Filippo tinha duas paixões na vida: cinema e Aurora. Mas
comecemos pela mais analisada e analisável: o cinema.
Embora fosse farmacêutico, Filippo gostava mesmo era de
sétima arte. Não no sentido de fazer cinema, mas de apreciá-lo. Era dedicado na
sua profissão, e a cumpria muito bem. Mas os “24 quadros por segundo”, a magia
do cinema, era o que realmente lhe movia. Era o que recheava sua cabeça
inventiva e romântica. De certa forma, a vida de farmacêutico até o ajudava a
dedicar-se ao que gostava: além de os horários na farmácia favorecerem, pois
lhe davam a noite para poder ver o que queria, também ganhava o suficiente para
ir ao cinema, comprar filmes e, solteiro, assistir a vários deles na TV a cabo
madrugada adentro. E não era com blockbusters
ou aventuras explosivas que Filippo se animava. Era cinéfilo mesmo, na
verdadeira acepção da palavra. Conhecia cinema a fundo: europeu, asiático, norte-americano,
alternativo, indiano, russo e por aí vai. De qualquer escola, movimento ou polo
produtivo, fosse Cinema Novo Japonês ou Dogma 95, noir ou Realismo Fantástico, Filippo conhecia ao menos alguma coisa
representativa.
De todas as nacionalidades do cinema, entretanto, a que mais
lhe agravada era a italiana. Não necessariamente pela descendência, mas porque
adorava a picardia, o conceito fotográfico, o sabor do idioma e o humor
sarcástico do cinema da Itália até nos filmes não propriamente de comédia. Claro
que admirava as obras dos mestres Fellini, Pasolini, Antonioni, Petri, De Sica,
Visconti. Mas se deliciava mesmo era com as comédias italianas. Títulos como
“Volere, Volare”, “Ladrões de Sabonete”, “O Incrível Exército de Brancaleone” e
“O Monstro“ faziam-lhe a cabeça. Uma delas, porém, era a sua preferida, não
apenas entre as comédias, mas entre todas as escolas, movimentos,
nacionalidades e filmografias: “Parente... É Serpente”. O longa de Mario
Monicelli era seu filme de cabeceira, o primeiro de todas as suas listas. Só
havia um contrassenso nisso: Filippo não tinha este filme em sua videoteca. Já
tivera, mas o perdera – e isso tinha uma explicação incômoda para ele. Mas exceto
o fator estritamente emocional, que em seguida explicaremos, a priori, para um colecionador – ainda
mais para quem gostava tanto de “Parente... É Serpente” – isso era uma falha
gravíssima. Chegava a culpar-se por não tê-lo mais em sua prateleira: “Por que
fui fazer a besteira de deixar o filme com ela?”
“Ela” quem? A Aurora, ora. Sim, Aurora, a segunda paixão de Filippo,
aquela cuja análise é um tanto mais intrincada do que a de cinema. Mas
tentemos: moça um pouco mais magra que o normal, talvez por sua estatura um
pouco acima da média, era naturalmente sexy
mesmo não fazendo o estilo “gostosona”. Esteticamente era bem proporcional:
bunda, coxas, peitos, boca, cintura: tudo sem exagero mas sem faltar nada.
Porém, o que lhe fazia sensual mesmo era seu jeitinho, o jeitinho que encantava
os homens. Foi assim com Filippo naquele churrasco na casa do Douglas há quase
seis anos: encantamento. Mas não só ele: o Maikinho, o Ventura, o Biboca, o
Haroldo e até o dono da casa, noivo, gamaram naquela misteriosa fotógrafa lépida,
faceira e desatenta aos olhares desejosos. A Priscila, a noiva do Douglas, levara
a amiga na festa para fazer uns registros fotográficos despretensiosamente e
sem cobrar nada, pois ela queria treinar a luz com a nova lente que acabara de
comprar. Mas o que embasbacou de verdade a galera não foram as fotos, mas, sim,
a própria Aurora fotografando. Era um show ao vivo do tal “jeitinho”. Com seu
cabelo preto curtinho e espetado, ela passava de um lado para o outro, se
agachava, se contorcia, falava sozinha, fazia careta quando encostava o visor
no olho, punha uma pontinha da língua para fora da boca vermelha de batom para
conferir o resultado. Era descolada, espontaneamente alegre e de gestos largos,
como se não se importasse com a presença dos átomos à sua volta para exercê-los
com liberdade, com iluminação própria. Uma esfinge. Uma aurora.
