A democracia anda dando vertigem em muita gente por aí. Mas
vertiginoso mesmo é o Música da Cabeça de hoje! Sente só o que terá: Small
Faces, João Gilberto, João Cabral de Melo Neto, U2, Curtis Mayfield e mais. Tem
também “Sete-List” sobre o grande baterista Neil Peart, falecido esta semana, e
homenagem a Geraldo Azevedo. Sentiu uma tonturinha? Fica tranquilo: é só ouvir
o MDC, às 21h, na Rádio Elétrica que passa. Produção e apresentação:
Daniel Rodrigues. Foi golpe.
“Arlênio pega a pelota/ E passa
pro China/ Trindade pisa na bola/ Mas é bom menino.”
da letra de “Haddock
Lobo, Esquina com Matoso”
Ed Motta, profundo conhecedor da música soul e, além de tudo, sobrinho de Tim Maia, disse certa vez: “’Nêgo’ tá de bobeira com negócio de [Tim
Maia] Racional, muito menos musical. O lance é esse aqui.” O “lance” a que
ele se refere é “Nuvens”, que seu
tio gravara em 1982. Uma preciosidade da soul
music brasileira da fase final da era black
rio que Tim foi, se não o principal, um dos protagonistas juntamente com
Cassiano, Hyldon, Dom Salvador, Érlon Chaves, Oberdan Magalhães, Carlos Dafé,
entre outros craques. Tudo gente da maior categoria, músicos de primeira, a
quem Tim, em “Nuvens”, faz questão de reverenciar de uma forma ou de outra.
O disco, assim, é uma volta às raízes da errante carreira desse junkie total chamado Tim Maia (afinal, o
cara, cheirava, fumava, bebia e comia, tudo em excesso). Tim já era uma lenda desde
o final dos anos 50, antes mesmo apresentar seu gogó de veludo ao mundo do
entretenimento. Nos anos 60, viajou, no peito e na raça (negra), para os
Estados Unidos em plena ebulição de Luther King e Black Panthers e em uma época
que não era comum um preto sul-americano pobre fazê-lo (ainda não é...) para
viver no gueto de Nova York fazendo música “y
outras cositas mas”. Foi, evidentemente, deportado por porte de drogas... Voltou
ao Brasil, foi gravado pelo já ícone Roberto Carlos e fez dueto com outro
ícone, Elis Regina. Tudo isso antes do seu aguardado – e confirmado – debut solo, "Tim Maia" (1970) (já
resenhado aqui no ClyBlog). Entre sucessos estrondosos ao longo da década
seguinte (“Primavera”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Azul da Cor do Mar” e
mais uma dezenas de hits), Tim também
amargou fracassos homéricos, fosse pela sua inabilidade como empresário à
frente da gravadora própria, a Seroma, fosse pelo comportamento de toxicômano
ou pelo seu temperamento irascível, o que lhe indispunha diretamente com toda a
indústria fonográfica. O limite da “irracionalidade” se deu em 1975, quando, em
uma séria crise de abstinência, parou com todas as drogas químicas para se viciar
na Cultura Racional, uma espécie de seita ocultista cuja filosofia ia do nada
ao nada, mas que o motivou a gravar os dois históricos discos “Tim Maia
Racional Vol. 1” e “Vol. 2”.
Após o (óbvio) fracasso do projeto (o Racional virou cult no mundo 30 anos depois sem render,
no entanto, nenhum centavo ao bolso de Tim) e de um retorno com tudo às drogas,
ele limpou-se de novo e ainda se recuperou nas paradas no final dos anos 70,
mas tudo com mais baixos do que altos. Curiosamente, a despeito do caixa
zerado, esse período de sua carreira é extremamente rico e fértil. Maduro como
músico (tocava quase todos os instrumentos, do violão à bateria, além compor,
arranjar e de dominar a mesa de estúdio), Tim enfileira discos excepcionais,
como os homônimos de 1976 (que contém “Rodésia”) e 1978 (o todo em inglês) e
“Reencontro”, de 1979 (o da linda “Lábios de Mel”). “Nuvens”, como Ed Motta
ressalta, é o ápice dessa fase, e um dos segredos para tal êxito está
justamente na volta às origens. Tim, então chegado aos 40 anos, parecia ter compreendido
que era necessário não se afastar de todos, como fizeram na fase Racional, mas,
sim, se reaproximar (física ou espiritualmente) daqueles que construíram sua
história, expondo, assim, o que ele realmente era: um cara de talento ímpar,
excêntrico e difícil, mas generoso e amigo.
