A chapa esquentou pro clima, hein?! Preocupado com o planeta, o MDC também eleva a temperatura, mas com música boa de todas as estações. Tem Daft Punk, John Lennon, Brian Eno, Titãs, Henri Mancini e mais, como o Cabeção, que celebra os 60 anos de Renato Borghetti. Seja no verão ou no inverno, o termômetro começa a funcionar às 21h na refrigerada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e muito líquido: Daniel Rodrigues.
Não sei quanto a quem não é cinéfilo de carteirinha, mas mais de uma vez me surpreendi tanto com a abertura de um filme, que a sensação imediata era a de quem nem precisava mais continuar assistindo. Foi assim quando, em 1995, na companhia de vários amigos – em sua maioria absoluta amantes de cinema mas não necessariamente cinéfilos – reunimo-nos para ver o VHS locado de “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, do Quentin Tarantino. Eu não havia visto “Cães de Aluguel” ainda, seu primeiro e anterior longa, embora já ouvisse todo o debate em torno do nome do cineasta que dizia-se estar revolucionando o cinema. Mas o que me despertava maior interesse era, principalmente, porque o filme em questão havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. Isso, mais do que toda a celeuma sobre Tarantino significar ou não um novo capítulo na história da 7ª Arte (o que poderia ser, escaldado que sou, um exagero proposital, comum na mídia), de fato me surpreendia. Cannes desde cedo em minha vida cinéfila fez muito sentido, pois cresci assistindo seus premiados e indicados, que não raro eram (ainda são) alguns dos melhores filmes que já assisti, como “A Balada de Narayama”, “Coração Selvagem” e “Mephisto”. No caso de “Pulp Fiction”, ainda mais por saber tratar-se de um filme “comercial” norte-americano e não algum cult europeu ou asiático, isso, sim, chamava-me mais a atenção e despertava a curiosidade de vê-lo.
Pusemos a fita no videocassete. A grande maioria sabe o que acontece nos primeiros minutos de “Pulp Fiction”, né? A sequência do diálogo entre Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) antes de assaltarem o restaurante e a entrada triunfal dos letreiros iniciais com “Miserlou” de Dick Dale arrasando com um surf-rock na trilha e, ainda pelo meio dos créditos, a mudança de música, como se alguém tivesse mudado uma estação de rádio para o funkão “Julgle Boogie”, da Kool & The Gang. Tudo aquilo, o estilo; a atmosfera pop; a inteligência da montagem; o bom gosto musical; o tom de tele-seriado B; a referência a Godard no nome da produtora A Band Apart: toda essa sequência minimamente bem pensada de como iniciar um filme me fez ficar absolutamente estarrecido. Somava-se a isso a engenhosidade da montagem no momento em que Pumpkin e Honey Bunny levantam-se sobre o banco do restaurante (e Roth diz: “I love, Honey Bunny”, e eles se beijam em close antes de apontarem as armas) e anunciam o roubo, a imagem congela e mantém-se o áudio das falas – estas, aliás, extremamente musicais, tanto que se tornam inseparáveis da música de Dale que vem na sequência no próprio disco da trilha sonora. Apaixonei-me pelo filme que mal havia começado.
"Pulp Fiction", Quentin Tarantino (1994)
Excitado, eu olhava para meus amigos na sala enquanto aquela série de genialidades iam surgindo da tela para observar suas reações, mas todos, embora estivessem, sim, gostando, nem de perto se exaltavam como eu. Aquele sentimento de arrebatamento era única e exclusivamente meu. Cheguei a perguntar, incrédulo: “Gente, vocês estão vendo a MESMA coisa que eu?!”. A resposta? Com desdém adolescente: “Sim, Dani, o que é que tem? O filme tá recém começando”. Sim, o filme estava recém começando, mas não de um jeito normal. Para mim (e para muito cinéfilo e estudiosos do cinema) confirmava-se ali a tal revolução cinematográfica atribuída a Tarantino. Não precisava nem ver o filme por completo: era certo que o cinema, então a 4 anos de completar seu primeiro século de existência, mudava a partir dali, e isso era o máximo de eu estar presenciando. Aprendi, naquela situação, que não era uma pena meus amigos não estarem vendo o mesmo que eu: era, sim, o que me diferenciava do senso comum na forma de ver e sentir cinema.
Não foi a primeira abertura de filme que me surpreendeu a de “Pulp Fiction”, claro, mas é certo que esta sensação de entusiasmo se me repetiu várias vezes. Seja em casa ou numa sala de cinema, de vez em quando sou pego de surpresa com algum começo de filme que, como um bom disco de música, sabe dar o start certo e cativar de cara quem o está apreciando, mesmo que a obra em si não corresponda tanto a seu bom início – embora seja geralmente um bom indicativo. Pois essa lista se propõe a elencar justamente isso: não os filmes inteiros, mas seus primeiros minutos. A rigor, por “openning scene” entendemos não somente o design de créditos, mas o suficiente para apresentar o filme, embora não seja necessariamente uma regra.
A junção de fatores, a inventividade na disposição dos letterings, a edição, o prólogo, o design, o impacto da cena, o significado simbólico para com a história que será contada: tudo conta para impressionar e construir uma introdução digna de memória. As maneiras de fazer, assim como de se contar uma história em imagens, são infinitas, e não há um jeito melhor que outro. O critério para a escolha destes 30 exemplos sem ordem de preferência – e que pode tranquilamente ser ampliada por novos filmes ou por títulos aos quais não me ocorreram – é apenas o da sentir-se conquistado já na largada por uma obra cinematográfica. Aqueles filmes que, contrariando a lógica, recomendo que não sejam necessariamente vistos até o final. Os primeiros minutos já bastam.
