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terça-feira, 2 de julho de 2024

“Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, de Ana Rieper (2024)

 

Nada (ou muito pouco) é como antes

O cinema brasileiro se solidificou como um grande produtor de documentários desde a retomada, no início dos anos 2000. Embora já tivesse uma considerável tradição documentarista, desde o Ciclo de Cataguases aos cinemanovistas, foi principalmente a partir da década de 2010 que explodiram produções documentais em diversos formatos e temas, sendo um deles o da história cultural do País. O aperfeiçoamento das formas de pesquisa e dos recursos de tecnologia juntam-se ao interesse dos novos realizadores em contar essa riqueza histórica, que oferece um panorama amplo de entendimentos políticos, comportamentais e sociais do Brasil. Artistas, autores, personalidades, movimentos, escolas e projetos passaram a se tornar objeto de análise fílmica, rendendo muitos filmes de excelência, mas outros nem tanto. 

É o caso do recente “Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, que se debruça sobre o movimento musical mineiro cujo principal álbum é considerado um dos maiores de todos os tempos no Brasil. Há pouco, a revista norte-americana Post Magazine, igualmente, colocou-o entre os 10 melhores entre os 300 mais emblemáticos da música pop, algo semelhante ao que fez o livro "1001 Discos para se Ouvir Antes de Morrer" ao incluí-lo na listagem juntamente com outros 15 brasileiros. Mas, infelizmente, o documentário de Ana Rieper perde a chance de explorar toda a riqueza que o tema oferece. Na esteira do festejado mas pouco envolvente “Elis & Tom - Só Tinha de Ser Com Você” (Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, 2023), “Nada Será...” busca resgatar, a partir da visão de seus principais atores, a alma deste outro disco clássico: "Clube da Esquina", de 1972. Faz isso resgatando a formação do famoso Clube, apelido da turma de músicos mineiros liderados por Milton Nascimento que faz referência a uma esquina de Belo Horizonte, entre as ruas Paraisópolis e a Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, onde moravam, nos anos 60, os igualmente protagonistas irmãos Borges (Márcio, , Telo e Marílton). Uma cena artística absolutamente original e de uma qualidade incomparável ainda hoje, que reunia talentos e todas as forças da música brasileira àquela época: a tradição do samba, as influências do rock e do jazz, os ritmos do Nordeste e do sertão, o classicismo, a herança religiosa, a tradição ibérica e a veia sul-americana. Tudo muito bem conjugado, sintetizado, orquestrado. 

Porém, os problemas do filme começam, de certa forma, na maneira de contar essa trajetória. Intercalando depoimentos recentes dos Borges (principalmente, Márcio e Lô, este último, o coautor do celebrado disco com Milton), Beto Guedes, Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Flávio Venturini e outros, quando se trata de Milton, os registros de entrevistas são “velhos”. Não que não o valham. Pelo contrário, só enriquecem. Porém, Milton, diferentemente de outro importante personagem como Fernando Brant, ainda está vivo, e seria fundamental, mesmo que prejudicado pelo atual estado de saúde que atrapalha sua fala, contar com depoimentos atuais de Bituca, indiscutivelmente o centro de todo aquele movimento.

