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terça-feira, 2 de julho de 2024

“Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, de Ana Rieper (2024)

 

Nada (ou muito pouco) é como antes

O cinema brasileiro se solidificou como um grande produtor de documentários desde a retomada, no início dos anos 2000. Embora já tivesse uma considerável tradição documentarista, desde o Ciclo de Cataguases aos cinemanovistas, foi principalmente a partir da década de 2010 que explodiram produções documentais em diversos formatos e temas, sendo um deles o da história cultural do País. O aperfeiçoamento das formas de pesquisa e dos recursos de tecnologia juntam-se ao interesse dos novos realizadores em contar essa riqueza histórica, que oferece um panorama amplo de entendimentos políticos, comportamentais e sociais do Brasil. Artistas, autores, personalidades, movimentos, escolas e projetos passaram a se tornar objeto de análise fílmica, rendendo muitos filmes de excelência, mas outros nem tanto. 

É o caso do recente “Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, que se debruça sobre o movimento musical mineiro cujo principal álbum é considerado um dos maiores de todos os tempos no Brasil. Há pouco, a revista norte-americana Post Magazine, igualmente, colocou-o entre os 10 melhores entre os 300 mais emblemáticos da música pop, algo semelhante ao que fez o livro "1001 Discos para se Ouvir Antes de Morrer" ao incluí-lo na listagem juntamente com outros 15 brasileiros. Mas, infelizmente, o documentário de Ana Rieper perde a chance de explorar toda a riqueza que o tema oferece. Na esteira do festejado mas pouco envolvente “Elis & Tom - Só Tinha de Ser Com Você” (Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, 2023), “Nada Será...” busca resgatar, a partir da visão de seus principais atores, a alma deste outro disco clássico: "Clube da Esquina", de 1972. Faz isso resgatando a formação do famoso Clube, apelido da turma de músicos mineiros liderados por Milton Nascimento que faz referência a uma esquina de Belo Horizonte, entre as ruas Paraisópolis e a Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, onde moravam, nos anos 60, os igualmente protagonistas irmãos Borges (Márcio, , Telo e Marílton). Uma cena artística absolutamente original e de uma qualidade incomparável ainda hoje, que reunia talentos e todas as forças da música brasileira àquela época: a tradição do samba, as influências do rock e do jazz, os ritmos do Nordeste e do sertão, o classicismo, a herança religiosa, a tradição ibérica e a veia sul-americana. Tudo muito bem conjugado, sintetizado, orquestrado. 

Porém, os problemas do filme começam, de certa forma, na maneira de contar essa trajetória. Intercalando depoimentos recentes dos Borges (principalmente, Márcio e Lô, este último, o coautor do celebrado disco com Milton), Beto Guedes, Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Flávio Venturini e outros, quando se trata de Milton, os registros de entrevistas são “velhos”. Não que não o valham. Pelo contrário, só enriquecem. Porém, Milton, diferentemente de outro importante personagem como Fernando Brant, ainda está vivo, e seria fundamental, mesmo que prejudicado pelo atual estado de saúde que atrapalha sua fala, contar com depoimentos atuais de Bituca, indiscutivelmente o centro de todo aquele movimento.

Milton em entrevistas de anos atrás: blindagem da
família ou desleixo da produção?  
Pode-se sondar que Milton tenha sido blindado pela superprotetora família (para não dizer "arredia"), cuidadosa em expô-lo desta forma – o que é bem possível que Ana tenha esbarrado. Mas não soa como uma explicação totalmente plausível, visto que o documentário parece, justamente, ressentir-se de documentos. Há menos vídeos e fotos de shows ou de apresentações do que se espera. Existem, sim, como as imagens do “Show do Paraíso”, o Woodstock mineiro realizado em uma fazenda nas proximidades da cidade de Três Pontas, que reuniu grandes nomes da música brasileira, como Tiso, Beto Guedes, Lô, Nelson Ângelo, Gonzaguinha, Fafá de Belém, Francis Hime, Chico Buarque, Clementina de Jesus, entre outros. Mas não passa muito disso, o que faz com que se fique com a sensação de que pouco se embrenhou nos arquivos. Do próprio Brant, falecido em 2015, há, grosso modo, uma sequência apenas de uma conversa numa mesa de bar em que se celebra o grande poeta do Clube da Esquina. E só. Sem registros de entrevistas em vídeo ou áudio do autor que colocou em palavras alguns daqueles clássicos, como “Para Lennon e McCartney”, “Travessia” e a própria música que dá título ao filme. Seria isso em razão de uma (estranha) decisão pelo fato de Brant não estar mais vivo? Não, pois o outro grande letrista da turma, Ronaldo Bastos, mesmo ainda vivo, depõe em uma única e solitária vez.

Talvez por certa tentativa de dar um ar de “mineirice” à narrativa, num tom de “dedo de prosa” e puxando para Márcio e Lô o papel de condutores, o filme tenha recaído numa certa superficialidade diante do dimensão do tema central. Além da pequena participação de Ronaldo e da inexplicável redução da figura de Brant, outros personagens coadjuvantes - mas de participação efetiva para a composição do disco - nem citados são. Casos de Alaíde Costa, a voz principal da espetacular faixa “"Me Deixa em Paz", ou o fotógrafo e designer Cafi, autor da famosa foto dos meninos da capa que tão bem simboliza o álbum. É preciso assistir ao filme "Salve o Prazer!" (Lírio Ferreira e Natara Ney, 2020) para que, ali, Cafi conte, enfim, a história da fotografia e como ela se tornou, por decisão de Milton, a capa do disco.