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“Era uma Vez no Oeste”,Sergio Leone(1968)
São pouco mais de 7 min de puro deleite daquela que é
provavelmente a melhor abertura de um filme de todos os tempos. O filme de
Leone, aliás, por si merece essa alcunha, mas se se destacar apenas o seu começo
já está mais do que bem representado. O design, o cenário, os enquadramentos, a
disposição criativa dos letterings, o tempo da montagem, a arte e o figurino, a
fotografia. Tudo em perfeita sintonia e, mais que isso, conceitual, visto que
apresenta, sem precisar valer-se da poderosa música de Ennio Morricone e quase
sem nenhuma palavra dita, tal westerns do cinema mudo, as ideias centrais do filme:
o embate ideológico entre passado e futuro, entre vida e morte, entre instinto e consciência..
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“Cassino”,Martin Scorsese(1996)
Lembro também de, no cinema, sentir a reação da sala ao
surpreender-se com a explosão do carro do personagem Sam Rothstein, vivido por
Robert DeNiro, em “Cassino”, nos idos de 1996. Uma reação espontânea do
público, que, assim como eu, era abduzido para dentro da história em poucos
minutos de fita transcorridos. Scorsese, justificadamente fã de Saul Bass,
conseguira em vida trabalhar com o mestre do design de créditos
cinematográficos ainda em dois filmes: “Cabo do Medo”, de 1991, e neste, do ano
em que ele morreu.
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“Fahrenheit 451”,François Truffaut (1966)
A nouvelle vague foi o movimento que melhor soube subverter os padrões da linguagem cinematográfica. Esta ficção científica de forte crítica filosófica baseada na novela e Ray Bradbury, além de ser um dos melhores filmes de Truffaut e do cinema, inova desde o seu primeiro minuto. E de forma simples. Aliás: simples em formato, haja vista que se engendra apenas por uma sequência de imagens estáticas e monocromáticas em zoom in e uma locução que descreve aquilo que geralmente apareceria escrito. Porém, a simplicidade da sequência de "Fahrenheit 451" é de uma criatividade tamanha, visto que traduz conceitualmente o principal elemento da história, que é a proibição de qualquer material escrito num futuro distópico. Genial e simples.
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“Cidade de Deus”,Fernando Meirelles e Katia Lund(2002)
A experiência com "Cidade de Deus" também foi inesquecível. Fui assisti-lo pouco depois de seu lançamento já tomado pela fama em torno do filme. Na sala de cinema, pude comprovar estar diante da obra que demarca o antes e depois do cinema brasileiro, o filme que deu fim à dolorosa era da Retomada. E sua sequência introdutória (“Pega a galinha, pega a galinha!”), com a faca cintilante simbolizando o perigo, os fragmentos de imagens intercaladas por legendas, a foto em cores pulsantes, o som da lâmina sendo afiada misturado ao do samba para devorar a ave fujona. Uma cena de tensão que se cria em poucos minutos e que já diz a que o filme viera: para revolucionar o cinema nacional e mundial.
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“Um Corpo que Cai”,Alfred Hitchcock (1956)
Saul Bass foi, inegavelmente, o gênio do design de créditos em cinema. E quando a genialidade dele se encontrava com a de outros, como, no caso, Alfred Hitchcock, com quem colaborou mais de uma vez, aí era gol certo. Altamente conceitual, como os videoclipes musicais que passariam a existir apenas décadas depois, a entrada de "Vertigo", com o casamento perfeito com a trilha de Bernard Hermann e os efeitos especiais bastante ousados e criativos para sua época, ainda surpreendem. Se hoje fosse feito por computadores já seria louvável, imagina em 1956.
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“Psicose”,Alfred Hitchcock(1960)
Outro da colaboração Bass/Hitchcock, "Psicose" vale-se dos tradicionais grafismos que eram comuns ao trabalho de Bass, dono de um traço magnifico. A assustadora trilha de Hermann, sinônimo de thriller de suspense, é traduzida por linhas retas paralelas em p&b que se deslocam horizontal e verticalmente em conjunção com as letras, geram uma sensação de instabilidade e não-linearidade, ideia a qual, por sua vez, simboliza a perturbadora história do assassino psicótico Norman Bates. Junto com "Vertigo", aquele que é considerado o grande filme de Hitch. Não à toa.
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“O Segundo Rosto”,John Frankenheimer (1966)
Mais uma de Bass, esta perturbadora abertura de "O Segundo Rosto" é um verdadeiro exercício artístico. Valendo-se de potente trilha de Jerry Goldsmith e da trama de suspense psicológico do filme de Frankenheimer, Bass explora distorções como as do expressionismo alemão e carrega nas sombras e imagens projetadas em espelhos para, já de início, entrar na mente do espectador, que, a se confirmar pelo excelente longa, será conduzido a um mundo de medos e aflições internas. Poucas vezes uma introdução casou tão bem com a ideia central de uma obra.