Milton em entrevistas de anos atrás: blindagem da
família ou desleixo da produção?  
Pode-se sondar que Milton tenha sido blindado pela superprotetora família (para não dizer "arredia"), cuidadosa em expô-lo desta forma – o que é bem possível que Ana tenha esbarrado. Mas não soa como uma explicação totalmente plausível, visto que o documentário parece, justamente, ressentir-se de documentos. Há menos vídeos e fotos de shows ou de apresentações do que se espera. Existem, sim, como as imagens do “Show do Paraíso”, o Woodstock mineiro realizado em uma fazenda nas proximidades da cidade de Três Pontas, que reuniu grandes nomes da música brasileira, como Tiso, Beto Guedes, Lô, Nelson Ângelo, Gonzaguinha, Fafá de Belém, Francis Hime, Chico Buarque, Clementina de Jesus, entre outros. Mas não passa muito disso, o que faz com que se fique com a sensação de que pouco se embrenhou nos arquivos. Do próprio Brant, falecido em 2015, há, grosso modo, uma sequência apenas de uma conversa numa mesa de bar em que se celebra o grande poeta do Clube da Esquina. E só. Sem registros de entrevistas em vídeo ou áudio do autor que colocou em palavras alguns daqueles clássicos, como “Para Lennon e McCartney”, “Travessia” e a própria música que dá título ao filme. Seria isso em razão de uma (estranha) decisão pelo fato de Brant não estar mais vivo? Não, pois o outro grande letrista da turma, Ronaldo Bastos, mesmo ainda vivo, depõe em uma única e solitária vez.

Talvez por certa tentativa de dar um ar de “mineirice” à narrativa, num tom de “dedo de prosa” e puxando para Márcio e Lô o papel de condutores, o filme tenha recaído numa certa superficialidade diante do dimensão do tema central. Além da pequena participação de Ronaldo e da inexplicável redução da figura de Brant, outros personagens coadjuvantes - mas de participação efetiva para a composição do disco - nem citados são. Casos de Alaíde Costa, a voz principal da espetacular faixa “"Me Deixa em Paz", ou o fotógrafo e designer Cafi, autor da famosa foto dos meninos da capa que tão bem simboliza o álbum. É preciso assistir ao filme "Salve o Prazer!" (Lírio Ferreira e Natara Ney, 2020) para que, ali, Cafi conte, enfim, a história da fotografia e como ela se tornou, por decisão de Milton, a capa do disco.

A opção narrativa de Ana também incorre em um outro aspecto, que é a definição daquilo que, de fato, está se falando: o Clube da Esquina como grupo, como cena artística ou como disco? Não que não se fale e não se pudesse falar dos três concomitantemente. Aliás, é o ideal, visto que seria muito estranho tratar de um como se o outro não existisse ou que não sejam diretamente correlacionados. Contudo, fica a dúvida de que olhar a diretora e roteirista quis dar. Ora se detalha elementos técnicos como o solo de Toninho Horta em “Trem Azul”, ora se abstém de abordar faixas memoráveis do mesmo repertório, como “Cais” e "Me Deixa em Paz". Então, conclui-se que não é só sobre o disco. Em contrapartida, também não é somente sobre o grupo/cena. Não se fala, por exemplo, do legado do Clube da Esquina, como sua influência para a world music quando Wayne Shorter (outro esquecido no filme) leva o amigo Milton para os Estados Unidos para gravarem “Native Dancer”, em 1975. Nem muito menos o “Clube da Esquina 2”, de 1978, que, mais do que uma continuidade, agregou àquele grupo nomes como Chico, Elis Regina, Azymuth, Joyce e Danilo Caymmi, expandindo os ecos originais. 

Em suma, ao não aprofundar estes três pilares (ou não se optar por algum para, aí sim, dissecá-lo), tudo fica um tanto incompleto. Afinal, o Clube da Esquina merece muito mais aprofundamento, pelo que é e pelo o que representa. Mesmo que sua centelha tenha sido aquela naturalidade quase inocente que Lô bem descreve, o Clube da Esquina virou muito mais do que isso. Assim, o final poético dado pela cineasta, por mais bonito que seja, sofre certo esvaziamento. Para arrematar, a música que roda nos créditos é a própria “Nada Será Como Antes”. Até aí, tudo bem. Porém, é exatamente a mesma versão do início do filme. Mais uma elemento desabonador em um filme que parece ter economizado em pesquisa e atenção ao objeto pesquisado. Uma pena, tendo em vista que se perde uma boa oportunidade de trazer à luz algo, como dito no início, importante para a reconstrução histórico-cultural do Brasil moderno. Ainda bem que, diferentemente do passado menos denso em documentários no cinema brasileiro, hoje pode-se, tranquilamente retornar ao mesmo assunto, agregando mais visões ao mesmo tema. E quem sabe, retratando o Clube da Esquina com maior fidelidade e trazendo, enfim, muito mais do que foi como antes. Amanhã.

