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segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


sexta-feira, 5 de julho de 2019

Nick Drake - "Five Leaves Left" (1969)



"O violão de Nick sempre foi perfeito, sua voz era sempre perfeita".
Joe Boyd, produtor musical

"Existe algo místico sobre Nick Drake, pois ele gravou apenas três discos e não é muito conhecido. Mas há algo mágico em sua música, uma espécie de fragilidade que muitos podem reconhecer".
Paul Weller

"Eu não acho que tencionava ser uma estrela, mas creio que ele sentiu que tinha algo a dizer às pessoas de sua própria geração, que poderia torná-las mais felizes, e ele sentiu que não havia conseguido".
Molly Drake, mãe de Nick Drake

O ano de 1969 é talvez o mais abundante da história da música moderna. Na música clássica e de vanguarda, John Cage, Dimitri Shostakovitch e sir. Maxwell Davies produziam obras referenciais como a “HPSCHD”, “Sinfonia nº 14” e “Vesalii Icones”, respectivamente. No jazz, Miles Davis trazia o duo de discos que abriria as portas para o fusion, “Bitches Brew” e “In A Silent Way”, e Manfred Eicher lançava na Alemanha o revolucionário selo ECM. No Brasil, já exportador da bossa nova, o Tropicalismo erigia seus mais pungentes manifestos ainda hoje em processo de assimilação. Se foi assim para estes gêneros, imagine para o rock! Tudo culminava naquele último ano da efervescente década de 60. A segunda geração do pós-guerra, os baby boomers, deparava-se com a emergência de uma nova sociedade num mundo em transformação, o que se expressava nas artes de maneira avassaladoramente criativa, sendo a música, especialmente o rock, a principal delas.

São deste ano, só para se ter ideia, o Festival de Woodstock, a pintura musical-impressionista “Astral Weeks”, de Van Morrison, os dois primeiros da Led Zeppelin, começo do metal/hard rock, o grito da denúncia Black Power “Stand!”, da Sly & Family Stone, a paulada inicial do punk da MC5 e da The Stooges e a perfeição do “canto do cisne” beatle, “Abbey Road”. Mais do que os dois anos anteriores, também fartos, a sensação que se tinha em 1969 era a de que se findava um ciclo sem acabá-lo. Talvez por isso a angústia gerada em artistas e músicos em simbolizá-lo, em registrá-lo, em guardá-lo para a posteridade. Uma dessas mentes impactadas pelo contexto sociocultural da época é o cantor e compositor britânico-birmanês Nick Drake. É dele um dos históricos trabalhos cunhados naquele fatídico 1969 e que está completando 50 anos de lançamento: “Five Leaves Left”.

Capaz de unir a postura transgressora do rock com a tradição dos trovadores medievais, Drake traz em seu folk uma poesia ora arcadista ora romântica. Isso aliado a uma sonoridade altamente expressiva e penetrante, reforçado por um canto sóbrio, na medida exata. Tudo numa atmosfera cult que nem Dylan e nem Donovan conseguiram atingir. Ainda, bom gosto absoluto nos arranjos de Harry Robinson e Robert Kirby, os quais, sintonizados com os gostos de Drake, traziam como referência a atmosfera vanguardista da Velvet Underground, o barroco da Beach Boys de “Pet Sounds” e o primor melódico dos mestres do folk e do blues.

Clássica sessão de fotos de Keith Morris em 1969
mostra o alto e elegante Drake
O clima sombrio e peculiar da música de Drake era fruto do gênio de um jovem alto, elegante e bonito, porém tímido e antissociável. Em contrapartida, absolutamente inventivo e capaz. Além de praticar vários esportes na adolescência, desde cedo mostrava habilidades musicais. Tocava clarinete, saxofone, piano e, com muita desenvoltura, o violão, seu instrumento-base. É do pinho que Drake tira preciosidades como “Time Has Told Me”, cuja combinação com a guitarra folk abre “Five...” numa declaração bastante confessional e sobre a passagem do tempo, tema recorrente na obra do músico: “O tempo me disse/ Você é um achado raro/ Uma cura problemática/ Para uma mente problemática”. Das mais lindas canções daquele ano – talvez da década de 60, como uma “Blackbird”, "Blowin' in the Wind" ou “Little Wing”  – “River Man” é tão melancólica e potente, que parece o escorrer de uma lágrima mansa. As cordas intensificam o sentimentalismo dos versos entoados com rara candura sobre uma sofrida personagem Betty: “Estou indo ver o homem do rio/ Indo dizer a ele tudo que eu puder/ Sobre o plano/ Pra quando desabrocharem as violetas”.

