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domingo, 11 de agosto de 2013

cotidianas #239 Especial Dia dos Pais - A Bicicleta


São interessantes as recordações que se têm dos pais. Estas vêm à mente de forma pessoal e carinhosa, quanto mais quando bem vividas, o que ocorreu em vários momentos entre eu e meu pai, o velho Antonio Carlos, que se foi deste plano há pouco mais de quatro anos. A tal bicicleta a que me refiro no título, que provavelmente à maioria dos filhos seria lembrada por conta da vez em que seu pai o ensinou a andar de magrela, no meu caso, não é bem assim. Aliás, nem é este tipo de bicicleta. Desta, a minha bicicleta (ou melhor, a dele), tenho lembrança por causa de um acontecimento ocorrido em uma tarde qualquer no bairro em que me criei e onde ainda vivo, a Intercap, em Porto Alegre.
 Jogávamos bola eu e meus amigos como fazíamos religiosamente por puro prazer e sadia vagabundagem todo santo dia. Escola de manhã, futebol à tarde; certo. Não éramos muitos naquele dia, uns quatro ou cinco no máximo. Meu irmão, se a memória não me falha, coincidentemente, não estava. Nesta época, o campinho em que jogávamos, afetuosa e sarcasticamente por nós intitulado de Lixa Munumental Stadium, ou simplesmente Lixa, era ainda um terrenão aberto de piso de areão muito áspero que, como uma lixa, relava a pele de qualquer um que caísse no chão e era repleto de mato rasteiro ao lado oposto à rua perpendicular à da minha casa e cujas dimensões não eram nem de um campo oficial, para 11 jogadores, nem de futebol sete, tal como ficou depois que a Prefeitura transformou seu entorno em praça, incorporando-o ao espaço público. Havia duas goleiras feitas de pedaços de pau pregados e tamanhos desiguais de cada lado do campo, suficientes para que dois times jogassem um contra o outro, e isso era mais que suficiente para a nossa alegria. Eu tinha uns 12 ou 13 anos.
Como não éramos muitos naquela tarde, usávamos apenas uma das goleiras, a que dava de costas para a minha rua. Lá pelas tantas, fim de tarde, vi subindo-a, acompanhado de algum amigo que não recordo quem, meu pai. Vindo do trabalho, provavelmente descera na Av. Ipiranga e caminhara as cinco quadras até a praça em direção à nossa casa, uma quadra a mais dali. Muito querido e respeitado por minha turma de amigos, foi cumprimentado com apreço pela gurizada, pois era, de fato, uma figura simpática e brincalhona mas que não escondia, sempre que podia, uma boa dose de autoconvencimento. Se “achava” para algumas coisas seu Antonio, o que era folcloricamente engraçado. Não à toa, pois em torno de sua figura se formaram certas lendas entre os amigos e conhecidos que ouvíamos frequentemente. Uma delas era a de que jogara, na juventude, no linguajar futebolístico, “muita bola”. Os amigos que o viram jogar nesta época o reverenciavam, relembrando partidas em que sua atuação fora fundamental para a vitória em peleias inesquecíveis na tal “Sede”, um outro campo também encravado em um terreno baldio do bairro mais adiante dali e igualmente transformado em praça tempo depois, porém este realmente com tamanho de campo oficial e com um pouco mais de estrutura que a Lixa. Por causa disso, na Sede se disputavam concorridos campeonatos da região nos anos 70 e 80, e meu pai atuara, pelo que se dizia, com brilhantismo de craque nestes tempos de ouro.
A aura mítica recaía não somente sobre meu pai. Outros contemporâneos de peladas dele também mereciam elogios, como o Caio (também morto faz alguns anos), de quem se dizia ter a cobrança de falta mais apimentada da Intercap: dava apenas dois passos de distância para a bola, suficientes para desferir um chute forte e indefensável no ângulo do arqueiro. Mas era meu pai quem mais empilhava lendas da bola no arrabalde. Era comum eu e meu irmão ouvirmos dos amigos jurássicos, invariavelmente admiradores: “Jogava muito o nêgo Antonio!” ou: “Batia um bolão o teu pai, hein?”. Vi-o jogar uma vez, ao que me lembro, anos mais tarde, final dos anos 80, na sede campestre dos funcionários municipais, na Zona Sul da cidade (longe da minha casa, que fica na Sudeste), como zagueiro, curiosamente a mesma posição minha, porém, ele no lado direito do campo, e eu, canhoto de perna como meu irmão, no esquerdo. Ao que recordo de minha cabeça dispersa de piá que estava lá mais interessado em passear e tomar um refrigerante no bar, a atuação dele foi segura e sem rodeios.
Voltando àquele fim de tarde, meus amigos e eu, gurizada arreada e sempre pronta para tirar sarro de qualquer coisa, tinha respeito por meu pai, mas não a mesma veneração que os mais velhos lhe imputavam, pois mantínhamos certo ceticismo com tais fábulas. Batíamos aquela bolinha ali despretensiosamente e, se não me engano, no momento em que meu pai apontou, um dos nossos, metido a boleiro, tentava dar uma bicicleta. Até conseguia a seu jeito, pedindo para que o outro repetisse o cruzamento para que ele emendasse, novamente, aquela virada no ar com os pés trocados num chute em direção ao gol. A cena fez despertar o Antonio convencido. Putz! Imediatamente ele se despediu do tal amigo (ou o deixou esperando) e veio até nós. Largando a bolsa de trabalho no pé da trave, disse-nos no seu saudoso tom de “sabe tudo”:
- Isso não é bicicleta! Vocês não sabem nada! Bicicleta se pula com as duas pernas no ar. Agora vou mostrar pra vocês o que é uma bicicleta!
Meio incrédulos, nós, entre risos desconfiados e irônicos, acatamos. Pensávamos igual, mesmo sem precisar falar: “o que esse véio vai fazer caindo de costas no chão vestido de calça social, sapatos e camisa? Decerto vai ‘furar’ na bola, espirrar o taco ou mandá-la longe do gol!” Tudo nos levava a crer que aquilo daria em trapalhada...
- Vai lá, – mandou para o que estava com a bola – cruza aqui na área pra mim. Cruza alto! –pontuou, apontando para cima de sua cabeça cerca de um metro acima e na direção oposta ao gol.
Meu pai, já de costas para o goleiro, posição em que poderia executar a tal bicicleta desacreditada, aguardava o passe. Obediente, o guri rolou levemente a redonda no areão na ponta esquerda para dar impulso e a lançou para a área. Alto, como pedira. Num movimento incrivelmente perfeito, como só um Zico, Pelé ou Leônidas da Silva (criador do lance) executariam, seu Antonio tomou impulsão e voou de costas cerca de um metro e meio do chão. Pernas totalmente esticadas para alcançar a bola lá naquela altura. E alcançou. Com precisão, acertou-a com o bico do pé direito, o qual era acompanhado simultaneamente pelo esquerdo, que, como ele apregoara teoricamente, teria de subir junto e ao mesmo tempo que o outro pé. O chute? Saiu como um canhão. Pegou na trave superior tal um tiro, balançando a madeira falseante, ricocheteou com quase a mesma velocidade no chão e foi parar dentro do gol. Tudo muito rápido. O goleiro, congelado, nem se mexeu. Como se diz na gíria do futebol, nem viu a cor da bola. Um golaço.
Embasbacados, vimos meu pai, faceiro e inflado, levantar-se com as costas todas sujas da areia rosada do campinho e com os fundilhos da calça rasgados. Não importava. Nós, guris, nem nos atrevemos a fazer gozação por causa da calça tal impressionados que ficamos com o que presenciamos. Calou-nos a boca. E a ele importava menos ainda, pois sua satisfação em ter executado com tamanha perfeição aquele malabarismo e nos dado a lição certamente lhe deixara nas nuvens para o resto do dia.

Esta imagem tão remota me veio esta semana como um presente e uma homenagem que gostaria de prestar no Dia dos Pais ao saudoso seu Antonio, colorado passional como eu e meus irmãos, que com certeza ficaria muito contente de saber que relembro deste episódio. Definitivamente, cada filho tem a memória da bicicleta que merece.



terça-feira, 19 de junho de 2018

cotidianas #573 - Pinga



Torcedores mexicanos tirando o uniforme do jogador Tostão
na final da Copa do Mundo de 1970
Eu tomo pinga
Eu não sei o que é melhor pra mim
Eu tomo pinga
Mesmo já sabendo o que vai dar no fim
Eu tomo pinga
Será que eu tô gostando de viver assim?
Eu tomo pinga
Será que isso é bom ou ruim?

