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sábado, 4 de julho de 2015

Van Morrison - “Into the Music” (1979)




“Quando você escuta a música tocando sua alma/
E sente em seu coração e cresce e cresce/
E vem daquele rock and roll das ruas
e a cura começou” 
da letra de “And the Healing Has Begun”




Tem uma cena do filme “The Last Waltz” (“O Último Concerto de Rock” no Brasil), de Martin Scorsese, que define o irlandês Van Morrison, autor do disco que é um dos favoritos totais aqui da casa: “Into the Music”, de 1979. Após cantar seu sucesso “Caravan” com The Band, o guitarrista do grupo, Robbie Robertson, olha para a plateia e diz: “Van the Man”. É exatamente isso que Van Morrison é: THE MAN! Um irlandês baixinho, arretado, irritado, brigão, xarope, malão mesmo. Mas quando compõe e abre a boca pra cantar, todo mundo esquece estas “qualidades” e se delicia com a música em estado puro que se derrama daquele corpinho. Mas nem sempre foi assim.

Durante os anos 60, ele surgiu liderando o grupo Them, que fez muito sucesso com “Gloria”. Quando o empresário começou a dar palpites, Van partiu pra carreira solo, que começou lá em cima com o cultuado "Astral Weeks", em 1968, e seguiu com "Moondance", dois anos depois  (ambos perfilados aqui no blog como ÁLBUNS FUNDAMENTAIS). Na segunda metade dos anos 70, entretanto, ele passava por um momento de reflexão profunda da sua carreira musical e se voltando – como todo irlandês, aliás – para a religião e o amor a Deus. Após gravar “Veedon Fleece”, em 1974, ficou três anos fora dos estúdios e dos palcos. Ao voltar, fez um disco chamado “A Period of Transition”, que era exatamente isso. No ano seguinte, ensaiou uma volta à velha forma com “Wavelength”, mas ainda não era aquele disco que se esperava de uma figura mítica como ele. Isto só aconteceu em 1979 com “Into the Music”, não por acaso uma brincadeira e trocadilho com uma de suas canções mais conhecidas, “Into the Mystic”. Ao lado de seu fiel escudeiro, o baixista David Hayes, mais a violinista Tony Marcus e a dupla extraordinária Pee Wee Ellis (ex-James Brown) no saxofone e Mark Isham nos trompetes, teclados e arranjos, entre outros, Van reuniu um grupo de canções que louvam a Deus, ao poder curador da música e, é claro, às mulheres, todas embaladas em blues, folk, R&B, soul e muito mais.

Tudo começa com “Bright Side of the Road”, um country com levada R&B, onde brilham a harmônica de Van, o violino de Marcus e os backing vocals de Katie Kissoon. Na letra, Van diz à mulher amada que “Do final escuro da rua/ ao lado iluminado da estrada/ seremos amantes novamente/ no lado iluminado da estrada/ Querida vem comigo/ me ajuda a repartir este peso?”.

Ao começar o disco com um discurso “profano”, Van se retrata com “o homem” em “Full Force Gale” cantando: “Como uma tempestade a toda força/ eu fui erguido novamente/ eu fui erguido pelo Senhor/ E não importa por onde eu ande/ Vou encontrar meu caminho de volta pra casa/ Vou sempre voltar para o Senhor”. Esta letra de entrega à religião é carregada pela slide guitar de Ry Cooder e o naipe de sopros fazendo aquele clima soul music.

Em “Steppin' Out Queen”, Van volta a conversar com uma mulher afirmando que ela pode “Passar seu batom/ se maquiar/ Às vezes você está vivendo num sonho/ e então cai fora rainha”. Na verdade, Van quer convencê-la a “vir para o jardim e olhar as flores”, ao invés de sair pra rua. O naipe de sopros toca um tema irresistível, daqueles de ficar assobiando o dia inteiro.

“Troubadours” traz o penny whistle (flautim irlandês) de Robin Williamson, um dos fundadores da Incredible String Band. Van fala sobre os trovadores e sua música que “trazia as pessoas que vem de longe e vem de perto/ para ouvir os trovadores”. Mais adiante, afirma que “eles vem cantando canções de amor e cavalheirismo dos tempos antigos”. Ellis e Isham também ganham solos nesta canção, que trata do poder curativo da música.

Já “Rolling Hills” traz a influência da música celta que Van ouviu a vida inteira em Belfast. E volta o discurso místico: “Entre as colinas ondulantes/ Eu vivo minha vida com ele/ Oh eu vivo minha vida com ele/ entre as colinas ondulantes/ Eu leio minha Bíblia quieto/ Oh eu leio minha Bíblia quieto/ entre as colinas ondulantes”.

Pra fechar o Lado 1, um exemplo bem claro do que se poderia chamar de soul music na versão de Van Morrison: “You Make Me Feel So Free”. Como as letras são ambíguas durante todo o disco, Van pode estar se referindo a uma mulher ou à música: “Algumas pessoas passam a vida correndo em círculos/ sempre atrás de um pássaro exótico/ eu prefiro gastar meu tempo apenas ouvindo algo muito especial/ que nunca ouvi/ Gosto de ter uma canção nova pra cantar, outro show ou algum lugar totalmente diferente para ficar/ mas baby, você me faz sentir muito livre”. Quem é “baby”? A música, uma mulher, o Deus? Faça sua escolha. O saxofonista Pee Wee Ellis deve ter lembrado dos seus tempos com os JBs, pois seu solo tem todas aquelas características dos melhores trabalhos de James Brown. E o pianista Mark Jordan brinca com o jazz de New Orleans e a sonoridade de Professor Longhair e Dr. John.