Outra de “beleza sombria e arrepiante”, como classificou o crítico musical Richie Unterberger,  vem na sequência. É “Three Hours”, um country de ares dark cujo baixo acústico mantém um tom grave enquanto o violão dedilha um riff variante, quase improvisado. As cordas orquestradas por Kirby carregam na intensidade para fazer cama à voz seca e contida de Drake, lembrando temas como “She’s Leaving Home”, dos Beatles, e aquilo que Morrissey repetiria quase duas décadas mais tarde com a igualmente arrebatada “Angel, Angel, Down We Go Together” – inclusive no final repentino.

A habilidade de criar afinações diferenciadas para o violão aparecem muito claramente em “Way To Blue”, outra cortante, e o country-rock “'Cello Song”, que tem um acompanhamento interessantíssimo de congas e, como o título indica, de um violoncelo. “The Thoughts Of Mary Jane” é, assim como “River...”, mais uma canção introspectiva que versa sobre um alter ego feminino: “Quem pode saber/ Os pensamentos de Mary Jane/ Porque ela voa/ Ou vai lá pra chuva/ Onde ela esteve/ E quem ela viu/ Na sua jornada para as estrelas”.

“Man In A Shed”, um blues “piano bar”, é cantado tão delicadamente que a voz quase se dissolve em meio ao som dos instrumentos, cujo arranjo privilegia, com muito bom gosto e economia, apenas o piano, um baixo acústico e o violão de Drake. Não dá pra dizer que seja alegre, mas é com certeza a mais animada do disco, com o arejamento jazzístico que outro contemporâneo de Drake, Tim Buckey, também apresentaria naquele mesmo ano em “Happy Sad”.

A fossa retorna, no entanto, com mais uma balada sangrenta: “Fruit Tree”. Novamente autobiográfica, como o tema de abertura, de certa forma prevê a trajetória curta que o homem/artista Nick Drake teria: “Fama é uma árvore frutífera/ Tão estática/ Que pode nunca florescer/ Até que os ramos encontrem o chão/ Alguns homens de renome/ Podem nunca encontrar um caminho/ Até que o tempo voe/ Além do dia de sua morte”. Mais uma vez o arranjo de Kirby dá cores especiais à composição sem competir com o violão cristalino de Drake, intenção esta obtida pelo produtor Joe Boyd: “Quando você ouve os álbuns dele uma das coisas que são extraordinárias é o violão, porque soa tão limpo e forte, e todas as notas são equilibradas. É muito raro isso, pois é muito complicado".

Um final digno para um disco sem ressalvas, “Saturday Sun”, a única do disco com bateria – cuja leves batidas ainda têm o acompanhamento de um elegante vibrafone –, traz em sua poesia novamente a questão do tempo emocional e a relação de seu autor com o mundo externo, revelando os elementos naturais quase como personagens: “O sol de sábado/ veio cedo em uma manhã/ Em um céu tão limpo e azul/ O sol de sábado/ veio sem aviso/ Então ninguém soube o que fazer “. E, pessimista, conclui, sua única maneira possível: “E o sol de sábado/ Se tornou a chuva de domingo/ Então o domingo cobriu o sol de sábado/ No sol de sábado/ E entristeceu-se por um dia que se foi”. De arrepiar.

Depois dessas dez obras-primas escritas para “Five...”, Drake se reclusaria cada vez mais e registaria apenas outras 21 canções, as quais compõem os discos “Bryter Layter”, de um ano depois, e "Pink Moon", de 1971. Apenas três álbuns, que, com o tempo, entraram para a história, visto que todos figuram entre os 500 Discos de Todos os Tempos da Rolling Stone, mesma consideração dada pelo livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die”, do jornalista Robert Dimery. Que o digam Robert Smith, Paul Weller, Peter Buck, David Silvian e Renato Russo, fãs que o reverenciam e justificam a essencialidade de 100% de sua obra. A morte prematura, em 1974, aos 26 anos, por overdose, não impediu que, ao contrário dos próprios versos pessimistas, Drake se transformasse em um “homem de renome”. Desconfia-se, contudo, que tenha, na verdade, cometido suicídio - ou, talvez ainda pior, não tenha se importado em perder a vida. Como um tardio poeta romântico, o sensível e deslocado Drake morria antes do tempo para que sua obra fosse reconhecida. Fatídico, mas tragicamente procedente. Como o próprio ano de 1969: uma incompletude que não tem o que tirar nem por.