Aah... Aah....

Se eu fosse o Pelé tomava café
Se eu fosse o Tostão tirava o calção
Se eu fosse o Dario pulava no rio
Se eu fosse o Garrincha não pulava não


Eu tomo pinga
Eu não sei o que é melhor pra mim
Mesmo já sabendo o que vai dar no fim
Será que eu tô gostando de viver assim?
Será que isso é bom ou ruim?


Aah... Aah....

Se eu fosse o Pele...
Se eu fosse o Tostão...
Se eu fosse o Dario...
Eu não pulava não, eu não pulava não


****
"Pinga"
Pato Fu
(John Ulhoa)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Coluna dEle #15 - Revelações 2010


Galera, Comigo não tem dessas de previsão, tarô, búzios, numerologia, até porque Eu não preciso disso. Eu SEI o que vai acontecer e vou, aqui neste prestigiadíssimo blog revelar a vocês os acontecimentos do ano que recém se inicia:

REVELAÇÕES 2010
  • Não é querer ser urubuzento mas tenho que contar a vocês que em 2010 vão rolar aí umas catástrofes naturais matando neguinho adoidado. Tsunamis na Indonésia, terremotos no Japão e enchentes aí no Brasil;
  • Também não posso deixar de lhes contar que outro avião vai cair e a tripulação inteira vai morrer. Outras aeronaves também vão pro chão (e pra água) mas teremos variações: em alguns casos morrerá a metade, em outros casos só um ou dois e em outros Eu intercederei e vai sair todo mundo na boa;
  • Também teremos terroristas, mas que não terão sucesso em aviões. No entanto, haverá um atentado suicida matando civis cuja autoria será reivindicada pelo Al-Qaeda;
  • Fãs, preparem-se porque vou trazer pra cá pra cima um grande nome da música, mas não revelarei agora pra vocês não saírem comprando discos que nem loucos;
  • Em compensação uma grande banda vai se reunir pra uma turnê e vai se apresentar na América do Sul, inclusive no Brasil. Só vou avisando que é só caça-níqueis, viu. Eles estão todos duros e vão desembarcar aí porque sabem que vocês ainda pagam pra ver. Mas... vai quem quer.
  • Também vem aqui pra cima um grande nome do cinema. Todos lamentarão mas vão acabar concordando que já estava na hora. A vantagem é que os canais de TV e as salas de cinema vão fazer ciclos especiais;
  • No BBB a Globo vai manipular de novo o resultado do troço mas vocês vão acreditar que deu o que vocês queriam. No fim das contas AFIRMO, com certeza que pelo menos uma paticipante gostosa vai posar nua para a Playboy;
  • Em ano de Copa do Mundo, como o que mais recebo são preces, orações, e-mails, bilhetes, scraps pedindo pro Brasil ser campeão vou lhes contar o que vai acontecer: A Seleção terá dificuldades no primeiro jogo por nervosismo mas vai ganhar, depois melhora e passa com alguma facilidade pela primeira fase; terá um confronto dificil nas 8as. ou nas 4as. mas posso assegurar que é uma das favoritas ao título. Mais que isso não posso dizer. Já Me "acusam" de ser brasileiro, imagina se Eu adianto alguma coisa mais concreta;
  • A propósito de futebol, aí do Brasil, um clube de São Paulo ganhará uma das competições nacionais e no Campeonato Brasileiro com certeza um dos gaúchos será vice e pelo menos um carioca brigará pra não cair. É batata!;
  • Ainda no mundo da bola, um craque revelação do futebol brasileiro será vendido para o exterior por cifras que parecerão grande coisa para vocês mas que não farão nem "cosquinhas" no bolso dos europeus. Por conta da saída de jogadores na "janela" de transferências comentariastas chatos vão lamentar o baixo nível técnico do futebol nacional e blablablablablá;
  • E quanto à outra paixão da galera aí no Brasil, o Carnaval; no Rio, debaixo de muita chuva a Beija-Flor vai ganhar (de novo). É, não posso fazer nada. E na Bahia, Ivete Sangalo pulará uma semana inteira, sem dormir, em todos os trios-elétricos possíveis, só parando pra dar de mamar à sua cria, isso se parar;
E ainda:
  • Explodirá mais um grande escândalo financeiro na esfera política brasileira;
  • Lula vai continuar falando besteira mas sua popularidade vai continuar alta;
  • Caetano dará uma declaração polêmica;
  • Pelé terá um desentendimento verbal com Maradona;
  • Não será este ano ainda que um filme brasileiro ganhará o Oscar de Filme Estrangeiro;
  • O verão vai ser de muuuuito calor;
  • A Coréia do Norte vai cotinuar, sim, fazendo testes nucleares;
  • Os EUA não vão arredar mesmo o pé do Iraque;
  • E, não tem jeito, Israelenses e Palestinos vão continuar se matando.
Espero não ter feito o ano perder a graça. Fiz?

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Depois disso tudo, quem tiver dúvidas, perguntas, questões, interpelações, medos, temores, desesperos,
manifeste-se pelo e-mail: god@voxdei.gov

Que Eu lhes abencôe e fiquem Comigo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

"Barbosa", de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988)

 


O Medo do Goleiro Diante da Vida

por Daniel Rodrigues

"Eu já pensei naquela bola um milhão de vezes". 
Barbosa


Cult movie por excelência, o filme “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, primeiro longa do genial cineasta alemão Wim Wenders (1972) tem como protagonista uma figura dificilmente destacada e, por isso, raramente observada: o arqueiro de futebol. Aquela máxima futebolística de que “goleiro só é lembrado quando acontece coisa ruim” serve de mote simbólico para a vaga trama escrita pelo jovem Wenders à época do nascente cinema novo de seu país. A invisibilidade do goleiro ante os outros 10 jogadores de seu próprio time, tão atletas quanto ele, pelo simples fato de jogar diferente e estar “lá atrás”, onde o olhar de ninguém está direcionado, funciona como uma metáfora para a saga do personagem Joseph Bloch (Arthur Brauss), um jovem alemão cético, narcisista e sem propósitos na vida. Era um reflexo de toda uma geração de artistas da terra de Goethe fruto do pós-II Guerra, que arrasou a Alemanha física e moralmente, e que vazou para todas as artes, inclusive cinema.

Claro que essa situação de angústia existencial e esvaziamento de nexos gera aquilo que o título do filme de Wenders evidencia: medo. Uma nação enganada pelo fascínio do nazismo como a alemã e que viu, após anos de destruição, suas bases morais e materiais ruírem, só poderia mesmo carregar consigo muita culpa e ilogicidade. Isso, na Alemanha, repleta de história, industrializada, rica e um dos berços da cultura ocidental. Agora imagine uma nação jovem, colonizada, pobre, fortemente rural e forjada sobre bases escravocratas como o Brasil da primeira metade do século 20! Dá para imaginar como um goleiro no futebol brasileiro era tratado. Só existem duas possibilidades: ou ele defende tudo e é um herói ou, se deixa escapar uma bola que seja, vira vilão. Caso de “Barbosa”, personagem do filme semidocumental de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988).

Assim foi a vida de Moacyr Barbosa Nascimento, goleiro mítico do Vasco da Gama desde 16 de julho de 1950: a de um vilão. O fatídico dia do Maracanaço, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo daquele ano para o Uruguai dentro de casa, em pleno Maracanã superlotado de todas as almas nacionais, é também o dia que se decretou a morte simbólica de um jovem de 29 anos até a sua partida material em 7 de abril de 2000. O medo do goleiro, abstrato na obra de Wenders, foi, no entanto, totalmente real para Barbosa. O medo da culpa. A responsabilidade da frustração de uma nação inteira recaiu sobre os ombros daquele jovem, não coincidentemente negro e de origem pobre.

