espetáculo não pode parar”, diz uma, e a outra: “Ir deixando a pele em cada palco/ E não olhar pra trás/ E nem jamais/ Jamais dizer/ Adeus”.

Desde então, Chico e Edu nunca mais se distanciaram. Vieram, na esteira de “O Grande...”, outras três trilhas para teatro da dupla: "O Corsário do Rei" (1985), "Contos da Meia-Lua" (1988) – também para o Guaíra – e "Cambaio" (2001), além da coletânea "Álbum de Teatro", de 1997. Desses, mais joias do cancioneiro nacional saíram, a exemplo de "Choro Bandido", "A Permuta dos Santos", "Bancarrota Blues" e "Ode aos Ratos". Mas nada se compara ao que realizaram naquele efetivo encontro no início dos anos 80 tanto na excelência das músicas quanto na coesão da obra, lindamente ilustrada por Naum. Revisitado várias vezes, seja nos palcos e até no cinema, "O Grande..." guarda qualidades incontestes, que o credenciam a ser considerado um marco na música brasileira. Quiçá, o maior. Se o próprio Edu a tem como uma das suas cinco melhores obras da assertiva, longa e nobre carreira, um indício bastante forte há nisso. O exigente Ed Motta, músico e colecionador, acha o mesmo. O tempo, sem dúvidas, ajudou a formar tal reputação. Fato é que, há 40 anos, esta trilha vem sendo notícia nos principais meios e consta não raro em listas de melhores discos da música no Brasil. “O Grande...” consolidou-se neste patamar e no imaginário do público. Um feito tão maravilhoso "de que tanto se tem ocupado a imprensa" há quatro décadas.

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clipe de "O Circo Místico", com Zizi Possi, no programa Bar Academia (1983)


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FAIXAS:
1. "Abertura do Circo (Instrumental)" (Edu Lobo) - 2:30
2. "Beatriz” (Milton Nascimento) - 5:01
3. "Valsa dos Clowns” (Jane Duboc) - 3:39
4. "Opereta do Casamento” (Coro) - 3:55
5. "A História de Lily Braun” (Gal Costa) - 3:51
6. "Meu Namorado” (Simone) - 2:44
7. "Sobre Todas as Coisas” (Gilberto Gil) - 5:00
8. "A Bela e a Fera” (Tim Maia) - 2:55 
9. "Ciranda da Bailarina” (Coro Infantil) - 2:22
10. "O Circo Místico” (Zizi Possi) - 3:41
11. "Na Carreira” (Chico Buarque & Edu Lobo) - 4:06
Faixas-bônus da versão em CD:
"Oremus - Coro (Instrumental)" (Edu Lobo) - 1:57
"O Tatuador (Instrumental)" (Edu Lobo) - 3:26
Todas as composições de autoria de Edu Lobo e Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

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FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 23 de março de 2023

Sandra Sá - "Vale Tudo" (1983)


"Alô, Sandra Sá! Aqui é o Tim Maia. Eu fiz essa música pra você. Já tenho a ideia do arranjo, que eu vou falar com o Lincoln (Olivetti). E tem mais: eu vou gravar ela contigo no teu LP!" 
Tim Maia, em ligação telefônica para Sandra Sá, sobre a música “Vale Tudo”

O chamado Black Rio foi o grande movimento cultural próprio do Rio de Janeiro depois da bossa nova. Se não teve a mesma influência ou projeção internacional que as notas dissonantes ou que a Garota de Ipanema, a cena, movida à música soul importada dos states mas com tempero bem tupiniquim, cumpria uma função social corajosa ao exaltar algo inédito naquele Brasil ditatorial dos anos 60 e 70: a cultura negra. Influenciado pelo Black is Beautiful dos Estados Unidos, o movimento Black Rio conseguia levar a pistas brasileiras aquilo que o perseguido samba, o mais brasileiro dos ritmos, nunca havia alcançado, que era a valorização uma raça preponderante em população, mas marginalizada, violentada e desumanizada pelo histórico e estrutural racismo.