Abrindo o lado 2 do LP, mais uma ode, agora explícita, a uma mulher, “Angeliou”, um anjo em forma de fêmea. O encontro aconteceu “no mês de maio/ na cidade de Paris”. Tony Marcus faz misérias com seu mandolin e violino, enquanto Mark Jordan faz um tema ao piano que lembra aquelas peças para cravo de Bach. Ao abrir seu coração para Angeliou, ele afirma que “caminhando numa rua quem poderia imaginar que seria tocado por uma total estranha, não eu/ Mas quando você veio até a mim aquele dia e contou sua história/ Lembrou muito de mim mesmo/ Não foi o que você disse mas a maneira como pareceu a mim/ sobre uma busca e uma jornada como a minha”. Nesta canção, Van faz o que se tornou uma marca registrada de suas interpretações, o ad-lib ou a improvisação em cima da letra e do tema da música, bem ao estilo jazzístico, mudando o andamento e o tempo. À medida que avança, “Angeliou” vai se transformando numa balada R&B.

Este estilo interpretativo chega ao auge na próxima música, “And the Healing Has Begun”. O título diz tudo: “E a cura começou”. A cura através da música. Com a batida de Peter van Hooke beirando a soul music e a violinista Tony Marcus tomando as rédeas dos solos nas suas mãos, Van se transporta a um nirvana musical cantando: “Quando você escuta a música tocando sua alma/ E sente em seu coração e cresce e cresce/ E vem daquele rock and roll das ruas e a cura começou”. E se sua cura não começar ao ouvir esta música, pode crer que está muito doente!

Depois deste orgasmo musical, Van, expert em dinâmica de um disco, baixa a bola. Tudo recomeça com a única música que não foi composta por ele neste disco: “It's All in the Game”, que ganhou letra de Carl Sigman em 1951 em cima de uma melodia composta 40 anos antes por Charles Dawes, que foi vice-presidente dos Estados Unidos. Foi sucesso pop no final dos anos 50 com Tommy Edwards, um cantor de R&B. A curiosidade é que Van usa esta canção como um veículo para desaguar em outra composição sua, “You Know What They're Writing About”. Esta sim explicando a quem porventura não tenha entendido ainda o poder mágico da música e suas curas. Ele abre esta canção sussurrando: “Você sabe sobre o que eles estão compondo/ É uma coisa chamada amor através dos tempos/ Te faz ter vontade de chorar às vezes/ Te faz ter vontade de deitar e morrer às vezes/ Te anima às vezes/ Mas quando tu entendes, te levanta o astral”. No final, os sopros de Pee Wee Ellis e Mark Isham fazem um tema, enquanto Van canta “quero te encontrar/ você está aí?”. O resto da banda se esbalda até a canção ir morrendo aos poucos.

Um final apoteótico para “Into the Music” que, segundo ele, representa a volta à música. Esta busca incessante de Van Morrison pelo amor da musa, por Deus e pela cura dos males através da música continua até hoje. Recentemente, ele lançou um disco cujo título diz absolutamente tudo: “Born to Sing: No Plan B”, ou seja, “Nascido para cantar: sem Plano B”.
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FAIXAS:
1. "Bright Side of the Road" – 3:47
2. "Full Force Gale" – 3:14
3. "Stepping Out Queen" – 5:28
4. "Troubadours" – 4:41
5. "Rolling Hills" – 2:53
6. "You Make Me Feel So Free" – 4:09
7. "Angeliou" – 6:48
8. "And the Healing Has Begun" – 7:59
9. "It's All In The Game" (Charles Dawes/Carl Sigman) – 4:39
10. "You Know What They're Writing About" – 6:10

todas as composições de autoria de Van Morrison, exceto indicada
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OUÇA O DISCO:





segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

The Troggs - "From Nowhere" (1966)


Trogg: abreviação chula em inglês para
"troglodita".