O injustiçado Barbosa em cena do filme de Furtado

Refém de um povo imaturo e preconceituoso, Barbosa levou toda a responsabilidade pela tragédia. Haveriam de achar um “bode expiatório”, e melhor que esse fosse uma figura vulnerável: um jogador entre os 11, negro e “sem defesa” (como as palavras podem ser cruéis e certeiras em certas situações...). A opinião pública, frustrada pois pouco madura para administrar a própria expectativa, não teve nenhum preparo para absorver uma derrota que aconteceu dentro das quatro linhas. A “intelligentsia” brasileira, tão infantil quanto, não só se eximiu de ajudar como inflamou mais os ânimos. Nelson Rodrigues, em cima do lance, cunhou o termo do “complexo de vira-lata”: “entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.”

No curta-metragem (Melhor edição no Festival de Gramado e Melhor filme de ficção no Festival de Havana), o próprio Barbosa, uma figura tristemente triste, queixa-se em entrevista do estigma que o imputaram e do qual nunca mais conseguiu se livrar. Motivado pelo trauma da infância, o personagem fictício vivido por Antônio Fagundes volta ao passado numa máquina do tempo para tentar promover uma correção histórica. Mas a história é mais implacável e dura do que a consciência do herói do futuro. De certa forma, denota-se que o Brasil de 1988, quando o filme foi filmado, ainda não havia compreendido maduramente o episódio da Copa de 50 e, consequentemente, elaborado a injustiça para com Barbosa. Por autocondenação, por “síndrome de vira-lata”, por egoísmo, por imaturidade. Por racismo. Se a ressaca que acometia Arthur do filme de Wenders era por algo que sua nação havia feito, a de Barbosa, muito menos subjetiva, era por algo que a nação não havia tido condições de fazer.

Fagundão voltando no Brasil dos
anos 50 pra tentar impedir o pior
Afora isso, para quem acompanha futebol e tenta compreender sua evolução tanto tática quanto física e até aerocinética dos corpos, é ainda mais exagerada a culpabilidade de Barbosa. Ele não pegou aquele chute do uruguaio Giggia por motivos plausíveis até hoje, mesmo transcorridas mais de sete décadas. A começar, a bola foi entre a trave e o seu corpo, o que dificulta um movimento curto lateral e para baixo. O atacante Bebeto, tetracampeão pela Seleção, valia-se deste "macete" contra os goleiros, de meter na menor distância, geralmente com sucesso. Segundo, porque a bola veio rente ao gramado, rápida e na diagonal, ou seja, menos de milésimos de segundo de visualização por parte do arqueiro. E terceiro: passou rente à trave. Para pegá-la, um goleiro provavelmente precisaria se estatelar na própria goleira e talvez nem assim resolvesse. Um lance como aquele renderia uma defesa difícil até hoje, mesmo com toda a evolução técnica e física dos goleiros. Para uma época ainda primária do esporte bretão, em que muitos gols saíam de jogadas absurdas, muitas vezes dos próprios goleiros, não dá para considerar aquela jogada do segundo gol do Uruguai como uma falta grave de Barbosa e muito menos um "frango". Impossível de pegar? Hoje, não. Talvez naquela época também não, mas com certeza é aceitável tanto antes quanto agora não receptá-la. Na verdade, ocorreu o que o brasileiro dificilmente admite: mérito do adversário, e não demérito seu.

É mais forte do que qualquer raciocínio ponderado, no entanto, a depreciação de uma nação pueril que acreditou, por falta histórica de ferramentas para um auto entendimento, na falácia darwinista do evolucionismo. Povo mestiço: então, necessariamente "inferior", "incapaz", "indolente", "imprestável". Era o que se ouvia das bocas (in)cultas de Gobineau, Monteiro Lobato, Oliveira Viana, Roquette-Pinto. Interessante perceber que o filme de Furtado e Ana Luiza se dá na época da “seca” do Brasil em Copas do Mundo (o que só seria “superado” dali quase a 10 anos, em 1994, com a conquista da Copa nos Estados Unidos) e que termos como os ditos antigamente voltavam à baila. Basta ver a música “Inútil”, da Ultraje a Rigor, de 1985, que, criticando o ser brasileiro, repete o adjetivo inclusive para associá-lo ao futebol: “A gente joga bola e não consegue ganhar”.

Acontece que as razões para a autodepreciação do brasileiro para consigo mesmo é muito mais profunda do que apenas derrotas ou vitórias dentro de campo. No máximo, esses resultados do esporte são reflexos, mas nunca derrocada ou muito menos solução. Nelson Rodrigues, ingenuamente, afirmava que a “síndrome de vira-lata” se dissipara quando, oito anos depois daquele fatídico jogo no Rio de Janeiro, a Seleção Brasileira vencera a Copa do Mundo na Suécia. Mera ilusão. A valorização como povo e, principalmente, o reconhecimento de suas capacidades como nação única e indivisível ainda está longe de ser alcançado no Brasil do séc. 21. A extrema polarização política que se deflagrou no País há menos de uma década dá motivos para se pensar assim. Em 1958, Pelé e Garrincha nos deram arte, mas não resolviam quase nada. Tanto que o Brasil seria lindamente tricampeão em 1970 sob a sombra do pior momento político-social da sua história, quando as liberdades e os direitos humanos eram barbaramente infligidos pela Ditadura Militar. Isso sim é degradação moral.

A reparação história a que Barbosa fora merecedor pelo massacre público a que foi objeto nada mais é, noutra escala, do que o sistema de cotas e as políticas para corrigir as discrepâncias e erros cometidos com negros excluídos da sociedade. Barbosa morreu sem presenciar o Mineiraço, os 7 x 1 da Seleção da Alemanha sobre a do Brasil na segunda Copa do Mundo no Brasil. Talvez ele pudesse perceber que hoje em dia, um pouco mais madura 64 anos depois, a responsabilidade não é atribuída a apenas uma pessoa. Talvez tivesse ficado um pouco confortado. Mas com certeza seu olhar sofrido e perspicaz teria notado também que o goleiro, tão pouco culpado quanto ele, era branco. E aí, é bem mais fácil de lidar.

filme "Barbosa", de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988)



sexta-feira, 15 de maio de 2015

A guitarra de B.B King e a maior luta de boxe do século


B.B. King foi para o Blues aquilo que Muhammad Ali foi para o boxe e Pelé no futebol. Era um cara que tocava sua Lucille sem fazer distinção ou ter preconceito de gênero. Tocou com artistas do Pop ao Soul, "rifou e solou" do rock ao Jazz. Influenciou um caralhada de monstros na guitarra como: Eric ClaptonGeorge HarrisonJimi HendrixJeff Beck, Buddy Guy, Johnny Winter, Otis Rush e John Lennon, este último, que confessou certa vez que seu maior sonho era tocar guitarra com King.
B.B. King é considerado um dos três maiores guitarristas de todos os tempos. Um dos primeiros DVD's que eu tive na vida, foi do épico show de King no Zaire (atual Congo), onde aconteceu o "Live In Africa”, em setembro de 1974. O guitarrista tocou para 80 mil pessoas naquela que é considerada sua apresentação antológica. O show era uma prévia para a maior luta de boxe de todos os tempos, a "The Rumble in the Jungle", a disputa do cinturão dos pesos pesados entre George Foreman e o campeão mundial Muhammad Ali, ocorrida no mesmo país e ano pouco mais de um mês depois.
A luta durou 8 rounds, onde Ali e Foreman se digladiaram como num coliseu romano. Ali que vinha de uma longa parada, era acostumado a rounds médios e longos e Foreman, que era o atual campeão e estava em perfeita forma, costumava derrubar seus adversários logo no primeiro ou segundo assalto. Na luta, Foreman arrancou com tudo e Ali inteligentemente deixou seu oponente bater. A famosa esquiva do lutador entraria em ação entre diversas “trocações”.
Os rounds ficavam intermináveis para ambos lutadores e incendiavam a plateia local e do mundo inteiro. Foreman levou vantagem o tempo todo. Se a luta terminasse naquele momento, ele seria o campeão. Mas Ali usou sua segunda estratégia e começou a provocar Foreman na luta, gritando: "Come on, Mother Fucker! É só isso que você sabe fazer?!”. Foreman se desestabilizou psicologicamente. Cansado de tanto bater o atual campeão ia para o último assalto com seu físico e psicológico comprometidos. No ultimo round, Foreman reuniu suas forças para tentar um trunfo, mas logo sucumbiria a uma sequência fatal do famoso soco de direita de Muhammad Ali, aquele a quem antes se chamava de Cassius Clay.
Salve “King” Clay. R.I.P, my nigga King.