Assim, voltam à cena Hyldon, Robson Jorge e, principalmente, o “genial
Genival”: Cassiano, cuja participação já lá no primeiro álbum de Tim é
fundamental. A faixa-título e de abertura, parceria de Cassiano com o “gringo
brasileiro” Deny King, evidencia seu toque refinado. Como destaca Ed Motta: “tema do Cassiano lindaço, moderno
harmonicamente”. De fato, a harmonia bossa-novista, com sinuosidades a la Marvin Gaye, ao mesmo tempo
romântica e espacial, tem a sua cara. O paraibano contribui ainda com seu falsete
e arranjo vocal no refrão, no qual forja, numa improvável alocação, a palavra “você”
dentro de apenas meio tempo do compasso sobre um riff de metais matador. Genial. Genival. Cassiano.
O álbum segue com temas interessantíssimos: o sambão romântico “Outra
Mulher”, ao estilo “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso” e “Vou Correndo te
Buscar”, característico de Tim; a foliosa “A Festa”, com uma levada de baixo em
escala que é de um groove
impressionante; a autoavaliativa “Ninguém Gosta de se Sentir Só”, cuja gostosa melodia
lembra outra de Tim, “Brother, Father, Sister and Mother” (presente em “Tim
Maia”, de 1976); e a balada quase bolero “Deixar as Coisas Tristes pra Depois”,
também com a mãozinha de Cassiano no coro. Mais uma fruto de parceria com um “brother”, Robson Jorge, “Ar Puro”, de
letra ecologicamente consciente numa época em que não era moda este termo (“Mas eis que estão matando o verde/ E o quê
irá sobrar?/ Sujando os mares e os rios/ O volume do ar/ Ar.”), é daqueles soul super dançáveis, igualmente às
versões de “O Trem”, tanto o tema instrumental (infalível em qualquer disco de
Tim) quanto o “falado”, que tem improvisos super bacanas da banda Vitória Régia.
Ainda no espírito de resgates, Tim chama Hyldon para tocar na
regravação do maior sucesso do amigo, “Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de
Sapê)”, em que empresta seu vozeirão com direito a ouverdub para a pegajosa letra da canção: “Jogue suas mãos para o céu/ E agradeça se acaso tiver...”. Mas para
muitos críticos e fãs é “Haddock Lobo, Esquina com Matoso” – endereço do bairro
da Tijuca, Zona Norte do Rio, ponto de encontro de uns moleques que se
tornariam algumas maiores nomes da MPB dos anos 50 até os dias de hoje – o
verdadeiro hit de “Nuvens”. “Foi lá que
toda a confusão começou”, alerta Tim! Pois foi lá que Tim formou seu
primeiro grupo musical juntamente com Roberto Carlos, Arlênio Lívio (aquele que “pega a pelota”), o “bom menino” Edson Trindade (um
dos grandes parceiros de Tim ao longo da carreira, autor do clássico “Gostava
Tanto de Você”, gravada por Tim em 1973) e Wellington Oliveira, Os Sputniks,
posteriormente, renomeado The Snakes, já sem Tim e Roberto mas com as
substituições de outro Roberto, o China, e de outro Carlos, o Erasmo. Ele recobra esta origem de subúrbio ao trazer situações e personagens,
como Jorge Ben (“A turma estava formada/
Com lindas meninas/ E o Jorge com um camarada/ Era o Babulina”) e os
próprios Roberto e Erasmo (“Erasmo, um
cara esperto/ Juntou com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina...”).
Como se vê, uma das
lembranças gostosas desse tempo está relacionada a futebol, nas peladas que
batiam pelas ruas quando meninos. Uma menção breve acerca do esporte, mas
bastante simbólica no que se refere ao conceito de resgate emocional (Tim era
um jogador de futebol frustrado) que o disco carrega.
Depois dessa passagem
nostólgico-futebolística, merecem atenção dois funks. O primeiro, “Apesar
dos Poucos Anos”, de Tim e Cajueiro, mas que quem dá a roupagem caprichada é
Cassiano na fineza da harmonia e da linha vocal com sutilezas de Nile Rodgers e Quincy Jones. Por último, justamente a faixa que encerra o disco, “Sol
Brilhante”, uma canção, simplesmente, solar, tal seu colorido e boas energias
que transmite: “Vê que dia lindo/ Com
muito amor, viver sorrindo/ Com este sol da manhã/ Com este sol penetrante/ Sol
brilhante...”. Tudo numa execução exata da banda, num ritmo swingado e com vocal
aberto, cantado pra fora. Inspiração total. O jornalista e escritor Marcello
Campos, admirador e conhecedor da obra do artista, que diz: “’A musica do Sol’ é uma das coisas mais lindamente
felizes e inspiradoras que eu já ouvi. Lindo demais.”
