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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

João Gilberto - “Amoroso” (1977)

 

"Esse disco tem um pouco esses negócios que a gente precisava. Tem a música da orquestra, eu tinha tanta vontade de ouvir um samba tocado por orquestra. A coisa é por todos os lados, música por todos os lados, enquanto estou cantando. Toda vestida, toda redonda. Tinha tanta vontade de ver a música do Brasil mais diretamente, o samba daquele jeito, que não fosse só o delicado, que fosse redondo, ligado, assim como o Claus [Ogerman] fez." 
João Gilberto, em telefonema a Zuza Homem de Mello, em 1977


Poucas coisas em música são mais sofisticadas que a bossa-nova. Na segunda metade do século 20, nada supera. A sintaxe harmônica, fruto de séculos de assimilação histórico-sociológica que forjam o ser brasileiro, deram à bossa-nova o status de estilo musical mais arrojado depois da invenção do jazz. Exemplos desta sublimação não faltam. O encontro de perfeições entre Tom Jobim e Frank Sinatra; a insuspeita ponte entre clássico e moderno de Elizeth Cardoso em “Canção do Amor Demais”; a junção direta de cool jazz e samba de “Getz-Gilberto”; a brandura potente de Nara Leão em sua estreia no acetato.

Mas talvez todos estes exemplos tenham servido de embasamento para um produto ainda mais bem acabado: “Amoroso”, de João Gilberto. O disco, lançado pelo mestre baiano em 1977 e considerado por muitos sua obra-prima, consegue aglutinar os melhores elementos legados por todos os artistas da bossa-nova – inclusive o próprio João – tanto em arranjo, repertório quanto em, claro, execução. A começar pela química improvável cunhada e aperfeiçoada por ele próprio desde que “inventou” a bossa-nova. A genial síntese harmônica e rítmica, a simbiose entre violão e voz, a emissão do canto sutil e sem vibratos, a exatidão da dicção e dos timbres, a redefinição da métrica musical. João foi, num tempo, arquiteto e bruxo. 

Porém, “Amoroso” guarda peculiaridades que justificam ainda mais estas características joãogilbertianas que por si já seriam (eram, são) suficientes. Gravado no aparelhado Rosebud Recording Studio, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, o disco tem participações que o engrandecem e favorecem o produto final. A começar pela produção de Helen Keane e Tommy LiPuma, este último, o premiado e lendário produtor de artistas como George Benson, Al Jarreau, Paul McCartney, Barbra Streisand e outros. Na banda de apoio, três gringos: Jim Hughart, no baixo; Joe Correro, bateria; e Ralph Grierson, teclados. O mínimo e o suficiente para João desfilar seu violão. Mas isso se junta a outro fator importantíssimo: a orquestra, arranjada e conduzida pelo brilhante alemão Claus Ogerman. Compositor de mão cheia, requintado e arrojado, Ogerman foi o responsável, dentre outros feitos, pelos arranjos dos memoráveis discos de Tom Jobim pela A&M Records, “Wave” e “Tide”, outros dois marcos da saga de sofisticação da bossa-nova na música mundial. Até a capa de “Amoroso”, algo externo às gravações, acompanha tal elegância: uma pintura de uma figura feminina em tons modernistas do artista trinitino Geoffrey Holder.

Cenário montado para João entrar com sua arte. No repertório, sagazmente escolhido a dedo por ele, de standarts do folclore norte-americano, passando por canções em italiano e espanhol até samba antigo e, claro, o cancioneiro bossanovista. Uma releitura de Gershwin abre o disco. Dois acordes dissonantes da orquestra: é “'S Wonderful”, escrita em 1927 para o musical “Funny Face”, que aqui ganha a pronúncia do inglês deliberadamente abrasileirada, que dá a este cartão-de-visitas um toque ainda mais próprio. É como se a letra funcionasse e suas palavras para a intrincada construção harmônica proposta ao se verter o popular song para o gingado do samba. Quanta sabedoria de João ao estender o corpo do perfil sonoro desde seu ataque até sua queda justa e sem ondulações. É a Broodway subindo o morro. 

A orquestra de Ogerman vem intensa e abre caminho para a voz e violão de João em “Estate”, num lindo arranjo que conta, além das cordas, madeiras e metais, com frases do teclado de Grierson. Levantando o astral – afinal, para ser “amoroso”, não precisa sempre sofrer chorando –, João resgata o saboroso samba da década de 40 do multiartista carioca Haroldo Barbosa, autor invariavelmente valorizado pelo criador da bossa-nova. “Tin Tin Por Tin Tin”, com seus marotos versos iniciais, fala de um rompimento de relação (“Você tem que dar, tem que dar/ O que prometeu meu bem/ Mande o meu anel que de volta/ Eu lhe mando o seu também”), mas de uma forma tão graciosa (e malemolente), que até dá a impressão de tratar-se de um amor feliz. O canto de João, que agrega sutis síncopes e vocalises, integra-se de tal forma ao toque do pinho, que parecem provir da mesma natureza. E quem há de dizer que não?

João Gilberto tocando "Tin Tin por Tin Tin", em vídeo do "Fantástico", à época do lançamento do "Amoroso"

Melancólico, o popular bolero “Besame Mucho”, de 1940, remonta ao México sentimental e apaixonado onde João viveu anos antes – país onde, inclusive, ele gravou o excelente disco “João Gilberto en Mexico” ou “Farolito”, de 1970. Mais uma vez, a orquestra carrega na intensidade mas, na sequência, engendra uma delicada transição para Joãozinho brilhar. Isso sem contar com a parte da orquestra no meio da música, nada menos do que deslumbrante. Não é exagero dizer que, a se considerar a inteligência melódica de João neste número, está-se diante de uma das cinco melhores interpretações deste tema incontáveis vezes regravado em todo o mundo.

Para finalizar a segunda parte ou o correspondente ao lado B do vinil original, João escolhe reverenciar aquele que é indiscutivelmente o mais importante compositor da bossa-nova: o amigo Tom Jobim. São de autoria dele as últimas quatro faixas, a metade do álbum, como a marcante versão do clássico “Wave” e a igualmente classuda “Triste”. Em ambas nada está fora do lugar. Tudo é perfeitamente exato. A voz calma, quase silenciosa, mas firme e inteira, se entrelaça às cordas e a banda numa combinação cristalina.

Além destas, outras duas parcerias do Maestro Soberano em que João destila sua personalidade ao mesmo tempo forte e sutil. Primeiro, uma emocionante “Caminhos Cruzados”, coescrita com Newton Mendonça, em que João arrasta o compasso, dando alto grau de sensibilidade para o romântico tema que fala de encontros e desencontros da vida amorosa. O filho musical Caetano Veloso, em seu “Verdade Tropical’, considera esta música uma das mais emblemáticas da bossa-nova, dizendo que “é uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizada; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”.  