B.B. King
(1925-2015)




terça-feira, 7 de junho de 2011

cotidianas #85 - NOMES


"Nome", Arnaldo Antunes
Essa coisa dos nomes das pessoas é algo que pode ser muito curioso às vezes. Uma amiga me contou que certa vez, tendo levado seu filho pequeno a um posto de saúde, aguardava na sala de espera a chamada pelo nome do menino e entre Felipes, Vitórias, Pedros e Alices, de repente a enfermeira põe a cabeça pra fora da sala e sai com um "Micarráquinem da Silva". Micarráquinem da Silva??? Pode?

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Pais são fogo. Se forem pobres, então, são um perigo. Não é preconceito, é conceito formado baseado em observação. Notem como na maioria das vezes estes nomes de homenagem a personalidades importantes, a personagens de novela, aquelas combinações malucas do nome do pai com o da mãe normalmente vem das classes mais baixas. É duro dizer mas é verdade. O meu mesmo, que não é nenhum absurdo mas também não é la comum, é uma homenagem a um jogador dos anos 70 que eu nem sei em que time jogava. Mas gosto dele. gosto mesmo. O problema é que ninguém consegue pronunciar direito e eu sempre tenho que repetir mais de uma vez.

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A propósito de nome de jogador, houve uma obra e que eu estava trabalhando onde me pareceu um Hideraldo. Um dia estava conversando com ele num intervalo qualquer e perguntei se o nome era por causa do Hideraldo Luís Bellini, jogador da Seleção Brasileira de 1958. Ele então, 'caindo a ficha', respondeu, "ah, bem que eu sabia que o meu nome tinha a ver com o de algum jogador". Expliquei pra ele de quem se tratava, que o Belllini tinha jogado em 58, que tinha sido o primeiro jogador brasileiro a levantar a taça e que até tinha uma estátua dele em frente ao Maracanã. Acho que ele gostou de saber que o nome era mas importante do que jamais imaginara.
Mas esse Hideraldo não tinha nada lá muito a se elogiar: dias depois já começou a faltar, outro dia chegou bêbado e logo depois sumiu levando o uniforme e a botina da empresa.

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Ainda sobre jogadores de futebol teve um cara que registrou o filho com os nomes de todos os titulares da Seleção brasileira de 70. Sério!
Félix Carlos Alberto Brito Piazza Everaldo Clodoaldo Gérson Pelé Jair Tostão Rivellino... de Souza, da Silva, Pereira ou qualquer coisa assim.

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Na época que eu tinha um time de bairro, de futebol sete, mesmo tendo o time base, aqueles de fé, volta e meia rolava uma certa rotatividade e alguma dispensa ou inclusão acontecia. Sempre que ficávamos sabendo de alguém com futebol interessante, com potencial, com qualidades, dávamos uma conferida, chamávamos pra bater uma bola informalmente e íamos, por assim dizer, negociar a contratação. Assim que soubemos por um dos nossos jogadores que um carinha novo que tinha ido morar numa vilinha perto do campo onde jogávamos era bom de bola, jogamos uma pelada de fim de tarde, comprovamos a categoria do sujeito e o convidamos pra jogar conosco. Como ele era novo no bairro, não tinha compromisso com outro time, fechou com a gente mesmo. Era conhecido por João porque era assim que chamava às pessoas de quem não sabia o nome, mais ou menos como o Garrincha se referia às suas 'vítimas', de quem nem valia a pena saber o nome porque eram todos iguais e iam ficar estatelados no chão mesmo. Todos uns Joões! E ele preferia que fosse assim uma vez que era sabido que não gostava do próprio nome. No máximo permitia que lhe chamassem do segundo nome, Vinícius. Durante muito tempo chamamos aquele cara apenas de João sem saber  efetivamente qual o seu verdadeiro nome, até porque coisas como esta no futebol de rua, de bairro, de amigos, não fazem a menor diferença. Mas um dia deu de haver um campeonato e ser necessário uma inscrição e aí o João teve que revelar seu nome: "Alcione Vinícius", revelou ele contrariado.
Alcione...
- Tenho a maior bronca do meu velho por causa disso. - dizia ele.

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Soube também de um caso interessante: os pais, tendo alguma 'inspiração' daquelas de gosto bastante duvidoso resolveram botar no filho quando nascesse um nomezinho, no mínimo, complicado. Como desta história não sei detalhes vou chamar o garoto de Athaualpakauê, Ok? 
Então... O fato é que ninguém conseguia aprender nem pronunciar o nome do futuro bebê. Nem avós, nem tios, nem amigos, ninguém. Passou-se a gestação inteira com o nome decidido e com as pessoas quase engolindo a língua para falar o nome da criança que estava por vir. Atapauê, Atacapalauê, Atanásio Cauê. Deu-se então que nascida a criança, e com os pais entendendo a dificuldade dos parentes, as complicações que poderiam acontecer na escola, na vida social e tudo mais, tiveram bom senso e resolveram mudar o nome. O pai saiu da maternidade e foi registrar então o filho com o nome mais comum, digamos José, por exemplo, de modo a facilitar totalmente pra todo mundo. Mas aí era tarde demais: todos, apesar da dificuldade já tinham aprendido, acostumado, comprado presentes, toalhinhas, babadores, caminhas, brinquedos gravados com o complicadíssimo nome antigo e por pior que fosse já estava consagrado. Aí que mesmo registrado José, é chamado e conhecido pelo nome que era pra ser mas que acabou não sendo. Athaualpakauê.

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Cly Reis

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

"Sexta-Feira 13", de Sean S. Cunnigham (1980) vs. "Sexta-Feira 13: Bem-Vindo a Crystal Lake", de Marcus Nispel (2009)



Alguns jogadores transcendem seus clubes e, de certa forma, são tão grandes que acabamos associando o time a eles de maneira indelével. Quando pensamos em Santos, inevitavelmente lembramos de Pelé, se falarmos em Barcelona, não tem como não pensar em Messi. Do mesmo modo, cinematograficamente, quando falamos em Sexta-Feira 13, não tem como não lembrar de Jason Vorhees. Mas nem todo mundo lembra que o primeiro "Sexta-Feira 13", lá de 1980, não tem o icônico assasino da máscara de hóquei. Quem mata no primeiro filme da franquia é a mãe, Pamela, vingando a morte do filho causada por irresponsabilidade de jovens monitores do acampamento de Crystal Lake. Assim, curiosamente, no confronto "Sexta-Feira 13" (1980) versus "Sexta-Feira 13: Bem-Vindo a Crystal Lake" (2009), o favorito joga desfalcado de sua principal estrela. Mas o time original não sente muito o desfalque. Parte para o ataque e a mamãe assassina dá conta do recado com bons recursos (machado, facão, arpão) e ótimas mortes, sustentadas pelos ótimos efeitos especiais de Tom Savini, craque na matéria. 

A nova versão, por sua vez, não é um bem um remake, embora recupere alguns fatos do original como a morte por decapitação da mãe de Jason, por exemplo. No reboot, vinte anos depois da primeira série de crimes, um grupo de jovens, informado sobre uma possível plantação de maconha, vai a Crystal Lake e acaba aniquilado por Jason, com exceção de uma garota que é capturada por ele e mantida em cativeiro. Algum tempo depois, o irmão da garota também segue para o local, acompanhado por um grupo de amigos, desta vez para procurar a desaparecida e, logicamente tudo o que temos são mais vítimas para o "nosso herói".


"Sexta-Feira 13" (1980) - todas as mortes


"Sexta-Feira 13: Bem-Vindo a Crystal Lake" (2009) - todas as mortes


O fato de contar com o nosso maníaco favorito desde o início não traz nenhuma vantagem para o novo filme. Muito pelo contrário, o torna óbvio e previsível. Embora, de um modo geral, nenhum dos dois filmes tenha nada de especial e ambos não passem de um banho de sangue, a presença revelada de Jason o tempo todo na nova versão faz com que não tenhamos nenhum expectativa diferente do que imaginemos que deva ser. Ele vai matar esse, aquele, aquele outro, o casalzinho fazendo sexo e assim por diante. No original, de 1980, pelo menos, num primeiro momento, existe a dúvida sobre quem está comentendo os crimes, e o próprio ritmo do filme, posteriormente tão copiado em filmes slasher, era, ainda então, algo um tanto instigante para o espectador. Já no novo, a figura de Jason num acampamento, numa cabana, no mato, com um facão na mão, um monte de adolescentes, peitos de fora, correria pela floresta... é o mais do mesmo de todas as outras desgastadas e cansativas sequências que a franquia original teve.

