O pernambucano Kléber Mendonça Filho discursando após receber o prêmio de melhor diretor no Festival.
E só dá Brasil!!!
Depois da gigantesca vitória no Oscar, com o prêmio de melhor filme internacional para "Ainda Estou Aqui", agora, no Festival de Cannes, outro dos eventos cinematográficos mais prestigiados do mundo, o Brasil volta a conquistar prêmios de grande relevância. "O Agente Secreto", filme pelo qual sempre se teve enorme expectativa e cuja previsão por reconhecimento internacional em festivais já era prevista, confirma o que se esperava e leva em Cannes os prêmios de melhor ator para Wagner Moura e melhor direção para Kleber Mendonça Filho, que por sinal, já conhecia o gostinho de uma vitória em Cannes com o Prêmio do Júri, em 2019, por "Bacurau". A Palma de Ouro, a categoria principal, que era uma possibilidade bastante plausível, dada a ótima recepção do filme na exibição pública no festival, acabou não vindo, mas ainda assim os dois vencidos representam definitivamente essa nova ascenção e reconhecimento do cinema que se faz por aqui.
A almejada Palma de Ouro acabou indo para Jafar Panahi com "Um Simples Acidente", garantindo a segunda vitória do cinema iraniano em Cannes.
Nessa onda de sucessos internacionais do cinema brasileiro e do retrospecto dos vencedores de Cannes no Oscar nos últimos anos, já começa-se a sonhar com um bicampeonato de melhor filme estrangeiro em Los Angeles no ano que vem... Será? Não assisti ainda mas, pelo que se diz, "O Agente Secreto" tem grande potencial. Desde já estamos na torcida.
Confira abaixo todos os vencedores na premiação de Cannes 2025:
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Jafar Panahi com a Palma de Ouro em mãos.
Palma de Ouro: 'It Was Just an Accident', de Jafar Panahi
Grand Prix: 'Sentimental Value', de Joachim Trier
Prêmio do Júri: 'Sirât, de Olivier Laxe' e 'Sound of Falling', de Mascha Schilinski
Melhor Diretor: Kleber Mendonça Filho, por 'O Agente Secreto'
Melhor Atriz: Nadia Melitti, por 'The Little Sister'
Melhor Ator: Wagner Moura, por 'O Agente Secreto'
Melhor Roteiro: 'Young Mothers', de Luc e Jean-Pierre Dardenne
Prêmio Especial do Júri: 'Ressurection', de Bi Gan
Câmera de Ouro (filme de estreia): 'The President's Cake', de Hasan Hadi
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim,
vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode
extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade
ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu
o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série
de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma
ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria
seguro. Nem a razão mais está a salvo.
Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a
“ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e
se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados
Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere
de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora
isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização
ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos
movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até
de pensar.
Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o
cinema segue firme com produções que pululam de diversos lugares do
mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de
cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e
Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim
a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina,
Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.
A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.
Em compensação, o cinema
soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim
como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações
de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização
e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até
então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste
do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”,
definitivamente, não representam mais o que representavam antes.
Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele,
Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma
a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a
construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody Allen, Clint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos
desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por
ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem
lançados e descobertos.
Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas
cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui,
cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas
realizadoras ainda vêm por aí neste louco planeta em constante ebulição.
A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo
certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível
abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não
deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes
são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade
fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais
um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num
primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso,
independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se
poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem
nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar Noé, Yorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e
competência para isso.
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01.“Parasita”, Bong Joon-ho (2019)
Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.
02.“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)
Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.
03.“Corra!”, Jordan Peele (2017)
Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se
sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita
coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com
um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também
pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de
tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150
prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o
terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis,
monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.
04.“Retrato de uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019)
Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.
05.“Menina de Ouro”, Clint Eastwood (2004)
O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.
Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século
06.“O Pianista”, Roman Polanski (2002)
Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.
07.“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)
A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.
08.“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)
Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se
dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo
kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes,
Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do
cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não
bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e
posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que
marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos.
Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne
Trêmula”.
09.“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)
Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.
10.“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.
A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios". "Éum bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"?
12.“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)
É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.
13.“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)
Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.
14.“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.
15.“A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)
Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.
Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou, que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda
Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.
17.“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)
Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.
18.“Match Point”, Woody Allen (2024)
Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.
19.“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)
Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.
20.“O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)
O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.
21.“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)
Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh
Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que
mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta,
Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o
mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã,
"Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16
prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da
corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões
sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo
Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem
novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que
algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade.
22.“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)
Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Renoir, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!
23.“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)
Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.
24.“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)
O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.
25.“Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)
Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão
almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já
garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de
século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema.
Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e
atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem
o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história
real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de
Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.
E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano) neste final de primeiro quarto de século 21
PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali:
Que filme necessário mas difícil de assistir ate o final. Vá sabendo disso.
O pai de família Saeed embarca em sua própria busca religiosa – para “limpar” a sagrada cidade iraniana de Mexede de prostitutas de rua imorais e corruptas. Depois de assassinar várias mulheres, ele fica cada vez mais desesperado com a falta de interesse público em sua missão divina.
Duas coisas importantes para você ver esse filme até o final são que, primeiro: por mais que seja outra cultura, outros hábitos, você tem que estar preparado para o sentimento de revolta, em algum momento ele vai surgir. Outro ponto é um filme que você tem que estar atento a tudo, se você é da geração streaming e assiste a filmes fazendo outras coisas vai perder muito .