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“O Jogador”,Robert Altman(1992)
Esta cena já esteve destacada aqui no Clyblog por outro
motivo: o plano-sequência. Pois Altman consegue com este engenhoso desenho de
cena não apenas criar uma das melhoras sequências sem corte da história do
cinema (afinal, o próprio filme trata sobre os bastidores da sua indústria) como, por conta
exatamente disso, causar um incrível impacto já no início do filme, visto que o
plano-sequência é justamente o que o abre. Altman, dos melhores do cinema autoral dos Estados Unidos, sabia como ninguém abrir suas obras, haja vista "Nashville", "M*A*S*H*" ou "Três Irmãs", mas nada bate a de "O Jogador".
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“Magnólia”,Paul Thomas Anderson(1999)
Outro dos que fui assistir no cinema é fui totalmente
arrebatado. Também pudera: que forma criativa de se começar um filme! P.T.Anderson põe pra baixo o queixo do espectador num prólogo ao mesmo tempo
divertido e instigante, que relaciona fortuitos momentos da história, para, ao final, triunfantemente, soltar a imagem da flor "Magnólia" abrindo-se em velocidade acelerada sobre a projeção de diversos vídeos. Além disso, tem a
apaixonante música de Aimee Mann, a quem nem conhecia e passei a adorar por
causa da trilha do filme. Inteligentemente, a aparente dissociação dos
acontecimentos do prólogo antecipa a trama coral proposta pelo roteiro e a nada
casual relação entre aquelas histórias paralelas. “Isto não foi uma
coincidência”.
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“O Homem do Braço de Ouro”,Otto Preminger(1955)
Bass de novo, aqui na sua forma mais naturalmente criativa e
genial: grafismos e desenhos com seu traço característico sobre um fundo preto
e legendas sendo dispostas em conjunto com a música de Elmer Bernstein. A
primeira parceria do designer com Otto Preminger, com quem trabalharia em vários
outros projetos, também explora os meandros obscuros da mente humana, no caso,
de um baterista de jazz viciado em heroína vivido incrivelmente pelo jovem (mas
já ídolo) Frank Sinatra. Só o desenho do braço distorcido já é uma das mais
felizes contribuições de Bass para a história do cinema e do design.
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“A Marca da Maldade”,Orson Welles (1958)
Outro que, assim como "O Jogador", também tem um dos grandes
plano-sequências da história cinematográfica para começar o filme. Porém,
havemos de dar ainda mais mérito para o sempre inquieto e criativo Orson Welles
em ousar abrir um filme deste jeito nos anos 50, quando o cinema e os
espectadores tinham como padrão o formato convencional de créditos iniciais. Nunca se
havia visto uma cena de abertura tão complexa, com vários atores e figurantes em cena,
câmara em travelling, mudança de enquadramento de primeiríssimo plano para
planos médios e grande, num espaço físico extenso e com direito até à explosão.
E tudo isso SEM corte. Caramba! Como se não bastasse, o longa confirma todas as
expectativas de seus de minutos iniciais naquele que é, talvez, o grande de
Welles.
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“Uma Mulher É uma Mulher”,Jean-Luc Godard(1961)
Godard, assim como Truffaut e seus companheiros de nouvelle
vague, nunca deixaram de inovar a maneira de começar a contar suas histórias. O
suíço, aliás, comumente radical, já fez muito filme que, a rigor, não começa
nunca – e nem “termina”, consequentemente, como “Je Vous Salue, Marie” ou “FilmSocialisme”. Mas uma das marcas que Godard nunca abandonou é o trato formal da
tipografia dos letterings, os quais se utiliza geralmente com fontes
não serifadas tipo Futura ou Arial (e nas cores da bandeira da França) sobre
fundo escuro, encurtando os limites entre poesia concreta, cinema, vídeoarte e
literatura. Caso de “Uma Mulher é Uma Mulher”, que ele faz a proeza de apresentar genialmente
em menos de 2 min.
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“Fellini 8 1/2”,Federico Fellini(1963)
Fellini não cria suspense nenhum em relação ao nome do filme, o
qual aparece já no segundo frame sobre fundo escuro na forma da conhecida logo.
Mas a partir dali o que se vê até os 3 min que se transcorrem é a mais absoluta
genialidade felliniana. A história do cineasta pressionado pela crise de
criatividade é expressa numa espécie de prólogo onírico minuciosamente bem
construído. O claustrofóbico engarrafamento, cuja mudez é ensurdecedora, e os
olhares condenatórios à sua volta, sufocam aquele homem sem rosto dentro de seu
carro a ponto de fazê-lo... sair voando! A lindeza do sonho se encerra numa
praia, sobrevoando o mar e sendo puxado por uma corda da areia por ele próprio,
que tem a companhia de um homem de capa sobre um cavalo negro. E o melhor: o oitavo filme (mais um média) de Fellini mantém esse nível até o fim.
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“2001: Uma Odisseia no Espaço”,Stanley Kubrick(1969)
A ficção científica
que estabeleceu o padrão do gênero para sempre é uma aula de narrativa para
realizadores até hoje, o que inclui sua marcante abertura. Copiado e
referenciado centenas de vezes, o início de "2001", de apenas 1 min30’, é,
contudo, dos mais originais da história da 7ª Arte. Traduzindo em imagens
siderais grandiosas a impactante abertura da sinfonia "Also Sprach Zarathustra",
de Richard Strauss, Kubrick mostra o raro alinhamento do planeta com Sol com a
Lua valendo-se, para isso, de poucos mas precisos elementos: tela escura que
vai aos poucos revelando a imagem e apenas três letreiros em tipografia Futura: “Metro-Goldwyn-Mayer Presents”, “A Stanley Kubrick Production” e o nome do
filme em tamanho maior (com o detalhe do Copyright abaixo bem pequeno). Separadamente
do filme, só esse trecho já pode ser considerado uma obra-prima.