A outra, que fecha o disco, é “Zingaro”, escrita em 1965 originalmente instrumental e que ganhou letra de Chico Buarque anos depois para virar “Retrato em Branco e Preto”. Nesta, João empresta dramaticidade à dolorida carta de despedida de um relacionamento: “Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara/ Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado e você sabe a razão”. E desfecha: “Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.

Compêndio de canções românticas de diversas vertentes, “Amoroso” é, acima de tudo, o refinamento daquilo que já era refinado. O “crème de la crème” da bossa-nova, esta corruptela do samba que já nasceu apurada. João, autor da batida-motriz do gênero, algo mecanicamente simples, mas musicalmente complexo visto que capaz de sugerir uma infinidade de fruições melódicas e harmônicas, avançou ainda mais com este disco. Se seu violão já era capaz de condensar o novo e o antigo, com a adição da orquestra esse poder simbólico da bossa-nova se redimensionou. Não se trata do pastiche americanizante do arranjo dos “samboleros” dos tempos da Rádio Nacional, descaracterizadores muitas vezes da raiz africana da cultura brasileira pela vergonha de si próprio, mas, sim, a modernidade em prol do estilo musical que abraçou a essência nacional e a propagou mundo afora. Consciente de seu papel policarpiano, João devolve ao samba a dimensão eloquente (aventada por Francisco Alves e Pixinguinha) que lhe foi negada. Assim como a bossa-nova, símbolo de um Brasil possível, João, como um Robin Hood, resgata o que é de direito desde que o samba é samba. Quem mais poderia supor a ligação de uma ponte assim, tão mágica e intrincada de se realizar? Somente um arquiteto ou um bruxo. João era os dois.

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“Amoroso” saiu conjuntamente com o disco “Brasil”, de 1981, já resenhado nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. em edição em CD em 1993, porém, mantendo-se como capa a sua arte e alterando-se apenas o enunciado do título para “Amoroso/Brasil”. As mesmas gravações de "Amoroso" aparecem também na íntegra, porém em ordem diferente e intercaladas com parte das faixas de "Brasil", na coletânea da série "Mestres da MPB - João Gilberto", editada em 1992.

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FAIXAS:
1. “'S Wonderful” (George Gershwin/Ira Gershwin) - 4:07
2. “Estate” (Bruno Brighetti/Bruno Martino) - 6:30
3. “Tin Tin Por Tin Tin” (Geraldo Jaques/Haroldo Barbosa) - 3:37
4. “Besame Mucho” (Consuelo Velaquez) - 8:43
5. “Wave” (Antonio Carlos Jobim) - 4:35
6. “Caminhos Cruzados” (Jobim/Newton Mendonça) - 6:12
7. “Triste” (Jobim) - 3:35
8. “Zingaro (Retrato em Branco e Preto)” (Jobim/Chico Buarque) - 6:23


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 29 de junho de 2023

"Onze Homens e Um Segredo", de Lewis Milestone (1960) vs. "Onze Homens e Um Segredo", de Steve Soderbergh (2001)






Onze de cada lado. De um lado "Onze Homens e um Segredo", de 1960, do outro "Onze Homens e um Segredo", de 2001. Vinte e dois homens e um só objetivo: a vitória. Dois timaços! No time de 1960, Frank Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Jr., Shirley McLaine, Angie Dickinson, Cesar Romero, no de 2001, George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, Julia Roberts, Don Cheadle, Andy Garcia.
Duas equipes organizadas, cheias de jogadas ensaiadas e que, pode-se dizer, são especialistas em roubadas de bola. Tanto que o grande objetivo em ambos os casos, é roubar uma verdadeira bolada de alguns dos maiores cassinos de Las Vegas. Embora a meta seja a mesma, a montagem dos elencos é feita de forma bem distinta e as estratégias utilizadas para chegar ao "gol" têm suas diferenças.
Enquanto que, no filme original, o grupo que pretende realizar o ousado roubo é constituído por ex-militares que se conheceram na Segunda Guerra, no novo, a gangue é formada por trapaceiros de marca maior, dos mais variados estilos (um ladrão de bancos, outro batedor de carteira, outro trapaceiro nas cartas...). Se no primeiro estão a serviço de um milionário ganancioso, no segundo são recrutados por Danny Ocean, um manjado salafrário que acaba de sair da cadeia mas que já planeja um golpe de proporções inimagináveis.
No original, o roubo em si, ainda que bem elaborado, é bem mais simples que o da nova versão, que, por sua vez, envolve muito mais complicadores e dificuldades, como seguranças, senhas, aparelhagem, etc. Em "Onze Homens..." de 1960, a ideia é, na noite de ano novo, na hora da virada, causar um blecaute em Las Vegas, explodindo uma torre de alta-tensão e, durante o tumulto, tanto da comemoração quanto da escuridão, aproveitar o destravamento dos cofres, e realizar o assalto em cada um dos cinco cassinos.
No remake, também há o elemento do blecaute, no entanto, sua duração é bem mais curta e por isso mesmo, a ação dos bandidos tem que ser muito mais bem pensada e ágil. O corte de energia, causado neste segundo filme, por uma pequena 'explosão nuclear' acontecerá durante uma grande luta de boxe nas dependências de um dos cassinos, evento que fará com que muito mais dinheiro circule naquela noite. A "vantagem", por assim dizer, dos ladrões da nova versão é que eles têm que chegar a apenas um cofre que atende às três principais casas de jogos da cidade... Ótimo? Só que não! Exatamente por ser um único local de armazenamento de toda a féria dos cassinos, a segurança é muitíssimo mais reforçada e a parafernália tecnológica de lasers, identificações, travamentos, etc., é praticamente intransponível.
Até para superar toda essa dificuldade, o plano de execução da refilmagem é muito mais elaborado e surpreendente. O antigo é legal, tem o spray infravermelho que somente os integrantes do grupo conseguem ver com os óculos especiais na hora do apagão, a ação sincronizada de entrar nos cofres exatamente na hora que as pessoas cantam a canção de ano novo, o dinheiro nas latas de lixo, o caminhão de coleta urbana saindo sem suspeitas. Tudo muito bacana. Só que no novo, tem o roubo do gerador do museu de tecnologia pra causar um apagão na cidade toda, o velho "milionário grego" distraindo a atenção do proprietário com a maleta, o jovem Linus se passando por fiscal de jogos para roubar a senha do chefão do cassino, um pequeno chinês acrobata que cabe dentro de um carrinho de coleta de dinheiro, uma explosão fake dentro do cofre, a entrada da S.W.A.T., um falso tiroteio, a fuga do falso furgão e a saída tranquila dos ladrões, pela porta da frente, tudo isso enquanto o líder, Ocean, leva uma "surra" numa sala isolada para lhe servir de álibi de que em momento algum participara de qualquer daqueles eventos. 