O que temos é uma vitória fácil e incontestável do filme de 1980. Um gol pelo pelo bom desenvolvimento da trama (dentro das limitações do gênero e considerando sua época, é claro); outro para o conjunto e variedade de mortes, de tudo que é tipo e com todo tipo de instrumento; outro para os efeitos especiais que mesmo antiguinhos, com menos recursos que os atuais, ainda são bem impressionantes; e mais um Pamela Vorhees que mesmo no curto período em que aparece em cena, cumpre bem seu papel e é simplesmente perturbadora com aquele seu "Mate ele, mamãe!", imitando uma vozinha de criança. A bela atuação de Betsy Palmer, como a mãe mortal, no entanto, é manchada (de sangue) quando ela perde a cabeça, no final, e deixa o time com um a menos. O time de 2009 aproveita a vantagem numérica e a boa forma de Jason, mais fininho e em boa forma, e desconta com um golzinho pela cena em que o serial-killer faz uma espécie de churrasco num casulo, assando uma garota numa fogueira, pendurada num saco de dormir. Mas fica nisso.

Garoto promissor. Jason aparece só no finalzinho 
do filme original mas já guarda o seu.


 Ainda dá tempo de, no apagar das luzes, levar mais um de um garoto que já despontava como uma grande revelação. O jovem Jason entra no finalzinho, dá o bote, puxa a marcação e surge por trás da zaga mergulhando com tudo para botar pro fundo. Esse tem tudo pra ser um grande matador.

Fim de jogo em Crystal Lake.

Um massacre! 5x1.

O filme de 1980 nem precisou de sua principal estrela para trucidar o adversário.
Parece que o Jason do filme de 2009 mascarou.



Jogo pegado, jogadas bem violentas mas o original, mais afiado,
soube usar as pontas (de facas, arpões, machados...)
 e matou o jogo sem maiores problemas.



por Cly Reis

segunda-feira, 5 de julho de 2021

"Hachiko Monogatari", de Seijirô Kôyaman (1987) vs. "Sempre a Seu Lado", de Lasse Hallström (2009)




Pelé e Coutinho, Bebeto e Romário, Assis e Washington, Gullit e Van Basten, Maradona e Careca... Duplas perfeitas, companheiros feitos um para o outro, parceiros que se conheciam só pelo olhar. Assim como essas duplas lendárias do futebol, no universo do cinema, uma delas também encantou o público e produziu alguns momentos mágicos e inesquecíveis: Hachi e o Professor (seja o de agronomia da versão original, ou o de música, da refilmagem americana). Embora não sejam exatamente uma dupla de ataque, como as mencionadas acima, uma vez que nenhum dos dois, com seus temperamentos dóceis e cordatos, jamais atacariam alguém, a comparação se justifica pelo entrosamento e pela sintonia entre os dois.
Embora a história seja um pouco diferente em alguns pontos, tanto em "Hachiko Monogatari", de 1987, quanto em "Sempre a Seu Lado", de 2009, o que acontece é que um professor universitário adota um cão da raça akita e entre eles se desenvolve uma amizade acima de qualquer barreira. Qualquer barreira, mesmo! Até mesmo da morte, uma vez que, mesmo depois que o dono morre, durante um aula, Hachi continua o esperando na estação de trem, que foi o último lugar onde vira o amigo, embarcando no trem para lecionar em outra cidade. A diferença fundamental entre as versões, está no fato que, no primeiro, o cão é dado ao professor Uono, como um presente, e, no remake, ele é encontrado pelo professor Parker, por acaso, na estação de trem, perdido de sua carga original que iria para outra cidade.
Ainda que o filme original seja mais fiel à história verídica do cão fiel e seu dono falecido, ocorrida nos anos 1920, na cidade de Shibuya, no Japão, a versão adaptada americana funciona melhor cinematograficamente e o acaso do extravio, a indecisão inicial do que fazer com o bichinho, o acolhimento temporário que transforma numa adoção definitiva, dão uma contribuição melhor para a construção emocional do filme.

"Hachiko Monogatori" (1987) - trailer


"Sempre a Seu Lado" (2009) - trailer

E aí, por mais que o original tenha seus méritos, é exatamente nas "americanices", nos clichês, no apelo emocional que o remake ganha o jogo. O que muitas vezes seria defeito, neste caso específico, com um tema tão comovente e um personagem (canino) tão cativante, a aposta na "receita de bolo", aquela fórmula certa para tocar o espectador, foi extremamente acertada. E não que o filme antigo não pretenda emocionar, mas é que, se tem uma coisa que Hollywood é especialista, é nisso.
Assim, com um jogo simples, sem firula, sem enfeitar, jogando a bola na área na hora certa, ou seja, entregando para o espectador aquela cena emocionante em momentos chave, com uma série de jogadas manjadas mas eficientes, com um medalhão no time, Richard Gere, que entrega uma boa atuação, e com seu parceiro Hachi, ali, seguro, guardando a entrada estação de trem como se fosse a grande área, o time dirigido pelo bom técnico sueco Lasse Hallström, de "Minha Vida de Cachorro", se impõe diante de um bom adversário e vence a partida na casa do rival.

No alto, a dupla inseparável, nos dois filmes (à esquerda, o original).
Abaixo, a estátua para Hachiko, em Shibuya, no Japão.
Não tem estátua de grandes jogadores na frente de estádios?
A do nosso craque fica na frente da estação de trem, ora!


Um gol na jogada manjada de fazer o público chorar (mas que dá certo);
 outro da estrela do time Richard Gere, carismático e competente dando o toque de qualidade que o time precisava;
 e mais um pelo dedo do treinador, aliás experiente em assuntos caninos.
 O original faz o seu de honra pela boa qualidade do filme e pela maior fidelidade à história original. 
Placar final em Shibuya, no Japão: 3x1 para "Sempre a Seu Lado".
(A medalha de ouro não fica com os anfitriões)






Cly Reis

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Zupi - Art Magazine, Ed. #Pixel Show SP











Dia desses li uma  matéria  escrita por meu amigo fotógrafo  Nilton Santolin  onde este destacava, com seu olho artístico e perspicaz, belos grafites produzidos em algumas ruas de Porto Alegre. Pois que veio cair em minha mão, trazido de Recife por minha antenada amiga pernambucana Valéria Luna, este exemplar da revista Zupi – Art Magazine #Pixel Show SP, a qual não conhecia e me fascinei.
A publicação destaca artistas plásticos urbanos da melhor qualidade e de várias nacionalidades, como Filipinas, Colômbia, Estados Unidos, Holanda, Taiwan e Brasil, de onde se veem alguns dos trabalhos que mais me agradaram. Um deles é do gaúcho de Santiago Indio San, dono de uma arte expressionista e surrealista a qual salta aos olhos por tamanha pungência e expressividade.
O grafite do paulista Akeni, que ilustra a capa da edição, perpassa no seu pichado de alma pueril, típico do grafite urbano, forte influência do cubismo. Também grafiteiro, o paranaense Anjo mostra uma arte, assim como a maioria desses artistas, inspirada nos quadrinhos, porém adicionando sensualidade e cores muito pessoais.
Mas se se falar em grafite, não há como não referenciar o paulistano Rafael Ferrari. Formado em música e conhecedor da pintura, Ferrari é capaz de produzir um grafite quase pictórico dado o hiper-realismo do seu traço. O que dizer de sua séria baseada em closes de jazzistas, como Charles Mingus, Dizzie Gillespie e  John Coltrane? Impressionante.
 Destaque também para as criativas intervenções do holandês Florentijn Hofman e as ótimas fotografias de Márcio Scavone, que coloca ícones da cultura pop em situações ao mesmo tempo curiosas e plásticas, extraindo arte justamente da captação precisa destes momentos sui generis. É o que faz com personalidades como Renato Aragão, João Ubaldo Ribeiro, João Gordo, Pelé, entre outros. "Eu só consigo ver através das lentes, por isso sou fotógrafo, para ver como as coisas são", explica o fotógrafo.
Vale dar uma conferida também no site da revista, onde, além de conhecer mais a Zupi ou adquirir este ou números anteriores, se podem encontrar outras maravilhosas produções artísticas: www.zupi.com.br.