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“O Poderoso Chefão”,Francis Ford Coppola(1972)
Este é um caso de uma forma própria de apresentar a
história. O nome, através da bela logo com a mão divina comandando a marionete com
o letreiro “Mario Puzo’s The Godfather” e os acordes da clássica música tema de Nino Rota, já
está garantido no segundo frame. Porém, os 6 minutos seguintes apenas de
diálogos traduzem diversos níveis narrativos e simbólicos que serão trazidos
nas quase 3 horas de fita subsequentes. As relações de poder, a inteligência
manipuladora do Padrinho, os valores familiares, os papeis sociais, os meandros
dos poderosos... muita coisa é dita ou subentendida até o momento em que Vito
Corleone (Marlon Brando, espetacular) cheira a rosa de sua lapela e dá-se continuidade
à “festa”.
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“A Terceira Geração”,Reiner Werner Fassbinder(1979)
Um dos maiores estetas do cinema, o alemão Fassbinder deve muito de suas criativas aberturas de filmes a um contemporâneo e conterrâneo seu ligado à arte moderna a quem muito se inspirava para isso: Joseph Beuys. Não raro, as introduções de seus filmes referenciam o estilo de Beuys, com tipografias monocromáticas dispostas sobre imagens em movimento ou estáticas, criando peças dignas de galerias expositivas. O começo de “A Terceira Geração” é um deles, com os créditos pulsando no ritmo de uma batida cardíaca enquanto vão sendo apresentados sobre um zoom out que vai descortinando um apartamento com telas, móveis e pessoas.
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“Assassinos por Natureza”,Oliver Stone(1994)
Cineasta pautado pelo experimentalismo, Oliver Stone desde
seu primeiro longa, “Platoon”, de 1986, sempre soube começar bem um filme.
Porém, 8 anos depois, ao invés de tornar-se mais conservador, Stone mostra-se
saudável e surpreendentemente ainda mais ousado com o altamente pop e
sarcástico “Assassinos por Natureza”. O começo do filme é visivelmente influenciado pela
linguagem dos videoclipes da MTV, emissora à época em alta, seja pelos enquadramentos
distorcidos, pelo movimento de câmera frenético, pela alteração brusca de ISO
ou pela montagem de ritmo musical. Tão musical, que, na cena, o violento casal
espanca e mata pessoas em um restaurante com absoluto prazer ao som do
punk-rock da L7.
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“Persona”,Ingmar Bergman (1960)
Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Bergman tinha
total domínio da narrativa. Porém, a introdução de seus filmes invariavelmente
traziam a fonte Times sem serifa sobre fundo escuro. Mas Bergman sabia
quando contrariar o próprio estilo, e o profundo “Persona” incitou-lhe a isso.
Num conceito de vídeoarte – já existente nas galerias contemporâneas
mas pouco exploradas no cinema de arte –, o cineasta funde imagens em alta
profusão, usa fotos reais e ousa em enquadramentos e fotografia p&b. Tudo
de forma a criar uma atmosfera de sonho e fluidez do tempo/espaço o qual
Bergman tão bem constrói naquele que é considerado“o filme mais difícil de
todos os tempos”.
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“Cidadão Kane”,Orson Welles(1940)
Em seu primeiro longa, o então jovem Welles, com apenas 25
anos, inovava consideravelmente o modo de abrir uma história filmada. Aliás,
não somente essa parte, mas em diversos aspectos da linguagem cinematográfica
daquele que é ainda hoje para muitos o melhor filme de todos os tempos. Quanto
à introdução, mesmo com o título revelado imediatamente ao começo (seria muita
transgressão não informar pelo menos isso ao público da época), nunca havia se
visto um prólogo in média rés (com o qual se começa uma narrativa no auge da
ação antes de começar de novo para explicar como se chegou lá), tão comum hoje.
Enigmática (o que será aquele "Rosebud" dito antes do cara morrer?!), a primeira imagem que aparece traz uma placa com a mensagem “No
Trapessing” (“Não Ultrapasse”). Era Welles, o mesmo que anos antes havia
apavorado multidões com a transmissão em rádio d'"A Guerra dos Mundos", manipulando
o subconsciente do espectador.
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“Manhattan”,Woody Allen(1979)
Assim como Bergman, Allen tem um estilo geralmente muito próprio de iniciar seus filmes, quase que invariavelmente com legendas em fonte tipo Windsor Light Condensed e uma música inteligentemente bem selecionada para sonorizar. Porém, como o mestre sueco em "Persona", Allen também sabe transgredir a si próprio. Em "Manhattan", ao invés do fundo preto com letterings, ele monta uma pequena sinfonia urbana com uma sequência de imagens documentais e poéticas de sua Nova York num cristalino p&b. A sutileza da forma como anuncia o título (e nada mais que isso), num letreiro luminoso de uma rua qualquer do bairro, prevê a abordagem que será dada aos personagens do filme: todos meras continuações do próprio corpo da cidade. Poesia.