Ocorreu que o jeitinho de Aurora não bateu com o de mais
ninguém naquela festa, apenas com o jeito nerd
de Filippo. Os óculos de armação grossa estilo anos 60, o cabelo arrumado cujo
corte permitia ao menos uma franja subversiva e a cabeça quadrada que
comportava ricos olhos verdes trazidos de Bérgamo pelos bisavós na primeira leva
da imigração italiana ao Rio Grande do Sul, cativaram a aparentemente distraída
Aurora. Na verdade, confessou depois a Filippo, ela o percebera logo que
entrara pela porta, sentado num banquinho tomando uma cerveja com o copo
americano quase vazio. Até lhe mostrou uma série de fotos que batera dele com
zoom, de longe, para não dar na vista o interesse. Fotos encantadas, que Filippo,
todo bobo, não cansava de ver e rever mesmo anos depois.
Foi bonito o romance dos dois. Aurora foi a primeira namorada
de verdade de Filippo, a primeira a quem ele realmente se afeiçoara. Já Filippo
foi para Aurora o encontro de algo que ela precisava para preencher sua alma
inquieta e perscrutadora. Era como se ele fosse um necessário prego cravado no
chão segurando a barra de sua saia de modo que ela não saísse correndo
desordenadamente mundo afora. Os quase dois anos de relacionamento correram com
mais alegrias do que brigas. Na verdade, belicismo não era uma característica
de nenhum dos dois. Apenas ocorria, isso sim, momentos de total tristeza de
Aurora. Inexplicáveis. Tão sem justificativa visível que, no dia seguinte, aparecia
ela de novo lépida e faceira como se nada tivesse acontecido. Filippo, por amor
ou covardia, relevava.
O romance avançava para um enlace permanente: Aurora
mudara-se para o apê de Filippo na Barão do Triunfo, no Menino Deus, e
estabeleceram uma bonita rotina conjugal. Viajavam juntos e planejavam outras
viagens; preparavam baldes de pipoca para as sessões de cinema na sala; iam ao
super toda semana repor a dispensa; faziam sexo com bastantes frequência e
prazer; levavam o Golias ao veterinário; pagavam a mensalidade da facúl de
Aurora; compravam pão para o café da manhã do dia seguinte; essas coisas.
Tudo harmonioso, não fosse o tal jeito misterioso de Aurora.
Embora gostasse de Filippo, sua ligação com ele, ou melhor, com os relacionamentos
amorosos, guardava complexidades. Com o passar do tempo, foi ficando mais e
mais inquieta. Ela parecia sempre estar em busca de algo que não encontrava –
ou preferia não encontrar para permanecer buscando. Filippo nunca escutara
dela, por exemplo, um “eu te amo”. Pelo contrário, costumava ouvir de Aurora,
em tom brincadeira, outra sentença: “eu não sou casável”. E no mais, Filippo inconscientemente
sabia que o seu prego cravado no chão não conteria Aurora para sempre, pois uma
hora ou outra a barra do vestido se rasgaria e ela, enfim, sairia desorientada
pelo planeta Terra.
A desagradável suspeita de Filippo se confirmara: a frase não
tinha nada de brincadeira. Com a justificativa de fazer uma pós em São Paulo,
Aurora um dia pegou sua mala e seus equipamentos fotográficos e foi morar na como
ela agitada Sampa. Fim do romance, assim, sem mais nem menos, sem muita
explicação. Sem olhar Filippo nos olhos na despedida. Como uma fuga, como uma
busca por algo que provavelmente nem ela sabia o quê.