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trailer de “Nada Será Como Antes - A Música Do Clube Da Esquina”, de Ana Rieper



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde" (1977)

 

“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”. 
Danilo Caymmi

Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.

“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.

Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.

Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.

Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli. 

Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.

Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.

Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.

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FAIXAS:
1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25
2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45
3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05
4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44
5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54
6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55
7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37
8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16
9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07
10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15

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OUÇA O DISCO:

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

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FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

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OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Geraes" (1976)

 

"Esses gerais são sem tamanho."
Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas"

"Sou o mundo, sou Minas Gerais."
Da letra de "Para Lennon e McCartney", de Lô Borges, Marcio Borges e Fernando Brant


Tom Jobim e o desenho sinuoso e sensual da Rio de Janeiro. 

Dorival Caymmi e a Bahia dos pescadores e santos do candomblé. 

Moondog e as pradarias inóspitas do Wyoming. 

Robert Johnson e as infinitas plantações de algodão do Mississipi. 

Violeta Parra e a imensidão das cordilheiras andinas. 

É sublime quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o próprio lugar.

Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro, o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja, muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a qual se homogeiniza. 

Em meados dos anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria essência: a terra que lhe é e a qual pertence. 

Mas Milton, carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive. Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras, "Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.

A ligação entre uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava"). A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do próprio Bituca. 

O lado político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta (guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim, lançar a música e não se calar diante da barbárie. 

Quem também garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra, cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana: "O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)", Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”


Milton e Chico: encontro mágico promovido à época
de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira

A maturidade filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem filtro. 

As amizades, aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/ Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” 

Parece que não cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo, desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton, de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória, Toninho e toda a patota! 

Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”. 

Ouvindo-se “Minas” e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas, é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento. Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo, pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80 anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a harmonia do espaço. 

Milton é mais do que homem: é pedra. Eterna.

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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.

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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13

Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48


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OUÇA O DISCO
Milton Nascimento - "Geraes" 


Daniel Rodrigues

Milton Nascimento - "Minas" (1975)

 





"O disco é dedicado
a todas as pessoas que ajudaram
e pro Rubio, um menino
que juntou duas sílabas do meu nome
e descobriu o título."
Milton Nascimento