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“Laranja Mecânica”, Stanley Kubrick (1971)
Com total domínio do fluxo narrativo, Kubrick é um craque
das aberturas. "O Grande Golpe", "O Iluminado" e o já citado "2001: Uma Odisseia no
Espaço" são exemplos, mas outro diferenciado neste sentido é "Laranja Mecânica".
Uma música feita em sintetizador começa sobre uma tela vermelha até quase 30
segundos, quando finalmente surgem os primeiros letterings numa tipografia Arial
negritada. Percebe-se, então, que a tal música é uma versão eletrônica da peça “Music
for the Funeral of Queen Mary”, de Henry Purcell, do século XVII. O fundo
vermelho se transforma em azul e, de novo, em vermelho para anunciar o nome do
filme. Até que, num corte brusco, muda para o close da figura andrógena de Alex
(Malcom McDowell), personagem principal da história de Anthony Burgess. Dessa
imagem, Kubrick não corta novamente e, sim, a faz prosseguir num travelling frontal-out
sob o off do brilhante texto que reproduz o fluxo de pensamento de Alex, o qual
situa o espectador do universo de distopia que se verá a partir dali.
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“Arizona Nunca Mais”, Joel e Ethan Coen (1987)
A abertura do segundo e cativante filme dos irmãos Coen,
quando eles ainda eram uma revelação, no final dos anos 80, é tão criativa, engraçada,
pop e publicitária (no bom sentido), que serve como trailer. A história do assaltante
pé-rapado H.I. McDonnough (Nicholas Cage) contada em off por ele mesmo enquanto
as imagens vão sendo exibidas com a trilha magistral de Carter Burwell – suas idas
e vindas pra cadeia, os personagens bizarros que conhece no caminho – denotam, pelo
brilhante texto, principalmente, seu coração bom. O mesmo que o faz conhecer o
amor de sua vida, a policial Ed (Holly Hunter). Depois, eles resolvem
sequestrar um dos sete bebês da ricaça família Arizona, mas aí é que a história
mesmo começa...
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“Alien: O 8º Passageiro”, Ridley Scott (1979)
Lembrando a abertura de "2001", filme ao qual Scott bastante
homenageia neste revolucionário terror espacial, tem, assim como na obra de
Kubrick, um desenho de cena simples mas muito eficiente. Uma câmera se desloca
no espaço da esquerda para a direita em uma panorâmica enquanto veem-se
manchas brancas surgirem, as quais vão formando numa uniformidade não-sequencial o nome
“Alien” em uma fonte pesada e sem serifa. Não há nos créditos, mas diz que
também é obra de Saul Bass.
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“Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, Terry Gilliam e Terry Jones (1975)
Como avacalhar os créditos iniciais de um filme? O grupo Monty Python tem a resposta. Em “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, usando praticamente só tipografia e tela preta, eles conseguem subverter tudo que se imagina de uma opening scene. Sob uma trilha austera, os subtítulos são exibidos, até que, bem abaixo, algumas palavras com caracteres escandinavos começam a aparecer. Frases totalmente desconexas como “Não vai ter feriado na Suécia este ano?” ou uma história esquisita de um alce que mordeu a irmã de alguém. Eis, então, que surge um crédito para explicar o erro nos créditos: “Nos desculpamos pela falta de subtítulos. Os responsáveis foram despedidos”. Muda a música, mas as intromissões continuam, e um novo aviso, agora de que os responsáveis por demitir os demitidos também foram demitidos. Já com uma absurda trilha mexicana, a confusão segue até o fim e, com muito “esforço”, conseguem dar o nome dos diretores: Terry Gilliam e Terry Jones, principais responsáveis por essa bagunça toda.
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“007: O Espião que me Amava”, Lewis Gilbert (1977)
Poderia citar vários tanto anteriores ou posteriores a este filme, mas esta de "O Espião que me Amava" se tornou uma referência dentro da própria franquia. A começar que a abertura com créditos nunca está dissociada do prólogo, que sempre começa com a famosa “gun barrel sequence”, em que um vilão qualquer está olhando por uma mira e vê 007 entrar em cena e atirar contra ele. Depois, os minutos de ação, neste caso, mostrando o agente em duas de suas situações comuns: namorando e se aventurando. Já a abertura em si, assinada pelo mestre Maurice Binder, designer gráfico que estabeleceu o estilo das clássicas aberturas dos filmes de James Bond, consolidaria os elementos que caracterizariam para sempre as chamadas iniciais da série: arte figurativa com efeitos de elementos da história, uso da figura/silhueta de figuras e pessoas - como a do próprio ator que faz JB (Roger Moore à época) -, a fonte Arial fina e branca, o disparo de pistola e, claro, uma trilha especial feita para aquele filme, no caso "Nobody Does it Are Bether", com a Carly Simon – das melhores.
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“Crepúsculo dos Deuses”,Billy Wilder (1945)
O sucesso de consagradas comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” e “Quanto Mais Quente Melhor” fez com que Wilder ficasse pouco lembrado por outros gêneros como o suspense e o drama aos quais, contudo, ajudou a solidificar um novo padrão de qualidade na Hollywood dos anos 40 e 50. Este clássico do cinema é uma prova de sua versatilidade, o que deve bastante de seu impacto pela forma como inicia. O modo aparentemente fortuito como o título aparece, numa placa indicando o mítico endereço “Sunset Boulevard”, é precedido por uma câmera em travelling filmando o asfalto cinza na direção de algum lugar específico. É onde está o corpo desfalecido do narrador. Sim! Como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em "Crepúsculo dos Deuses" é o morto, afogado numa piscina, quem está narrando pleno de consciência de seu estado moribundo. Impossível não ter curiosidade de assistir até o fim.