As danças, as roupas, os pisantes, os cabelos, a pele, os gestos. Tudo compunha o cenário de deslumbramento e descoberta dos bailes black, que tomavam a Zona Norte carioca. Equipes de som como Furacão 2000, Soul Grand Prix, Modelo, Sua Mente numa Boa, Rick e Revolução na Mente garantiam a festa, frequentada por milhares de pretos e pretas. E claro: a música exercia um papel fundamental nesta inédita onda de autovalorização e resistência. E se a Banda Black Rio tinha a autoridade sonora e onomática de grande grupo da cena, Gerson King Combo o de astro central e Carlos Café o de principal cantor, havia a necessidade de responder também ao público feminino. Sandra Sá, então, naturalmente veio tomar este espaço.

Nascida em Pilares, na Zona Norte carioca, a neta de africanos Sandra Cristina Frederico de Sá levou sua voz rouca e cheia de groove das festas black direto para as rádios, um salto inédito na indústria musical brasileira até então para uma artista negra de música pop. Depois de um celebrado álbum de estreia, em 1980, com direito a música inédita de Gilberto Gil ("É"), Sandra é adotada de vez pela turma da soul brasileira. O sucesso comercial de "Lábios Coloridos", do segundo disco, de 1982, já contava com Lincoln Olivetti nos teclados e arranjos, Robson Jorge nas guitarras, o Azimuth Ivan Conti "Mamão" na bateria e a cozinha da própria Banda Black Rio, a se ver pelas participações ativas de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes e Cláudio Stevenson. Em "Vale Tudo", terceiro e último trabalho pela gravadora RGE, Sandra repetia as parcerias e já estava pronta para sua grande obra, a qual completa 40 anos de lançamento em 2023.

O precioso repertório de "Vale Tudo" une músicas de autores consagrados e da nova geração, que passava a se firmar. A começar pela faixa-título: o sucesso instantâneo de Tim Maia dado de presente por ele a Sandra. Não é difícil entender o porquê: em duo com o próprio Síndico, Sandra solta a voz numa animada disco engendrada pelo próprio autor em parceria com Lincoln e executada pela banda Vitória Régia. Ouvir os dois maiores cantores da soul brasileira juntos foi tão estrondoso, que a faixa ganhou videoclipe do Fantástico e virou hit em todo o Brasil, figurando na 28ª de posição entre as 100 músicas mais tocadas do ano de 1983.

videoclipe de "Vale Tudo", com Sandra Sá e Tim Maia

Mas se tinha Tim, tinha Cassiano também. É dele a autoria do funk suingado "Candura", em preciosa parceria com Denny King, das melhores do disco. E se havia Tim e Cassiano, também aparecia Guilherme Arantes, na romântica "Só as Estrelas", que encerra o álbum. Com o samba-funk brasilianista "Terra Azul", a dupla veterana Júnior Mendes e Gastão Lamounier eram outros que não resistiram ao talento da cantora, sendo fisgados por seu carisma e seu timbre, que não deixava nada a desejar a grandes cantoras internacionais da época. Se os norte-americanos tinham Donna Summer, Roberta Flack e Chaka Khan, o Brasil tinha Sandra Sá.

De fato, ninguém queria ficar de fora do bonde de Sandra. Tanto é que músicos de primeira linha como Serginho Trombone e Reinaldo Árias também tocam e assinam arranjos. Igualmente presente, seja na caprichada produção quanto em arranjos, é o tarimbado violonista Durval Ferreira, cujo currículo inclui trabalhos com Leny Andrade, Sérgio Mendes e o lendário saxofonista de jazz norte-americano Cannonball Adderley. Ferreira também assina duas composições: o tema de abertura, a excelente "Trem da Central", ao lado de Sandra e Macau (este, o autor de “Lábios Coloridos”), e o funk dançante “Pela Cidade”. Ambas as músicas trazem um olhar diferente da Rio de Janeiro idílica da Zona Sul, evidenciando uma cidade preta e periférica que começava a pedir passagem.