A opção narrativa de Ana também incorre em um outro aspecto, que é a definição daquilo que, de fato, está se falando: o Clube da Esquina como grupo, como cena artística ou como disco? Não que não se fale e não se pudesse falar dos três concomitantemente. Aliás, é o ideal, visto que seria muito estranho tratar de um como se o outro não existisse ou que não sejam diretamente correlacionados. Contudo, fica a dúvida de que olhar a diretora e roteirista quis dar. Ora se detalha elementos técnicos como o solo de Toninho Horta em “Trem Azul”, ora se abstém de abordar faixas memoráveis do mesmo repertório, como “Cais” e "Me Deixa em Paz". Então, conclui-se que não é só sobre o disco. Em contrapartida, também não é somente sobre o grupo/cena. Não se fala, por exemplo, do legado do Clube da Esquina, como sua influência para a world music quando Wayne Shorter (outro esquecido no filme) leva o amigo Milton para os Estados Unidos para gravarem “Native Dancer”, em 1975. Nem muito menos o “Clube da Esquina 2”, de 1978, que, mais do que uma continuidade, agregou àquele grupo nomes como Chico, Elis Regina, Azymuth, Joyce e Danilo Caymmi, expandindo os ecos originais. 

Em suma, ao não aprofundar estes três pilares (ou não se optar por algum para, aí sim, dissecá-lo), tudo fica um tanto incompleto. Afinal, o Clube da Esquina merece muito mais aprofundamento, pelo que é e pelo o que representa. Mesmo que sua centelha tenha sido aquela naturalidade quase inocente que Lô bem descreve, o Clube da Esquina virou muito mais do que isso. Assim, o final poético dado pela cineasta, por mais bonito que seja, sofre certo esvaziamento. Para arrematar, a música que roda nos créditos é a própria “Nada Será Como Antes”. Até aí, tudo bem. Porém, é exatamente a mesma versão do início do filme. Mais uma elemento desabonador em um filme que parece ter economizado em pesquisa e atenção ao objeto pesquisado. Uma pena, tendo em vista que se perde uma boa oportunidade de trazer à luz algo, como dito no início, importante para a reconstrução histórico-cultural do Brasil moderno. Ainda bem que, diferentemente do passado menos denso em documentários no cinema brasileiro, hoje pode-se, tranquilamente retornar ao mesmo assunto, agregando mais visões ao mesmo tema. E quem sabe, retratando o Clube da Esquina com maior fidelidade e trazendo, enfim, muito mais do que foi como antes. Amanhã.

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trailer de “Nada Será Como Antes - A Música Do Clube Da Esquina”, de Ana Rieper



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Criolo - “Convoque seu Buda” (2014)

 

'Convoque seu Buda' fermenta a massa modelada no antecessor 'Nó na Orelha', álbum que projetou e consagrou Kleber Cavalcante Gomes, cantor e compositor das quebradas que, comendo pelas beiradas, vem flertando com ícones da linha de frente da MPB.  'Convoque...' jamais ultrapassa a fronteira delimitada por 'Nó...', mas aprimora a receita sonora do álbum anterior."
Mauro Ferreira, crítico musical

Quando “Convoque seu Buda” foi lançado, no final de 2014, Criolo já ocupava seu merecido lugar no panteão dos grandes da música brasileira. “Nó na Orelha”, seu antecessor de três anos antes, havia garantido este posto ao cantor e compositor paulista ao lado de colegas do gabarito de Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento. Obras como “Subirodoistiozin”, “Não Existe Amor em SP” e “Grajauex” eram provas incontestes de que, depois de muitos anos, havia surgido um talento acima da média na já tão bem representada MPB, mas carente de novas referências.

Só status, contudo, não era suficiente para Criolo. Para um artista de alto nível e, principalmente, honesto consigo e para com seu público, contentar-se com a atribuição externa seria impensável. Ainda mais porque, indiretamente, espera-se, sim, que grandes artistas sigam produzindo bem e, consequentemente, evoluindo. Por isso, fazer um novo disco só para cumprir tabela lhe soaria, ao mesmo tempo, a mediocridade e calvário. O que se vê em “Convoque...”, além de um Criolo totalmente consciente de seu universo sonoro, é a manutenção de parte da estrutura narrativa da estreia, bem como da veia contestadora e do rap como força-motriz. Mas com acréscimos.

A pegada hip hop está lá, preservada, como na faixa-título e de abertura. Porém, já aí se nota um Criolo mais maduro e dono de uma musicalidade talvez menos instintiva. As referências não-óbvias ao rap samurai da Wu-Tan Clan, bem como a seus ídolos Sabotage e Racionais, chamam o ouvinte para uma experiência diferente. Na letra, a pungência onírica improvável de sua poética: "De uzi na mão, soldado do morro/ Sem alma, sem perdão, sem jão, sem apavoro/ Cidade podre, solidão é um veneno/ O Umbral quer mais Chandon/ Heróis, crack no centro/ Da tribo da folha favela desenvolvendo/ No jutsu secreto, Naruto é só um desenho".

Pronto: foi dada a largada para um novo grande disco de Criolo, que definitivamente não se resume ou se estreita, como “Nó...” já sugeria, apenas ao rap, sua raiz das quebradas paulistas. A musicalidade brasileira afro se homogeneíza fortemente agora. Caso evidente da obra-prima “Esquiva da Esgrima”. Misto de rap e candomblé. E que letra, que refrão! “Hoje não tem boca pra se beijar/ Não tem alma pra se lavar/ Não tem vida pra se viver/ Mas tem dinheiro pra se contar/ De terno e gravata teu pai agradar/ Levar tua filha pro mundo perder/ É o céu da boca do inferno esperando você”. E mais uma evolução visível: Criolo está cantando melhor. Seja nos detalhes de overdubs, nas variações de timbre e até na extensão, seu belo timbre está mais bem trabalhado e aproveitado.

Sem dar fôlego, Criolo apresenta aquela que é ao mesmo tempo a mais pop e uma das mais críticas do álbum: a sarcástica “Cartão de Visita”. Rap de excelente arranjo e cantado por ele com uma debochada voz afetada sobre a frivolidade perversa da alta sociedade, tem a parceira de Tulipa Ruiz no marcante refrão: “Acha que 'tá mamão, 'tá bom/ 'Tá uma festa/ Menino no farol se humilha e detesta/ Acha que 'tá bom/ Não é não nem te afeta/ Parcela no cartão/ Essa gente indigesta”. Nada menos que genial.