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“Apocalypse Now”, Francis Ford Coppola (1979)
Não há nenhuma palavra escrita dizendo que filme é. Mas nem precisa. O grande plano de uma floresta é aos poucos invadido por helicópteros que cruzam a tela e uma fumaça começa a levantar. Percebe-se, porém, que a fumaça não é de areia, mas, sim, o venenoso napalm. Até que várias bombas caem sobre a mata, provocando gigantescas explosões. A música que toca não podia ser outra: “The End”, da The Doors. É um presságio. É a guerra. É o Vietnã. É “o horror”. Diversas imagens apocalípticas se fundem ao rosto de um homem em close, o personagem principal do filme, o perturbado Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen). A sensação de quebra no tempo perfaz todo o longo filme, que perscruta os mais terríveis meandros psicológicos da guerra.
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“Cléo das 5 às 7”, Agnés Varda (1962)
Outra grande esteta do cinema moderno, Varda pautou toda sua filmografia pela inventividade narrativa e estética, a qual passava por um filtro muito pessoal. Em "Cléo das 5 às 7", seu primeiro longa, fica clara esta criatividade seja na forma como no conteúdo. A mesa de uma cartomante é filmada em plongê mostrando somente o baralho e as mãos dela e da cliente. Os subtítulos em branco são gerados conforme a disposição das cartas sob um silêncio que provoca tensão. Que mensagem as cartas vão dizer? E dizem: a jovem Cléo tem apenas 2 horas de vida, o tempo que o filme transcorrerá: das 5 da tarde às 7 da noite. Varda dá um show em montagem e no jogo simbólico entre cor, que aparece somente quando as cartas são lidas (supostamente, enquanto ainda há vida), e p&b, que domina o filme, marcado pela agourenta previsão que atormentará a personagem.
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“A Pantera Cor-de-Rosa”, Blake Edwards (1963)
Um modo interessante de se abrir filmes – e que fecha muito bem para comédias – é a animação. No entanto, como as da série Pink Panther, não tem igual, principalmente a do primeiro da franquia. A atrapalhada mas elegante pantera de cor exótica criada pelo próprio Blake Edwards virou desenho animado para a TV depois do filme tamanho o sucesso que fez exatamente na abertura do filme, assinada pelos designers e animadores David H. DePatie e Fritz Freleng. Aliás, este é o único momento em que ela, fugindo do ainda mais atrapalhado inspetor Jacques Clouseau, aparece, visto que o nome Pantera Cor-de-Rosa é o de uma pedra preciosa na trama. Além da simpatia da Pantera, ainda tem a infalível trilha do genial Henri Mancini, uma música altamente charmosa e de fácil assimilação, tanto que virou o tema de jazz mais conhecido de todos os tempos.
"Como se estivesse escrito em minha alma de mim para você."
Verso da letra de "Tangled Up in Blue"
A intenção deste texto não é falar sobre “Blood on the Tracks”. Assim como outros vários discos de Bob Dylan, esta obra-prima merece estar entre os fundamentais de qualquer discoteca rock como “Desire”, “Besament Tapes”, “Planet Waves”, “The Freewheelin' Bob Dylan” ou os aqui já resenhados “Blonde on Blonde”, "Bringing It All Back Home" e "Highway 61 Revisited".
Na verdade, é quase irrelevante comentar que “Blood...” é considerado por muitos o seu melhor trabalho; que, confessional, foi escrito sob a dor dilacerante de um casamento desfeito; que a "cozinha" que lhe acompanha é a clássica The Band; ou que traz algumas das melhores letras e arranjos da carreira de Dylan, da lindeza de sua faixa de abertura, "Tangled Up in Blue"; da emocionante balada arrependida “If You See Her, Say Hello”, uma das mais belas do cancioneiro rock; do blues infalível "Meet Me in the Morning"; do desfecho primordial de “Buckets of Tears”. Não, este texto não se propõe a falar sobre o óbvio. Pelo menos, não a esta obviedade. Quero falar, sim, sobre quando Bob Dylan me salvou. O que não é nenhuma novidade, visto que o Nobel de Literatura 2016 faz isso a uma geração inteira. Voz da cultura beatnik, foi vital para o ativismo social na década de 60 por causas mundiais como os Direitos Civis, o armamento nuclear e a Guerra do Vietnã. Também, o artista que mais do que ninguém, mais que Jean Cocteau, Jim Morrison ou Bertold Brecht, aproximou a literatura e a poesia da música.
Mas, para chegar a Dylan, tenho que falar antes sobre outro grande músico do século XX a quem também atribuo minha salvação: Henri Mancini. Impossível desvincular essa história, entretanto, de outra figura aparentemente nada a ver com esses dois, pois homem da política e longe de minha consideração: Alceu Collares. Todos a seu modo me levaram a mim mesmo e a “Blood...”. Mas voltemos à metade dos anos 90, quando eu era um jovem recém saído do 1º Grau do Ensino Fundamental. Como para muitos estudantes brasileiros diante desta etapa, tinha eu que escolher o que fazer da vida. Ano de 1994. Governador do Rio Grande do Sul àquela época, Collares, havia nomeado a igualmente incompetente esposa Neusa Canabarro para o comando da Secretaria de Educação do Estado. Ela, por sua vez, instituíra um sistema indigno e desumano de seleção e ingresso de alunos egressos para o 2º Grau que obrigava as famílias de alunos a formarem constrangedoras e quilométricas filas à porta de escolas estaduais semanas antes para, depois de noites e dias de chuva, frio, sol e perigos de violência, mendigar uma vaga.