Não precisa dizer que Filippo ficou arrasado. Até parara de
assistir filmes por um bom tempo, de modo a não gravar uma impressão ruim da
obra por causa de sua inevitável fossa. Gostava muito de cinema para deixar que
uma paixão maculasse a outra. “Imagina rever ‘Persona’ do Bergman nesse estado
deplorável!”, pensava em sua melancolia cinéfila. “Aurora”, do Murnau, então: nem
pensar! Um dia, chegara ao ponto de escondê-lo, pois seus olhos teimosamente
percorriam a fileira de DVD’s na parede para baterem justo naquele maldito título:
“Aurora”. No entanto, no momento em que engaiolava o clássico de Murnau, Filippo
percebeu que, pouco antes na prateleira, organizada por ordem alfabética de
cineastas, vagava uma caixinha. Era no “M” de Monicelli. Sim, faltava-lhe
“Parente... É Serpente”. Numa recapitulação de milésimos de segundo,
lembrara-se que emprestara para Aurora logo que começaram a namorar, ainda
quando não moravam juntos. Ela levara para casa para assistir sozinha o filme
predileto do recente namorado, num gesto de afeição dela. Já o de Filippo era
de quem já acreditava naquele relacionamento, pois emprestar um item de sua
coleção era uma raridade, e fazê-lo justamente com “Parente... É Serpente”,
então! Uma prova de amor eterno.
Não foi eterno. Depois da tristeza pela separação, Filippo
foi se recuperando do jeito que dava. Anos se passaram, namorou umas duas
moças, transou com essas e mais outras três sem compromisso, mas não se firmou
com nenhuma delas. Ia levando, mas sempre com Aurora lá no fundo da cabeça. Já
se acostumara à vida sem ela e sem seu filme preferido. E como não convinha ir
atrás dela, foi à cata do filme. Bateu aquela vontade de revê-lo, que todo
cinéfilo tem para como suas fitas queridas de tempos em tempos. Pesquisou no
site da Cultura e... “esgotado”. “Ok: vou procurar no site da Saraiva”. Igual. Livraria
da Folha... idem. Todo comprador de internet sabe que não achar o que quer
nesses sites é um mau sinal. Provavelmente é porque o produto não está
disponível mesmo. Já aflito, fez uma busca genérica no Google pelo título do
filme mais a palavra “comprar”. Nada, nem no Mercado Livre, onde só encontrara um
VHS para vender – e ele não tinha mais videocassete há anos.
Mesmo pouco acostumado em baixar filmes, tentou ainda achar
em sites de torrent e, incrível: não
tinha também! Nem no Youtube, que, mesmo que tivesse, para Filippo, um
colecionador à moda antiga, não cabia se contentar em tê-lo com uma imagem pixelada
e correndo o risco de dessincronizar áudio do vídeo. Sim, tinha que se
convencer: “Parente... É Serpente” estava fora de catálogo.
Ele se maldizia. Não convencido, pegou um dia um pedaço do
horário de almoço e foi a um brique na Alberto Bins, onde sabia ter muita coisa
rara. Com medo de receber de cara a má notícia do dono da loja, foi ele mesmo
procurar. Em meio àquela zona totalmente fora de ordem, logo percebeu que não
era possível achar qualquer coisa ali dada a bagunça, a pouca iluminação e a
quantidade amazônica de DVS’s, CD’s, livros, revistas, vinis, VHS’s e até fitas
cassete. Tudo junto e misturado. Um museu abarrotado e empoeirado. Podia até
ser que tivesse o que procurava, mas não conseguiria achar por si só no pouco
tempo que dispunha, só com muita sorte. Precisaria, enfim, consultar o dono da
loja:
- Ei, tu tem o DVD do filme “Parente... É Serpente”?