Mas Criolo estava, definitivamente, disposto a fazer história. “Casa de Papelão” pode não se tratar da melhor do disco, mas certamente a mais radical aproximação com aquilo que se entende por MPB. O arranjo, primoroso, lembra os dos clássicos discos dos anos 70 assinados por Rogério Duprat, Edu Lobo, Wagner Tiso ou Francis Hime. A música soa épica, densa, imponente. O forte teor social, igualmente, retraz as denúncias musicais e a atmosfera grave dos Anos de Chumbo, como "Cala a Boca, Bárbara", "Demônio de Guarda", "Sacramento", "Café". Deste nível. Criolo, que à época já ensaiava parcerias com Milton, Arthur Verocai e Tom Zé, chegava, sozinho, àquilo que seus mestres o ensinaram.

“Convoque...” tem, assim como “Nó...”, mais uma vez a mão dos produtores Daniel Ganjaman e de Marcelo Cabral nos arranjos, instrumentos e coautorias. Mas não se resume a estes, pois novos parceiros são, como o título sugere, convocados. A turma originalíssima da Metá Metá, donos da musicalidade afro mais raiz da música brasileira, são alguns deles. Seus integrantes, Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal, aparecem em mais de uma faixa e em momentos fundamentais. É o que se vê noutra excelente do repertório, “Pegue pra Ela”, com a sonoridade folclórica dos pífaros tocados por França e a percussão marcante de Maurício Badé, bem como em “Pé de Breque”, dub jamaicano tal como reggae “Samba Sambei” do álbum anterior, compondo uma variação estratégica na narrativa sonora.

O samba, claro, está novamente presente. Repetindo também a "fórmula" de “Nó...”, que trazia o partido-alto "Linha de Frente", agora é vez da sociopolítica “Fermento pra Massa”, crônica urbana que defende em seus versos o direito à greve para se obter melhores condições de trabalho. Interessante que a música tem relação com o que Criolo fez antes, mas também com o que faria depois, a se ver por seu disco só de sambas “Espiral da Ilusão”, que lançaria 4 anos depois, e canções atuais.

Outra com olhar para a música brasileira de outros tempos, “Plano de Voo” carrega na lírica com uma letra extensa e densa que conta com ajuda do rapper Síntese. Encaminhando-se para o fim, a forte “Duas de Cinco” traz o sampler da canção "Califórnia Azul", de Rodrigo Campos, com a voz de Luísa Maita – filha de Amado Maita e de visível semelhança ao timbre da saudosa Beth Carvalho – para abrir a música com um canto melancólico e circunspecto, que dá lugar, aí sim, ao Criolo rapper. "Ela conta uma epopeia sem Ulisses", diz Criolo sobre seu rap-denúncia-confissão. Afinal, o narrador é um sujeito impregnado de "realidade", um sujeito comum que vivencia os fatos fractalmente narrados, sem a homérica intenção de heroísmo. 

A excelente “Fio de Prumo (Padê Onã)”, com os vocais de Juçara e arranjo de Dinucci, inundam de signos brasileiríssimos e põem na boca de Juçara as palavras nagô: "Laroyê eleguá/ Guarda ilê, onã, orum/ Coba xirê desse funfum". Ancestralidade poética, musical, cultura. Resistência, ode, memória. Que forma de terminar um grande disco, aquele que punha definitivamente Criolo entre os maiores. Se “Nó...” serviu para ele abrir a porta ao de muito desvalorizado rap como sendo pertencente ao universo da música brasileira, “Convoque...” solidificou sua posição e desfez de vez qualquer preconceito musical, artístico ou cultural. E pode-se dizer hoje: sim, a linhagem de Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Gilberto Gil e outros gigantes fez-se preservada em Criolo.

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FAIXAS:
1. “Convoque Seu Buda” - 3:51 (Criolo e Daniel Ganjaman)
2. “Esquiva Da Esgrima” - 4:29 (Criolo, Ganjaman e Marcelo Cabral) 
3. “Cartão De Visita” - 3:26 (Criolo, Ganjaman e Cabral)
4. “Casa De Papelão” - 4:59 (Criolo, Ganjaman, Cabral e Guilherme Held)
5. “Fermento Pra Massa” - 3:41 (Criolo)
6. “Pé De Breque” - 4:06 (Criolo)
7. “Pegue Pra Ela” - 4:25 (Criolo)
8. “Plano De Voo” - 3:39 (Criolo, Síntese, Ganjaman, Held e Cabral) 
9. “Duas De Cinco” - 3:45 (Criolo, Rodrigo Campos, Ganjaman e Cabral)
10. “Fio De Prumo (Padê Onã)” - 4:09 (Criolo e Douglas Germano)

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Aum - "Belorizonte" (1983)

 

"Dedicado a Belo Horizonte"
Dedicatória da contracapa do disco

Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...

Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.

A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.  

Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.

Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”. 

Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).

Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges.  Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.

O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.

“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.

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FAIXAS:
01. "Tema pra Malu" (Taquinho) - 5:12
02. "Serra do Curral" Marcio) - 2:55
03. "Belo Horizonte" (Aum) - 9:36
04. "Nas Nuvens" (Betinho) - 3:58
05. "4:15" (Marcio) - 4:15
06. "Tice" (Betinho) - 7:20

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de abril de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 1)

 

Cena do inaugural "Os Óculos do Vovô", de 1913,
há 110 anos
Quando, em março de 1913, o cineasta e ator luso-brasileiro Francisco Santos levou pela primeira vez ao público de Pelotas, no extremo Sul do Brasil, “Os Óculos do Vovô”, é de se supor que soubesse estar marcando uma era. Aquilo que então chamavam de “atualidades” já trazia a semente de mais do que isso: era o nascer de uma indústria, a indústria do entretenimento. Mas mais do que este aspecto produtivo e mercadológico, aquilo era “arte”. Isso, talvez Santos supusesse com maior assertividade. Uma espécie nova, ainda em construção, experimental, mas instigante e visivelmente muito promissora de arte: o cinema. 