Fotos das gravações no encarte
original de "Vale Tudo"
Outras duas delícias emitidas pelo aveludado vocal de Sandra: “Gamação”, soul de muito suingue e romantismo, e a brilhante "Guarde Minha Voz", do craque Ton Saga, tranquilamente uma das mais belas canções pop-soul já gravadas no Brasil. Uma joia equiparável a outros “clássicos B” do AOR brasileiro, como “Débora”, de Altay Veloso, “Joia Rara”, da Banda Brylho, ou “Lábios de Mel”, de Tim. Como diz a letra: para se guardar no coração.

Embora a maioria das músicas seja de compositores masculinos, o disco de Sandra traz uma outra pequena revolução, que é o papel de mulheres como autoras. Além dela própria, que assina a balada “Musa” e coassina “Trem...”, a carioca abre espaço para compositoras no seu repertório já tão disputado. Rose Marinho divide a autoria da já citada “Pela Cidade” com Durval e outro veterano, Paulo César Pinheiro, enquanto Irineia Maria revela outro destaque do disco: a apaixonada “Onda Negra”. Balada soul deliciosa, com a arranjo de Oberdan, contém em sua letra vários elementos representativos da figura de Sandra para o movimento Black Rio, que é um filtro de olhar feminino para aquela “onda negra de amor” que se presenciava: “Nessa forma de beleza/ Vou seguindo a te levitar/ E o som me envolve me fascina/ Não consigo mais parar/ Mas é sempre uma dose certa/ De alegria, paz de luz e cor/ E a certeza de poder criar/ Uma onda negra de amor”. Mais visto na MPB de então por conta da geração de compositoras como Joice Moreno, Leila Pinheiro e Sueli Costa, no meio pop Sandra prenunciava aquilo que se tornaria comum anos depois para Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Vange Leonel e outras, bem como, especialmente, para as cantoras pretas brasileiras da atualidade, tal Xênia França, Larissa Luz, Luedji Luna, Iza e outras.

Depois de “Vale Tudo”, Sandra - que adicionaria definitivamente dali a alguns anos a preposição “de” original de batismo ao nome artístico - ainda alcançou sucessos esporadicamente, principalmente com “Bye Bye, Tristeza”, de 1988. Numa viragem mais pop e comercial para a carreira, hits como este, embora a tenham ajudado a se consolidar no cenário musical brasileiro, denotavam, por outro lado, que a fase áurea havia terminado. Porém, ninguém tira de Sandra o nome gravado na história da música brasileira, haja vista que sua credibilidade como artista e seu legado permanecem inalterados. Mais do que isso: renovados. Um disco como este, mesmo ouvido quatro décadas depois de seu lançamento, soa como um agradável compêndio do que de melhor havia na soul music brasileira àquela época e, porque não dizer, na história da música preta no Brasil. Está tudo lá: intacto. Assim como a voz de Sandra, que o público a atendeu e guardou no coração.

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FAIXAS:
1. “Trem Da Central” (Durval Ferreira, Macau, Sandra Sá) - 4:03
2. “Candura” (Cassiano, Denny King) - 3:03
3. “Pela Cidade” (Durval Ferreira, Paulo César Pinheiro, Rose Marinho) - 3:21
4. “Onda Negra” (Irinéia Maria) - 3:40
5. “Gamação” (Pi, Ronaldo) - 3:14
6. “Vale Tudo” (Tim Maia) - 4:07
7. “Guarde Minha Voz” (Ton Saga) - 3:11
8. “Terra Azul” (Gastão Lamounier, Junior Mendes) - 3:33
9. “Musa” (Sandra Sá) - 2:46
10. “Só As Estrelas” (Guilherme Arantes) - 3:26

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Daniel Rodrigues

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

A Arte do MDC em 2022


A logo do programa refeita pelo designer André Michel
Já que estamos neste momento de trazer algumas retrospectivas do ano no Clyblog, como dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e dos confrontos de filmes-times Clássico é Clássico (e vice-versa), me inspiro num outro tipo de balanço que é comum no blog todos os anos: o das artes, que são uma enormidade e inspiradíssimas. Porém, este aqui é um pouco diferente, mais singelo mas inédito, pois se trata das artes do Música da Cabeça, programa que comando na Rádio Elétrica. Sempre há, a cada semana, uma arte acompanhada de uma chamada para o episódio das quartas-feiras nas redes sociais e aqui pelo blog. Porém, as criações que eram de modo geral bem mais simples no início, foram ganhando de uns tempos para cá, à medida em que o próprio programa foi adquirindo envergadura e maturidade, também maior destaque. Ainda por cima, o ano de 2022 marcou os 5 anos do MDC, comemorados em abril, e que teve uma série de ações, de promoções junto a Regentag a posts e edições especiais.