Definitivamente,
“Nuvens” é um dos mais ricos e bem-acabados trabalhos da longa e sinuosa
carreira de Tim Maia, seja pelas interpretações, pelos arranjos perfeitos, pela
diversidade rítmica – percebida antes com tanta variedade, a bem da verdade,
somente nos Racional – ou pelas referências que absorve, que vão desde Banda
Black Rio até Gaye, James Brown, Curtis Mayfield e Stevie Wonder, passando
pelos companheiros de rock e soul dos anos 60-70 e o samba carioca. Tudo isso
não quer dizer, entretanto, que “Nuvens” tenha sido um sucesso. Marcello Campos
confirma isso: “Esse disco é ensolarado
como a capa, mas, por questões ‘tim-maianas’, um fracasso de mercado“. Mas,
como de costume na obra te Tim Maia, virou mitológico tempo depois. Qual a
validade disso? Em relação a Tim Maia, “só não vale dançar homem com homem e
nem mulher com mulher”. O resto vale. "Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia
“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.”
– Salmo 23,
capítulo 3
“Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano
aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da
puta ignore a minha lei.”
– Da letra de “Capítulo 4, versículo 3”
Era Réveillon de 1997. Após
muitas cervejas, samba, risadas e conversas altas no volume típico da minha
família, pouco depois da virada do ano, nas primeiras horas de 1998, meu primo-irmão
Leandro “Lê” Reis Freitas me chama para dentro da casa ao lado da garagem onde
todos se reuniam. Fugíamos um pouco da algazarra, pois Lê queria me mostrar
algo para se ouvir com atenção. Olhando-me com convicção e euforia, ele me disse:
“Dã, tu tem que ouvir isso!”. Era um
disco. Um disco de rap chamado “Sobrevivendo
no Inferno”, dos Racionais MC’s,
que completa 20 anos em 2017.
Sabia que ele curtia
bastante rap, então não estranhava que quisesse me apresentar algum artista. Geralmente,
não me animava tanto, admito, haja vista que o rap nacional sempre me parecia ficar
bastante a dever ao dos Estados Unidos e principalmente ao Public Enemy, meus
preferidos do estilo até hoje. Mas aquilo que Lê me mostrava era, definitivamente,
diferente. O início salta com um “Ogunhê!”, a saudação ao orixá Ogum do
Candomblé. Imediatamente, começa um rap arrastado feito sobre a base de “Ike’s
Rap 2”, de Isaac Hayes – o mesmo sample
usado em “Glory Box”, do Portishead, e “Hell Is Round the Corner”, do Tricky.
Era uma versão originalíssima de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. Agradou-me
bastante, mas Lê me alertou: “Essa é
legal, mas o melhor vem a partir de agora”.
Sim, o melhor vinha em
seguida. Após um prólogo interessantíssimo, muito bem escrito e revelador (a
vinheta “Gênesis”), a faixa seguinte trazia em sua letra o mais pungente e
expressivo manifesto escrito no Brasil depois do Antropofágico, do Concretista
e do Tropicalista. E mais: sem ter a intenção de ser um manifesto propriamente
dito, o que aumenta ainda mais sua força. Ali, falava-se de algo que estava
grudado na garganta há muito tempo, bem dizer, desde que os escravos vieram
para o Brasil, séculos atrás. Desde que, alforriados, os negros permaneceram na
miséria por descaso do estado. Num trecho, a letra diz: “Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um,
dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó/
É 100% veneno/ A primeira faz ‘bum’, a segunda faz ‘tá’/ Eu tenho uma missão e não
vou parar”. Era “Capítulo 4, Versículo 3”, a brilhante canção que mostrava,
com todas as letras, que os Racionais, formado pelos mc’s Mano Brown, Edi Rock
e Ice Blue e o DJ KL Jay, realmente tinham uma missão. E que não iriam parar.
Enquanto a noite seguia
animada lá fora, Lê e eu ouvíamos de cabo a rabo o longo 5º disco dos
Racionais, o ápice da maturidade dos rapazes da Zona Sul paulista e o melhor
disco de rap brasileiro de todos os tempos, 14º colocado na lista da revista
Rolling Stone dos 100 melhores álbuns da história da música brasileira.