Nos anos 60, muitos jovens, motivados pelo boom Beatles / Stones, montaram seu próprio conjunto para fazer versões de standards do blues e inventar canções próprias. Algumas alcançaram status e sucesso, como Yardbirds, Monkees e Byrds. Mas tinha a turma mais obscura em meio a toda aquela luminosidade estelar. Uma galera que, com pouca grana tanto para comprar bons instrumentos quanto para vestir os caros terninhos mods, juntava-se para ensaiar na garagem da casa de algum dos integrantes (provavelmente, quando os pais iam ao cinema) e, com muita vontade de tocar e criar, produzia alguns dos melhores sons que o rock já ouviu. É o caso do The Troggs, banda britânica que, com seu álbum de estreia, “From Nowhere”, influenciou, em música e postura, do punk ao metal.
Formada por Reg Presley (vocais), Chris Britton (guitarra), Pete Staples (baixo) e Ronnie Bond (bateria), a banda saiu da pacata cidade sulista de Andover para gravar seus primeiros compactos pelas mãos do empresário Larry Page, o mesmo do The Kinks. E não foi coincidência, afinal, tanto um grupo quanto outro fazia a linha rebelde, uma resposta às carinhas de bons moços dos Fab Four. A afronta já começava pelos nomes: um, selvagem e irreverente (The Troggs: “Os Trogloditas”); o outro, insinuante e debochado (The Kinks: “Os Pervertidos”). Faziam, além disso, um rock sujo, guitarrado, de bases simples e compasso acelerado. Quase punk.
Assim são, em “From Nowhere”, as versões de “Ride Your Pony”, “Jaguar and Thunderbird” e do clássico pré-punk “Louie Louie” – que, para uma garage band que se prestasse, não podia faltar! O vocalista, nascido Reginald Ball, autor da maioria do repertório e um grande blueser, pegou emprestado o sobrenome de Elvis com merecimento. É ele que dá o tom criativo de cada faixa, apresentando um cardápio variado do melhor blues-rock. São dele as melhores, como “Our Love Will Still Be There”, marcada no baixo e com frases de guitarra superdistorcida, “Lost Girl”, intensa e bruta, e “I Just Sing”, de ritmo tribal e um moog psicodélico na medida certa.
Entre blues quentes (“Evil”, "The Yella In Me") e boas baladas para conquistar as gatinhas (When I’m With You”), o Troggs manda ver na incrível “Your Love”, com uma bateria impressionantemente possante (algo raríssimo para os limitados recursos técnicos dos estúdios da época) e um matador riff de guitarra de apenas quatro notas. Estava ali uma fórmula diferente do rock de então, mais tosco, mais direto, mais agressivo. Quase punk.
“From Nowere” traz, porém, duas joias. A primeira delas é a marcante faixa de abertura: “Wild Thing”, versão para a música de Chip Taylor que virou a tradução do espírito rebelde e rocker da banda (“Wild thing/ You make my heart sing”). Maior sucesso comercial do grupo, abre com um acorde alto e distorcido de guitarra que se esvanece feito uma serpentina, mostrando de cara que eles não vinham pra brincadeira. Combinação de notas simples e um ritmo forte e marcado que já prenunciava o rock pogueado dos punks. Daquelas de ouvir balançando a cabeça. Detalhe interessante é o inventivo solo de flauta doce, que lhe dá um interessante exotismo medieval.
A outra grande do disco é mais uma de Presley: “From Home”. Se a música “Peaches en Regalia”, do Frank Zappa, foi capaz de, sozinha, motivar a criação de uma das duas mais importantes bandas de hard rock de todos os tempos, o Deep Purple, esse petardo do Troggs foi responsável por originar, nada mais, nada menos, do que a outra grande banda do rock pesado mundial: o Black Sabbath. Com o mesmo clima ritualístico de “Lost Girl”, mas adicionando agora um vocal rasgado e guitarras BEM distorcidas flutuando sobre tudo (igual ao que o heavy metal usaria largamente anos depois), “From Home”, confessadamente inspiração para a formação do Sabbath, traz aquela atmosfera macabra do som feito por Ozzy Osbourne e Cia. – e isso quatro anos antes de lançarem seu primeiro LP!
Se o Black Sabbath bebeu na fonte do Troggs, o que dizer, então, de StoogesDr. Feelgood, Modern Lovers? Junto com outras importantes bandas de garagem da época, como The Sonics, The Seeds e The Chocolate Watch Band, eles deram, com seu rock visceral, como que vindo das cavernas, as bases para aquilo que explodiria em Nova York e Londres nos anos 70 com o movimento punk, influenciando toda uma geração. Ah, se não fosse esses abençoados trogloditas!...

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FAIXAS:
1. "Wild Thing" (Taylor) - 2:34
2. "The Yella In Me" (Presley) - 2:38
3. "I Just Sing" (Presley) - 2:09
4. "Hi Hi Hazel" (Martin/Coulter) - 2:43
5. "Lost Girl" (Presley) - 2:31
6. "The Jaguar And The Thunderbird" (Berry) - 2:01
7. "Your Love" (Page/Julien) - 1:52
8. "Our Love Will Still Be There" (Presley) - 3:08
9. "Jingle Jangle" (Presley) - 2:26
10. "When I'm With You" (Presley) - 2:23
11. "From Home" (Presley) - 2:20
12. "Louie Louie" (Berry) - 3:01
13. "The Kitty Cat Song" (Roach/Spendel) - 2:11
14. "Ride Your Pony" (Neville) - 2:24
15. "Evil" (Singleton) - 3:13
16. "With A Girl Like You" (Presley) - 2:05*
17. "I Want You" (Page/Frechter) - 2:13*
18. "I Can't Control Myself" (Presley) - 3:03*
19. "Gonna Make You" (Page/Frechter) - 2:46*
20. "As I Ride By" (Bond) - 2:02*
    * Faixas bônus
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Ouça:
The Troggs From Nowhere



terça-feira, 17 de setembro de 2013

Public Enemy - "It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back" (1988)



"Vocês esqueceram que fomos trazidos para cá,
fomos roubados do nosso nome,
roubados de nossa língua.
Perdemos nossa religião,
nossa cultura, nosso Deus
...e muitos de nós, pelo modo de agir,
temos também perdido nossas mentes."
Khalid Abdul Muhamed
(introdução de "Night of Living Baseheads")