Não se tratam de primores das artes gráficas, até porque muitas vezes realizadas com ferramentas básicas e sem grandes habilidades técnicas para um bom acabamento. Porém, isso sim posso afirmar, sempre buscando realizar algo criativo, interessante, instigante. Muitas vezes, sem falsa modéstia, com sucesso, haja vista que a vida política, pública, cultural, etc., propicia que sempre haja temas passíveis de serem aproveitados tanto textual quanto, neste caso, graficamente. Meu esforço é tanto que recentemente fui recompensado e ganhei de presente do meu amigo e colega André Michel, de formação e talento mil vezes mais hábil que eu nestes paranauê de design, a logo do programa "revitalizada", aquela com a imagem da figura humana com a cabeça de caixa de som. Ou seja, com um ou dois retoques, ele conseguiu alinhar formas e dar uma cara profissional para a logotipia. Valeu, André! 

De resto, podem ser peças, colagens, fotografias, vídeos, enfim, o que convier para aquela situação e tema/chamada. Tá valendo. O principal é chamar atenção para o programa e, de quebra, trazer criações novas a cada semana para o Clyblog. Fiquem aqui, então, com algumas das artes do MDC que rolaram em 2022:

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Abrimos o ano de 2022 parodiando o filme "Não Olhe para Cima"...


...mas logo a chapa esquentou e precisamos parar com a brincadeira pra falar
de coisa séria: o assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe


Vídeo para chamada da excelente entrevista com a professora e etnomusicóloga Ana Paula Ratto de Lima Rodgers



Em fevereiro, no dia 22/2/22, aproveitamos pra intervir com o MDC 255


Ia chegar a hora que o famigerado ppt do Dalla'gnol pudesse
ser esculachado. Chegou, em março


Em abril, comemoramos os 5 anos do programa com logo especial


Na campanha dos 5 anos, tivemos superpromoção de camisetas da Regentag e quem foi o garoto-propaganda?



Dois dos gênios oitentões da MPB, Gilberto Gil e Caetano Veloso, ganharam artes, literalmente,
espelhadas, um em junho e o outro em agosto



O verão infernal na Europa, em julho, também nos motivou a fazer arte pro MDC


Elas, as mulheres pretas de ontem e de hoje, viraram arte quando
da semana Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em julho


E a cratera que se abriu no Atacama em agosto? ´Culpa do MDC


Teve gente que pensou que havia aprendido a falar russo. Não: era só o anúncio da entrevista de André Abujamra, pra edição especial de nº 280


E chegaram as Eleições. Como não tirar uma com aquele debate?


Godard mereceu uma arte quando de sua morte. Essa ficou show, que até eu me abri


Outra arte que ficou legal, na ed. 289, de 19 de outubro


Mais um vídeo personalizado, este para a entrevista do músico e produtor Cid Campos, na ed. 290


Duas perdas irreparáveis e sequentes pra música brasileira: Gal Costa e Erasmo Carlos,
que motivaram as artes de dois programas em novembro


Dezembro teve Copa do Mundo! E o MDC tá sempre de olho no lance



E terminamos o ano anunciando o primeiro MDC de 2023, o de nº 300, que teve entrevista de Fred Zeroquatro!



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Seleção Brasileira - 11 discos nacionais que têm a cara do nosso futebol


A relação do futebol com a música, no Brasil, é algo muito especial e particular. A ginga, o ritmo, a malandragem, a criatividade, a poesia, são compartilhadas por ambos e é como se um se utilizasse das virtudes do outro. Seja pela constituição do povo, pela formação cultural, pela configuração social, por questões comportamentais, por tudo isso, o jogo de bola, popular, democrático, que se pode praticar na rua, num pátio, num terreno qualquer, com qualquer coisa que seja ligeiramente arredondado, é ligado intimamente à musicalidade do brasileiro que pode ser colocada em prática em qualquer lugar ou esfera social, numa mesa, numa lata, numa caixinha de fósforo, no morro numa roda de amigos, ou numa garagem com três caras, duas guitarras e uma bateria.