"Onze Homens e Um Segredo" (1960) - trailer


"Onze Homens e Um Segredo" (2001)  - trailer


No mais novo, embora paire alguma dúvida, ao final, quanto à impunidade do grupo, uma vez que os capangas do proprietário ainda estão de olho em Ocean e sua turma, mesmo meses depois do acontecido, o êxito da operação em si, se confirma e em princípio, cada um sai com sua parte. Já no antigo, embora o roubo se concretize, um incidente com um dos integrantes, o eletricista, que sofre um infarto na rua logo após a missão, é a pista para que o sagaz e oportunista Duke Santos, vivido por Cesar Romero, o Coringa da antiga série de TV do Batman, padrasto de um dos integrantes da gangue, ligue alguns pontos e perceba que o enteado está envolvido. Desta forma, Santos, pedindo metade do ganho do assalto, chantageia o grupo que se vê obrigado a ocultar o dinheiro e, nisso, acaba, de maneira frustrante, perdendo tudo o que havia conquistado.
O mais recente leva vantagem também no ritmo. Enquanto o anterior era mais arrastado até o recrutamento de todos os integrantes, o mais novo é mais dinâmico e até mesmo essa etapa é mais envolvente e interessante. A propósito, a montagem, a edição do remake é grande responsável por essa dinâmica. Cortes rápidos, telas divididas, zooms in, flashbacks, películas diferentes, imagem granulada... Um show de Steven Soderbergh e sua equipe.

"Onze Homens e Um Segredo" (1960) - abertura de Saul Bass


Apesar de tudo isso, os Onze Homens do oscarizado Lewis Milestone é que saem na frente, logo nos primeiros movimentos do jogo, com um gol relâmpago de um décimo segundo jogador. A abertura genial do mestre Saul Bass, cheia de grafismos imitando os luminosos das fachadas dos cassinos, garante um gol para o time de 1960, antes do primeiro minuto de jogo. Mas basta o time de Steve Soderbergh botar a bola no chão para passar a dominar o jogo. A montagem alucinante garante o empate, o roteiro mais elaborado, mais inusitado, garante a virada e a trilha sonora espetacular, cheia de soul e jazz, marca o terceiro. Milestone tem Sinatra com a 10, ele é bom, joga muita bola, apesar de muita gente achar que ele era bom só de microfone, mas Clooney, o homem de confiança do professor Soderbergh, é o cérebro do time e faz melhor essa função que o Rei da Voz. Gol dele. 5x1. Brad Pitt até está melhor como braço direito do chefe da gangue, na atualização, do que Dean Martin, praticamente na mesma função no time antigo, Matt Damon é mais interessante e completo que seu equivalente Peter Lawford, Don Cheadle mais cativante que Richard Conte como o especialista em elétrica, mas o time de 2001 não transforma essas oportunidades em gol. Mas num drible desconcertante, daqueles de derrubar narrador, o desfecho do roubo com toda a enganação à qual nós espectadores somos submetidos, com bolsas cheias de pornografia num carro comandado por controle remoto, e com os ladrões saindo, pela porta da frente do cassino, com as bolsas de dinheiro, é um golaço numa jogada brilhantemente construída. O time de 1960 desconta pela ótima cena da contagem regressiva para a virada do ano, intercalada por um balão vermelho na tela, cortando de um para o outro cassino. 6x2 é o placar final da partida.

Dois grandes elencos mas, com um time mais bem encaixado, com jogadas mais trabalhadas e com um craque mais centralizador das jogadas, os onze de Ocean da versão de 2001, à direita, levam com alguma tranquilidade e faturam a premiação milionária da competição.


Um oceano de distância separa o time de 1960 do time de 2010
Vitória tranquila como roubar doce de criança.






Cly Reis


segunda-feira, 2 de maio de 2022

As 30 melhores aberturas de filmes

 

Não sei quanto a quem não é cinéfilo de carteirinha, mas mais de uma vez me surpreendi tanto com a abertura de um filme, que a sensação imediata era a de quem nem precisava mais continuar assistindo. Foi assim quando, em 1995, na companhia de vários amigos – em sua maioria absoluta amantes de cinema mas não necessariamente cinéfilos – reunimo-nos para ver o VHS locado de “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, do Quentin Tarantino. Eu não havia visto “Cães de Aluguel” ainda, seu primeiro e anterior longa, embora já ouvisse todo o debate em torno do nome do cineasta que dizia-se estar revolucionando o cinema. Mas o que me despertava maior interesse era, principalmente, porque o filme em questão havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. Isso, mais do que toda a celeuma sobre Tarantino significar ou não um novo capítulo na história da 7ª Arte (o que poderia ser, escaldado que sou, um exagero proposital, comum na mídia), de fato me surpreendia. Cannes desde cedo em minha vida cinéfila fez muito sentido, pois cresci assistindo seus premiados e indicados, que não raro eram (ainda são) alguns dos melhores filmes que já assisti, como “A Balada de Narayama”, “Coração Selvagem” e “Mephisto”. No caso de “Pulp Fiction”, ainda mais por saber tratar-se de um filme “comercial” norte-americano e não algum cult europeu ou asiático, isso, sim, chamava-me mais a atenção e despertava a curiosidade de vê-lo.

Pusemos a fita no videocassete. A grande maioria sabe o que acontece nos primeiros minutos de “Pulp Fiction”, né? A sequência do diálogo entre Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) antes de assaltarem o restaurante e a entrada triunfal dos letreiros iniciais com “Miserlou” de Dick Dale arrasando com um surf-rock na trilha e, ainda pelo meio dos créditos, a mudança de música, como se alguém tivesse mudado uma estação de rádio para o funkão “Julgle Boogie”, da Kool & The Gang. Tudo aquilo, o estilo; a atmosfera pop; a inteligência da montagem; o bom gosto musical; o tom de tele-seriado B; a referência a Godard no nome da produtora A Band Apart: toda essa sequência minimamente bem pensada de como iniciar um filme me fez ficar absolutamente estarrecido. Somava-se a isso a engenhosidade da montagem no momento em que Pumpkin e Honey Bunny levantam-se sobre o banco do restaurante (e Roth diz: “I love, Honey Bunny”, e eles se beijam em close antes de apontarem as armas) e anunciam o roubo, a imagem congela e mantém-se o áudio das falas – estas, aliás, extremamente musicais, tanto que se tornam inseparáveis da música de Dale que vem na sequência no próprio disco da trilha sonora. Apaixonei-me pelo filme que mal havia começado.