O surrealismo nas imagens
de Santiago  Indio San

O grafite cheio de  sensualidade
do paranaense Anjo

As bochechas infladas de Dizzie Gillespie
pela mão de Rafael Ferrari

Florentijn Hoffman e imagens do cotidiano
captadas com olho artístico

João Ubaldo Ribeiro...

... e Renato Aragão

descontraidamente  na lente de Márcio Scavone


por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Gal Costa - "Legal" (1970)

 

“Entramos em campo com o que tínhamos na mão. Gal já era a maior cantora do Brasil naquele momento e esse trabalho foi muito especial, pois nós juntamos os melhores músicos da época, como Chiquinho de Moraes e Lanny Gordin. A gente procurou pensar que tínhamos que fazer o melhor naquele clima de ditadura militar: Caetano e Gil exilados, a Copa do Mundo em cima, uma confusão danada. E fizemos o nosso trabalho".  
Jards Macalé

“Genial, contemporâneo e perturbador”. 
Assucena Assucena, da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, sobre “Legal”

Ao mesmo tempo em que começa a se tornar cada vez mais comum ver os ídolos brasileiros da geração dos anos 50/60 se irem, caso de João Gilberto, Sérgio Ricardo, Moraes MoreiraLuiz Melodia e, mais recentemente, Gerson King Combo, em contrapartida, é uma enorme satisfação presenciar estas mesmas figuras referenciais chegarem à idade avançada. É mais do que só um motivo de comemoração, e sim de emoção. Caso da "água viva" da MPB: Gal Costa, que, mais do que viva, está operante e produzindo muito bem, obrigado. Gal chega aos 75 anos de idade e 55 de carreira celebrada como uma das maiores vozes do Brasil, posto que ocupa desde os anos 60 quando, junto com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Mutantes e toda a turma da Tropicália, revolucionou a musica brasileira para sempre. Parte dessa revolução, contudo, está de aniversario junto com ela: o genial disco da artista “Legal”, de 1970, que completa 50 anos de lançamento.

O contexto no qual o lançamento de “Legal” ocorreu, no entanto, não foi nada festivo. O que faz aumentar ainda mais seus méritos. AI5 em vigor há pouco mais de um ano; Caê e Gil exilados em Londres; Allende eleito no Chile; Seleção de Pelé e Jairzinho fazendo a alegria do povo; Estados Unidos bombardeando o Vietnã; Roberto Carlos tornando-se um rei “adulto”. Tudo isso sob a capa negra da “linha dura” da Ditadura Militar, que reprimia, perseguia, sequestrava, torturava e matava. Afora esta pior parte das violações à liberdade imposta pela ditadura, a repressão recaía, em maior ou menor grau, sobre qualquer um que se opusesse ao Estado. Para isso, os militares contavam, inclusive, com o policiamento da própria sociedade civil. Gal, que permaneceu no Brasil com a missão de manter tesa a sina do tropicalismo, não o fez sem vigília ou pressões. Ela conta que chegou, àquela época, a ser quase linchada em praça pública por "cidadãos do bem", que a viam como uma hippie subversiva e comunista. Afinal, pensar definitivamente não é um atributo de quem domina pela força.

Gal em 1970: cabelos repartidos
ao meio em novo visual, que
inspirou Oiticica
Toda essa brutal condição de medo e tensão – mas também de orgulhos e belezas inexoráveis – era despejada imediatamente na musica de Gal, e “Legal” é o seu álbum que melhor sintetiza esse momento. Amplificando a psicodelia e a postura rebelde dos seus trabalhos imediatamente anteriores, de 1968 e 1969, Gal vinha para não fazer concessões. Agora, ela explodia. A doce cantora que começara a carreira seguindo o estilo cool da bossa nova de João Gilberto agora soltava a voz da maneira mais aguerrida como jamais havia feito até então. Estridente, raivosa, intensa, provocadora - mas também doce quando quer. Com o auxílio nos arranjos e na banda dos igualmente arrojados Lanny Gordin – o histórico guitarrista inglês da Tropicália responsável aqui também pelas ensandecidas guitarras do disco – e do "maldito" Jards Macalé – antecipando o que este faria dois anos depois noutro LP clássico da música brasileira, “Transa”, de Caetano –, a “divina maravilhosa” baiana torna-se, agora, “terrível”. É com o então recente sucesso de Roberto que ela, num arranjo monstruoso, inicia o disco. Se “Eu Sou Terrível” soava como um ato de rebeldia na voz do seu careta autor, na de Gal, transformava-se num manifesto anti-ditadura. Na boca dela, versos como: "Estou com a razão no que digo" ou "Não tenho medo nem do perigo" significavam muito mais do que a mera e ingênua afirmação sexista da original. Ressignificadas, as palavras querem dizer, sem hesitação: "Não adianta me perseguir, que sou mais forte que vocês" e "vocês é que devem ter medo de mim".

E Gal tinha urgência. O rock com influências soul dessa indignada Etta James dos trópicos tem nos sopros arranjados por Chiquinho de Moraes e na guitarra rascante de Lanny a velocidade certa para acompanhar a cantora. Ou seja: com muita rapidez! Os garotos que andavam ao seu lado tinham certeza que ela andava mesmo apressada. Em resposta, a banda pratica o que em teoria musical se chama de “antecipação”, quando se encurta o tempo entre os acordes e joga-se uma nota estranha à harmonia, a qual, se verá logo em seguida que pertence ao acorde seguinte. Se Gal havia permanecido no Brasil, sua terra, ouvi-la dizer “Eu corro mesmo aqui no chão” fazia realmente muito sentido.

Se “Legal” começa assim, mostrando que não veio para brincadeira, o negócio era prender o fôlego e acostumar-se, pois seria assim até a última rotação da agulha no sulco. Em novo recado pros militares, Gal manda na sequência “Língua do Pe”, do exilado Gil. Já que o parceiro não podia como ela estar no seu próprio país, Gal dava um jeito de materializá-lo. Um novo rock se anuncia... só que não! Subvertendo a si mesma, de repente, a música torna-se um xaxado “pé de serra” animado no melhor estilo Luiz Gonzaga: zabumba, triângulo e sanfona. A letra, cifrada, tirava um sarro dos milicos: “Garanto que você/ Nãpão vapai não vai/ Compomprepeenpendeper/ Bulhufas”. Não compreenderam bulhufas, mesmo.

Não precisa mais do que duas faixas pra se notar que “Legal”, contrariamente ao vocábulo, não se presta a ser nada amigável com os hipócritas devotos da moral e dos bons costumes. De pura ironia e musicalidade, “Love, Try And Die”, este Broadway jazz chistoso tem a luxuosa participação de dois mitos da música pop brasileira: o jovem Tim Maia, que recém havia lançado seu exitoso disco de estreia, e de Erasmo Carlos, que, na direção oposta do pop romântico de Roberto no pós-Jovem Guarda, corajosamente alinhava-se aos tropicalistas. Autoria de Gal com seus fiéis escudeiros Macalé e Lanny, lembra a invencionice transgressora de "Cinderella Rockfella", de Rogério Duprat com os Mutantes, de 1968, e a galhofa que os próprios Roberto e Erasmo criariam em 1971 com a canção "I Love You", o solfejo tropicalista de RC.

Novos petardos: uma versão futurista de “Acauã”, de Zé Dantas, reafirmando a cultura do Nordeste como desde o início propôs o tropicalismo. A pegada regionalista, contudo, vem empunhando uma peixeira como Lampião. Inversamente a “Língua do Pe”, que inicia rocker e depois alivia, aqui é o folk regional que prevalece até boa parte da faixa, mas que ganha uma reviravolta para um baião-heavy de dar inveja a qualquer guitar band enfezada. Bem que dava para desconfiar quando Gal, no começo da música, calmamente entoa os versos: “Teu canto é penoso e faz medo/ Te cala, acauã/ Que é pra chuva voltar cedo”.