Nessa época de Copa, pensando nessa íntima ligação, selecionamos alguns discos que tem tudo a ver com esse laço. Quando artistas de música colocaram o futebol de forma significativa dentro de suas obras.

É lógico que teríamos muitos, inúmeros exemplos e possibilidades, aqui, mas ilustramos esse caso de amor futebol & música com 11 discos que têm a cara do futebol. Onze!!! Um para cada posição.

Uma verdadeira Seleção Brasileira.

Dá uma olhada aí:

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"A perfeição é uma meta
defendida pelo goleiro"
da música "Meio de Campo"

Gilberto Gil - "Cidade de Salvador" (1973): Embora tenha feito o tema brasileiro para a Copa do Mundo de 1998, Gilberto Gil não é exatamente um cara de referências tão constantes ao futebol em sua discografia. Tem, lá, o Hino do Bahia, em 1969, no disco ao vivo com Caetano, tem "Abra o Olho", do disco Ao Vivo de 1974, que faz menções a Pelé e Zagallo, mas, em sua obra, o álbum mais relevante nesse sentido e que mais traz referências ao esporte das massas do Brasil, é "Cidade de Salvador", de 1984. Nele temos a faixa "Meio de Campo", que reverenciava o, então jogador, Afonsinho, do Botafogo, jogador atuante, engajado, um dos pioneiros na luta pelo direito ao passe-livre, além da luta própria liberdade pessoal, uma vez que seu clube, na época, o Botafogo, exigia que ele tirasse a barba e cortasse o cabelo comprido, ao que o mesmo resistiu, exigindo a rescisão de contrato.

Como se não bastasse uma música tão relevante sobre um personagem tão simbólico do futebol brasileiro, o álbum ainda trazia a faixa "Tradição", belíssima crônica cotidiana, que, embora não fosse uma música sobre futebol, também citava o jogo, mencionando Lessa, um lendário goleiro do Bahia nos anos 50, segundo a letra, "um goleiro, uma garantia".






João Bosco - "Galos de Briga" (1976): A dupla João Bosco e Aldir Blanc, quando se trata de música com futebol, é que nem Pelé e Garrincha, Romário e Bebeto, Careca e Maradona. Eram craques! Sintonia perfeita. Embora muitas vezes na discografia de Bosco possamos encontrar referências ao futebol, como nas clássicas "Linha de Passse" e "De Frente pro Crime", em "Galos de Briga"; disco combativo, lançado em 1976, meio à ditadura militar, podemos encontrar dois exemplares dessa tabelinha entrosada: "Incompatibilidade de Gênios" e "Gol Anulado", duas brigas de casal repletas de elementos futebolísticos (e duplas interpretações a respeito da ditadura). Na primeira, o homem reclama que a mulher, zangada, ranzinza, sequer quer permitir que ele escute no rádio o jogo do Flamengo ("Dotô/ Jogava o Flamengo, eu queria escutar / Chegou / Mudou de estação, começou a cantar ..."); na outra, um marido descobre por um grito de gol que a esposa, que julgava tão perfeita e exemplar em tudo, não torcia, na verdade, pelo seu mesmo time, o Vasco da Gama ("Quando você gritou mengo /No segundo gol do Zico / Tirei sem pensar o cinto / E bati até cansar / Três anos vivendo juntos / E eu sempre disse contente / Minha preta é uma rainha / Porque não teme o batente / Se garante na cozinha / E ainda é Vasco doente (...)", e compara a sensação da frustração à de um gol anulado ("Eu aprendi que a alegria /De quem está apaixonado / É como a falsa euforia / De um gol anulado").

Blanc e Bosco tem mais um monte de futebolices em sua discografia, mas "Galos de Briga", é um dos trabalhos que melhor simboliza bem esse entrosamento.