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FAIXAS:
1. Time Has Told Me - 3:56
2. River Man - 4:28
3. Three Hours - 6:01
4. Day Is Done - 2:22
5. Way To Blue - 3:05
6. 'Cello Song - 3:58
7. The Thoughts Of Mary Jane - 3:12
8. Man In A Shed - 3:49
9. Fruit Tree - 4:42
10. Saturday Sun - 4:00
Todas as composições de autoria de Nick Drake

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 9 de maio de 2019

The Beatles - "Abbey Road" (1969)




"Com 'Abbey Road', os Beatles 
tocaram a glória 
pela primeira vez (...)
Todos os quatro brilharam: 
as composições 
e trabalho vocal de John,
o ofício musical supremo 
de Paul nos medleys,
a habilidade musical de George
em duas canções maravilhosas 
e o toque de bateria 
excelente de Ringo."
Mark Lewisohn,
historiador considerado
uma das maiores autoridades
sobre Beatles

Minha relação com os Beatles é curiosa... É interessante que, até algum tempo atrás, eu sequer gostava de Beatles. Gostava naquelas... uma aqui, outra ali. "Twist and Shout", por causa do filme "Curtindo a Vida Adoidado""Can't Buy Me Love" por causa do "Namorada de Aluguel", "Dear Prudence" por causa da versão da Siouxsie, "Helter Skelter" por causa dos Banshees também e pela versão do U2 no "Rattle and Hum" sendo que a original eu sequer conhecia... Na boa, achava Beatles, aquela coisa dos arranjos de orquestra, dos vocais em coro, daquela levada tipo bandinha alemã, tudo muito perfeitinho demais. Não tinha como negar a qualidade, mas pra mim parecia pouco rock'n roll. Tanto que, naquela tradicional disputa Beatles ou Stones, eu sempre fui mais Stones. Ainda sou, tenho que admitir. Acho Stones mais visceral, mais rock no sentido mais sujo da coisa, sabe. Mas o meu respeito e minha admiração pelos Beatles tornou-se uma realidade e uma vez consolidada, só foi crescendo.
Eu já ficava intrigado pelo fato que uma porção de ídolos meus, vários artistas que eu admiro sempre diziam que tinha começado a tocar por causa dos Beatles, que quando ouviram Beatles resolveram ter uma banda, que fizeram tal música  porque queriam fazer que nem os Beatles... "Cara ... Mas será possível?", pensava eu. Aí  comecei a ouvir com mais carinho, com mais atenção e, quando se OUVE, ouve mesmo, não  como não reconhecer que os caras eram absurdos! Toda a técnica de estúdio, a criatividade, o talento, a inovação e tal, tudo isso eu entendia mas não tinha dado aquela liga. Não tinha acendido a chama. Ela foi acendendo aos poucos: aí o cara vê que uma música que gosta da sua banda preferida é muito Beatles, percebe onde tá aquela influenciazinha, vê coisas que os caras fizeram sem recurso nenhum e hoje em dia com tudo a favor, não se consegue fazer igual e, aí ficha cai. Foi o caso de "Tomorrow Never Knows" que fui conhecer por causa de "Setting Sun" dos Chemical Brothers, e que me estimulou a comprar o "Revolver". A dupla eletrônica de Manchester chegou a responder processo por plágio mas foi inocentada, uma vez que não negavam a inspiração, apenas negavam a cópia. É bem o caso do que os caras conseguiam fazer em 1966, com recursos técnicos escassos e algo parecido só é conseguido com a parafernália eletrônica dos dias de hoje.
Mas antes do "Revolver", o primeiro  que tive dos Beatles foi o "Magical Mystery Tour", que no meu mode de ver era mais "anárquico", menos certinho. Tem aquela 'desordem' da música titulo, "Magical Mystery Tour", tem "I'm The Walrus que também é mais atípica, mais louca, enfim, aquilo me agradava mais num primeiro momento. Depois veio o "Revolver" e depois o 
"Rubber Soul", que devo admitir que, apesar de não retirar nenhum mérito, não sou dos mais apaixonados.