O que o pioneiro do cinema brasileiro talvez não suspeitasse era que aquilo que ele empreendera com muito custo através da Guarany Films, sua produtora, fosse se tornar tão longevo e, por que não dizer, exitoso. Pois uma coisa pode-se afirmar do cinema brasileiro: mesmo várias vezes acometido por crises econômicas, políticas, culturais e ideológicas em um país jovem historicamente falando, jamais lhe faltou criatividade e perseverança. As condições nem sempre favoráveis, quando não dribladas, foram inclusive combustível para a geração neo-realista ou a cinema-novistas e udigrudi, para citar três exemplos.

Glauber: genialidade marcante
para o cinema brasileiro
E se são raros os casos de abastamento, por outro lado nunca se deveu nada a outros polos, inclusive bem mais endinheirados como a Europa, o Japão e os Estados Unidos. De gênios, podemos entabular Glauber, Peixoto e Mauro. De documentaristas, o talvez maior de todos: Coutinho. De obras revolucionárias, “Limite”. De divisores-de-águas modernos: “Cidade de Deus”. De obras-primas, “O Pagador de Promessas” e “Eles não Usam Black Tie”. Isso sem falar na brasilidade exposta em diversos filmes, às vezes de forma absolutamente orgânica, algo impossível de ser copiado, reproduzido e, em certa medida, até explicado noutras paragens. Como legendar diálogos como os de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” ou “Amarelo Manga” sem perder consistência e poética?

Tem isso e mais um monte de coisas. Afinal, em 110 títulos cabe bastante diversidade. Longas de ficção, documentários de maior ou menor duração, filmes mudos, curtas-metragens ficcionais, fitas P&B e coloridas, audiovisuais feitos para TV, gêneros diversos, produções do início do século 20 e outras recentes. Tem, sim, um pouco de tudo. Como diz Caetano Veloso sobre o cinema brasileiro: “Visões das coisas grandes e pequenas que nos formaram e estão a nos formar”.

Dizem que montar listas é uma forma de, além de divertir-se dando classificações aos próprios gostos, apreender tudo aquilo que se vê. E é tanta coisa que já se viu!... Aqui, a tentativa lúdica é de resgatar preferências de forma a dar uma noção subjetiva do que é cinema brasileiro em minha visão. Porém, também contemplar o crítico, que pode ponderar a consideração a medalhões, mas entende suas relevâncias. Recai aqui aquela “justificativa” dos preteridos. Muita coisa fica de fora, infelizmente, a contragosto do próprio autor da classificação. Impossível não citar pelo menos 10 deles: “Di”, “Pacarrete”, “O Palhaço”, “Linha de Passe”, “Os Primeiros Soldados”, “Porto das Caixas”, “O Homem do Ano”, “Chuvas de Verão”, “Alma Corsária” e “Inocência”. E teriam mais.

Cena de "Os Primeiros...", um dos célebres não-incluídos na lista

Diferirá de outras listas semelhantes? Claro, e isso que é o bom. O exercício aqui é justamente este: louvar a produção nacional em sua diversidade e preservar a memória de um dos cinemas mais inspirados do mundo, mesmo sem nunca ter ganho um Oscar de Filme Internacional. Importante? Sim, mas não é tudo, pois há muito mais abundância do que reconhecimento. E se são 110 anos, então, que sejam 110 títulos, lançados em partes e em ordem inversa. De início, os últimos 20 colocados já mostram essa riqueza. Têm desde clássicos do Neo Realismo e do Cinema Novo, passando por filme da retomada e produções da Embrafilme a dignos representantes do cinema atual feito no País. Então, partiu ordenar filmes representativos desta história mais que centenária como parte das celebrações pelos 15 anos do Clyblog!.

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110. “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (1986)

Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.






109. “Meu Nome não é Johnny”, Mauro Lima (2008)
108. “O Grande Momento”, Roberto Santos (1959)
107. “Canastra Suja”, Caio Sóh (2018)
106. “Marighella”, Wagner Moura (2021)
105. “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (1984) 



101. “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (1999)
102. “Os Cafajestes”, Ruy Guerra (1962) 
103. “O Homem que Copiava”, Jorge Furtado (2003)
104. “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (1985) 


100. “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (2000)

No início doa anos 2000, o cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.




99. “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (1978)
98. “O Lobo Atrás da Porta”, Fernando Coimbra (2013)
97. “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976) 
96. “A Rainha Diaba”, Antonio Carlos da Fontoura (1974)
95. “Os Saltimbancos Trapalhões”, J. B. Tanko (1981)



94. “A Casa de Alice”, Chico Teixeira (2007)
93. “Macunaíma”, Joaquim Pedro de Andrade (1969)
92. “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (1980) 
91. “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (1969) 


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Milton Nascimento - "Minas" (1975)

 





"O disco é dedicado
a todas as pessoas que ajudaram
e pro Rubio, um menino
que juntou duas sílabas do meu nome
e descobriu o título."
Milton Nascimento