Neguinho da Beija-Flor - "É melhor sorrir" (1982): Quando uma música tem o poder de ser adaptada para todos os grandes times de uma cidade e ser cantada por cada uma de suas torcidas num estádio lotado, essa música tem lugar garantido entre as mais significativas do futebol. "O Campeão", conhecida também por "Meu Time", de Neguinho da Beija-Flor, integrante do álbum "É Melhor Sorrir", celebra um dia de futebol, desde a preparação, a espera, a ansiedade, até o momento mágico de torcer e vibrar pelo time do coração dentro do estádio. "Domingo, eu vou ao Maracanã / Vou torcer pro time que sou fã / Vou levar foguetes e bandeira / Não vai ser de brincadeira / Ele vai ser campeão / Não quero cadeira numerada / Vou ficar na arquibancada / Prá sentir mais emoção / Porque meu time bota pra ferver / E o nome dele são vocês que vão dizer / Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô..........", e aí completa com o nome do seu time. Quem já ouviu isso no Maracanã, só trocando o nome do time no refrão, não tem como não se arrepiar.

O restante das faixas do disco não tem ligação com futebol, mas com uma dessas, que foi oficializada como hino do estádio, que serve para quatro dos maiores clubes do país, normalmente é entoado por milhares de vozes no maior templo do futebol mundial, há motivos mais que suficientes para incluir "É Melhor Sorrir" entre os álbuns importantes na relação música-futebol.





"A defesa é segura
e tem rojão"
da música "Um a Um"

Jackson do Pandeiro - "Jackson do Pandeiro" (1955): Uma das músicas mais marcantes na qual o futebol figura com protagonismo é a clássica "Um a Um", de Jackson do Pandeiro. A letra discorre sobre todas as posições de um time, setores do campo, situações de jogo, xinga o juiz, e exalta entusiasticamente as qualidades e virtudes do time do coração ("O meu clube tem time de primeira / Sua linha atacante é artilheira / A linha média é tal qual uma barreira / O center-forward corre bem na dianteira / A defesa é segura e tem rojão / E o goleiro é igual um paredão (...)  / Mas rapaz uma coisa dessa também tá demais / O juiz ladrão, rapaz! / Eu vi com esses dois olhos que a terra há de comer / Quando ele pegou o rapaz pelo calção / O rapaz ficou sem calção!..."). E, mais atual do que nunca, não aceitando derrota ou empate em hipótese alguma, ainda adverte:  "Se o meu time perder vai ter zum zum zum". E não é assim sempre ainda hoje?





Chico Buarque - Chico Buarque (1984): Chico Buarque, apaixonado por futebol, volta e meio tem alguma coisa relacionada ao esporte mais popular do mundo em seus discos. Um detalhezinho aqui outro ali, um verso, uma metáfora, uma referência... Poderia citar um monte delas aqui, mas escolhemos a música "Pelas Tabelas", do álbum "Chico Buarque", de 1984, por reunir uma série de elementos interessantes como o Maracanã, a torcida, a tabelinha e uma multidão na rua de verde e amarelo que naquele momento, poderia ser pela Seleção ou pelas manifestações pró-diretas, mas que nos últimos tempos se transformou numa imagem de terror de fanáticos conservadores fascistas. Saudades do tempo em que sair na rua de verde e amarelo era só para comemorar vitórias da Seleção ou reivindicar direitos democráticos.

"(...) Quando vi um bocado de gente descendo as favelas/ Achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça do homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas /Jurei que era ela que vinha chegando / Com minha cabeça já numa baixela / Claro que ninguém se toca com minha aflição / Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela / Pensei que era ela puxando um cordão".