"Minas", parte Estado da Federação, parte estado de espírito... Por outro lado, duas partes de um nome: MIlton NAScimento. "Minas", cuja arte, belíssima, traz apenas a face, muito aproximada do cantor, na capa e contracapa, é um pouco de cada face de Milton. Doce, lírico, combativo, atrevido, arrojado, e acima de tudo, talentosíssimo.
"Minas", disco de 1975, é um trabalho ousado, quase experimental, de um músico completamente maduro e ciente de todas as suas possibilidades. 
Atravessado de ponta a ponta pelo coro infantil de "Paula e Bebeto", o álbum tem um formato, até por isso mesmo, pouco convencional. A canção composta em parceria com Caetano Veloso, uma espécie de pré-"Eduardo e Mônica", aparece desde a abertura, na belíssima "Minas", voa nas asas dos "...Aviões da Panair", reaparece na intensa "Idolatrada", até, finalmente ressurgir lá, quase no final do disco. 
No meio de tudo isso temos o rock-jazz sofisticado da desafiadora "Fé Cega, Faca Amolada", com a participação de Beto Guedes; a balada elegante "Beijo Partido"; o manifesto sobre a fome e desigualdade escondido sob uma lona colorida na ótima "Gran Circo"; toda a riqueza sonora de "Ponta de Areia", quase um ponto de capoeira transmutado nas mãos de Milton e Fernando Brant em uma melodia de ninar; a "estranha" crônica urbana, sombria e misteriosa, de "Trastevere", com participações do MPB4, Joyce e Nana Caymmi; e "Leila...", uma variação da base de "Milagre dos Peixes", de 1973, com belíssimas vocalizações de Milton sobre o arranjo de Wagner Tiso.
"Paula e Bebeto", que amarrara o disco até então, aparece mesmo, inteira, completa, com letra, dando seu recado de que "qualquer maneira de amor vale a pena", como penúltimo ato do disco, que finaliza com a faixa "Simples" que, apesar do nome, apresenta uma composição complexa, intrincada e uma poesia enigmática, sugestiva, com imagens de memória que beiram o surrealismo.
"Minas" é um disco múltiplo em sua concepção, em suas alternativas, em sua diversidade. Tem tantos compositores, tantas participações, tantos parceiros que parece um coletivo, quase um novo "Clube da Esquina", um novo Som Imaginário. Na verdade, é um pouco de tudo isso: apanhando características, experiências de discos anteriores, superando limitações, como a proibição das letras em "Milagre dos Peixes", tirando proveito do aprendizado dessa censura com o aperfeiçoamento das performances vocais sem letra que se tornaram sua marca, utilizando-se da parceria certa para cada intenção musical, sabendo mesclar possibilidades sonoras dentro da mesma obra, Milton chegava a um disco singular. E se alguém imaginava que não dava para repetir, ir mais longe ou superar, depois ainda viria o complemento de "Minas", "Geraes", de 1976. Mas isso já é outra história...


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FAIXAS:

1. Minas (Novelli)
2. Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
3. Beijo Partido (Toninho Horta)
4. Saudade dos Aviões da Panair (Milton Nascimento, Fernando Brant)
5. Gran Circo (Milton Nascimento, Márcio Borges)
6. Ponta de Areia (Milton Nascimento, Fernando Brant)
7. Trastevere (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
8. Idolatrada (Milton Nascimento, Fernando Brant)
9. Leila (Milton Nascimento)
10. Paula e Bebeto (Milton Nascimento, Caetano Veloso)
11. Simples (Nelson Angelo)


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Ouça:

sábado, 31 de julho de 2021

Cantando de olhinhos puxados


 



Os alemães da Kraftwerk vestiram kimono e puxaram os olhinhos
para cantar no idioma japonês
Olimpíadas rolando em Tóquio e tá todo mundo se arriscando num "sayonara" ou num "arigatô", não é verdade? Mas falar japonês pra valer, convenhamos, é pra poucos. Dada a dificuldade de se entender a milenar língua nipônica, pode-se dizer que cantar em japonês é domínio estritamente de quem é natural de lá.

Mas será mesmo? Se depender de alguns ousados artistas, não é bem assim. Indo além do palavreado simplório, músicos de nacionalidades diferentes da japonesa também se aventuraram nessa difícil e rara empreitada. E fizeram mais do que simplesmente cantar temas originais do Japão ou versar standarts para o japonês: eles compuseram canções novas neste idioma. Seja norte-americano, brasileiro, inglês ou alemão, esses músicos, menor ou maiormente afeitos aos ideogramas hanzi, puseram a cara pra bater e fizeram obras diferentes daquilo que eles mesmos desenvolvem normalmente.

Aproveitando, então, esse clima olímpico de Jogos de Tóquio, selecionamos sete músicas de artistas não-japoneses que não só fugiram dos estereótipos como construíram bonitas obras em homenagem à cultura do país do Sol Nascente.