"Pulp Fiction", Quentin Tarantino (1994)


Excitado, eu olhava para meus amigos na sala enquanto aquela série de genialidades iam surgindo da tela para observar suas reações, mas todos, embora estivessem, sim, gostando, nem de perto se exaltavam como eu. Aquele sentimento de arrebatamento era única e exclusivamente meu. Cheguei a perguntar, incrédulo: “Gente, vocês estão vendo a MESMA coisa que eu?!”. A resposta? Com desdém adolescente: “Sim, Dani, o que é que tem? O filme tá recém começando”. Sim, o filme estava recém começando, mas não de um jeito normal. Para mim (e para muito cinéfilo e estudiosos do cinema) confirmava-se ali a tal revolução cinematográfica atribuída a Tarantino. Não precisava nem ver o filme por completo: era certo que o cinema, então a 4 anos de completar seu primeiro século de existência, mudava a partir dali, e isso era o máximo de eu estar presenciando. Aprendi, naquela situação, que não era uma pena meus amigos não estarem vendo o mesmo que eu: era, sim, o que me diferenciava do senso comum na forma de ver e sentir cinema.

Não foi a primeira abertura de filme que me surpreendeu a de “Pulp Fiction”, claro, mas é certo que esta sensação de entusiasmo se me repetiu várias vezes. Seja em casa ou numa sala de cinema, de vez em quando sou pego de surpresa com algum começo de filme que, como um bom disco de música, sabe dar o start certo e cativar de cara quem o está apreciando, mesmo que a obra em si não corresponda tanto a seu bom início – embora seja geralmente um bom indicativo. Pois essa lista se propõe a elencar justamente isso: não os filmes inteiros, mas seus primeiros minutos. A rigor, por “openning scene” entendemos não somente o design de créditos, mas o suficiente para apresentar o filme, embora não seja necessariamente uma regra.

A junção de fatores, a inventividade na disposição dos letterings, a edição, o prólogo, o design, o impacto da cena, o significado simbólico para com a história que será contada: tudo conta para impressionar e construir uma introdução digna de memória. As maneiras de fazer, assim como de se contar uma história em imagens, são infinitas, e não há um jeito melhor que outro. O critério para a escolha destes 30 exemplos sem ordem de preferência – e que pode tranquilamente ser ampliada por novos filmes ou por títulos aos quais não me ocorreram – é apenas o da sentir-se conquistado já na largada por uma obra cinematográfica. Aqueles filmes que, contrariando a lógica, recomendo que não sejam necessariamente vistos até o final. Os primeiros minutos já bastam.

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“Era uma Vez no Oeste”, Sergio Leone (1968)

São pouco mais de 7 min de puro deleite daquela que é provavelmente a melhor abertura de um filme de todos os tempos. O filme de Leone, aliás, por si merece essa alcunha, mas se se destacar apenas o seu começo já está mais do que bem representado. O design, o cenário, os enquadramentos, a disposição criativa dos letterings, o tempo da montagem, a arte e o figurino, a fotografia. Tudo em perfeita sintonia e, mais que isso, conceitual, visto que apresenta, sem precisar valer-se da poderosa música de Ennio Morricone e quase sem nenhuma palavra dita, tal westerns do cinema mudo, as ideias centrais do filme: o embate ideológico entre passado e futuro, entre vida e morte, entre instinto e consciência..


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“Cassino”, Martin Scorsese (1996)

Lembro também de, no cinema, sentir a reação da sala ao surpreender-se com a explosão do carro do personagem Sam Rothstein, vivido por Robert DeNiro, em “Cassino”, nos idos de 1996. Uma reação espontânea do público, que, assim como eu, era abduzido para dentro da história em poucos minutos de fita transcorridos. Scorsese, justificadamente fã de Saul Bass, conseguira em vida trabalhar com o mestre do design de créditos cinematográficos ainda em dois filmes: “Cabo do Medo”, de 1991, e neste, do ano em que ele morreu.


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“Fahrenheit 451”, François Truffaut (1966)

A nouvelle vague foi o movimento que melhor soube subverter os padrões da linguagem cinematográfica. Esta ficção científica de forte crítica filosófica baseada na novela e Ray Bradbury, além de ser um dos melhores filmes de Truffaut e do cinema, inova desde o seu primeiro minuto. E de forma simples. Aliás: simples em formato, haja vista que se engendra apenas por uma sequência de imagens estáticas e monocromáticas em zoom in e uma locução que descreve aquilo que geralmente apareceria escrito. Porém, a simplicidade da sequência de "Fahrenheit 451" é de uma criatividade tamanha, visto que traduz conceitualmente o principal elemento da história, que é a proibição de qualquer material escrito num futuro distópico. Genial e simples.


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“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2002)

A experiência com "Cidade de Deus" também foi inesquecível. Fui assisti-lo pouco depois de seu lançamento já tomado pela fama em torno do filme. Na sala de cinema, pude comprovar estar diante da obra que demarca o antes e depois do cinema brasileiro, o filme que deu fim à dolorosa era da Retomada. E sua sequência introdutória (“Pega a galinha, pega a galinha!”), com a faca cintilante simbolizando o perigo, os fragmentos de imagens intercaladas por legendas, a foto em cores pulsantes, o som da lâmina sendo afiada misturado ao do samba para devorar a ave fujona. Uma cena de tensão que se cria em poucos minutos e que já diz a que o filme viera: para revolucionar o cinema nacional e mundial.


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“Um Corpo que Cai”, Alfred Hitchcock (1956)

Saul Bass foi, inegavelmente, o gênio do design de créditos em cinema. E quando a genialidade dele se encontrava com a de outros, como, no caso, Alfred Hitchcock, com quem colaborou mais de uma vez, aí era gol certo. Altamente conceitual, como os videoclipes musicais que passariam a existir apenas décadas depois, a entrada de "Vertigo", com o casamento perfeito com a trilha de Bernard Hermann e os efeitos especiais bastante ousados e criativos para sua época, ainda surpreendem. Se hoje fosse feito por computadores já seria louvável, imagina em 1956.