Mais uma inédita de Gil: a psycho-bossa “Mini-Mistério”. Uma só dele seria pouco pra confrontar os militares. E se “Língua do Pe” soa quase anedótica, o recado desta é bem mais direto: "Compre, olhe/ Vire e mexa/ Não custa nada/ Só lhe custa a vida". Ou que tal isso aqui?: “Procure conhecer melhor/ O cemitério do Caju/ Procure conhecer melhor/ Sobre a Santíssima Trindade/ Procure conhecer melhor/ Becos da tristíssima cidade/ Procure compreender melhor/ Filmes de suspense e de terror”. E Gal, que não tinha medo nem de filmes de suspense e de terror, repete ostensivamente a última palavra: “Terror, terror, terror, terror”. Afinal, este era o melhor termo para definir o sentimento que tomava conta daquele Brasil de terríveis minimistérios: delações, perseguições, olhos vigiando por todos os cantos, amigos presos, “amigos sumindo, assim, pra nunca mais”. Sob um suingue jazzístico acachapante, Gal ainda aconselha: “Ande muito/ Veja tudo/ Não diga nada/ Além de dois minutos”.

Gal e Macalé: alta qualidade musical contra a repressão

Jards, totalmente presente na concepção do disco, vem com outras duas suas. Primeiro, a emblemática e não menos provocativa “Hotel das Estrelas” (“No fundo do peito esse fruto/ Apodrecendo a cada dentada/ Mas isso faz muito tempo...”), que o próprio gravaria apenas dois anos depois em seu primeiro álbum solo. Interpretação tristonha e sensual de Gal na primeira parte, quando um blues jazzístico. Mas o andamento é bem mais variante que isso, e a banda acelera o ritmo para entrar numa soul quase gospel e, daí, voltar novamente à melancolia. Um arraso! De Jards e de Duda Mendonça também é o falso jazz “The Archaic Lonely Star Blues”. Falso até no idioma, pois, iniciando com versos em inglês, envereda, em seguida, para um samba-canção em que Gal deita e rola na interpretação sob o arranjo de cordas primoroso de Chiquinho de Moraes.

Transgressão pouca era bobagem para a combativa Gal. Ela guardava ainda mais munição em sua metralhadora sonora e poética. E, como as canções de Gil, vinham encomendadas também da Inglaterra as do mano Caetano. Primeiro, a carnavalesca “Deixa Sangrar”, cujo duplo sentido do título, obviamente, não é mera coincidência: “Deixa o coração bater, se despedaçar/ Chora depois, mas agora deixa sangrar/ Deixa o carnaval passar”. Alguma semelhança com a situação política de então? Neste aspecto, “Legal” ainda se beneficia pelo fato de ter sido lançado logo após o endurecimento da ditadura, ainda muito mais preocupada em reprimir a luta armada do que necessariamente censurar músicas – isso, até perceberam em seguida que o “perigo” era justamente a junção dos dois. Talvez por isso (e pela letra em inglês, esta na totalidade) tenha-se liberado “London London”, o tristonho canto de exílio de Caetano que atravessou o Atlântico trazendo ao Brasil os gélidos ventos do Velho Mundo poucos meses depois do próprio autor tê-la gravado no seu álbum londrino. Nesta rumba desenhada pela guitarra de Lanny e uma gaita de boca bem rithum n’ blues, toda a estridência que domina boa parte do disco dá lugar de vez à cantora melodiosa e de profundo apuro técnico. 

Igual à matadora versão de “Falsa Baiana”, reduzindo de vez o compasso em alta voltagem que havia iniciado o disco lá em “Eu Sou Terrível”. Bossa nova pura. Leve e melodiosa. Um contraste tremendo com o fervente início do disco. Os distraídos podem até achar que se trata de uma contradição por não perceberam mais uma ironia. “Falsa baiana” não é necessariamente aquela que "requebra direitinho", mas a que, contrariando a pecha de um povo "preguiçoso" e "acomodado", se levanta contra a atrocidade humana. Fora isso, Gal, saudavelmente apressada de novo, antecipa justamente seu mestre João Gilberto, que gravaria este samba de Geraldo Pereira somente três anos depois em semelhantes moldes.

Arte de Oiticica completa, com as
duas faces: capa e contracapa
A capa, autoria do célebre artista visual Helio Oiticica – pivô acidental no episódio da boate Sucata motivador da expulsão de Caetano e Gil do Brasil meses antes – emula o policulturalismo da capa clássica de "Sgt. Peppers", dos Beatles, ao reproduzir diversas fotos de referências constituidoras daquela proposta de obra. No entanto, além das diferentes figuras – por exemplo, Elis Regina, James Dean e a Marcha dos 100 Mil no lugar de Bob Dylan, Marylin Monroe e Karl Marx –, a arte de Oiticica direciona incisivamente esta intenção ao impregnar essas imagens fragmentadas nos cabelos de Gal (visual trazido de Londres, de onde ela recentemente viera de uma viagem) e cuja metade do rosto se agiganta em relação a todo o resto. O mundo pertence a ela, esta Medusa empoderada e resistente. Metáfora cortante de um álbum que cumpre a corajosa missão de falar por todos os exilados, os de fora e os de dentro do país. Se as vozes restavam sufocadas pelo poder das armas, havia a de Gal para representar-lhes. E acelerada, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Em “Legal”, como nunca ela foi porta-voz de toda uma geração. E quanta voz tem essa (verdadeira) baiana para portar!


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Gal Costa cantando "Acauã", programa Ensaio (1970)


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FAIXAS:
1. “Eu Sou Terrível” (Erasmo Carlos, Roberto Carlos) - 2:30
2. “Lingua Do P” (Gilberto Gil) - 3:40
3. “Love, Try And Die” (Gal Costa, Jards Macalé, Lanny Gordin) - 2:23 – partic.: Tim Maia e Erasmo Carlos
4. “Mini-Mistério” (Gil) - 4:16
5. “Acauã” (Zé Dantas) - 2:49
6. “Hotel Das Estrelas” (Duda Machado, Jards Macalé) - 4:22
7. “Deixa Sangrar” (Caetano Veloso) - 2:53
8. “The Archaic Lonely Star Blues” (Duda, Macalé) - 3:03
9. “London, London” (Caetano) - 4:00
10. “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira) - 2:11


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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