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“Ito Okashi” - The Passangers (1995)
Composta para a trilha da performance de mesmo nome da artista japonesa Rita Takashina, a canção, cantada por sua conterrânea Akiko Kobayashi, a Holi, é de autoria que ninguém menos que Bono Vox, The Edge, Adam Clayton, Larry Mullen Jr. e Brian Eno, ou seja: a U2 em parceria com seu melhor e mais celebrado produtor. A The Passangers, projeto criado para abarcar as diversas trilhas que a turma compôs junto fora do repertório da renomada banda, lançou um único disco com esta formação e nomenclatura, “Original Soundtracks 1” repleto dessas coisas inusitadas assim como o próprio grupo. “Ito Okashi” é certamente das mais representativas do repertório.

Clipe de "Ito Okashi",da The Passangers



“Ai no Sono” - Stevie Wonder (1979)
Da capacidade de Stevie Wonder não se pode duvidar de nada, nem que ele fique com olhos puxados como um oriental pode debaixo daqueles óculos escuros. A bela “Ai no Sono”, assim como a música da The Passangers, também nasceu de um projeto diferente e ligado a cinema. No caso, a trilha sonora para o filme de animação “Journey Through the Secret Life of Plants”, que o Estevão Maravilhoso não apenas compôs, como tocou, arranjou e produziu de cabo a rabo. Quem pode duvidar, então, que o homem invente uma canção em japonês? Embora irregular e extenso, o disco duplo, guarda essa joia que só poderia ter saído de uma cabeça genial como a de Stevie.
OUÇA



“Made in Japan”
- Pato Fu (1999)

O lado extrovertido da Pato Fu faz com que a banda mineira liderada por John Ulhoa e Fernanda Takai (de origem oriental), diferente de outros grupos “sérios” do rock nacional dos anos 90, não levasse tão a sério a si mesmos. Entre os benefícios disso, está o de levar a sério as próprias brincadeiras, como a de criar uma música toda em japonês. Para quem como eles, que cresceu jogando Hatari e vendo na TV Spectreman e Ultraman (e admite isso), não foi uma tarefa tão difícil. Música do disco “Isopor”, de pouco antes de Fernanda começar a se achar uma grande cantora, ou seja, a se levar a sério.
OUÇA



“Relax”
- The Glove (1983)

Tá certo que é só um refrão “sampleado” de uma voz masculina repetindo as mesmas frases durante a faixa inteira – provavelmente, chupada de algum filme japonês B muito esquisito. Junto a essa voz, outros recortes se entrecruzam com variações de velocidade e compressão, além de sons que fazem referência ao Oriente, como de um koto, de sinos e gongos. Mas, além do inusitado do idioma diferente do inglês em comparação com todos os outros temas cantados de “Blue Sunshine”, o maravilhoso e único disco do projeto de Robert Smith (The Cure) e Steven Severin (Siouxsie & The Banshees), a The Glove, fecha com esta tensa e lisérgica canção, digamos, nada “relax”
OUÇA



“I Love You, Tokyo”
- Os Incríveis (1968)

Em 1968, a banda de rock da jovem guarda Os Incríveis excursionaram pelo Japão e aproveitaram para gravar no álbum “Os Incríveis Internacionais” e, depois em “Os Incríveis no Japão”, a faixa “I Love you Tokyo”. Embora o título em inglês, a letra é, sim, toda em japonês. A sacadinha da turma de Mingo, Risonho, Nenê, Neno e Netinho foi utilizar uma música original da era Meiji, composta por volta do ano de 1700, para inventar a letra. “Vale essa, Arnaldo?” Vale, sim.
OUÇA



“Miki”
- Toninho Horta (2012)
Um dos vários músicos brasileiros admirados no Japão – às vezes, reconhecido mais ou antes lá do que aqui – é o mineiro Toninho Horta, violonista e compositor de mão cheia e um dos artífices do Clube da Esquina. No início dos anos 2010, em constante deslocamento entre o seu país natal e o outro lado do mundo, resolveu, então, solucionar esse problema lançando o disco “Minas Tokio”. Em parceria com a musicista japonesa Nubie, Horta, além de regravar clássicos como “Beijo Partido” e “Giant Steps” e de seus tradicionais e belos temas instrumentais, como a claramente oriental “Shinkansen”, ainda escreveu com ela músicas que fazem essa ponte entre Brasil e Japão não só pela música, mas pela letra também.
OUÇA