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“Psicose”, Alfred Hitchcock (1960)

Outro da colaboração Bass/Hitchcock, "Psicose" vale-se dos tradicionais grafismos que eram comuns ao trabalho de Bass, dono de um traço magnifico. A assustadora trilha de Hermann, sinônimo de thriller de suspense, é traduzida por linhas retas paralelas em p&b que se deslocam horizontal e verticalmente em conjunção com as letras, geram uma sensação de instabilidade e não-linearidade, ideia a qual, por sua vez, simboliza a perturbadora história do assassino psicótico Norman Bates. Junto com "Vertigo", aquele que é considerado o grande filme de Hitch. Não à toa.


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“O Segundo Rosto”, John Frankenheimer (1966)

Mais uma de Bass, esta perturbadora abertura de "O Segundo Rosto" é um verdadeiro exercício artístico. Valendo-se de potente trilha de Jerry Goldsmith e da trama de suspense psicológico do filme de Frankenheimer, Bass explora distorções como as do expressionismo alemão e carrega nas sombras e imagens projetadas em espelhos para, já de início, entrar na mente do espectador, que, a se confirmar pelo excelente longa, será conduzido a um mundo de medos e aflições internas. Poucas vezes uma introdução casou tão bem com a ideia central de uma obra. 


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“O Jogador”, Robert Altman (1992)

Esta cena já esteve destacada aqui no Clyblog por outro motivo: o plano-sequência. Pois Altman consegue com este engenhoso desenho de cena não apenas criar uma das melhoras sequências sem corte da história do cinema (afinal, o próprio filme trata sobre os bastidores da sua indústria) como, por conta exatamente disso, causar um incrível impacto já no início do filme, visto que o plano-sequência é justamente o que o abre. Altman, dos melhores do cinema autoral dos Estados Unidos, sabia como ninguém abrir suas obras, haja vista "Nashville", "M*A*S*H*" ou "Três Irmãs", mas nada bate a de "O Jogador".

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“Magnólia”, Paul Thomas Anderson (1999)

Outro dos que fui assistir no cinema é fui totalmente arrebatado. Também pudera: que forma criativa de se começar um filme! P.T.Anderson põe pra baixo o queixo do espectador num prólogo ao mesmo tempo divertido e instigante, que relaciona fortuitos momentos da história, para, ao final, triunfantemente, soltar a imagem da flor "Magnólia" abrindo-se em velocidade acelerada sobre a projeção de diversos vídeos. Além disso, tem a apaixonante música de Aimee Mann, a quem nem conhecia e passei a adorar por causa da trilha do filme. Inteligentemente, a aparente dissociação dos acontecimentos do prólogo antecipa a trama coral proposta pelo roteiro e a nada casual relação entre aquelas histórias paralelas. “Isto não foi uma coincidência”.

 

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“O Homem do Braço de Ouro”, Otto Preminger (1955)

Bass de novo, aqui na sua forma mais naturalmente criativa e genial: grafismos e desenhos com seu traço característico sobre um fundo preto e legendas sendo dispostas em conjunto com a música de Elmer Bernstein. A primeira parceria do designer com Otto Preminger, com quem trabalharia em vários outros projetos, também explora os meandros obscuros da mente humana, no caso, de um baterista de jazz viciado em heroína vivido incrivelmente pelo jovem (mas já ídolo) Frank Sinatra. Só o desenho do braço distorcido já é uma das mais felizes contribuições de Bass para a história do cinema e do design.


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“A Marca da Maldade”, Orson Welles (1958)

Outro que, assim como "O Jogador", também tem um dos grandes plano-sequências da história cinematográfica para começar o filme. Porém, havemos de dar ainda mais mérito para o sempre inquieto e criativo Orson Welles em ousar abrir um filme deste jeito nos anos 50, quando o cinema e os espectadores tinham como padrão o formato convencional de créditos iniciais. Nunca se havia visto uma cena de abertura tão complexa, com vários atores e figurantes em cena, câmara em travelling, mudança de enquadramento de primeiríssimo plano para planos médios e grande, num espaço físico extenso e com direito até à explosão. E tudo isso SEM corte. Caramba! Como se não bastasse, o longa confirma todas as expectativas de seus de minutos iniciais naquele que é, talvez, o grande de Welles.


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“Uma Mulher É uma Mulher”, Jean-Luc Godard (1961)

Godard, assim como Truffaut e seus companheiros de nouvelle vague, nunca deixaram de inovar a maneira de começar a contar suas histórias. O suíço, aliás, comumente radical, já fez muito filme que, a rigor, não começa nunca – e nem “termina”, consequentemente, como “Je Vous Salue, Marie” ou “FilmSocialisme”. Mas uma das marcas que Godard nunca abandonou é o trato formal da tipografia dos letterings, os quais se utiliza geralmente com fontes não serifadas tipo Futura ou Arial (e nas cores da bandeira da França) sobre fundo escuro, encurtando os limites entre poesia concreta, cinema, vídeoarte e literatura. Caso de “Uma Mulher é Uma Mulher”, que ele faz a proeza de apresentar genialmente em menos de 2 min.


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“Fellini 8 1/2”, Federico Fellini (1963)

Fellini não cria suspense nenhum em relação ao nome do filme, o qual aparece já no segundo frame sobre fundo escuro na forma da conhecida logo. Mas a partir dali o que se vê até os 3 min que se transcorrem é a mais absoluta genialidade felliniana. A história do cineasta pressionado pela crise de criatividade é expressa numa espécie de prólogo onírico minuciosamente bem construído. O claustrofóbico engarrafamento, cuja mudez é ensurdecedora, e os olhares condenatórios à sua volta, sufocam aquele homem sem rosto dentro de seu carro a ponto de fazê-lo... sair voando! A lindeza do sonho se encerra numa praia, sobrevoando o mar e sendo puxado por uma corda da areia por ele próprio, que tem a companhia de um homem de capa sobre um cavalo negro. E o melhor: o oitavo filme (mais um média) de Fellini mantém esse nível até o fim.



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“2001: Uma Odisseia no Espaço, Stanley Kubrick (1969)

 A ficção científica que estabeleceu o padrão do gênero para sempre é uma aula de narrativa para realizadores até hoje, o que inclui sua marcante abertura. Copiado e referenciado centenas de vezes, o início de "2001", de apenas 1 min30’, é, contudo, dos mais originais da história da 7ª Arte. Traduzindo em imagens siderais grandiosas a impactante abertura da sinfonia "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss, Kubrick mostra o raro alinhamento do planeta com Sol com a Lua valendo-se, para isso, de poucos mas precisos elementos: tela escura que vai aos poucos revelando a imagem e apenas três letreiros em tipografia Futura: “Metro-Goldwyn-Mayer Presents”, “A Stanley Kubrick Production” e o nome do filme em tamanho maior (com o detalhe do Copyright abaixo bem pequeno). Separadamente do filme, só esse trecho já pode ser considerado uma obra-prima.