O Public Enemy poderia ser considerado apenas mais um grupo de rap/hip-hop não fossem alguns pequenos diferenciais: o primeiro deles é um vocal poderoso, quase troante do imponente Chuck D, um rapper com recursos vocais, inteligência e consciência política e social como poucas vezes se viu até então no meio; o segundo, um MC carismático, Flavor Flav, altamente original, dono de interpretações singulares e um bordão  extremamente marcante, aquele seu "yeeeaaaaahhh, boy!!!", cheio de veneno e malicia; o terceiro, um time de produção, o Bomb Squad, extremamente criativo a antenado, sempre em busca dos samples e colagens mais criativos e improváveis, complementados é claro, por outra das grandes razões, a quarta delas, que é a mão de um DJ altamente técnico e criativo, diferenciado no seu âmbito, o lendário Terminator X. Tem ainda o impacto, as letras, a politização, a contundência, as sonoridades, e aliado a isso ainda, um certo gosto pelo peso e pelo barulho, que particularmente muito me agrada. Junte tudo isso e temos o Public Enemy. Provavelmente o melhor grupo do gênero que já visitou este planeta.
Todas essas características, marcas e virtudes podem ser encontrados no seu excelente segundo álbum "It Takes a Nation of Million to Hold Us Back", de 1988, que fez definitivamente o mundo da música cair de joelhos por eles ali pelo finalzinho dos anos 80. Artistas dos mais diversas, dos mais variados gêneros como Sepultura, Slayer, declaravam sua admiração pela banda, sua música era tema de abertura de filme ("Fight the Power" em "Faça a Coisa Certa"), até o garoto do "Exterminador do Futuro 2" exibia durante todo o filme uma a camiseta com o logo da banda. O mundo enfim se derretia pelos "Inimigos" e a influência deles foi igualmente arrebatadora, quase imediata, estabelecendo uma linha para grupos como Beastie Boys, House of Pain e Cypress Hill e revolucionando a maneira de se fazer hip-hop.
A sirene de "Countdwon to Armaggedon", vinheta ao vivo que abre o disco, anuncia que algo de realmente sério está para acontecer e efetivamente isso se confirma já a partir da primeira música, a porrada "Bring the Noise" que se não é barulhenta em si, é tão potencialmente pesada que veio a inspirar uma nova versão posterior com a participação da banda Anthrax, aí sim, mais suja e guitarrada. Mas a versão do disco não fica devendo nada, sendo também extremamente pesada à sua maneira, com batida marcante, vocal agressivo e letra contundente como de costume.
A embalada "Don't Believe the Hype", apesar do tom descontraído, vem na sequência destilando veneno contra aqueles que, segundoa banda, se esforçam em criar uma imagem negativa dos negros; "Mind Terrorist", de base repetida sem ser chata, soando como uma guitarra swingada, é um show à parte do excepcional Flavor; e a arrebatadora "Louder than a Bomb" é, verdadeiramente, tão poderosa quanto uma bomba, tanto sonoramente quanto em conteúdo.
"Show'Em Watcha Got" vem com um sample de sax, muito jazz-funk, da Lafayette Afro Rock Band, num outra performance vocal espetacular dos dois com a ajudinha sagrada do mestre Terminator X nas picapes; a alucinante "She Watch Channel Zero?!" que a segue é uma pancada sonora, evidenciando bem o tal gosto pelo peso que eu referi anteriormente, com uma guitarra enfurecida, sampleada da banda Slayer, sobre uma programação de bateria perfeita e que garante o peso, e um vocal destruidor de Chuck D. Abrindo com uma gravação de um discurso do ativista negro, americano covertido ao islamismo, Abdul Muhammad, e apoiada basicamente num recorte  repetido de um sample de sax, "Night of the Living Baseheads", traz um vocal agressivo e uma posição firme sobre os usuários de drogas, especialmente o crack. "Black Steel in the Hour of Chaos" tem uma notável base construída sobre um recorte de piano; "Security of the First World" foi um achado da banda, numa mixagem feita a partir de uma música de James Brown ("Funky Drummer"), que de tal forma foi feliz e perfeita a ponto de inspirar os mais variados artistas, como Lenny Kravitz em "Justify my Love" (gravada por Madonna), My Bloody Valentine em sua "Instrumental nº 2", e tantos outros, a reproduzi-la.
"Rebel Without a Pause", traz a justa e merecida reverência e invocação do nome do DJ no refrão, quando ele responde à altura com scratches matadores; a impetuosa "Prophets of the Rage" traz outra daquelas espetaculaes dobradinhas entre Flavor e Chuck, numa integração vocal impressionante; e "Party for Your Right to Fight", outro clássico do grupo, uma variação do título "(You Gotta) Fight for Your Right (to Party!)" dos Beastie Boys, fecha o disco com embalo, ritmo, atitude e grande estilo.
Não fosse por alguns 'pequenos detalhezinhos' podia ser mais um álbum de rap, podia ser só mais um grupo de hip-hop qualquer, só mais um trecho de outra música emprestado, mais uma mixagem, mais um DJ, mais um vocalista... Podia ser. A não ser pelo fato de que todos esses detalhes fazem toda a diferença.
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FAIXAS:
1. "Countdown to Armageddon" 1:42
2. "Bring the Noise" 3:45
3. "Don't Believe the Hype" 5:19
4. "Cold Lampin' with Flavor" 4:17
5. "Terminator X to the Edge of Panic" 4:31
6. "Mind Terrorist" 1:21
7. "Louder Than a Bomb" 3:38
8. "Caught, Can We Get a Witness?" 4:53
9. "Show 'Em Whatcha Got" 1:56
10. "She Watch Channel Zero?!"  3:49
11. "Night of the Living Baseheads" 3:14
12. "Black Steel in the Hour of Chaos" 6:23
13. "Security of the First World" 1:20
14. "Rebel Without a Pause" 5:02
15. "Prophets of Rage" 3:18
16. "Party for Your Right to Fight"
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Ouvir:
Public Enemy - "It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back"


Cly Reis

quarta-feira, 4 de junho de 2014

The Beatles Rock Cup - segunda fase


Chega a ser redundância dizer que só tem jogaço!
Sorteados os jogos da segunda fase da Copa do Mundo The Beatles , o inevitável afunilamento da competição faz com que tenhamos encontros de gigantes, como é o caso de The Fool in the Hill x Here Comes the Sun; Sargent Pepper's Lonely Hearts C.B. x Let it Be e o único clássico local da fase, Love Me Do x Please Please Me. Mas é lógico que os outros enfrentamentos não ficam devendo em nada para estes e oferecerão, por certo, a mesma dificuldade de decisão para nossa bancada beatlelística.