“Dentaku” - Kraftwerk (1981)
Os geniais pais da música eletrônica, além de cantarem em inglês e alemão em várias ocasiões, têm como característica a universalidade da sua música. É o que se vê nas músicas “Numbers”, que mistura diversas línguas, as faixas de “Tour de France”, todas cantadas em francês, “Sex Object”, com trechos em espanhol, ou “Electric Café”, quando até o português eles arranham. Por que, não, então, cantar em japonês. É o que fizeram nessa faixa, que é uma corruptela da clássica “Pocket Calculator”, do álbum “Computer World”, que, no final das contas, diz mais ou menos a mesma coisa que seu tema original: um convite para fazer/ouvir música usando as teclas de uma calculadora de bolso. 

"Pocket Calculator/ Dentaku" ao vivo, da Kraftwerk



“Império dos Sentidos” - Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros (1989)
Não se enganem pelo título em português. Afinal, quem não liga este nome a de um dos mais famosos filmes rodados no Japão, o drama erótico de Nagisa Oshima que escandalizou o mundo nos anos 70? Pois foi com essa clara referência (e reverência), que os criativos Fausto Fawcett, Carlos Laufer e Herbert Vianna escreveram a música que intitula o segundo disco da banda carioca. Para isso, fazem o mesmo expediente que a The Glove: recortam um trecho de voz, neste caso, feminina, que repete a mesma frase em japonês, algo provavelmente extraído do próprio filme. Um clima misterioso e, claro, com elementos orientais além da própria letra, que é dita levemente por uma voz feminina, quase uma “narcotic android nissei com a bateria no fim”, como diria o próprio Fawcett.
OUÇA

cenas do filme "O Império dos Sentidos"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Milton Nascimento & Lô Borges - "Clube da Esquina" (1972)


Um clube na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Beagá


“Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou te contar”.
"Ao que vai nascer" – Milton Nascimento e Fernando Brant


Muitas histórias cercam a criação do LP "Clube da Esquina", e cada uma delas nos mostra esse universo que jovens músicos e compositores deixaram como parte do seu legado artístico a todos nós.

Vou contar brevemente as histórias que me ligam a esse grupo e às canções.

Na minha lembrança musical, comecei a escutar Minas através de Milton Nascimento e Fernando Brant muito pequena. Meus pais tinham uma maior predileção por Chico e Caetano, mas Milton era alguém que eles admiravam através das canções interpretadas por Elis Regina, que é guardada por Milton e Fernando, integrantes desse grupo de uma forma muito afetiva. Daí, através de intérpretes como Joana, conheci "Nos Bailes da Vida", e essa canção entrou para a minha vida. Sempre que transformava a sala do nosso apartamento em palco, "Nos Bailes da Vida", de Fernando Brant e Milton Nascimento, me levava às lágrimas. Emocionava profundamente uma criança de 7 anos.

Museu Clube da Esquinsa, entre a Paraisópolis
 e Divinópolis, em Santa Tereza (BH)
Elis cantava em seu repertório muitas canções de Milton e seus parceiros de Clube e eu, muito atenta às criações musicais, sempre olhava quem eram o compositor e o letrista. Fui identificando o jeito de cada um deles, ora diverso, ora profundamente lírico, e daí Ronaldo Bastos e "Trem Azul" entraram para a minha vida. "Cais" era uma das canções prediletas, que constava no disco de 78 de Elis, ao qual eu que sempre confundi letras, troquei palavras, mas sabia tudo de cor. "Cais" era outra canção que fazia a minha plateia imaginária delirar, no volume 10, do aparelho três em um da CCE que tivemos.