- Não. – respondeu secamente sem pestanejar e nem olhar para
Filippo.
- Mas tu tem certeza? Tu nem parou pra pensar, não consultou
aí o computador. – disse Filippo, apontando com o queijo para um notebook dinossáurico do qual o homem
não tirava os olhos.
- Tenho certeza. Esse filme tá fora de catálogo. – respondeu
com a segurança de quem conhece o mercado em que atua enquanto Filippo escutava
sua digitação e o som de aviso de bate-papo do Facebook saltarem do note.
- Puxa... É que, sabe, eu tinha esse filme, mas emprestei...
- Pra uma mina?
- É... pra uma namorada. – falou Filippo, constrangido com a
previsibilidade de seu ato. – Ele se mudou pra São Paulo, e daí...
- Cara: que besteira que tu fez, hein? – tirando os olhos do
Facebook e finalmente olhando para Filippo. – Esse filme é tri bom. Faz tempo
que eu vi. Ih! Um tempão. E vou te dizer uma coisa: tu perdeu uma grana. Esse
DVD é uma raridade hoje em dia. Nem no Mercado Livre tu encontra.
- É, eu já sei.
- Eu sei como é: já fiz essa merda também. O que a gente não
faz por uma buceta, né? – disparou o homem, rindo, tentando criar uma
cumplicidade machista.
- Não é isso, cara. – respondeu imediatamente Filippo
franzindo a testa.
Mais emputecido pela busca frustrada do que ofendido com o
outro, Felippo preferiu sair da loja e ir embora. Mas numa coisa ele tinha que
concordar com aquele sujeito grosseiro: que besteira foi fazer em deixar o filme
com Aurora! Perdera a amada e o filme amado ao mesmo tempo.
Anos se passaram até que, um dia, quando Filippo já se
acostumara com a condição “sem Aurora” e “sem filme predileto”, algo improvável
acontece. Voltando do Zaffari da Getúlio Vargas em direção à sua casa, Filippo
dobra a esquina e com quem ele se depara? Aurora. Ela, um caminhão de mudanças estacionado
na calçada e várias caixas sendo transportadas para dentro de um prédio a duas
quadras de seu apartamento. Ambos pararam e se olharam com surpresa.
- Oi, Lippo!
- Oi... Aurora. Tu aqui?... – falou, apontando com o queixo
para o prédio.
- Sim! Tô me mudando pra cá. Legal, né? Voltei pra Porto por
que... tava com saudade daqui, do meu lugar, dos amigos. E também pra ficar
perto da mãe, que anda doente. Lembra da mãe, né, dona Doralice?
- Sim, claro que lembro.
- Pois é. A mãe tá morando aqui pertinho, naquele condomínio
ali na Barbedo com a Getúlio, sabe? E com esses problemas dela, o meu irmão
morando em Londres, não tinha ninguém pra ficar com ela, que tá velhinha.
- Que coisa... Manda um beijo pra tia Doralice. E melhoras
pra ela.
- Mando, mando, sim – disse animada, sorrindo graciosamente.
Ficaram se olhando sem trocar palavras por alguns segundos,
ele segurando as sacolas brancas do Zaffari nas duas mãos, ela abraçando uma
caixa grande com o número 39 escrito com hidrocor preta, que fez Filippo
lembrar-se imediatamente do filme de Hitchcock, “Os 39 Degraus”, e da cena do
carro de “Blow Up”, do Antonioni.
- Então: casou? – indagou ela, interrompendo o silêncio.
- Eu? Não. E tu?
- É, também não. – disse Aurora, sorrindo novamente. – Tive
uns rolos em São Paulo, um outro em Budapeste, que eu passei um tempo lá. Até cheguei
a morar junto por um tempo, mas, sabe como eu sou, né? “Não sou casável”, rsrs.
- É, eu sei...
- Tu não casou mesmo, então?