"Minas", parte Estado da Federação, parte estado de espírito... Por outro lado, duas partes de um nome: MIlton NAScimento. "Minas", cuja arte, belíssima, traz apenas a face, muito aproximada do cantor, na capa e contracapa, é um pouco de cada face de Milton. Doce, lírico, combativo, atrevido, arrojado, e acima de tudo, talentosíssimo.
"Minas", disco de 1975, é um trabalho ousado, quase experimental, de um músico completamente maduro e ciente de todas as suas possibilidades. 
Atravessado de ponta a ponta pelo coro infantil de "Paula e Bebeto", o álbum tem um formato, até por isso mesmo, pouco convencional. A canção composta em parceria com Caetano Veloso, uma espécie de pré-"Eduardo e Mônica", aparece desde a abertura, na belíssima "Minas", voa nas asas dos "...Aviões da Panair", reaparece na intensa "Idolatrada", até, finalmente ressurgir lá, quase no final do disco. 
No meio de tudo isso temos o rock-jazz sofisticado da desafiadora "Fé Cega, Faca Amolada", com a participação de Beto Guedes; a balada elegante "Beijo Partido"; o manifesto sobre a fome e desigualdade escondido sob uma lona colorida na ótima "Gran Circo"; toda a riqueza sonora de "Ponta de Areia", quase um ponto de capoeira transmutado nas mãos de Milton e Fernando Brant em uma melodia de ninar; a "estranha" crônica urbana, sombria e misteriosa, de "Trastevere", com participações do MPB4, Joyce e Nana Caymmi; e "Leila...", uma variação da base de "Milagre dos Peixes", de 1973, com belíssimas vocalizações de Milton sobre o arranjo de Wagner Tiso.
"Paula e Bebeto", que amarrara o disco até então, aparece mesmo, inteira, completa, com letra, dando seu recado de que "qualquer maneira de amor vale a pena", como penúltimo ato do disco, que finaliza com a faixa "Simples" que, apesar do nome, apresenta uma composição complexa, intrincada e uma poesia enigmática, sugestiva, com imagens de memória que beiram o surrealismo.
"Minas" é um disco múltiplo em sua concepção, em suas alternativas, em sua diversidade. Tem tantos compositores, tantas participações, tantos parceiros que parece um coletivo, quase um novo "Clube da Esquina", um novo Som Imaginário. Na verdade, é um pouco de tudo isso: apanhando características, experiências de discos anteriores, superando limitações, como a proibição das letras em "Milagre dos Peixes", tirando proveito do aprendizado dessa censura com o aperfeiçoamento das performances vocais sem letra que se tornaram sua marca, utilizando-se da parceria certa para cada intenção musical, sabendo mesclar possibilidades sonoras dentro da mesma obra, Milton chegava a um disco singular. E se alguém imaginava que não dava para repetir, ir mais longe ou superar, depois ainda viria o complemento de "Minas", "Geraes", de 1976. Mas isso já é outra história...


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FAIXAS:

1. Minas (Novelli)
2. Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
3. Beijo Partido (Toninho Horta)
4. Saudade dos Aviões da Panair (Milton Nascimento, Fernando Brant)
5. Gran Circo (Milton Nascimento, Márcio Borges)
6. Ponta de Areia (Milton Nascimento, Fernando Brant)
7. Trastevere (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos)
8. Idolatrada (Milton Nascimento, Fernando Brant)
9. Leila (Milton Nascimento)
10. Paula e Bebeto (Milton Nascimento, Caetano Veloso)
11. Simples (Nelson Angelo)


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Ouça:

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Som Imaginário - Blues Jazz Brasil Festival - Parque da Redenção - Porto Alegre/RS (30/07/2022)

 

Tudo que é programação cultural neste pós-pandemia tem tido um gosto especial, seja uma ida a um museu, um passeio no parque ou assistir um filme no cinema. Outro tipo de programa que Leocádia e eu vínhamos evitando – embora muita gente por aí já viesse se permitindo – eram os shows. Em maio, vimos Djavan no teatro numa oportunidade única, mas show em local aberto, com multidão e tudo, fazia mais do que o tempo de pandemia que não curtíamos. 

Mas o avanço do controle da Covid somado a uma linda (embora fria) tarde de sol em Porto Alegre nos fez comparecer ao Blues Jazz Brasil Festival, ocorrido no Parque da Redenção no último dia 30. Nos moldes do antigo Festival BB Seguridade, o qual ocorreu com este nome até ano passado e que estivemos em 2016 no mesmo lugar, este evento traz sempre uma programação musical bem interessante, intercalando artistas brasileiros e estrangeiros e em um horário, das 11h às 20h30, bom tanto para quem passeia pelo parque quanto para quem vai conferir os shows ou apenas algo específico. Foi o nosso caso. Embora tenhamos dado uma passeada no famoso Brick da Redenção, feira de rua que ocorre tradicionalmente numa das avenidas que ladeiam o parque, nossa intenção maior no festival era mesmo assistir à lendária Som Imaginário, a banda mineira que, além de ser a mais célebre de apoio de Milton Nascimento mas também de Gal CostaErasmo Carlos e outros, tem um trabalho autoral digno dos maiores da discografia instrumental brasileira. Banda que tem como cabeça o mestre Wagner Tiso e que teve ninguém menos que Zé Rodrix, Tavito, Naná Vasconcelos e Laudir de Oliveira na formação! 

Com Tiso ao piano; Luiz Alves, no baixo; Nivaldo Ornelas, nos saxofones; Robertinho Silva, na bateria; e o inglês radicado no Brasil David Chew, no violoncelo, a Som Imaginário trouxe uma hora de apresentação à altura de sua lenda. A inequívoca química de música clássica, com jazz, rock progressivo e música brasileira, uma das mais originais de toda a MPB. Eles começaram o show com a música que dá título ao seu memorável álbum de 1973, “Matança do Porco”, um jazz psicodélico e melancólico que, na ausência da guitarra original de Frederiko, ganhou no cello de Chew e no sax barítono os elementos solistas perfeitos. Até o final da música, depois de vários minutos de um crescendo, originalmente executada por uma grande orquestra, encontro no som coeso dos cinco músicos no palco força suficiente. 

A lendária Som Imaginário no palco: Tiso, Robertinho, Chew, Nivaldo e Luiz

Na sequência, outra clássica: “Armina”. Também do repertório de “Matança...”, é talvez o mais célebre tema da Som Imaginário, que traz aquela emocionante melodia valseada de piano de Tiso, que a toca ao piano com uma graça imensurável. Aliás, não apenas ele mas toda a banda, visto que a música está longe de se reduzir a estes acordes. Teve também outras clássicas do repertório da banda; o jazz fusion “A3”, a prog-jazz “Banda da Capital” e o baião-rock “Os Cafezais sem Fim”, do repertório solo de Tiso.

Teve, no entanto, para além do repertório da banda, outras quatro justamente do autor que lhes motivou a formação: ninguém menos que Milton. Tiso & cia. tocaram “Maria Maria”, “Travessia”, “Vera Cruz” e uma arrasadora versão de "Cravo e Canela” como bis para desfechar. 