Com o tempo fui escolhendo escutas de outros mineiros. Vieram os irmãos Borges, descobri Flávio Venturini e o maestro Wagner Tiso e meu pai comprou o disco “O Som Brasileiro de Sarah Vaughan”, com a participação de Milton, abrindo o LP cantando com a Diva Sarah "Travessia" ("Bridges"). Este disco furou de tanto escutarmos lá em casa. Com o tempo e a chegada do Daniel em minha vida, conheci, vendo-os tocar ao vivo, Toninho Horta e Robertinho Silva, que estavam em torno desse clube.

Capa do livro
"Coração Americano"
"Minha parceria com Bituca nasceu de uma amizade que começou na Galeria do Maleta, em Belo Horizonte, num bar chamado Oxalá. Ficamos muitos amigos, mas depois Milton foi para São Paulo. Eu sempre ia visitá-lo e nunca tinha pensado em fazer letra para música, embora curtisse muito as coisas que o Bituca fazia com o Márcio Borges. Numa dessa visitas a São Paulo, ele me mostrou uma música e disse que eu tinha que escrever a letra. Não queria, mas acabei levando uma fita para Belo Horizonte e escrevi a letra de 'Travessia', sem nenhuma pretensão”, contou Fernando Brant, parceiro de Milton, ao Jornal de Música em 1976. Esse trecho foi compilado do livro maravilhoso que comprei em Ouro Preto, publicado pela PRAX editora, “Coração Americano: 35 anos do álbum duplo Clube da Esquina”, em 2008.

Daí, sem imaginar que algo dessa grandeza fosse acontecer, a vida me apresenta uma chance de conhecer o Fernando Brant. Isso aconteceu em 2004, quando eu estava produzindo uma edição do Rumos Itaú Cultural em Porto Alegre. Fernando não participou desse evento, mas o seu amigo, o pesquisador Luiz Carlos Prestes Filho, sim. Por razões óbvias – já que fui batizada com o nome da sua avó, mãe de Prestes, Leocádia – ficamos amigos, trabalhamos juntos em algumas ações culturais aqui na cidade e, anos mais tarde, em 2008, o próprio Luiz Carlos me comentou que Fernando estaria aqui para lançar uma unidade da União Brasileira de Compositores (UBC) na capital. Meu nome havia sido cogitado para gerenciar o escritório, ele queria me conhecer e eu fiquei chocada e feliz com a possibilidade.

Nos conhecemos numa atividade de lançamento da UCB muito bonita e nossa amizade já antiga, pois eu o escutava desde pequena, se estreitou. Fernando me trouxe Minas, me nutriu de mais canções, de novos intérpretes, ampliou minha visão do Clube da Esquina. Participou do projeto Coleção Mario Quintana em 2011 produzido por mim e minha irmã, na Aprata sobre a obra do poeta Mario Quintana, a quem visitou numa das vindas a Porto Alegre. Através do Fernando, conheci pessoalmente Ronaldo Bastos e Edmundo Souto, além de ter a oportunidade de assistir, em 2011, a um show que reabriu o Cine Palladium (SESC-MG) com Milton Nascimento ao vivo e convidados, em Belo Horizonte. Durante quase duas horas e meia de show, pude chorar enlouquecidamente, de mãos dadas com Fernando, igualmente emocionado, ouvindo a magnitude de Milton, apresentando seu repertório. Dentre as canções, muitas delas compostas por Fernando e Bituca (como ele chamava Milton), muitas interpretadas por Elis - eu ali sentada, ia sendo lembrada por Fernando, canção a canção, me dizendo as histórias que estavam guardadas em seu coração.

Foi um dos momentos mais belos que tive nessa vida. Um momento de total reconexão com as minhas raízes, de compreensão sobre a minha vida, sobre a nossa música e o que ela de fato representa na trajetória de cada ser humano brasileiro.