- Só se for com a farmácia e com meus filmes. – brincou Filippo,
e os dois riram. – A propósito: tu te
lembra que eu te emprestei, faz anos isso, o meu DVD do “Parente... É
Serpente”? Sabe, aquela comédia italiana do Mario Monicelli, que eu gostava
muito, que eu vira e mexe comentava. Eu te emprestei antes de a gente...
morar...
- Humm, acho que sei... Não lembro direito. Tenho uma vaga
lembrança.
- Tu te lembra, sim: a gente até comentava que um dos
personagens tinha o meu nome. Deve tá em alguma dessas tuas caixas aí.
- Não me lembro de ter visto lá em casa... Porque tu sabe,
né? Minhas coisas são sempre uma bagunça! Pode ser que esteja nas minhas
coisas. Tenho que procurar. É que foi tão rápida a mudança lá em São Paulo,
tudo na correria, que só soquei tudo pra dentro e me toquei de lá. Nem sei
direito o que tem dentro dessas caixas. Não vou estranhar se eu abrir alguma e encontrar
um bicho, rsrs.
- Vai ver, tu encontra não o filme, mas uma serpente de
verdade!
Riram juntos.
- Por falar em bicho, e o Golias? – lembrou-se ela,
interessada.
- Foi morar com a mãe lá em Faria Lemos. Vida de cachorro
velhinho não combina mais com a correria da cidade, apartamento, concreto.
Agora tá curtindo uma casa com pátio e verde lá na Serra.
- Querido! Saudade dele.
Novo silêncio, agora por falta de assunto.
- Então... tchau.
- É, tenho que terminar aqui a mudança. – afirmou Aurora,
convencendo-se.
- E eu tenho fazer meu almoço. A gente se fala, agora que
estamos pertinho de novo, né?
- Sim! Meu celular novo com prefixo 51 é esse aqui –
disse-lhe, soltando a caixa e pegando um cartão de dentro da bolsa. Ele anotou o
seu celular atrás de um segundo cartão dela e despediram-se com dois beijinhos.
- Se tu achares o meu filme, me avisa, tá?
Filippo não acreditou que ela fosse ligar, e nem ele
ligaria. Procurou-a no Face, achou seu perfil, mas não solicitou amizade. Adicioná-la
no WhatsApp, nem pensar. Não iria atrás dela por orgulho e pela mágoa ainda mal
resolvida, a qual despertara naquela semana desde que a revira.
Mas ela ligou:
- Alô?
- Oi Lippo! É a Aurora! Que tu tá fazendo?
- Eu? Tô em casa, organizando umas coisas, dando um tapa na
casa, uma faxina. Por quê?
- É que eu tinha um job
pra fazer agora de noite, um evento de um cliente, mas mixou. O cara desmarcou
comigo em cima do laço. Tu vê, que desgraçado?!... Daí, eu pensei: por que não
convidar o Lippo pra vir conhecer o meu novo apê?
- Sei...
- A gente podia jantar alguma coisinha. Tu sabe que eu não
sou boa na cozinha, né? Continuo não sendo. Mas a gente chama um sushi, uma
pizza, assiste um filme, sei lá. Tá tudo meio com cara de mudança aqui ainda,
mas tu é de casa. Que tu acha?
- Bem... é que eu...
- Ah, Lippo, não vem com desculpa! Tu tá faxinando a casa
numa sexta-feira às seis da tarde. É sinal que tu não tem nada melhor pra
fazer! Diz que vem, diz que vem!
- Tá, Aurora. Acho que eu vou, sim. Deixa eu tomar um banho,
que eu cheguei da farmácia e não parei. Mais tarde eu bato aí.
- Oba! Que bom que tu vem. Vou também dar uma organizada na
casa pra te receber.
- E vem cá: por acaso o tal filme que tu pensou de a gente
ver é o meu?
- De que filme tu tá falando, Lippo?
- O “Parente... É
Serpente”, Aurora! Que tu disse que ia procurar, pra ver se ainda tava contigo.