O "Abbey Road" (1969) chegou a mim de uma forma interessante. É lógico que eu já conhecia "Come Together", e essa eu já gostava muito e na minha cabeça essa era uma exceção a tudo aquilo que eu colocara acima sobre rockzinho comportado, arranjos rebuscados e coisas assim, só não ligava uma coisa a outra e com meu conhecimento parco da obra dos caras, não sabia que era exatamente a primeira do "Abbey Road". Mas o que me instigou pra ouvir o disco, conhecer a obra foi o fato que, certa vez, na noite por aí, uma banda dessas de clássicos do rock, tocou "I Want You (She's So Heavy)" e, cara..., eu fiquei louco com aquilo. Aí eu quis saber de onde era aquilo e descobri que era do tal do "Abbey Road". Eu já tava numas de curtir mais Beatles e resolvi conhecer melhor o disco. Pedi pro meu irmão, meu parceiro de blog, Daniel Rodrigues, que já apreciava a banda havia mais tempo, pra me passar o MP3 do disco pra eu ouvir no computador, no I-Pod e tal, e fui gostando cada vez mais. Até que, sabendo que eu tava ficando fissuradão, o meu irmão de novo, desta vez, me deu o CD.
E se um cara tem restrição a Beatles, o "Abbey Road" é pra acabar com qualquer frescura! Tem baixo estourando, tem vocal gritado, tem solinho de bateria, tem música curta, música quilométrica, tem música  pra todos os gostos, tem música de todo mundo, tem vocal de quase todo mundo...  e que disco bem produzido, hein! Tudo perfeito, tudo no seu devido lugar. Era o desejo da banda, mesmo já um tanto fragmentada, já dando sinais de desgaste, fazer um grande disco depois de uma certa decepção com as gravações de "Let It Be", que acabou saindo depois mas que na verdade fora gravado antes e ficou ali, meio que engavetado. Pois é, na verdade o "Abbey Road" é o último álbum dos Beatles. E tem cara de último disco. Tem a grandiosidade, a estrutura, a maturidade, o total controle sobre o objeto final, tem cara de gran finale. Algo espetacular!
"Come Together", como eu disse, eu já conhecia e admirava e é daquelas aberturas de álbum matadoras. Aliás os Beatles abriam muito bem seus discos, não é mesmo? Vide "Taxman", "Back um The U.S.S.R.", "Sgt. Peppers...", "Drive My Car". "Come Together" é uma música que vai crescendo em intensidade e mudando a cada parte, ganhando um novo elemento. É fantástica! Lembra, não por acaso, aquele tipo de composição que marcou Pixies, Nirvana, com ênfase na linha de baixo no corpo principal da música, e uma certa explosão, com as guitarras e os vocais entrando de forma mais intensa no refrão. Pode-se dizer, de certa forma que, lá em 1969, foi um pré-grunge. "Something" sempre me arrepia com aquela guitarra chorosa, melancólica, aquele vocal doce... É considerada por muitos a melhor música dos Beatles e a própria  banda manifestou, na época, uma certa preferência por ela dentre as gravadas para o disco. "Maxwell's Silver Hammer" é daquelas que eu falei, com cara de bandinha de coreto de praça, e apesar de ser uma boa música, no fim das contas, e funcionar como um ponto de equilíbrio no lado A do disco, nem a banda gostava muito dela na época do lançamento.  Atribuo a ela este papel de fiel da balança, até porque na sequência vem "Oh, Darling", uma das minhas preferidas com aquele vocal rasgado, gritado. Um balada típica dos anos 50 com o vocal do Paul calculadamente descontrolado. Tipo da coisa que, no meu desconhecimento, sentia falta nos Beatles e que encontrei no "Abbey Road". Sei que tem "Helter Skelter", até mais furiosa por sinal, mas, nesse caso específico, como confessei acima, conhecia mais as covers do que a original.