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“O Poderoso Chefão, Francis Ford Coppola (1972)

Este é um caso de uma forma própria de apresentar a história. O nome, através da bela logo com a mão divina comandando a marionete com o letreiro “Mario Puzo’s The Godfather” e os acordes da clássica música tema de Nino Rota, já está garantido no segundo frame. Porém, os 6 minutos seguintes apenas de diálogos traduzem diversos níveis narrativos e simbólicos que serão trazidos nas quase 3 horas de fita subsequentes. As relações de poder, a inteligência manipuladora do Padrinho, os valores familiares, os papeis sociais, os meandros dos poderosos... muita coisa é dita ou subentendida até o momento em que Vito Corleone (Marlon Brando, espetacular) cheira a rosa de sua lapela e dá-se continuidade à “festa”. 


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“A Terceira Geração, Reiner Werner Fassbinder (1979)

Um dos maiores estetas do cinema, o alemão Fassbinder deve muito de suas criativas aberturas de filmes a um contemporâneo e conterrâneo seu ligado à arte moderna a quem muito se inspirava para isso: Joseph Beuys. Não raro, as introduções de seus filmes referenciam o estilo de Beuys, com tipografias monocromáticas dispostas sobre imagens em movimento ou estáticas, criando peças dignas de galerias expositivas. O começo de “A Terceira Geração” é um deles, com os créditos pulsando no ritmo de uma batida cardíaca enquanto vão sendo apresentados sobre um zoom out que vai descortinando um apartamento com telas, móveis e pessoas.


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“Assassinos por Natureza, Oliver Stone (1994)

Cineasta pautado pelo experimentalismo, Oliver Stone desde seu primeiro longa, “Platoon”, de 1986, sempre soube começar bem um filme. Porém, 8 anos depois, ao invés de tornar-se mais conservador, Stone mostra-se saudável e surpreendentemente ainda mais ousado com o altamente pop e sarcástico “Assassinos por Natureza”. O começo do filme é visivelmente influenciado pela linguagem dos videoclipes da MTV, emissora à época em alta, seja pelos enquadramentos distorcidos, pelo movimento de câmera frenético, pela alteração brusca de ISO ou pela montagem de ritmo musical. Tão musical, que, na cena, o violento casal espanca e mata pessoas em um restaurante com absoluto prazer ao som do punk-rock da L7. 


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“Persona, Ingmar Bergman (1960)

Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Bergman tinha total domínio da narrativa. Porém, a introdução de seus filmes invariavelmente traziam a fonte Times sem serifa sobre fundo escuro. Mas Bergman sabia quando contrariar o próprio estilo, e o profundo “Persona” incitou-lhe a isso. Num conceito de vídeoarte – já existente nas galerias contemporâneas mas pouco exploradas no cinema de arte –, o cineasta funde imagens em alta profusão, usa fotos reais e ousa em enquadramentos e fotografia p&b. Tudo de forma a criar uma atmosfera de sonho e fluidez do tempo/espaço o qual Bergman tão bem constrói naquele que é considerado“o filme mais difícil de todos os tempos”.


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“Cidadão Kane, Orson Welles (1940)

Em seu primeiro longa, o então jovem Welles, com apenas 25 anos, inovava consideravelmente o modo de abrir uma história filmada. Aliás, não somente essa parte, mas em diversos aspectos da linguagem cinematográfica daquele que é ainda hoje para muitos o melhor filme de todos os tempos. Quanto à introdução, mesmo com o título revelado imediatamente ao começo (seria muita transgressão não informar pelo menos isso ao público da época), nunca havia se visto um prólogo in média rés (com o qual se começa uma narrativa no auge da ação antes de começar de novo para explicar como se chegou lá), tão comum hoje. Enigmática (o que será aquele "Rosebud" dito antes do cara morrer?!), a primeira imagem que aparece traz uma placa com a mensagem “No Trapessing” (“Não Ultrapasse”). Era Welles, o mesmo que anos antes havia apavorado multidões com a transmissão em rádio d'"A Guerra dos Mundos", manipulando o subconsciente do espectador.


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“Manhattan, Woody Allen (1979)

Assim como Bergman, Allen tem um estilo geralmente muito próprio de iniciar seus filmes, quase que invariavelmente com legendas em fonte tipo Windsor Light Condensed e uma música inteligentemente bem selecionada para sonorizar. Porém, como o mestre sueco em "Persona", Allen também sabe transgredir a si próprio. Em "Manhattan", ao invés do fundo preto com letterings, ele monta uma pequena sinfonia urbana com uma sequência de imagens documentais e poéticas de sua Nova York num cristalino p&b. A sutileza da forma como anuncia o título (e nada mais que isso), num letreiro luminoso de uma rua qualquer do bairro, prevê a abordagem que será dada aos personagens do filme: todos meras continuações do próprio corpo da cidade. Poesia.


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“Laranja Mecânica, Stanley Kubrick (1971)

Com total domínio do fluxo narrativo, Kubrick é um craque das aberturas. "O Grande Golpe", "O Iluminado" e o já citado "2001: Uma Odisseia no Espaço" são exemplos, mas outro diferenciado neste sentido é "Laranja Mecânica". Uma música feita em sintetizador começa sobre uma tela vermelha até quase 30 segundos, quando finalmente surgem os primeiros letterings numa tipografia Arial negritada. Percebe-se, então, que a tal música é uma versão eletrônica da peça “Music for the Funeral of Queen Mary”, de Henry Purcell, do século XVII. O fundo vermelho se transforma em azul e, de novo, em vermelho para anunciar o nome do filme. Até que, num corte brusco, muda para o close da figura andrógena de Alex (Malcom McDowell), personagem principal da história de Anthony Burgess. Dessa imagem, Kubrick não corta novamente e, sim, a faz prosseguir num travelling frontal-out sob o off do brilhante texto que reproduz o fluxo de pensamento de Alex, o qual situa o espectador do universo de distopia que se verá a partir dali.


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“Arizona Nunca Mais”, Joel e Ethan Coen (1987)

A abertura do segundo e cativante filme dos irmãos Coen, quando eles ainda eram uma revelação, no final dos anos 80, é tão criativa, engraçada, pop e publicitária (no bom sentido), que serve como trailer. A história do assaltante pé-rapado H.I. McDonnough (Nicholas Cage) contada em off por ele mesmo enquanto as imagens vão sendo exibidas com a trilha magistral de Carter Burwell – suas idas e vindas pra cadeia, os personagens bizarros que conhece no caminho – denotam, pelo brilhante texto, principalmente, seu coração bom. O mesmo que o faz conhecer o amor de sua vida, a policial Ed (Holly Hunter). Depois, eles resolvem sequestrar um dos sete bebês da ricaça família Arizona, mas aí é que a história mesmo começa...