Embora já tivesse certa noção de que a Comunicação era meu caminho, a curto prazo não via como algo a seguir. Filho de uma família de classe média pobre e da periferia, queria fazer o 2º Grau e, assim que possível, começar a trabalhar concomitantemente. Para isso, então, melhor era ver um curso técnico, que dava melhores perspectivas para esse plano. Havia uma escola pública que oferecia curso técnico de Publicidade, algo na área que me interessava, mas a procura a este curso, sabia-se, era extremamente disputada e as vagas eram poucas. Fora que, morando longe dessa escola, localizada noutro extremo da cidade, a logística imposta pela política estadual dificultava-nos ainda mais. Outra alternativa era a chamada Informática, algo hoje tão embrenhado na vida social mas que recém começava a surgir no Brasil naqueles idos. Revoltado com a condição desrespeitosa à sempre desfavorecida classe média daquele sistema educacional vigente, e diante da obrigação da escolha para que escola ir, neguei-me a colocar a mim e a minha família naquela situação de infinitas, insalubres, perigosas e aflitivas filas. Não podendo optar por algo mais a fim comigo, e nem mais tendo ao alcance vaga sequer em Informática, o jeito foi deslocar-me para mais longe e pegar o que viesse. Foi então que, por essas coisas que adolescentes não sabem medir, ingressei num curso de Eletrônica como se isso tivesse algum fio de relação com Informática – a qual, por si, já era uma segunda alternativa.
Óbvio que, no transcorrer do curso, as diferenças entre um ser das humanas como eu e um curso essencialmente das exatas como o de Eletrônica apareceram e ficaram cada vez mais evidentes. Afora os discos em casa, estava muito, muito longe de Dylan. Não via a hora de finalizar os três anos exigidos e partir para um cursinho pré-vestibular.
Consegui, em parte, no entanto, o que me propunha: trabalhar enquanto estudava, o que se deu dentro da própria escola, pois assumi, no contraturno, um estágio no almoxarifado do laboratório. Foi ali, numa noite fortuita, que um dos meus salvadores surgiu. Acompanhava o trabalho de dois alunos, que desenvolviam seu trabalho de conclusão conjunto, fornecendo-lhes os materiais necessários. Já cansados de tanto raciocinarem sobre diodos e transistores, lá pelas tantas começaram a falar sobre assuntos diversos para desanuviar. Em determinado momento, um deles, que gostava de música, quis fazer uma referência ao autor do tema da Pantera Cor-de-Rosa, que ele sabia, mas não se recordava do nome. Foi, então, que eu, de forma extremamente natural, pois era uma informação comum para mim, despretensiosamente ajudei-lhe: "Henri Mancini". A conversa terminou ali, pois o espanto do rapaz foi tamanho que chocou não somente a ele quanto a mim mesmo. Era-lhe tão improvável que o estagiário de almoxarifado soubesse com tanta facilidade quem era o autor de clássicos como "Blue Moon" e "Peter Gunn", que aquela informação não poderia ser descartada por mim. Eu estava gritantemente no lugar errado e meu primeiro salvador, Henri Mancini, me ajudava a tomar o rumo que a vida escolhera.
Corrigida a rota, fiz o pré-vestibular e entrei na faculdade de Jornalismo da PUCRS em 1999, onde pude confirmar categoricamente a assertividade da minha escolha profissional. Entre muitas lembranças, amigos e momentos inesquecíveis daquele tempo, um me marcou. E é aí que entra meu outro salvador. Se naquele episódio do laboratório de Eletrônica o ocorrido com Mancini transcorreu num dia qualquer do qual não guardo com exatidão, neste caso, a lembrança tem dia e ano certos: 24 de maio de 2001. Aniversário de 60 anos de Dylan.
Sem nenhuma combinação prévia, aquela data foi comemorada da maneira mais natural e devota que se possa imaginar. Foi absolutamente bonito e emocionante. Era uma celebração calma e solene: pelos corredores e salas de aula, as pessoas se cumprimentavam, como que celebrando um acontecimento familiar. Era como se um ente querido, um Deus, um salvador, estivesse completando mais um ciclo ao redor do sol e todos ali sabiam do tamanho simbólico disso. Não teve show, “parabéns pra você”, algazarra, nada diferente. Simplesmente, mestre Dylan fazia seis décadas e nós, cientes de que presenciávamos um momento especial, sabíamos que estávamos no lugar certo para compartilhar aquela felicidade. Para mim, assim como Mancini, Dylan não fez nenhuma força para isso: bastou-lhe a sua representativa existência.
Passadas exatas duas décadas daquela célebre noite na faculdade de Jornalismo, Dylan faz, hoje, 80. Muito trilhei depois daquele episódio, que serviu para me dar a certeza de que autoconhecer-se e ser coerente consigo é o melhor caminho. E que vale a pena correr atrás disso. Curiosamente, “Blood...”, considerado a salvação da alma do artista após o choque da separação, a mim represente também isso, porém noutros termos. Como outros álbuns dele, carregam essa força incomensurável de um artista que cumpre aquilo que os grandes são capazes: são fundamentais para o desenvolvimento da civilização, pois decifram o mistério do que somos, estabelecendo pontes entre nossas mentes e corações através de suas obras. Privilégio ter sido um dia, como milhares de outras pessoas, salvo por esse oitentão.