Tu achou?
- Sinceramente, Lippo, não encontrei nada, pelo menos não nas
caixas que eu abri até agora. Na real, tô achando que esse filme não tá comigo,
viu? Acho que tu emprestou pra outra pessoa, outra namorada... e tá
confundindo.
- Eu tenho certeza que te emprestei, Aurora. Faz tempo, mas
foi pra ti. Mas, tá: deixa pra lá. Dá um tempinho que daqui a pouco tô chegando
aí.
Filippo tomou banho mas vestiu-se despreocupadamente, pois
não tinha a menor esperança de que alguma coisa voltasse a acontecer entre
Aurora e ele depois de tanto tempo. Estava errado. Jantinha regada a vinho
chileno, sala iluminada só pela luz da tevê, ela contando histórias de São
Paulo e da Hungria, ele, dos aprontos do Golias, e não demorou muito. Conversa
vem, conversa vai: pintou clima. A transa foi bonita e apimentada como nos
velhos tempos, ali mesmo na sala e depois no quarto, madrugada adentro. Fluiu.
Parecia que os anos nem haviam se passado. Aurora se entregou com prazer, linda
nua. Filippo, no céu, dormiu exausto e suspenso com a sensação de que fora picado
novamente pelo veneno deleitoso de sua Aurora.
Naquele sábado era sua folga, então, relaxado, Filippo
deixou o sono se estender e acordou no meio da manhã ouvindo o barulho de chuva
no vidro da janela. Sozinho. Não precisou chamar mais de duas vezes por Aurora
para concluir que ela já não estava. Seus equipamentos sobre a cômoda não se
encontravam mais ali. Decerto, tinha trabalho para fazer. Vestiu-se, bateu a
porta do apartamento e desceu o elevador para voltar para casa. Não tinha
porque ficar esperando ela voltar. No hall, o porteiro lhe avistou e o chamou:
- O senhor que é o senhor ‘Felipo’?
- Sim, sou eu mesmo – respondeu desconfiado.
- Dona Aurora deixou isso aqui pro senhor. Ela já tava
saindo pelo portão, toda cheia de cousa, mala, bolsa, máquina de retrato, mas
daí voltou aqui e disse pra mim lhe entregar isso aqui, que ela não queria
voltar no apartamento pra não acordar o senhor.
E lhe estendeu a encomenda.
- A que hora foi isso?
- Cedo da manhã, senhor. Umas 6 horas.
Filippo finalmente tinha de volta seu DVD de “Parente... É
Serpente”. Por dentro do plástico da caixinha, tapando a capa, um bilhete
escrito a mão por Aurora:
“Lippo,
Tenho um trabalho (dava
para ver escrita, por debaixo da rasura de caneta, a palavra “em”) longe, muito longe.
Na Índia.
Vou ficar seis meses
fora, se não mais. Não sei ainda.
Não espera por mim,
tá? Me desculpa. Tu sabe como eu sou.
Adorei te rever.
Te amo.
Adeus.”
Não assinou. Apenas gravou um beijo com seu batom cor
vermelho-coral.
Felippo mal se despediu do porteiro. Atravessou a passos
anestesiados a rua já molhada pela chuva que começava a apertar e foi para
casa. Chegando, imediatamente repôs seu DVD perdido na prateleira sem revê-lo.
Pegou, sim, o filme de Murnau, que desencarcerou do armário. Mesmo subvertendo
uma norma de cinéfilo, de não assistir a um filme mudo de manhã – pois filme
mudo é para ser visto no cinema ou de noite –, mecanicamente pôs para rodar
aquele romance de final feliz. Sob a luz do dia, que vazava pelos cantos da
janela fechada, lágrimas desesperançadas corriam soltas de seu rosto enquanto
revia “Aurora”, tantas que se igualavam à quantidade de pingos da chuva que lá
fora molhavam a calçada.
para Luis.