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“Alien: O 8º Passageiro”, Ridley Scott (1979)

Lembrando a abertura de "2001", filme ao qual Scott bastante homenageia neste revolucionário terror espacial, tem, assim como na obra de Kubrick, um desenho de cena simples mas muito eficiente. Uma câmera se desloca no espaço da esquerda para a direita em uma panorâmica enquanto veem-se manchas brancas surgirem, as quais vão formando numa uniformidade não-sequencial o nome “Alien” em uma fonte pesada e sem serifa. Não há nos créditos, mas diz que também é obra de Saul Bass.


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“Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, Terry Gilliam e Terry Jones (1975)

Como avacalhar os créditos iniciais de um filme? O grupo Monty Python tem a resposta. Em “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, usando praticamente só tipografia e tela preta, eles conseguem subverter tudo que se imagina de uma opening scene. Sob uma trilha austera, os subtítulos são exibidos, até que, bem abaixo, algumas palavras com caracteres escandinavos começam a aparecer. Frases totalmente desconexas como “Não vai ter feriado na Suécia este ano?” ou uma história esquisita de um alce que mordeu a irmã de alguém. Eis, então, que surge um crédito para explicar o erro nos créditos: “Nos desculpamos pela falta de subtítulos. Os responsáveis foram despedidos”. Muda a música, mas as intromissões continuam, e um novo aviso, agora de que os responsáveis por demitir os demitidos também foram demitidos. Já com uma absurda trilha mexicana, a confusão segue até o fim e, com muito “esforço”, conseguem dar o nome dos diretores: Terry Gilliam e Terry Jones, principais responsáveis por essa bagunça toda.



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“007: O Espião que me Amava”, Lewis Gilbert (1977)

Poderia citar vários tanto anteriores ou posteriores a este filme, mas esta de "O Espião que me Amava" se tornou uma referência dentro da própria franquia. A começar que a abertura com créditos nunca está dissociada do prólogo, que sempre começa com a famosa “gun barrel sequence”, em que um vilão qualquer está olhando por uma mira e vê 007 entrar em cena e atirar contra ele. Depois, os minutos de ação, neste caso, mostrando o agente em duas de suas situações comuns: namorando e se aventurando. Já a abertura em si, assinada pelo mestre Maurice Binder, designer gráfico que estabeleceu o estilo das clássicas aberturas dos filmes de James Bond, consolidaria os elementos que caracterizariam para sempre as chamadas iniciais da série: arte figurativa com efeitos de elementos da história, uso da figura/silhueta de figuras e pessoas - como a do próprio ator que faz JB (Roger Moore à época) -, a fonte Arial fina e branca, o disparo de pistola e, claro, uma trilha especial feita para aquele filme, no caso "Nobody Does it Are Bether", com a Carly Simon – das melhores.


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“Crepúsculo dos Deuses, Billy Wilder (1945)

O sucesso de consagradas comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” e “Quanto Mais Quente Melhor” fez com que Wilder ficasse pouco lembrado por outros gêneros como o suspense e o drama aos quais, contudo, ajudou a solidificar um novo padrão de qualidade na Hollywood dos anos 40 e 50. Este clássico do cinema é uma prova de sua versatilidade, o que deve bastante de seu impacto pela forma como inicia. O modo aparentemente fortuito como o título aparece, numa placa indicando o mítico endereço “Sunset Boulevard”, é precedido por uma câmera em travelling filmando o asfalto cinza na direção de algum lugar específico. É onde está o corpo desfalecido do narrador. Sim! Como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em "Crepúsculo dos Deuses" é o morto, afogado numa piscina, quem está narrando pleno de consciência de seu estado moribundo. Impossível não ter curiosidade de assistir até o fim.



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“Apocalypse Now”, Francis Ford Coppola (1979)

Não há nenhuma palavra escrita dizendo que filme é. Mas nem precisa. O grande plano de uma floresta é aos poucos invadido por helicópteros que cruzam a tela e uma fumaça começa a levantar. Percebe-se, porém, que a fumaça não é de areia, mas, sim, o venenoso napalm. Até que várias bombas caem sobre a mata, provocando gigantescas explosões. A música que toca não podia ser outra: “The End”, da The Doors. É um presságio. É a guerra. É o Vietnã. É “o horror”. Diversas imagens apocalípticas se fundem ao rosto de um homem em close, o personagem principal do filme, o perturbado Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen). A sensação de quebra no tempo perfaz todo o longo filme, que perscruta os mais terríveis meandros psicológicos da guerra.


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“Cléo das 5 às 7”, Agnés Varda (1962)

Outra grande esteta do cinema moderno, Varda pautou toda sua filmografia pela inventividade narrativa e estética, a qual passava por um filtro muito pessoal. Em "Cléo das 5 às 7", seu primeiro longa, fica clara esta criatividade seja na forma como no conteúdo. A mesa de uma cartomante é filmada em plongê mostrando somente o baralho e as mãos dela e da cliente. Os subtítulos em branco são gerados conforme a disposição das cartas sob um silêncio que provoca tensão. Que mensagem as cartas vão dizer? E dizem: a jovem Cléo tem apenas 2 horas de vida, o tempo que o filme transcorrerá: das 5 da tarde às 7 da noite. Varda dá um show em montagem e no jogo simbólico entre cor, que aparece somente quando as cartas são lidas (supostamente, enquanto ainda há vida), e p&b, que domina o filme, marcado pela agourenta previsão que atormentará a personagem.



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“A Pantera Cor-de-Rosa”, Blake Edwards (1963)

Um modo interessante de se abrir filmes – e que fecha muito bem para comédias – é a animação. No entanto, como as da série Pink Panther, não tem igual, principalmente a do primeiro da franquia. A atrapalhada mas elegante pantera de cor exótica criada pelo próprio Blake Edwards virou desenho animado para a TV depois do filme tamanho o sucesso que fez exatamente na abertura do filme, assinada pelos designers e animadores David H. DePatie e Fritz Freleng. Aliás, este é o único momento em que ela, fugindo do ainda mais atrapalhado inspetor Jacques Clouseau, aparece, visto que o nome Pantera Cor-de-Rosa é o de uma pedra preciosa na trama. Além da simpatia da Pantera, ainda tem a infalível trilha do genial Henri Mancini, uma música altamente charmosa e de fácil assimilação, tanto que virou o tema de jazz mais conhecido de todos os tempos.