terça-feira, 6 de novembro de 2012

cotidianas #187 - O Homem Certo



  Oi, você é o Pestana, não é? perguntou o homem tirando-lhe da distração, logo depois se desculpando pela inconveniência: - Desculpa, mas o meu filho é muito seu fã – disse trazendo para junto de si o garoto que vestia uma camisa com o número 5 às costas - Eu também aliás... – completou ainda, um tanto constrangido pela última observação.
  - Sou eu mesmo – confirmou agastado o homem ali parado diante daquela vitrine no shopping.
  - Você poderia dar um autógrafo pra ele, na camiseta, por favor – agora virando o menino meio de costas de modo a permitir a escrita do ídolo.
  Pouco à vontade, Pestana apanhou a caneta que aquele pai lhe dava, apoiou parte da mão nas costas do garoto e pôs ali sua rubrica quase ilegível na qual só se distinguia o “P” enorme. “P” de Pestana.
  O dono da frente da área. 
  Dizia-se que só atravessava dali para dentro da área grande a quem ele desse autorização e olhe lá. O verdadeiro volante, o cabeça-de-área. Era combatido por muitos velhos puristas do futebol como mais um cabeça-de-bagre, isso sim, mas aquilo não era verdade. Pestana sabia jogar. Tinha uma saída de jogo limpa e fluída. Roubava a bola, olhava em torno e logo vislumbrava o companheiro bem posicionado. Passe certo! Perfeito. E o time saía para o ataque. Se precisasse também sabia conduzir. Levava bem a redonda, com habilidade, destreza, lucidez e alguma velocidade. Qualidades que o próprio Pestana reconhecia em si e por isso mesmo aspirava a meia-armação. Ah, os meia-armadores, os pensadores do jogo cerebrais como Zidane, Carpegianni, Cruyff, Platini, carregadores de bola como Kaká, os de chegada na frente como Zico, ah, e Dom Diego, ah, e Pelé. Sei que dizem que o Rei era quase atacante mas... aquele passe pro Jairzinho contra a Inglaterra e aquele pro Carlos Alberto? Só quem VÊ mesmo o jogo pra fazer aquilo. Sonhava vestir a 10 e ser o maestro de seu time. Conduzi-lo às vitórias nas situações mais complicadas. Não queria fazer o gol, mas com um toque genial deixar o companheiro na cara do gol como quem diz “faz”. Mas não. Até começara como meia na base mas o excesso de jogadores da posição fez com que disputasse posição na frente da área e ali se destacasse. Subiu para os profissionais, ganhou títulos, chegou à Seleção, se consolidou como um dos melhores volantes da história do futebol brasileiro e agora era difícil que lhe dessem aquela oportunidade de ser o mago do meio-campo.
  O menino saiu forçando o pescoço tentando olhar as próprias costas. Não agradeceu mas seu olhar emocionado dizia tudo. Nem precisava. O pai sim, se desmanchou em agradecimentos que o Pestana recebia tentando disfarçar o incômodo.
Saiu do shopping chateado com aquela idolatria estúpida e resolveu ir caminhando, mesmo, para casa, uma vez que não morava muito distante dali, de modo a ir ruminando um pouco aquela situação que lhe desagradava. Estando um final de tarde quente, parou num bar qualquer para comprar um refrigerante e ali, sem ser reconhecido, talvez pelo boné e óculos escuros que usava, ouviu dois homens que discutiam a rodada do final de semana. Um deles dizia:
  - ... ah, mas isso porque o Pestana não deixou o cara nem ciscar na frente dele.
  - Isso é verdade – concordou o outro – É um monstro aquele Pestana! Volante não tem igual – completou ainda.
  - Pra mim é um grosso que só sabe dar pancada – gritou lá de dentro o dono do boteco – Deviam proibir esses volante no futebol...
  Meio emburrado com a última observação, o Pestana resolveu sair dali sem nem acabar de beber o refresco. Ora, “grosso”! Veja só. Era só ter uma chance que mostraria que podia ser um meia. Um meia genial. Com lançamentos de Gérson e assistências de Riquelme. Ia pedir para o técnico para, daquele dia em diante, ser escalado mais à frente, com liberdade para sair e criar jogadas. Podia dar uma colaboração maior do que somente desarmar e aparecer na frente de vez em quando. Sabia que podia.
  Estava decidido, iria falar com o ‘professor’ no dia seguinte.
  E o fez. Falou com o técnico, à parte, no treinamento da manhã seguinte. O comandante não entendia o porquê daquela reivindicação agora. Estavam bem no campeonato, o time estava encaixado, ele, o Pestana, acabava de ser escolhido pelos jornalistas o volante do campeonato e era novamente chamado para a Seleção. Além do mais tinha um ótimo armador no time, igualmente convocado para o selecionado nacional. Por que isso agora? O Pestana argumentava, argumentava, mas não haveria mesmo recurso que convencesse alguém em são juízo a escalar o melhor da sua posição fora dela. Loucura!
  - Deixa estar, Pestana! – dizia o professor - Tu é o melhor ali. Ali, na frente da grande área. Tu é o cão-de-guarda. O adversário já treme só de saber que é o Pestana que tá lá protegendo a defesa. Deixa de besteira e vai jogar o que tu sabe, homem – arrematou dando um tapa carinhoso na cabeça do volante.
  No treino daquela manhã, o Pestana foi melhor do que nunca. Parecia estar em dia de jogo a valer. Deu carrinho, roubou bolas, saiu jogando, avançou com a bola e ainda, depois de um lançamento de mais de 50 metros, no pé do atacante, que o deixou na pinta pra meter pra dentro, saiu olhando pro treinador como quem diz “viu só”. Mas aquele treinamento parecia reservar algo de especial, e o habilidosíssimo meia do time, craque de bola, em uma jogada despretensiosa, à toa, parecia ter torcido o tornozelo. Médico em campo. Todas as atenções nele. Hum... Pela experiência de boleiro aquilo era coisa pra pelo menos um mês. Era a grande chance do Pestana. Depois da sua solicitação aberta e da exuberante exibição técnica no treinamento, habilitava-se claramente para a vaga já na próxima partida, dali há dois dias, até porque o técnico não tinha grandes opções no elenco para a reserva.
  - Eu posso fazer a dele, professor – prontificou-se, confiante, ao final do treino.
  - Vamos ver, vamos ver. Eu vou testar algumas formações – disse o técnico com aquele jeito de raposa velha.
  O velho fez mistério até a última hora e só na concentração anunciou que utilizaria um dos garotos dos juniores para a criação das jogadas. Um garoto que até prometia mas que além de muito ‘verde’ nem se aproximava da qualidade técnica dele, Pestana, mesmo jogando de volante durante todos esses anos. O abatimento do Pestana foi tão visível que o técnico foi ter com ele:
  - Eu não podia te trocar de lugar hoje porque os caras tem um dos melhores ponta-de-lança do campeonato, Pestana. Só tu ali na frente pode parar aquele 10 deles. Tu é o Homem Certo pra isso. Só tu, Pestana. Só tu.
  O Pestana fez que sorriu sem levantar os olhos e deu a entender que estava conformado. Não proferiu palavra durante toda a viagem da concentração para o estádio, nem na palestra do vestiário, nem pediu a palavra na hora dos gritos de ordem e incentivo. Entrou em campo calado e com um olhar fixo no vazio e um leve sorriso no canto da boca.
  Ouviu ainda algum colega gritando, “Vamo lá, Pestana!” Pega ele, pega ele”. Assentiu automaticamente sem nem saber com o que estava concordando e ouviu então o apito do juiz. Começava o jogo. Foi truncado, pegado, marcado, sem grandes jogadas. Foi assim durante quase todo o tempo. Um insistente zero a zero que devia-se muito aos fatos de que, no time do Pestana, a articulação havia ficado a cargo de um garoto que claramente sentia a pressão da responsabilidade, e de que, do outro lado, o adversário não conseguia armar uma jogada sequer, pois sempre deparava-se com um Pestana especialmente inspirado naquela noite.
  O jogo já ia-se encaminhando para o apagar das luzes quando uma bola, numa área morta do campo, ali pela intermediária, espirrou e ficou entre o Pestana e o atacante. Típica bola pra dividida. E dividida, qualquer um sabia que o Pestana não perdia uma. Arrepiava, levantava o que encontrava no caminho e era melhor o adversário sair da frente. Aquela em especial até estava mais para ele, facilmente chegaria antes do outro. Era provável até que o atacante pipocasse e só fizesse de conta que ia na bola. Mas o Pestana pareceu retardar o arranque. Será? O rival sentiu confiança e foi com sede na bola. O Pestana então ameaçou uma entrada mais viril e o atacante adversário, num golpe de instinto, até para se proteger, armou-se de toda uma virilidade que não costumava usar. Ora, sabemos o que acontece quando quem não sabe jogar duro tem que fazê-lo. Acaba por ser desleal. E foi o que aconteceu. O atemorizado avante adversário entrara por cima da bola enquanto, inexplicavelmente o Pestana, na última hora aliviara e entrara frouxo na jogada. O tornozelo virou de uma forma que poucas vezes se viu num campo de futebol. Coisa feia! Apito, falta, expulsão, empurra-empurra, médico em campo e todo aquele alvoroço. O Pestana saía de maca. Mas saía... rindo. Inexplicavelmente saía rindo com o pé praticamente virado ao contrário.
  Sempre que o tempo está para chuva o tornozelo do Pestana dói. Nunca voltou a andar perfeitamente. Na modesta casa em que vive no subúrbio, guarda os troféus, os recortes de jornal, as camisas da Seleção e contempla uma parede forrada de fotos. Pôsters de meias, de armadores, de pontas-de-lança. Zico, Caju, Rivelino, Ronaldinho Gaúcho, Zidane, Messi... Agora volta da cozinha levemente claudicante com a cerveja na mão e posta-se diante da TV para ver o programa de esportes. Nunca deixou de ver as resenhas esportivas mesmo depois que deixara de jogar. Por coincidência estão a falar dele no programa.
  "Pra mim, o melhor volante que eu vi jogar foi o Pestana. E não era desses cabeça-de-bagre, não. Sabia jogar. Sabia passar, conduzir pro ataque, lançar. Tinha bola pra ser meia se quisesse", sentenciava o comentarista.
  Desligou a TV e foi manquitolando para o quarto.
  Pestana faleceu poucos anos depois. Sozinho, com sérias dificuldades financeiras e problemas de alcoolismo. Deixou este mundo de bem com o futebol e mal consigo mesmo.


de Cly Reis
baseado no conto "Um Homem Célebre"
de Machado de Assis