Confira abaixo todos os confrontos  da segunda fase:




  • HELTER SKELTER x LADY MADONNA
  • TWO OF US x SHE SAID, SHE SAID
  • YESTERDAY x GET BACK
  • TELL ME WHY x OH, DARLING
  • BECAUSE x I'M THE WALRUS
  • I SAW HER STANDING THERE x ELEONOR RIGBY
  • I WANTO YOU (SHE'S SO HEAVY) x WITH A LITTLE HELP FROM MY FRIENDS
  •  THE FOOL IN THE HILL x HERE COMES THE SUN
  • PENNY LANE x AND I LOVE HER
  • A DAY INTHE LIFE x I WANTO TO HOLD YOUR HAND
  • GOLDEN SLUMBERS x SGT. PEPPER'S LONELY HEARTS C.B. (reprise)
  • DRIVE MY CAR x THE BALLAD OF JOHN & YOKO
  • LOVE ME DO x PLEASE PLEASE ME
  • SGT. PEPPER'S LONELY HEART CLUB BAND x LET IT BE
  • THE LONG AND WIDING ROAD x STRAWBERRY FIELDS FOREVER
  • COME TOGETHER X BLACK BIRD



segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pink Floyd – “The Piper at the Gates of Down” (1967)


“’Sim’, disse o Rato gravemente. ‘Ele está desaparecido há alguns dias, e as lontras caçaram em todos os lugares, de alto a baixo, sem encontrar o menor vestígio, e também perguntaram a todos os animais por milhas ao redor, e ninguém sabe nada sobre ele.’”
trecho do conto infantil “O Vento nos Salgueiros”,
de Kenneth Grahame, de onde Syd Barrett tirou a frase
“The Piper at the Gates of Down” (“O Flautista nas Portas do Alvorecer”)


A explosão de talentos ocorrida no rock dos anos 60 ainda é inigualável em comparação a qualquer outra época da história do gênero mais popular e subversivo da música moderna. Além de hábeis compositores, eram verdadeiros mestres na reelaboração dos elementos do blues e não raro sob a lisérgica roupagem psicodélica. Jimi Hendrix, John Lennon, Eric Clapton e Van Morrison são exemplos incontestes. Em alguns casos, entretanto, a psicodelia era tanta que a sonoridade pendia para a vanguarda experimental, caso dos igualmente brilhantes Frank Zappa, Don Van Vliet, Mayo Thompson e Roky Erikson. De fato, nem todo mundo conseguia soar pop e equilibrar uma escrita musical própria com a tendência psicodélica, a qual, por si, apontava para infinitos caminhos. Quem melhor chegou a esta química – que continha em sua composição muita droga psicotrópica, em especial LSD – foi o gênio louco Syd Barrett, cabeça e fundador do Pink Floyd.

“Diamante Desvairado”, como os companheiros de banda o apelidaram, é a melhor classificação que podia ser dada a Syd Barrett. A perturbação mental e emocional sempre lhe foram uma faca de dois gumes. Suspeita-se que sofria de Síndrome de Asperger, condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades na interação social e comunicação não-verbal, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Em contrapartida, tal condição lhe evidenciava uma criatividade acima da média – ou, quem sabe, não era suficiente para suplantar-lhe o ato de criar. “Não acho que seja fácil falar de mim, tenho uma mente muito irregular”, dizia, referindo-se a si próprio. De fato, como os misteriosos caminhos percorridos pela lontra Portly ao perder-se na floresta em “O Vento nos Salgueiros”, não é simples entender por quais meandros psiconeurológicos percorriam a mente de Barrett, artista capaz de conciliar rock com música barroca, conto de fadas, expressionismo abstrato, duendes, jazz avant-garde, teosofia e B movie numa única sinapse cerebral. Naturalmente uma mente de vanguarda. “The Piper at the Gates of Down”, um dos ícones do rock psicodélico, é a melhor representação dessa equação ímpar engendrada por Barrett. Junto com “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, o primeiro do The Doors, “Velvet Underground & Nico” e alguns outros clássicos do rock que completam 50 anos em 2017, a estreia do Pink Floyd continua inovadora a cada audição, inundando de referências gerações e gerações.