Tínhamos a noção de que estávamos diante de algo diferenciado e revolucionário.
Além da qualidade técnica nunca antes atingida no rap no Brasil, com samples bem escolhidos e elaborados,
densidade sonora e produção impecável do próprio KL Jay, “Sobrevivendo...” era
um grito até então ensurdecido. O grito da periferia – em sua grande parte,
negra. Um grito de revolta e ressentimento pelo apartheid social brasileiro; um grito agressivo contra a
desigualdade de classes; um grito de protesto contra a repressão da polícia e
do estado. Mas tudo traduzido em poesia, musicalidade, criatividade. “Sobrevivendo...” propunha
uma revolução ideológica.
Os anos 90, primeira década da
democracia no Brasil, traziam nas rádios o samba “embranquecido” do pagode e o
conveniente “rap de classe média” de Gabriel O Pensador. Ou seja: os pretos
mesmo não estavam representados. Precisou que o rap levantasse a bandeira, e os
Racionais MC’s cumpriram essa função abrindo definitivamente um novo paradigma
para a música brasileira em temas como “Diário de um Detento”, “Mágico de Oz”,
“Fórmula Mágica da Paz” e a já mencionada “Capítulo 4...”. Nelas fala-se
abertamente sobre o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela
violência e pelo crime, numa representação muito maior do que somente aquilo: era um
retrato da sociedade brasileira.
Outra das melhores do disco
e da banda, "Tô Ouvindo Alguém me Chamar" disseca a vida de um
assaltante, homem pobre que, ao contrário do irmão advogado, escolheu o caminho
do crime. A narrativa de Brown é brilhantemente contada em fluxo de consciência
a partir do momento da morte do protagonista, engendrando uma sucessão de flashbacks que vão construindo a
história. A batida (tirada de “Charisma",
de Tom Browne) ganha sons de pulso cardíaco, que dialoga
metalinguisticamente com o tema. A dramaticidade da saga do marginal é uma
aula de escrita. Afundado nas drogas e na criminalidade, ele é morto com a mesma
arma que um dia havia presenteado seu parceiro de delinquência (o Guina, único personagem
que o nome mencionado). A recorrente referência ao irmão, cuja figura se
confunde com a do parceiro, com a do pai e do sobrinho, é tocante, como nesta
passagem, quando o criminoso, agonizando, percebe que já está na berlinda: “Meu irmão merece ser feliz/ Deve estar a
essa altura/ Bem perto de fazer a formatura/ Acho que é direito, advocacia/
Acho que era isso que ele queria/ Sinceramente eu me sinto feliz/ Graças a
Deus, não fez o que eu fiz/ Minha finada mãe, proteja o seu menino/ O diabo
agora guia o meu destino”.
De fato, muito dos Racionais
se deve à cabeça privilegiada de Mano Brown. Ele é o rapper que superou o discurso rebelado mas geralmente pouco
articulado do hip hop brasileiro, abrindo caminho para gente como Emicida e
Criolo. Brown é, sem medo de errar, um dos maiores escritores brasileiros da
atualidade – léguas à frente de nomes celebrados da literatura como Paulo
Coelho, Fabrício Carpinejar ou Martha Medeiros. Para se ter ideia, segundo pesquisa da revista
Billboard Brasil do ano passado, ele figura entre os 50 artistas mais completos
do país. Suas letras trazem uma improvável e incomparável mistura de consciência
social e racial e ativismo político com pitadas de religiosidade católica, evanvélica e
afro misturadas ao melhor português, seja o culto ou o vulgar. Tudo como muita
contundência e até agressividade. “Minha
palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, diz um de seus versos.
Essa força expressiva está no
maior clássico do disco, canção de muito sucesso à época: “Diário de um
Detento”. Quase uma versão musical do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio
Varella, a música de Brown, realista e crítica, amarra a narrativa de
depoimentos do ex-presidiário Jocenir. Sobre o sample de “Easin' In”, de Edwin Starr, é uma carta que perpassa o
dia anterior ao massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) até o dia seguinte
à tragédia, 3. A abertura é inesquecível: “São
Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã/ Aqui estou, mais um dia/
Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça
na mira de uma HK/ Metralhadora alemã/ Ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem
papel”. Uma “rima preciosa” – tipo que uniformiza palavras de idiomas
distintos –, vem logo na sequência: “Na
muralha, em pé, mais um cidadão José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles Bronson”. Outros trechos, cujas sentenças são
verdadeiros petardos, impressionam igualmente: “Sua cara fica branca desse lado do muro” ou “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral um dia/ No
Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia” ou
ainda “O ser humano é descartável no
Brasil/ Como Modess usado ou Bombril.”