Daniel Rodrigues

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Não existirá banda para Charlie Watts no céu

por Cláudio Mércio

Observações que eu fazia do mundo mostravam a imortalidade como algo possível. Minha tese baseava-se na presença eterna de algumas pessoas. Seres que estavam presentes antes da minha vida e certamente continuariam presentes depois dela. Vi que minha tese não tinha sustentação quando um dos imortais deixou a vida ir embora. Lembro que quando Frank Sinatra morreu em 1998 eu pensei algo tipo “mas esse cara não era imortal?”. 

Hoje, pouco depois do meio-dia, chegou a notícia da morte de Charlie Watts, o baterista dos Rolling Stones. Vinte e quatro de agosto foi sempre o dia em que Getúlio Vargas deu um tiro no coração. Não terei como esquecer a data da morte de Watts. Morte de Getúlio, morte de Charlie. Os Stones, como Sinatra, estão na categoria dos que eu considerei imortais. Talvez Keith Richards venha a confirmar a minha tese, mas hoje ela está derrubada. Como assim Charlie Watts morreu?!? Este senhor nasceu em dois de junho de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial. Na sua profissão, nunca foi considerado o melhor. Usou heroína. Usou álcool. Teve um câncer na garganta. Deu um soco na cara de Mick Jagger com quem trabalhou desde 1963. Com este histórico, não tinha como morrer. Mas o 24 de agosto de 2021 chegou.

E acho que as coisas vão ser difíceis para Watts. Não vai ser fácil encontrar no céu uma banda para um cara que sempre tocou para a guitarra de Richards. Quando as cordas de Keith inspiram, as baquetas de Watts expiram. Sempre foi assim. E no céu está cheio de bateristas muito bons. Não sei se vai ter espaço para um senhor discreto e de terno bem cortado. De qualquer forma, por favor, enterrem Charlie Watts com tambores e pratos.

CHARLES ROBERT WATTS
(1941-2021)




Cláudio Mércio é professor de Jornalismo na PUCRS. 
Doutor em Comunicação. 
Apreciador de pistache. 
Um cara que considera possível escrever pequenos textos sobre grandes coisas.


segunda-feira, 12 de março de 2018

John Pizzarelli - Porto Alegre Jazz Festival - Centro de Eventos BarraShoppingSul - Porto Alegre/RS (08/03/2018)



Meu amigo Roger Lerina acertou em cheio em sua resenha do show de John Pizzarelli no último dia 8 de março no Centro de Eventos do BarraShoppingSul, dentro da programação especial do Porto Alegre Jazz Festival: Ele "é diversão na certa”. Tocando para um público de meia idade – mesclado salutarmente com alguns jovens mais atentados –, o guitarrista inovou desta vez. Misturando aquele feijão-com-arroz gostoso de standards clássicos como “They Can’t Take That Away From Me” e “I Got Rhythm”, dos irmãos George & Ira Gershwin, com músicas de Nat King Cole e dos Beatles, o músico provou que sabe cativar uma plateia com sua simpatia, com arranjos bem escolhidos e de fácil assimilação pelo público. Seu grupo, apesar de não ter nenhum virtuoso, mostrou ser correto e direto ao ponto, sem firulas. O pianista Konrad Paszkudzki, o baixista Mike Karn e o baterista Andy Watson cumpriram muito bem seu papel de coadjuvantes da grande estrela.

Mas as semelhanças com os shows anteriores terminaram aí. Escorado um scat singing junto com sua guitarra, Pizzarelli usou a técnica aperfeiçoada por George Benson a seu favor. Usando este expediente em quase todos os solos, o guitarrista mostrou ter amplo conhecimento da história de seu instrumento no jazz, circulando pelos estilos dos sóbrios, Jim Hall, Barney Kessel e Herb Ellis num momento e na exuberância do já citado Benson e de Wes Montgomery no outro. Após começar o espetáculo suavemente com as composições dos Gershwin e de seu ídolo King Cole, Pizzarelli apresentou suas novidades. Primeiro, uma versão de “Honey Pie” dos Beatles quase irreconhecível. Na sequência, talvez o grande momento musical da noite, a versão de “I Feel Fine”, de Lennon & McCartney, utilizando-se do tema clássico do funky soul da gravadora Blue Note, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan como base do arranjo.

O virtuoso Pizzarelli e sua competente banda
Em compensação, pra mim soou estranha a versão “bossanovística” de “Silly Love Songs”, dos Wings de Macca. Talvez porque a composição esteja tão entranhada no universo pop que “abrasileirá-la” tenha parecido forçado. Outra novidade foi a apresentação de “Oscar Night”, composta pelo falecido pianista de Pizzarelli, Ray Kennedy, em homenagem a Oscar Peterson. Totalmente instrumental, a música faz um passeio/homenagem pelo estilo do grande pianista canadense, abrindo espaço para todos os músicos mostrarem sua destreza.

A partir daí, o guitarrista chama ao palco o neto de Tom Jobim, Daniel – cada vez mais parecido com o avô – para emular o encontro de Frank Sinatra com Jobim há 50 anos atrás. E se saem bem. Como no disco, as clássicas “Dindi” e “Água de Beber” dividem espaço com “Baubles, Bangles and Beads” e “I Concentrate on You, de Cole Porter, mas Pizzarelli tem o cuidado de acrescentar outras pérolas jobinianas no repertório, como “Bonita”, “Two Kites” e “Wave”. Daniel, pouco à vontade somente ao microfone, deslanchou ao piano e voz. No final, a indefectível “The Girl From Ipanema”, que suscitou mais um dos engraçados comentários do guitarrista sobre a onipresença desta canção no mundo inteiro.

Pra finalizar, o número que Pizzarelli sempre apresenta em sues shows: a homenagem ao seu estado natal, New Jersey, com “I Like Jersey Best”, onde brinca com “as versões” de Bruce Springsteen, Bob Dylan, Paul Simon, Lou Reed, Lou Rawls, Billie Holiday, James Taylor, Bee Gees e, até mesmo, João Gilberto e João Bosco. Um final divertido para um show muito musical. Tudo isso começou com o duo da voz de Dudu Sperb com o piano de Luiz Mauro Filho. Como se esperava, dados os talentos do cantor e do pianista, a noite iniciou maravilhosa com clássicos como "Ilusão à Taa", de Johnny Alf; "Stardust", de Hoagy Carmichael, e da linda "Mistérios", de Joyce. Primeiro, a sobriedade gaúcha armando a plateia para a animação de John Pizzarelli. “Volte logo, Pizza”, como disse meu querido amigo Sepeh de los Santos.

Porto Alegre já está aguardando o retorno de Pizza

por: Paulo Moreira
fotos: Opus Promoções