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FAIXAS:
1. "Tangled Up in Blue" – 5:42 2. "Simple Twist of Fate" – 4:19 3. "You're a Big Girl Now" – 4:36 4. "Idiot Wind" – 7:48 5. "You're Gonna Make Me Lonesome When You Go" – 2:55 6. "Meet Me in the Morning" – 4:22 7. "Lily, Rosemary and the Jack of Hearts" – 8:51 8. "If You See Her, Say Hello" – 4:49 9. "Shelter from the Storm" – 5:02 10. "Buckets of Rain" – 3:22 Todas as composições de autoria de Bob Dylan
Enquanto o pantanal queima e eles entregam nossos mangues para a especulação
imobiliária, nós do MDC é que nos entregamos ao mangue, mas o mangue beat. Denunciando
a medida do "Desministério" do Meio Ambiente, viemos hoje com Chico Science eNação Zumbi, mas também com Jeff Beck, Henri Mancini, Chico Buarque, REM e mais.
Ainda, um Cabeça dos Outros que homenageia os 75 anos de Gal Costa completos
esta semana e Palavra, Lê celebrando Gerson King Combo, recém falecido. Agenda
aí: 21h, hoje, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação do mangue boy Daniel
Rodrigues enquanto o mundo explode.
Pra homenagear Moraes Moreira, vamos fazer o Brasil subir a ladeira no Música da Cabeça de hoje!. Além de falar do eterno Novo Baiano, também teremos Marku Ribas, Cássia Eller, Henri Mancini, U2, Leonard Cohen, Chico Buarque e mais.Também, o oitentão Herbie Hancock no nosso quadro móvel "Sete-List". Lá vem o MDC subindo a ladeira da Rádio Elétrica! É às 21h com produção e apresentação de Daniel Rodrigues (E não escutem os neogenocidas: #ficaemcasa)
Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos
outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o
Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes
eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela
genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada.
Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e
das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O
saxofonista era um craque do jazz.
Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos
40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e
na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico
profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King”
Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de
Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente
do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou
pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários
que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores,
entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década
seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra
revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.
Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo
não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony
Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon
estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o
para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns
gravados por Gordon neste período é “Go!”,
de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado
pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista
Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável,
considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e
dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong,
a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman
Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele,
que havia passado pela descoberta do swing,
pelo estouro das big bands e pelo
advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma
absolutamente natural e híbrida.
Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição
do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a
este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu
vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua
parruda caixa torácica. O riff, dos
mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente
inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe
com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark
assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda
intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma
engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como
Gordon.
"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um
verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada
de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de
Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está
escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota,
cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou
descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com
habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas,
enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como
companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a
vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo
frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like
Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da
história.
"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos
que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade
e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia
do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas
valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para
finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins
dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o
clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/
pam pam!”.
Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e
que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz
uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz,
Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da
trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”,
o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final
daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente
versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar
no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos
tempos durante o riff, soltando a
criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais
inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.
"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As
pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e
controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações,
todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade
ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e
inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada
pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three
O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque
do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um
casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple
entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra:
na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.
A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco
pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde – semfalar
nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria
fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína,
o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a
viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até
então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras.
Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker,
Hawkins e Young. Passados o estouro do rock
‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies
e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido
Coltrane, Lee Morgan, Jimi Hendrix, Janis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de
casa.
Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta
francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986),
em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano
autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e
álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo
personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se
baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud
Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua
interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz
naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado
da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator
naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último
expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé
ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
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FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll
Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’ me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.
Lee Morgan
O trompetista
norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história
do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda
mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No
caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no
planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e
1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas
de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do
hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I
Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima
banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins,
bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente,
voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the
New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas
que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os
mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie
Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e
de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop
modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras
Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner
(piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era
tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos.
Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e
esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já
resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS"Empyrean Isles",
de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50
anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de
jazzistas (Vince Guaraldi, Miles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram
os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos
acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na
Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente
a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu
ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira.
Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers
de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue
Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já
se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando
os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo
dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman
em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até
que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à
“casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção
de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa),
leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e
Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry
Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom
jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta
ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo
das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura
de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título
faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com
inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um
acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove,
com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato;
Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que
mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto!
Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson –
músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o
de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda
retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de
Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações,
James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of
Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a
executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James
Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que
um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”,
com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais
tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma
malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação
orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante
todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras
na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir
a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas,
ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook”
traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria
pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o
direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante
que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e
ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela
sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de
realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia
os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas,
criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre
um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja
na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque
da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia
figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus
Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num
tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar
ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a
voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band
leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues
“Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a
qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais
responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta
a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de
improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por
sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas
peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao
mesmo tempo.
“The Sidewinder”
entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo
o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes
iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do
jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny
Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette
Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em
1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee
Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal
assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro
no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se
sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer
tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara
mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa.
Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de
“maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”.
Afinal, não há males que vêm para bem?