A onomatopeia “Ratátátá”, repetida algumas vezes e que
vai se avolumando no decorrer da letra, ao mesmo tempo dá a ideia do trem que
passa em frente ao presídio, elemento que simboliza a tortuosa passagem do
tempo na prisão, quanto o som de tiros, como um prenúncio da chacina. Ali,
naquela realidade, o destino inevitável é a morte. Vendo nos noticiários as
rebeliões e acontecimentos violentos ocorridos em vários presídios brasileiros
nos últimos tempos, “Diário...” parece lamentavelmente atual.
Se Brown apavora com canções
como esta, Edi Rock, entretanto, não fica muito para trás. Mais fraco em termos
letrísticos, ele ganha na criatividade das melodias e na voz potente. “Periferia
é Periferia (Em Qualquer Lugar)” é um caso: baseada num tema de Curtis
Mayfield, sampleia uma série de outros rap’s brasileiros, como os pioneiros
Thaíde e DJ Hum, Sistema Negro e MRN. Já “Rapaz Comum” tem uma pegada mais gangsta ao samplear Dr. Dre e Snoop Dogg,
retrazendo o mote de “Tô Ouvindo...” ao relatar, na 1ª pessoa, os momentos de
agonia de “um preto a mais no cemitério”.
É dele também o ótimo instrumental e "Qual Mentira Vou Acreditar?",
parceria com Brown e a faixa mais light
do repertório. A letra conta as funções de festas e pegações, mas nem por isso
deixa de tocar no tema do racismo, como nesta engraçada passagem em que Ice
Blue relata a Edi um episódio em que levava uma “mina” no carro. “Eu ouvindo James Brown, pá.../ Cheio de
pose/ Ela perguntou se eu tenho, o quê? Guns N' Roses?/ Lógico que não!/ A mina
quase histérica/ Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica/ Como é que ela
falou?/ Só se liga nessa/ Que mina cabulosa/ Olha só que conversa/ Que tinha
bronca de neguinho de salão, (não)/ Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí
não)/ Aí não mano! Foi por pouco/ Eu já tava pensando em capotar no soco”.
“Mágico de Oz”, outra de Edi
(“Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E
transformasse aqui no mundo Mágico de Oz”), é mais um sucesso de
“Sobrevivendo...”. Evidencia o mundo desamparado da mendicância infantil e a
falta de esperança e horizonte de quem nasce na pobreza. Por falar em “magia”,
Mano Brown manda a última joia do disco: “Fórmula Mágica da Paz”. Espécie de
autobiografia, canta a reflexão do próprio autor quando se deparou com a
fronteira entre o crime ou o “caminho do bem”. Com um fluxo narrativo
impressionante, Brown relembra: “Não tava
nem aí, nem levava nada a sério/ Admirava os ladrão e os malandro mais velho/
Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O que melhorou? Da função, quem
sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai
chorar?”. Momentos trágicos, como o de um “rapaz comum” da comunidade que
morre baleado, o fazem pensar: “Na parede
o sinal da cruz/ Que porra é essa? Que mundo é esse?/ Onde tá Jesus?/ Mais uma
vez um emissário/ Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário/ Porra, eu tô
confuso/ Preciso pensar/ Me dá um tempo pra eu raciocinar/ Eu já não sei
distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha Ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia,
ladrão ou eu”. Os questionamentos, entretanto, logo dão lugar à consciência:
“Agradeço a Deus e aos Orixás/ Parei no
meio do caminho e olhei pra trás/ Meus outros manos todos foram longe de mais/ ‘Cemitério
São Luis, aqui jaz’.”
“Salve” repete a base de
“Jorge...”, finalizando o disco de rap mais vendido da história mesmo que por
um selo independente, Cosa Nostra, ou seja, sem a estrutura de uma grande
gravadora por trás. Oficialmente, foram 1,5 milhão de cópias comercializadas,
porém, não se contabilizam aí os outros milhões de cópias ilegais, uma vez que se
estava no auge da pirataria de CD’s no Brasil à época – nós mesmos, Lê e eu,
ouvíamos um pirateado naquela fatídica noite de 1º de janeiro.