Engenheiros do Hawaii - "Várias Variáveis" (1991): Os Engenheiros do Hawaii, banda da capital gaúcha, sempre demonstrou estreita ligação com o futebol. Volta e meia usavam em suas letras expressões referentes ao jogo ("jogam bombas em Nova Iorque / jogam bombas em Moscou / como se jogassem beijos pra torcida / depois de marcar um gol" - "Beijos Pra Torcida" 1986); subiam ao palco, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, Gessinger, gremista fanático, coma do Tricolor, é claro; e tinham, até mesmo, em uma de suas músicas, "Anoiteceu em Porto Alegre", uma narração de rádio do gol do título mundial do Grêmio, de 1983. No entanto "Várias Variáveis", de 1991, que não continha especificamente nenhuma música com qualquer menção ao esporte, destaca-se pela capa, que o justifica em estar nessa lista. Nela, entre várias engrenagens, símbolo adotado pelo grupo como marca, preenchidas com ícones pop, símbolos, imagens geográficas, históricas, comerciais, encontramos os escudos dos dois grandes clubes do Rio Grande do Sul, InternacionalGrêmio. Uma capa que dimensiona bem a importância do futebol e a paixão dos gaúchos por seus clubes situando-os entre as coisas mais importantes entre tantos elementos como ideologias, religiões, comportamento, economia, coisas que fazem mexer as engrenagens do mundo. Afinal, como dizem, o futebol é a coisa desimportante mais importante do mundo. Não é mesmo?





Novos Baianos - "Novos Baianos F.C. (1973): O que era aquilo? Uma banda? Uma família? Uma comunidade? Um time de futebol? Tudo isso! Os Novos Baianos meio que inauguraram um novo conceito de grupo musical: moravam juntos, todos colaboravam em tarefas, faziam música e, apaixonados por futebol, batiam uma bolinha. Para isso, montaram dois campos de futebol no sítio onde a banda vivia, na zona leste do Rio, onde, entre uma gravação e outra, jogavam aquela pelada, ou ao contrário, entre uma partidinha e outra, rolava algum som. Um desses momentos de descontração e atividade paralela é captado na capa do disco "Novos Baianos F.C.", de 1973, com a banda "rolando um caroço" no seu campinho em Jacarepaguá. Além do registro da foto, e da extensão (Futebol Clube) não deixa dúvidas quanto à paixão daquela turma pelo jogo de bola, o disco ainda traz a faixa "Só se não for brasileiro nessa hora", que exalta a pelada, o jeito moleque, o gosto por correr atrás da bola: "Que a vida que há no menino atrás da bola / Pára carro, para tudo / Quando já não há tempo / Para apito, para grito / E o menino deixa a vida pela bola / Só se não for brasileiro nessa hora".

"Novos Baianos F.C", de certa forma, resume o espírito do grupo. Um time. Uma equipe entrosada, quase um Carrossel Holandês onde todos se revezavam e executavam mais de uma tarefa dentro de campo. Futebol total. Ou seria música total? 





Pixinguinha - "Som Pixinguinha" (1971) - Uma das primeiras composições alusivas ao futebol foi "1x0" do mestre Pixinguinha. Gravada no final dos anos 1920, a canção instrumental, homenageava o grande feito da conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919, numa partida contra o Uruguai, vencida arduamente, depois de duas prorrogações, pelo placar mínimo, 1x0, gol do ídolo da época, Arthur Friedenreich. 

A música até ganhou letra nos anos 1990, do músico Nelson Ângelo, que a regravou então, cantada, em parceria com Chico Buarque, mas nem precisava: instrumentalmente ela, com seu ritmo, fluidez, construção, já consegue transmitir a dinâmica de um jogo, a ginga, a expectativa do torcedor, a movimentação dentro de campo..., tudo!

A canção foi gravada, originalmente, nos anos 1920, saiu em compactos posteriores, em algumas coletâneas, mas o registro que destacamos aqui é o álbum "Som Pixinguinha", de 1971, o último disco gravado pelo mestre do choro, que viria a ser reeditado, anos depois, no Projeto Pixinguinha, rebatizado como "São Pixinguinha". Nada mais justo. Só coisas divinas. Amém, Pixinguinha! Amém!