Afora isso, algumas considerações pertinentes sobre o show e sobre o festival:

1) Embora a folclore em torno do nome de Zé Rodrix ter sido integrante da banda na primeira formação, a Som Imaginário foi, sim, melhor sem ele. Seus naturais carisma e liderança prevaleceram nos dois primeiros discos da banda, que definiu de fato seu som depois de sua saída, quando deixou de lado a marcante psicodelia e irreverência de Rodrix para assumir a sonoridade instrumental jazzística e erudita sobre as influências roqueiras e folclóricas que marcaria a Som Imaginário. Isso se percebe em “Matança do Porco”, disco ao qual, não à tona, o repertório do show foi baseado.

2) Uma semana antes, a programação do festival havia anunciado o show da “Som Imaginário & Fredera”, ou seja, o guitarrista original da banda, Frederiko. Sem a vinda dele, pelo visto de última hora chamou-se para substituir Chew, cabeça da Rio Cello Ensemble que toca há muitos com Tiso. Seria legal ver Fredera, claro, mas ficou bonita a formação com o instrumento tipicamente clássico.

3) No intervalo do show anterior, antes da Som Imaginário subir ao palco, teve apresentação da deliciosa Orleans Street Jazz Band, que sempre toca no meio da plateia. Gravamos um pedacinho do gracioso número que eles fizeram com sua sonoridade típica do sul norte-americano.

A Orleans Street Jazz Band tocando o clássico "Hello, Dolly"

4) A programação do festival terminaria com o show do célebre Stanley Jordan com Dudu Maia. Embora sejamos fãs do guitarrista norte-americano, este era, além de previsto para algumas horas mais tarde, exatamente o mesmo show que assistimos em 2016. Desta vez, então, deixamos para outra ocasião os "magic touchs" de Jordan.

5) Ainda sobre a Som Imaginário, o público em geral recebeu com a frieza de quem nem tinha noção de quem estava assistindo – se é que estavam assistindo, pois conversando e de costas pro palco a meu ver não se faz possível. Ainda mais considerando a raridade de uma apresentação como aquelas, com a banda praticamente original e reunida apenas esporadicamente. Quiçá reconheciam Tiso, mas parava por aí para a maioria. Isso explica a reação apenas mediana da maioria, que tinha a expressão de: “esses caras devem ser importantes, mas como não quero passar vergonha por não saber, vou vibrar um pouquinho”. 

6) Depois do show, apenas em casa que fomos ver pelas redes sociais que tinha um monte de amigos que também foram ao festival mas que poucos encontramos por lá. Estamos desacostumados com eventos assim. Da próxima vez, vamos estar mais ligados para promover os encontros.

7) Contudo e afora o resto, valeu muito a pena! Maravilhoso voltar aos espetáculos ao vivo.

O clima de alegria da Redenção numa ensolarada e convidativa tarde


Mais da Som Imaginário com sua formação quase original


Telões dos dois lados do palco também ajudavam a ver o show


À nossa frente, os mais atentos ao show como nós


Quanto sol! Nós curtindo o Blues Jazz Festival: de volta aos show, finalmente!


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 90


Há cinco anos, publicávamos aqui no Clyblog uma série de três longas matérias com listas dos filmes essenciais para se entender o cinema brasileiro do século XX, fazendo um recorte de suas três principais décadas produtivas: 60, 70 e 80. Por motivos óbvios, os desfalcados anos 90 não entraram nessa primeira série, haja vista a impossibilidade de se equiparar em importância com estas outras décadas uma vez que seu esforço foi muito menos pela manutenção da qualidade obtida anteriormente do que, principalmente, pela sobrevivência do audiovisual brasileiro. A puxada de tapete do governo Collor ao destruir a exitosa Embrafilme não ofereceu nenhuma alternativa substitutiva à altura que garantisse a continuidade do trabalho de milhares de profissionais e da importante arte cinematográfica brasileira.

Porém, os anos se passaram aqui no blog e, com eles, chegamos ao final da década de 2010, em que o cinema brasileiro, devidamente retomado de seus percalços (será?!), torna a ganhar o circuito internacional com filmes não apenas bem realizados, como essenciais para a nova cinematografia mundial, caso de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e, mais recentemente, “Bacurau”. Mesmo que o correto seja compreender o final da década assim que concluir o ano em que estamos, e só começar a contar uma nova década a partir de 2021, quem imaginaria que viria a Covid-19 para congelar tudo, afetando, principalmente, o setor cultural e, com ele, a produção cinematográfica? Se havia ainda alguma esperança de que novos títulos se somassem aos produzidos nos últimos 9 anos para cá, a pandemia, bastante ajudada pela política inimiga da cultura do atual governo brasileiro, forçou para que se acabasse de vez a década.

Entre a última década do século passado e a que estamos, restam, claro, os primeiros 10 anos do novo século. Vamos reconstruir, então, a essência do que foi produzido no cinema brasileiro nos últimos 30 anos, começando pelos 90. Se a recorrente falta de prioridade para com a cultura e a arte da política brasileira fez de tudo para acabar com o cinema nacional, fique esta sabendo que não conseguiu. Produções escassas, mirradas, prejudicadas, mas mesmo assim, resistentes. Deste modo, selecionamos aqui 20 títulos essenciais para entender esta década que, com todos estes percalços, ainda assim mantém qualidade suficiente para não deverem nada a títulos de outras décadas mais abastadas. Uma exceção fazemos aqui, no entanto: não apenas por contar fatalmente de menos filmes classificáveis, os anos 90 são sinônimo de “retomada” para o cinema no Brasil, fase a qual se encerraria apenas com o marco “Cidade de Deus”, de 2002, um ano depois da instituição da Ancine. Então, coerentemente com a construção histórica do novo cinema brasileiro, incluímos as produções do ano de 2000 nesta primeira listagem. A partir dali, uma nova era viria.