Mesmo que criticável pelo
discurso de “vingança racial”, pela apologia ao ódio ou até da visão machista e
homofóbica por vezes, é inegável a importância do papel que cabe aos Racionais
MC’s na cultura pop brasileira nesses últimos 20 anos desde que
“Sobrevivendo...” foi lançado. Afinal, uma voz calada por tanto tempo e das
maneiras mais cruéis que o ser humano é capaz, caso do povo africano e seus
descendentes diretos, quando posta para fora, só pode vir carregada de coisas
boas e ruins. A causa dos direitos humanos é mais valiosa do que qualquer coisa
quando a mesma é subvertida. A única solução é a reação. Confesso que, naquela primeira
audição, o discurso maniqueísta me chocara. Mas quem sou eu, um “mano” cuja
história de vida sempre teve boas condições sociais (ou seja: protegido de uma
série de constrangimentos e humilhações), para julgar? Neste sentido, o rap brasileiro dos
anos 90, capitaneado pelos eles, alinhou-se ao que o samba do morro representou
ao longo do século XX: a resistência. Se o samba agoniza mas não morre, o rap
sobrevive e mata. E se hoje se fala tanto e com propriedade de “empoderamento”
das minorias e “orgulho negro”, a tal missão que os Racionais se impuseram,
violentamente pacífica, foi cumprida com êxito.
Racionais MC's -"Diário de um Detento"
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FAIXAS
1. Jorge da Capadócia (Jorge
Ben)
2. Gênesis (Mano Brown)
3. Capítulo 4, Versículo 3
(Brown)
4. Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Brown)
5. Rapaz Comum (Edi Rock)
6. Instrumental (Rock)
7. Diário de Um Detento
(Brown/ Jocenir)
8. Periferia é Periferia (Em
Qualquer Lugar) (Rock)
A Queen, isolada numa fazenda para gravar sua obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo
lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente,
ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da
clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site
AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a
pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.
Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não
necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja
no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão
isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é
novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se
concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente
isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não.
Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz
concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra
coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro
acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas
de melhores em vários níveis.
Woodland, a casa que viu nascer "Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o
de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também
fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o
dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou
efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não
é exatamente isso?
Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audiçãonestes
dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para
serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha
sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não
estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia
musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é
capaz de sanas nossas mentes.
*****
1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil
Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na
música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para
ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office
foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado
de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses
completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou
Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as
mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi
só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do
maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de
Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma
perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo,
tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a
multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes
da música brasileira desde suas mais remotas origens”. OUÇA O DISCO
2. “Music from Big Pink”– The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA
Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada. OUÇA O DISCO
3.“Trout Mask
Replica”– Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA
O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo
do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e
Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais
se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet
fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em
2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra
representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano.
Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em
abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento
e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock,
tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo
sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido
rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de
arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado
obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.” OUÇA O DISCO
4.“Gilberto
Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil
Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que
falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era
produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura
militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é
que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil
produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e
resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em
Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de
embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua
voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove
preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este
as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu
autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna
observa, abismado, que "Gilberto Gil"“é quase um milagre que tenha sido produzido e
lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”,
“Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra
Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação
(e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo
uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em
seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e
admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um
estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy
Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se
deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais
entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos
discos cinquentões de 2020.
Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas
escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e
executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu
com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o
“IV”(ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do
velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West
Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não.
Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones
decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de
pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal
assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar
para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee
Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O
resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes
de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos
do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and
Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França
Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de “Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra
O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales
A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime
com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos
primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a
banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois
Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a
se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do
País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer
influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima.
Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música
clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...”logo estourou, entrou
para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma
obra-prima.
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA
Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra
Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.
12.“Blood
Sugar Sex Magik”– Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA
A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel
Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970,
muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois
que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em
seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que
os malucões da Red Hotgravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias
em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a
mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem
clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The
Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk,
punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco
que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas
e ir para as paradas.
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra
A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação
de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um
sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações.
Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse
clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e
outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa
mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada
Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas,
lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de
toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia
contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum
duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou
“Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil
Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje,
paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”,
assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não.
À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal
compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava
dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em
sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da
banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no
sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma
garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está
escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a
eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades
e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é
o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua
banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira –
sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza,
considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock
brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.
15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA
Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.