"O centroavante, o mais importante
Que emocionante, é uma partida de futebol"
da música "Uma partida de futebol"

Skank - "Samba Poconé" (1996): Logo depois que o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1994, o futebol voltou a virar mania nacional. Literalmente, virou moda. As camisetas de clubes, antes restritas às peladas e aos estádios, naquele momento tomavam as ruas. Embora vários artistas manifestassem esse momento, nenhuma banda soube traduzir tão bem esse momento como o Skank. Além dos integrantes se apresentarem, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, os grandes de Minas Gerais, Cruzeiro e Atlético, talvez tenham feito a mais empolgante e entusiástica música daquele período e uma das mais marcantes da história da música braseira, sobre futebol. "É Uma Partida de Futebol" transmitia, com rara felicidade às emoções de dentro e fora de campo, com expectativa do jogo, lances de perigo, reação da torcida, tudo com muita alegria e ritmo ("Bola na trave não altera o placar / Bola na área sem ninguém pra cabecear / Bola na rede pra fazer o gol / Quem não sonhou em ser um jogador de futebol? / A bandeira no estádio é um estandarte / A flâmula pendurada na parede do quarto / O distintivo na camisa do uniforme / Que coisa linda é uma partida de futebol (...)"). Sem dúvida, um marco na histórica relação bola-microfone, tão estreita na música brasileira.





"É camisa dez da Seleção
laiá, laiá, laiá!"
da música "Camisa 10

Luiz Américo - "Camisa 10" (1974): É o típico exemplo de artista de uma música só. Luiz Américo gravou a música "Camisa 10" para a Copa do Mundo de 1974, lamentando a ausência de Pelé, que se despedira da Seleção depois da Copa do México em 1970, e questionando as escolhas do técnico Zagallo, campeão na Copa anterior, mas de escolhas bastante duvidosas para o Mundial seguinte. A letra, inteligente, cheia de boas sacadas e trocadilhos com os nomes dos jogadores ("Desculpe seu Zagalo/ Puseram uma palhinha na sua fogueira / E se não fosse a força desse tal Pereira / Comiam um frango assado lá na jaula do leão / Mas não tem nada não!"), acabaria por confirmar os temores dos autores, Hélio Matheus e Luís Vagner, de um time confuso, mal convocado e mal escalado que não convenceu em nenhum momento e acabou eliminado de maneira impiedosa pela Laranja Mecânica de Johan Cruyff.

Lançada em um álbum sem outras alusões a futebol, "Camisa 10", além de ser, com certeza, a maior cornetada musical da discografia nacional, talvez seja a canção mais marcante da tabelinha música-futebol no Brasil.





Jorge Ben - "Ben" (1972)Jorge Benjor, talvez seja o músico com mais referências ao futebol em sua obra. Volta e meia tem! Tem menção a clube, exaltação a craque de verdade, para craque inventado, música por posição, para infração dentro de campo, pra negociação entre clubes... Tem de tudo. "África Brasil" , disco já destacado aqui no ClyBlog, nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, provavelmente seja o álbum que mais contém referências ao esporte, com uma música cuja letra conta o desejo de um de seus filhos em querer ser jogador de futebol ("Meus filhos, meu tesouro"), uma para o craque Zico ("Camisa 10 da Gávea), e uma para um fictício meia-atacante africano de futebol encantador, "Umbabaraúma, Ponta de Lança Africano". No entanto, a canção de Jorge Benjor mais marcante sobre futebol, é, sem dúvida, uma das mais lembradas no quesito em toda a música brasileira, está no disco "Ben", de 1972. "Fio Maravilha" descreve, quase com a precisão de um locutor esportivo, o lance mágico do atacante Fio, do Flamengo, dos anos 70, em que ele faz, segundo o autor "uma jogada celestial". Jorge Benjor, exímio construtor de imagens musicais, soma à narração do lance, a reação da torcida e o grito de reverencia e agradecimento da massa para o craque, num dos refrões mais populares da música brasileira, "Fio Maravilha / Nós gostamos de você /Fio Maravilha / Fazmais um pr'a gente ver".

Curiosamente, anos depois, Fio acabou processando Jorge Benjor pela utilização de seu nome sem autorização. O próprio Fio desistiu do processo sem sentido até porque, antes da música ele não era ninguém e, pelo contrário, era conhecido, exatamente, por perder muitos gols. Simplesmente, um hino do futebol brasileiro!



por Cly Reis