1 - “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, de Carla Camurati (95): O filme de estreia de Camurati é o marco de resistência do cinema brasileiro pós-Collor, quase um manifesto, que bradava: “É possível, mesmo com toda a dificuldade, fazer cinema autoral no Brasil!”. Cheio de hiatos e desconexões (propositais ou não), tem, além desta simbologia (que já lhe seria suficiente para integrar esta lista), o mérito de trazer algumas características que se consolidariam no cinema brasileiro nas décadas seguintes: a coprodução com países estrangeiros, a linguagem cômica, a edição ágil e a abordagem crítica.






2 - “O Quatrilho”, de Fábio Barreto (95): Há quem torça o nariz para certa pasteurização do filme rodado no interior do Rio Grande do Sul sobre a obra de José Clemente Pozzenatto, mas é fato que, com ele, os Barreto reabriram as portas do Brasil para o mercado internacional com a inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na história do cinema brasileiro – feito que ocorreria apenas mais duas vezes. E isso num momento em que jamais se esperaria algum reconhecimento vindo de um ainda agonizante cinema pela quebra da Embrafilme. Um bom romance, com seus méritos.





3 - “O Mandarim”, de Julio Bressane (95): Enquanto os Barreto encabeçavam uma nova investida na internacionalização do cinema brasileiro e Camurati tentava redirecionar os rumos das coisas por aqui, o bom e velho transgressor Julio Bressane aperfeiçoava seu cinema-poesia. Assim como em “Tabu”, “Brás Cubas” e os “Os Sermões”, a música é quase um personagem, neste caso, para contar a proto-biografia de Mário Reis (Fernando Eiras), mas não sem o “auxílio luxuoso” de Caetano Veloso, Chico Buarque (fazendo eles mesmos), Gilberto Gil (encarnando Sinhô) e Edu Lobo (fazendo as vezes de Tom Jobim). Tudo de forma artesanal, barata e genial.




4 - “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (96): O filme de Waltinho e Daniela tem o poder de vencer a contramaré vivida pelo cinema nacional àqueles idos a ponte de tornar-se um dos mais importantes filmes da cinematografia nacional. Tanto que está na lista da Abraccine dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma história sobre solidão e resgate das próprias raízes motivado justamente pelo confisco promovido pelo mesmo presidente Collor que extinguiu tanto o dinheiro do brasileiro quanto o da Embrafilme. Fotografia impecável p&b de Walter Carvalho, trilha excelente de Zé Miguel Wisnik e até dedo de Millôr Fernandes nos diálogos. Um luxo em época de vacas magras.







5 - “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (96): Na esteira da mais revolucionária cena cultural do Brasil dos últimos 30 anos, o mangue beat, o filme marco da retomada do cinema pernambucano, retraz questões formativas da cultura nordestina (o cangaço, o “Ciclo do Recife” dos anos 20, os superoitistas dos anos 70, o sotaque, a antropomorfia) com uma roupagem moderna. Se não é necessariamente um filme bom, é altamente representativo e indispensável para se entender o cinema brasileiro de então, visto que abriu portas para a entrada de talentos de outros pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Marcelo Lordello.







6 - “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende (96): Afeito aos temas da História do Brasil, Rezende, após realizar seu grande filme, “O Homem da Capa Preta”, em 86, viu-se, assim como seus pares, totalmente descapitalizado para realizar seu trabalho. O que não foi motivo para abandonar o projeto sobre a real história do líder Antônio Conselheiro e a sangrenta guerra contra as forças do Império extraída do épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Wilker, que já havia protagonizado “O Homem...”, está brilhante no papel principal. Produção cara que, mesmo os justificáveis defeitos de produção, não apagam o brilho.







7 - “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues (96): O tarimbado Cacá foi dos que sofreu bastante com a quase inviabilização do cinema no Brasil da era Collor. Após o paupérrimo longa de episódios “Veja Esta Canção”, de 94, parecia que nunca mais viriam grandes produções de outrora como “Quilombo” ou “Xica da Silva”. Mas o sempre obstinado cineasta surpreende com um filme recheado de qualidades: texto baseado e revisado pelo próprio Jorge Amado, Sônia Braga brilhante como Tieta, Chico Anysio tornando a fazer cinema como o velho Zé Esteves, trilha de Caetano, fora outras. Uma delícia de filme.





8 - “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr. (97): Assim como Cacá e Bressane, Walter é outro experiente realizador nascido no Cinema Novo. Porém, tem como característica o empreendimento de projetos muito peculiares, como esta bela adaptação do romance de Moacir C. Lopes, que conta com roteiro dele e de Flávio Tambellini (que se tornaria um dos cineastas de vulto no cinema nacional), fotografia de Pedro Farkas, música de Wagner Tiso e a linda canção original de Chico. Lima Duarte, Castrinho e Fernando Torres excelentes, além da jovem Leandra Leal, estreando na tela grande com uma inesquecível atuação sobre um tema raramente explorado com tanta assertividade: o florescer da sexualidade feminina.






9 - “Os Matadores”, de Beto Brant (97): Fala-se muito de “O Invasor”, de 2002, mas em “Os Matadores”, primeiro longa do talentoso paulista Beto Brant, ele já introduzia sua contribuição ao cinema brasileiro com um estilo autoral, de forte apelo literário, com histórias inspiradas na realidade em diálogo com o tempo presente e onde o ator tem espaço para contribuir na narrativa. Além disso, em resposta à falta de perspectivas vivida pela classe cinematográfica brasileira no início dos anos 90, trazia um conceito “enxuto”: projetos racionalizados sob o ponto de vista da produção, com equipes de trabalho formadas por amigos, que se transformam em parceiros constantes. Na sua estreia, Brant já saiu abocanhando o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Gramado.






10 - “O Que é Isso, Companheiro?”, de Bruno Barreto (97): Criado em 91 como mecanismo do incentivo à cultura, a Lei Rouanet começou a, de fato, render frutos anos depois. Após emplacar a inédita disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com “O Quatrilho”, um ano depois o Brasil colocava outro candidato à estatueta: o bom “O Que...”, baseado no Best-seller biográfico de Fernando Gabeira. Novamente, são os Barreto os responsáveis pelo feito. Além das excelentes atuações de Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, o filme avança no espaço aberto por “Carlota Joaquina” no sentido da coprodução estrangeira, o que resulta nas participações do craque Alan Arkin no elenco e da excelente trilha do ex-Police Stewart Copeland.