“The Piper...” é surpreendente do início ao fim. A começar pela capa, que não poderia ser mais tradutora da psicodelia da época, em que os integrantes do grupo se misturam como num caleidoscópio lisérgico. A produção de Norman Smith se vale do luxuoso aparato técnico do estúdio Abbey Road, em Londres, para criar a devida atmosfera espacial e jogar luz sobre todos os detalhes (não raro exóticos) ressaltados por Barrett e a jovem banda, que trazia Roger Waters, baixo e voz; Richard Wright, teclados, sintetizador; e Nick Mason, bateria e percussão – ou seja, os integrantes clássicos do Pink Floyd somados a David Gilmour, substituto de Barrett a partir de 1968. Comandando a guitarra e os vocais, Barrett dá o direcionamento conceitual do álbum, que começa com a tensa "Astronomy Dominé". Sinais intermitentes de um contador Geiger iniciam a música prenunciando a instabilidade do tema. Em uníssono, o vocal canta sobre um compasso monofônico: “Verde-limão límpido, uma segunda cena/ Uma luta entre o azul que você uma vez conheceu/ Flutuando para baixo o som ressoa/ Pelas águas geladas e subterrâneas/ Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/ Netuno, Titã, estrelas podem assustar”. Uma espécie de refrão sem letra se dá numa frase de guitarra e um vocalize que, unidos, assemelham-se a um uivo selvagem. Isso até chegar a 1 min 35 da faixa, ponto onde ela muda totalmente. Parece que a canção irá se manter nesse rumo sob sons de órgão, efeitos, interferências de rádio e improvisações. Entretanto, a melodia de repente volta ao tema inicial e o término é igualmente intenso, quase catártico. Isso tudo é o disco recém começando...

A magnífica “Lucifer Sam” – cuja produção e a engenharia de som de Peter Bown são irretocáveis – é, basicamente, um blues ritmado com certa pegada surf music. Não fosse sua atmosfera sombria e mística (“Lucifer Sam, um gato siamês/ Sempre sentado ao seu lado/ Sempre ao seu lado/ Esse gato tem algo que não posso explicar/ Jennifer Gentle você é uma bruxa/ Você está do lado esquerdo/ Ele está do lado direito/ Esse gato tem algo que não posso explicar...”), que a leva mais para uma obscura trilha de série de TV. Efeitos como chocalhos, o órgão de Wright, a guitarra-base, o baixo de Waters e a bateria de Mason são perfeitamente ouvidos, mas o que se destaca mesmo é a segunda guitarra de Barrett, que executa um riff em tom grave, a qual contém uma das características compositivas dele: os leves atrasos nos tempos. Como se sempre algo estivesse fora do presente, pondo-se entre a realidade e o sonho. E se o virtuosismo não é a característica de Barrett – como será a de Gilmour, que assumirá as guitarras logo em seguida na banda –, o solo da faixa (toque percutido, exploração dos efeitos de pedal, variação de escala) é de pura criatividade.

Novamente revelador, o disco traz a estranha mas brilhante “Matilda Mother”, que muda totalmente pelo menos umas três vezes em pouco mais de 3 minutos de canção. O arranjo vocal, incrivelmente variante, é um primor, lembrando bastante no refrão o estilo que o Pink Floyd adotaria muitas vezes a partir de então, como em “Breath” (1973) e “The Thin Ice” (1979). O teclado e o baixo pronunciam o acorde inicial, pausado e contemplativo. O universo lúdico da infância, ao mesmo tempo fantástico e tempestuoso, é expresso na letra, em que Barrett clama pela mãe e pela criança que não mais é: “Havia um rei que governou a terra/ Sua Majestade estava no comando/ Com olhos prateados a águia escarlate/ Banhou de prata as pessoas/ Oh, Mãe, me conte mais”. Depois de algumas sinuosidades melódicas, lá por 1 min 25 entra um solo de órgão de ares barrocos. Porém, o que mais se destaca é a psicodélica percussão gutural de Barrett. De repente, as vozes se intensificam, a guitarra dita o riff e... volta tudo à melodia inicial, num proposital corte abrupto – como uma contação de estória sendo interrompida, ou melhor, deslocando-se no tempo psicológico em que o autor se dá conta de que a infância se foi. Em 2 min 25, um novo fim falso, que leva a música até o desfecho num clima ainda mais onírico.

“Flaming” não só se mantém no universo anedótico como o expande, levando o ouvinte a um céu estrelado e azul com unicórnios e animais da floresta de toda ordem. A melodia é ondulante, obscura, exótica. Não é para menos, pois se trata de um dos mais fiéis relatos de uma viagem lisérgica de LSD: “Observando botões-de-ouro moldarem a luz/ Dormindo em um dente-de-leão/ É demais, eu não vou te tocar/ Mas até poderia”. Exemplo de melodia composta no violão e devidamente arranjada pela banda em que todos se destacam, principalmente Barrett ao violão e Wright, que segura o clima no órgão e no solo de cravo ao final.

Nova surpresa, nova montanha-russa, nova obra-prima. Os sons articulados na goela e na faringe não apenas reaparecem como sustentam a abertura da sui generis “Pow R. Toc. H.”. O que se ouve são cacos vocais e sons quase demenciados sobre curtos e esquisitos rufares percussivos igualmente gerados por aparelho vocal humano. Essa configuração estranha se transforma em seguida num som de culto indígena, haja vista os gritos tribais e o ritmo ritualístico ditado pelo tambor – agora da própria bateria. Essa nova formatação sonora, entretanto, se altera rapidamente de novo numa perfeita transição executada na mesa de estúdio, fazendo a melodia se transformar agora num... elegante jazz! É Wright quem brilha nessa parte, solando no piano por quase 1 minuto sobre a ainda tribal percussão. Isso é interrompido mais uma vez, claro. Sons de órgão e de guitarra improvisam e se entrelaçam por quase 2 min, direcionando o tom jazzístico para uma polifonia. Tudo isso, para retomar a linha melódica inicial, agora com a guitarra, os efeitos de mesa e de pedal e os ensandecidos alaridos finalizando o número. Junto com “Peaches en Regalia”, de Zappa, é um dos temas instrumentais mais criativos do rock anos 60. Além disso, é, ao lado de “Interstellar Overdrive”, a única composição coletiva do disco, que já denota claramente que o Pink Floyd não era (e não seria, fatalmente) apenas Syd Barrett.