Fiz de Minas minha casa. É um estado ao qual sempre quero retornar. Gosto do clima, das pessoas, das sonoridades, dos prédios, das histórias e do sotaque que dá uma falsa impressão de timidez, mas é puro charme e singeleza. 

Fernando Brant e Milton Nascimento à época do Clube da Esquina

Esse clube aconteceu numa esquina, entre as ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Beagá, aonde está mantida a atmosfera de empatia e encontro, parecendo que a qualquer momento eles irão se reencontrar, pegar o violão, tomar um chopp e fazer novas e velhas canções, entre risadas e comentários profundos sobre a nossa realidade brasileira. Este espaço físico e emocional do Clube da Esquina emana essa importância viva de cada músico em nossas vidas, da sua Arte e da sua gentileza em mostrar para todos nós suas inquietações. Eles tocam os nossos corações através dos corações que eles gentilmente compartilham, abrem e escancaram com a gente. Deixam a gente com mais coragem para se expor e mostrar que nem tudo é planejado, simplesmente, acontece. Trazem à tona essa força da canção brasileira, tão diversa e tão entrosada, que não se pode dizer qual gênero estamos escutando, porque em cada faixa muitas vozes se misturam, muitas energias impulsionam num só coro ânimo para viver.

Vi isso num coral de primeira infância num evento de educação que participei e compreendi o quanto Minas é agraciado com tanta música. Eles estão marcados na história de todas as gerações, para que cada indivíduo possa refazer sua vida, restabelecer seu equilíbrio e seguir em frente, pois “nada será como antes, amanhã”. 

A trilha do Clube da Esquina, seus compositores e intérpretes, estão gravados na trilha sonora da minha vida. Fernando foi um amigo que guardo no lado esquerdo do peito, com sua risada aberta e tempinho para um chopp, bate-papo e troca de e-mails rápidos, porque o melhor da vida é estar com os amigos presencialmente, sempre que possível.

A todos vocês a minha profunda gratidão.

”...mas  agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la onde for
Venha até a esquina
Você não conhece o futuro
Que tenho nas mãos...”
"Clube da Esquina nº 1" - Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges


por  L E O C Á D I A     C O S T A



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Documentário: "História do Clube da Esquina - A MPB de Minas Gerais"




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FAIXAS:
Disco 1
1. "Tudo Que Você Podia Ser" - Interpretação: Milton Nascimento (Lô Borges, Márcio Borges) - 2:56
2. "Cais" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 2:45
3. "O Trem Azul" - Lô Borges (Lô Borges, Ronaldo Bastos) - 4:05
4. "Saídas e Bandeiras nº 1" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 0:45
5. "Nuvem Cigana" - Milton Nascimento (Lô Borges, Ronaldo Bastos) - 3:00
6. "Cravo e Canela" - Lô Borges e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 2:32
7. "Dos Cruces"  - Milton Nascimento (Carmelo Larrea) - 5:22
8. "Um Girassol da Cor do Seu Cabelo" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 4:13
9. "San Vicente" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 2:47
10. "Estrelas" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 0:29
11. "Clube da Esquina nº 2" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges) - 3:39

Disco 2 
12. "Paisagem da Janela" - Lô Borges (Lô Borges, Fernando Brant) - 2:58
13. "Me Deixa em Paz" - Alaíde Costa e Milton Nascimento (Monsueto, Ayrton Amorim) - 3:06
14. "Os Povos" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Márcio Borges) - 4:31
15. "Saídas e Bandeiras nº 2" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 1:31
16. "Um Gosto de Sol" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 4:21
17. "Pelo Amor de Deus" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant ) - 2:06
18. "Lilia" - Milton Nascimento (Milton Nascimento) - 2:34
19. "Trem de Doido" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 3:58
20. "Nada Será Como Antes" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 3:24
21. "Ao Que Vai Nascer" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 3:21


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