Superadas algumas barreiras, você vai ter uma experiência magnífica, uma direção que sabe o tempo todo o que quer passar para o espectador. "Holy Spider" é muito imersivo e, tanto a narrativa quanto os protagonistas colocam você em alerta o tempo todo, fazendo com que a gente fique constantemente no aguardo dos próximos passos de cada um.
Temos uma sequência que mostra a "interação" dos dois personagens principais e ela é de uma agonia que..., meu Deus. As interações entre eles, embora raras ao longo de toda a duração do filme, por conta das ótimas atuações dos atores são tão intensas que chegam a nos passar muita raiva.
Muito bem dirigido, "Holy Spider" tem o poder de transmitir exatamente o que o diretor Ali Abbasi quer passar. Como falei, as atuações trazem uma verdade incrível, Zahra Amir Ebrahimi, como, Rahimi está maravilhosa, mas Mehdi Bajestani, como Saeed, faz facilmente você odiar seu personagem. Aquele ódio genuíno, sabe? Uma atuação assombrosa de boa.
As sequências dos assassinatos são regadas de tensão, porque a gente mais ou menos sabe onde elas vão terminar, sabe no que aquilo vai dar, mas como são longas e começam desde Saeed andando de moto pela cidade à procura de vítimas, até chegar as lutas corporais em si, uma vez que o assassino gosta de métodos mais físicos, o clima é criado com sucesso e mantido com muita competência.
O longa, além do aspectos técnicos é muito bom por apresentar aspectos culturais. Você se sente em uma viagem ao Irã (mesmo que o filme não tenho sido gravado lá, uma vez que o governo não permite a filmagem de um filme tão crítico ao país). Todo ele é uma sequência de acertos, tanto na parte que aborda toda a cultura do país e sua crítica ao funcionamento das instituições como polícia, justiça e religião, como também tecnicamente é impecável, com uma narrativa imersiva e atuações intensas, que prendem o espectador à história.
É difícil julgar uma cultura sem fazer parte dela, sem conhecê-la no dia a dia, e não é isso que pretendo, mas sim, salientar a importância de sempre estarmos abertos a conhecer novas realidades, muitas vezes até discordar de alguns costumes, sim, mas sabendo que aquilo é outra realidade.
Perseguidora e perseguido. A dupla de protagonistas de brilhantes atuações
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"Um thriller policial diferente do que
você está acostumado a ver."
por Cly Reis
"Holy Spider" é um filme policial. Mas, espectador habituado aos padrões hollywoodianos, não espere as correrias, tiros, porradas e bombas. "Holy Spider" é um policial iraniano e como bom exemplar do cinema alternativo, independente, produzido fora dos Estados Unidos, traz uma abordagem mais sóbria e menos espetaculosa que a do cinema comercial para o gênero, além de manter a tradição de seus compatriotas como Abbas Kiarostami, Ashgar Farhadi e Jafar Panahi, de um cinema crítica e denunciatório em relação a assuntos polêmicos de seu país. "Holy Spider" é um filme de serial-killer, mas que envolve temas delicados como feminicídios, extremismo religioso, direitos humanos, liberdade de expressão, etc. Num sistema tão fechado quanto o do Irã, naturalmente, para realizar filmes assim, cineastas daquele país, não tem liberdade, autonomia ou permissão para mostrar essas realidades e, desta forma, não foi diferente com o diretor Ali Abbasi, que, assim como seus já citados compatriotas, teve que sair de sua terra para realizar seu projeto.
No filme, uma jornalista investiga um criminoso que mata prostitutas na periferia de uma cidade nos arredores de Teerã, sob o pretexto de estar realizando uma tarefa sagrada, tirando da rua aquelas pecadoras. Rahimi, indignada com a série de crimes e com a inação das autoridades, consegue a autorização de seu jornal para a investigação, embora essa permissão não signifique apoio. Tropeça na inação das autoridades, dribla a burocracia, esbarra no machismo, é emparedada pela religião, mas persiste e se aproxima perigosamente do assassino, que, por sua vez, inconformado pelo pouco reconhecimento público por seus atos "purificadores", continua a matar.
Engana-se quem pensar que por não trazer a linguagem ocidental de produções deste gênero, com correrias, perseguições, lutas, o longa seja menos envolvente. Pelo contrário! Embora num ritmo contido, mais arrastado, como é característico desse cinema do oriente-médio, o espectador fica alerta o tempo todo, na expectativa a cada possível vítima, tenso a cada morte, a cada passo da jornalista, se frustra a cada percalço que a impede de se aproximar do criminoso, volta a se inquietar quando ela parece que finalmente encontrar o monstro, e fica verdadeiramente apreensivo, de roer as unhas, na sequência em que ela fica cara a cara com o fanático homicida.
Baseado em uma história real, "Holy Spider" é tão chocante pelos crimes quanto pela realidade do país em que a ação se passa. Os valores distorcidos, a religião, como pretexto, se sobrepondo a questões humanas elementares, a sociedade institucionalmente machista, o desprezo pela figura da mulher, a ação parcial e conveniente das autoridades, a ação nefasta do estado, tudo é tão condenável quanto a prática do assassino e, no fim das contas, incentiva que malucos como aquele do filme, e do fato acontecido na vida real, ajam dessa maneira.