Composição de Waters, “Take Up Thy Stethoscope And Walk” é mais um belo exemplar do rock psicodélico que 1967 emoldurava. Isso se deve em parte, principalmente na primeira parte – ou melhor, até onde vai a seção cantada, a pouco mais dos 30 segundos iniciais, tendo em vista que o restante, exceto o rápido desfecho, é tomado de delírios instrumentais da banda inteira – a Barrett, que se vale, novamente dos cacos e sons guturais em conjunção com os efeitos e as texturas sonoras para compor o arranjo.

Centro do disco, a já mencionada “Interstellar Overdrive” é um hino lisérgico, que se assemelha em formato e proposta a outro clássico do rock composto naquele mesmo ano: “Heroin”, do Velvet Underground. Quase uma pequena sinfonia, começa como um hard rock cuja semelhança à sonoridade de Black Sabbath e Led Zeppelin não é mera coincidência. A 2 min e 20, a guitarra parece trancar como se tivesse arranhado o sulco naquele ponto (novamente, sente-se o estranhamento com o tempo). Essa ideia – lapidada pela maestrina do pós-jazz Carla Bley em “Musique Mecanique III”, de 1979 – reproduz no instrumento outra das peculiaridades da música de Barrett: os fonemas cacofônicos, ditos com certo engasgo. É como se fosse o sintoma da formação de uma linguagem atípica e excêntrica do Asperger, aliado ao dos padrões repetidos da doença, traduzido para música, para arte.

Seguem-se cerca de 7 minutos de improviso de toda a banda, que forma uma sonoridade espacial, quando não de uma viagem alucinógena ou uma trilha de filme de ficção científica. Até que, quase no fim do tema, um ruidoso e longo rolo de Mason traz de volta o riff inicial. Mas... algo estranho está embaralhando os ouvidos e os sentidos... É Norman Smith mais uma vez valendo-se do aparato do Abbey Road e de sua técnica como produtor operando uma radical alteração do balance, o qual joga rapidamente todo o som de um lado para o outro nas caixas de som: enquanto uma fica em silêncio, a outra recebe toda a massa sonora. Isso gera um efeito de desequilíbrio, espiral, revolto, que age diretamente sobre os sentidos humanos. Parece que se está escutando a arte da capa do disco. Impossível ficar impassível, pois o efeito atingido aqui pelo Pink Floyd chega a ser físico. Por todas essas particularidades, “Interstellar...” pode-se dizer a precursora do rock progressivo, que faria tantas bandas surgirem ou aderirem (como o próprio Pink Floyd em certa medida) nos anos 70.

Aí, como se nada tivesse acontecido, colada à intensa “Interstellar...”, entra a faixa seguinte, “The Gnome”: uma singela ciranda infantil sobre seres elementais. Só que não! Igualmente brilhante e consideravelmente sinistra, “The Gnome” (“Quero te contar uma história/ Sobre um homenzinho/ Se eu puder/ Um gnomo chamado Grimble Crumble/ E pequenos gnomos que ficam em suas casas/ Comendo, dormindo, bebendo vinho...”) realça o belo timbre de voz de Barrett e sua pronúncia elegante – o que confere ainda mais obscuridade ao tema. Os cacos fonéticos e a preferência por vocábulos “engasgados” (“GRimble”, “CRumble”, “tunIC”, “ADventure”) aparecem em abundância, intensificados pela dicção do cantor.

Rivalizando com outras duas canções daquele ano, “Within You Without You”, dos Beatles, e “The End”, dos Doors, “Chapter 24” ergue uma mística capela sonora. Wright é exímio ao imitar nos teclados o som de um fole nórdico. A percussão, inteligente, é apenas nos pratos e sinos, emprestando muita naturalidade. Apenas o baixo é mais “moderno” na sonoridade de “Chpater 24”, haja vista que o canto de Barrett soa quase litúrgico. Talvez a mais linear faixa do disco – se é que dá pra classificar qualquer uma das peças assim, tão simploriamente –, abre caminho para a totalmente medieval “Scarecrow” com suas flautas celtas e percussão barroca. Genialmente, Barrett dissolve qualquer noção de tempo – o mesmo “tempo” que ele, mentalmente perturbado, não consegue apreender. A bela letra é talvez a mais autobiográfica e – haja vista a metáfora essencial, a comparação de si com um “espantalho” – tristemente reveladora. Merece ser reproduzida por completo:

“O espantalho preto e verde
Como todo mundo sabe
Ficava com um pássaro no seu chapéu
E palha por todo lado
Ele não se importava
Ele ficava num campo onde o milho cresce
Sua cabeça não pensava, seus braços não se moviam
Exceto quando o vento soprava
E ratos corriam pelo chão
Ele ficava num campo onde o milho cresce
O espantalho preto e verde é mais triste do que eu
Mas agora ele está resignado com seu destino
Pois a vida não é má
Ele não se importa
Ele fica num campo onde o milho cresce.”