11 - “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck (97): A Globo Filmes, a partir da década seguinte, vulgarizaria o estilo comédia feita com atores da emissora, lançando aos montes subproduções sem nenhuma qualidade, quanto menos pretensão cinematográfica. Mas isso ainda cabia naquele sétimo ano da década de 90, quando Sandra realizou esta comédia romântica deliciosa. Aquele final com “Futuros Amantes” do Chico é de arrebentar o coração até do mais insensível espectador. Atuações ótimas de Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Glória Pires e Tony Ramos – estes dois últimos, que fariam dupla noutra comédia (um pouco menos) romântica “Se Eu Fosse Você” anos mais tarde.





12 - “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (98): É só deixar solto, que o sobrevivente cinema brasileiro se supera e, logo em seguida, se agiganta. Sete anos após a instituição da Lei Rouanet e minimamente restabelecido o mercado do audiovisual brasileiro, Waltinho vem com aquele que é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, certamente o melhor da década de 90. Tocante, envolvente, denunciador, poético, revelador. Um filme perfeito em tudo: fotografia, trilha, montagem, arte e, principalmente, a direção de atores. “Central...” traz algumas das mais célebres atuações do cinema brasileiro numa mesma obra: Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nasctergaele, o pequeno Vinícius de Oliveira e, claro, a deusa Fernanda Montenegro, que, assim como o filme, o último concorrente ao Oscar de Filme Estrangeiro do cinema nacional, também disputou a estatueta – perdendo, junto com Meryl Streep e Cate Blanchett, para Gwyneth Paltrow. No entanto, levou Berlim de Melhor Atriz e Melhor Filme.




13 - “São Jerônimo”, de Julio Bressane (98): O hermético e experiente Bressane é original não apenas na narrativa e no seu inconfundível estilo pessoal, mas também nos temas que escolhe para filmar. Ao abordar a história do santo e obscuro intelectual do século IV autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata, Bressane dava sua definitiva contribuição para a retomada provando que em cinema (principalmente, no Brasil) é possível conjugar estética exigente e verba exígua, poesia arrojada em prazo concentrado. Como São Jerônimo, Bressane operava milagres.




14 - “Estorvo”, de Ruy Guerra (98): Em 1991, emputecido com a vitória da velha política de Collor na primeira eleição democrática para presidente do Brasil (e a derrota da “nova” por parte do correligionário Lula), Chico Buarque lançava seu pequeno, mas potente primeiro romance, “Estorvo”, um sucesso que ganharia Jabuti. Mas para levar à tela um enredo tão subjetivo, somente alguém muito conhecedor da obra do autor de “Vai Passar”. Ninguém melhor, então, que o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, companheiro de velhos tempos de Chico, seja no teatro, na música ou no próprio cinema. O clima perturbador da obra se potencializa nas tomadas distorcidas, na câmera nervosa, na montagem ousada e até no off com a voz do próprio Ruy, cujo sotaque arrevesado impõe a estranheza que a narrativa merece. Filme difícil, mas essencial.



15 - “A Causa Secreta”, de Sérgio Bianchi (96): O cinema deste paranaense radicado em Sampa nunca fez concessões. Desde o curta “Mato Eles?”, de 1982, quando denunciava o descaso com os índios, seu discurso é apontado para a crítica e toda a narrativa se mobiliza neste sentido. Em “A Causa Secreta”, o cineasta se vale de todas as suas armas para evidenciar a podridão moral da sociedade brasileira. E o faz com alto poder mimético, numa construção narrativa incomum, atuações e situações que incomodam de tão reais e agudas. Como outros filmes da década, peca por certo – e compreensível – déficit técnico, mas supera as dificuldades com a coesão da obra, essencial para entender o país em recente caminhada democrática e todos os problemas que ainda iria demorar a se livrar.




16 - “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (99): Filho da Boca do Lixo carioca, o gaúcho Carlão, mesmo à época das famigeradas pornochanchadas dos anos 70/80, produzia com qualidade, fosse na fotografia, a qual era um ótimo técnico, fosse na própria direção. Nos anos 90, já havia realizado o emocionante “Alma Corsária”, mas nada se compara tanto em emoção quanto em acerto com “Dois Córregos”. Um romance que envolve política, história e reminiscências do próprio cineasta, que filmou cenas na praia de Cidreira, no litoral do seu estado de origem. E tem trilha magnífica de Ivan Lins pra arrematar.





17 - “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000): Entramos na leva de filmes de 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. E não se poderia iniciar com um título mais emblemático que esta estreia da talentosa Laís Bodanzky. Símbolo da retomada, é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Além disso, também está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.





18 - “Tolerância”, de Carlos Gerbase (00): O Rio Grande do Sul também é um dos protagonistas dessa virada do cinema brasileiro para a modernidade, e o responsável por isso é o primeiro e melhor longa do "replicante" Gerbase. Uma “história de sexo e violência” num thriller ao estilo do cineasta: trama envolvente, roteiro impecável e atuações conduzidas pela mão de quem carrega a experiência superoitista e da cena curta-metragem, que salvou na raça o cinema brasileiro quando nenhum longa era possível de ser feito. Maitê Proença, linda, está brilhante. 






19 - “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (00): Outro marcante filme "

00", este tocante, mas ao mesmo tempo divertido e denunciador romance, marca a entrada de vez de Andrucha no mundo da tela grande, ele consagrado como diretor de videoclipes célebres de artistas da música brasileira e realizador do acanhado “Gêmeas”, de um ano antes. A trilha de Gil cumpre um papel fundamental, amarrando a narrativa tanto em suas novas e antigas composições, quanto nas versões de Gonzagão. Grande Prêmio Cinema Brasil de Filme, Fotografia, Montagem e Atriz para Regina Casé, maravilhosa, assim como seus “maridos”: Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos.






20 - “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (00): O cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.


Daniel Rodrigues