O que resta a um disco impecável como este? “Scarecrow”, por seu final quase épico, dá indícios de fim. Mas clássico que é clássico tem mais uma joia reservada. É o caso da originalíssima e sarcasticamente circense “Bike”, forjada sobre um único compasso. A voz de Barrett, tão cristalina quanto alucinada, joga versos em demasia sobre os intervalos – mas eles fazem caber no tempo musical, hábeis em harmonia como são. A festa no picadeiro lúgubre parece terminar a 1 min 45', mas sons de bugigangas (entre estas, relógios, como os que aparecerão 6 anos mais tarde em “Time”, do “The Dark Side of the Moon”), comandados pelos teclados fasmáticos de Wright, entram para preencher o restante da faixa a la John Cage. Esta, no entanto, termina da talvez mais apavorante forma que qualquer disco da música pop – e olha que bate muita dark music. O volume vai baixando aos poucos, anunciando o final, quando surge um som que parece ser de uma boneca enguiçada. Misto de gargalhada macabra com urro de dor e de prazer carnal, vai subindo até um clímax, que chega a chocar os ouvidos. Porém, logo em seguida, vai caindo até terminar o disco finalmente. Dá para imaginar uma cena de filme de terror em que o palhaço assassino aproxima-se, chegando a centímetros do escondido e amedrontado perseguido, mas que, não o encontrando, afasta-se e vai embora. No quarto de brinquedos, quebrados e tristes, está terminada a obra sinistra de Barrett e Cia.

A aparente infinita inventividade de Barrett, por infelicidade, teve sim um fim. Acometido pela deterioração mental, agravada pelo exagerado uso de drogas, Barrett afastou-se da banda antes de lançar um segundo trabalho com eles, restando apenas mais uma (e igualmente brilhante) composição sua em “A Saucerful of Secrets”, de 1968: “Corporal Clegg”. Vieram ainda duas obras-primas solo em 1970: “The Madcap Laughts” e “Barrett”, nos quais já se nota o progressivo agravamento do quadro físico e psíquico. Logo em seguida, entra numa reclusão autoimposta de 30 anos até a morte, em 2006. Porém, os parcos 6 anos em que produziu seguem influenciando profundamente a cultura pop meio século depois de seu surgimento em “The Piper...”. Para o próprio Pink Floyd foi assim: com talento, souberam apreender e reelaborar o legado de seu ex-líder, avançando em suas ideias mas mantendo-lhe uma ligação permanente. Mesmo com as capacidades criativas de e liderança tanto de Waters quanto de Gilmour, o Pink Floyd foi e sempre será como um tal personagem de conto de fadas chamado Syd Barrett.

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“The Piper…” teve, em 1967, uma edição norte-americana que, além de alterar a ordem das faixas e suprimir duas delas (“Bike” e “Astronomy Dominé”), conta com uma nova, “See Emily Play”.  Em 1974, os dois primeiros álbuns do Pink Floyd são reunidos num único volume, “A Nice Pair”. Ainda, “The Piper...” consta na íntegra com outros discos nas caixas “First XI” (1979), “Shine On” (1992), “1997 Vinyl Collection” e “Oh By the Way” (2010).

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FAIXAS:
1- "Astronomy Domine" – 4:12
2 - "Lucifer Sam" – 3:07
3 - "Matilda Mother" – 3:03
4 - "Flaming" – 2:46
5 - "Pow R. Toc H." (Nick Mason, Richard Wright, Roger Waters, Syd Barrett) – 4:26
6 - "Take Up Thy Stethoscope and Walk" (Waters) – 3:05
7 - "Interstellar Overdrive" (Barrett, Mason, Waters, Wright) – 9:41
8 - "The Gnome" – 2:13
9 - "Chapter 24" – 3:42
10 - "The Scarecrow" – 2:11
11 - "Bike" – 3:21
todas as composições de autoria de Syd Barrett, exceto indicadas

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por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Discos para (e de) quarentena


A Queen, isolada numa
fazenda para gravar sua
obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente, ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.

Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não. Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas de melhores em vários níveis.

Woodland, a casa que viu nascer
"Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não é exatamente isso?

Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audição nestes dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é capaz de sanas nossas mentes.


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1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil

Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens”.

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2. “Music from Big Pink” – The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA

Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada.


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3. “Trout Mask Replica” – Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA

O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em 2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.”

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4. “Gilberto Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil

Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna observa, abismado, que "Gilberto Gil" “é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”, “Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.

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5. “Barrett” – Syd Barrett (1970)
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra

Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação (e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos discos cinquentões de 2020.

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6. “Led Zeppelin IV” – Led Zeppelin (1971)
Local: Headley Grance, East Hampshire, Inglaterra

Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o “IV” (ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não. Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".

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7. “Exile on Main St.” – The Rolling Stones (1972)
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França

Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe  do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.



8. “Rock Bottom” – Robert Wyatt (1974)
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra

O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.



9. “A Night at the Opera” – Queen (1975)
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales

A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima. Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...” logo estourou, entrou para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma obra-prima.



10. “Changin' Times” – Ike White (1976)
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA

Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.



11. “Bedroom Album” – Jah Wabble (1983)
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra

Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.

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12. “Blood Sugar Sex Magik” – Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que os malucões da Red Hot gravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk, punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas e ir para as paradas.



13. “Wish” – The Cure (1992)
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra

A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações. Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas, lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou “Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.



14. “Ê Batumaré” – Herbert Vianna (1992)
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil

Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje, paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”, assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não. À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira – sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza, considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.



15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.


Daniel Rodrigues
Colaboração: Cly Reis