O disco segue com "Octopuss Garden", que é do Ringo, e normalmente é um pouco subestimada mas que é um country-rock muito gostoso. Num disco muito bem planejado, a leveza da composição de Ringo Starr serve meio que como preparação para a pesada, longa, extensa, "I Want You (She's So Heavy)". Uma amarração quase improvável de duas melodias bem distintas mas que juntas acabaram funcionando como uma especie de peça épica, algo grandioso. Aquele início, e final também, dramático, solene, combinado a um blues meio rumba em que a guitarra ora dialoga, ora imita, ora disputa com a voz de Lennon. E, apoteoticamente, tudo se encaminha pr'aquele final, como eu disse, dramático, que se repete, repete e corta... abruptamente como se a música, que já é gigantesca, nunca fosse acabar. É de arrepiar.
Depois vem a ensolarada "Here Comes The Sun", que seria a primeira do lado B, na versão original em LP. Sempre que o dia está feio e abre, que vem aquele solzinho depois de uma chuva, eu lembro dela. Sempre iluminada. Na sequência vem a linda "Because" uma balada cheia de inspiração e melancolia. Uma das mais belas melodias dos Beatles e um trabalho vocal excepcional. Segue com a mutante e imprevisível "You Never Gove Me Your Money", cheia de variações: começa de um jeito dando a pinta que vai ser uma doce balada ao piano, de repente vira um rock descontraído, modifica a voz, ganha intensidade, ganha uma guitarra bem incisiva, lá pelo final ganha um coro fazendo uma contagem e acaba num ruído que vai introduzir para o genial medley de músicas "inacabadas" concebido por Paul McCartney que é simplesmente de tirar o fôlego. Trechinhos, praticamente vinhetas, mas que são de deixar o cidadão de boca aberta, não só pelas qualidade de cada uma, mas também pela diversidade entre elas, pelo papel dentro do álbum, pela sequência em que estão dispostas.
"Sun King", de John Lennon, uma delicada baladinha, uma pequena piração com uma letra que mistura inglês, italiano e francês, é a primeira da sequência mágica  e lembra um pouco "Something", com alguma semelhança também com "Because" embora sempre me remeta um pouco a "Don't Let Me Down"; segue o rock gostoso de "Mean Mr. Mustard"; depois "Polithene Pam", bem "yeah-yeah-yeah', uma espécie de uma voltá às raízes só que mais sofisticada; vem "She Came Through The Bathroom" outro rock cativante; e então o epílogo grandioso se aproxima com a beleza de "Golden Slumbers" que é misturada/invadida com/por "Carry That Weight" que, por sua vez, em grande estilo, encaminha o encerramento do disco para nada mais apropriado que o FIM. "The End", mais uma "criatura mutante", cheia de variações, é um rock direto e certeiro com direito a solo de bateria de Ringo e tudo. É o fim, como anuncia o título da canção? A última do disco? A última da discografia dos Beatles? Errado. O disco acaba mas não acaba. Antecipando um conceito de faixa-oculta que só viria a se consolidar na era CD, segundos depois da "última música" aparece "Her Majesty", um trechinho curto acústico, mais uma vinheta, uma brincadeira por assim dizer "comemorativa" ao título de Membros do Império Britânico concedido pela coroa inglesa, que o grupo então acabara de receber. Típico dos Beatles. A inversão da lógica, o improvável, a surpresa, o que mais ninguém faria. E "The End" que seria também a última música do último lado de um disco deles, acabou não sendo pois o "Let It Be", o antecessor, acabou sucedendo "Abbey Road".
Aí o cara acaba de ouvir um disco desses e fica se perguntando "por que que eu fiquei de nhem-nhem-nhem com os Beatles por tanto tempo?"
Se você também tem um ranço, nhem-nhem-nhem, mi-mi-mi com Beatles, e sei que muito gente tem, recomendo veementemente que você ouça o "Abbey Road". Talvez os Beatles tenham discos melhores, muitos preferem o "Branco", muitos o "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", mas o "Abbey Road" este trabalho brilhante que completa 50 anos neste 2019, é tão perfeito, tão impecável, tão bem produzido, tão diversificado que eu acho que até o mais resistente anti-Beatles vai acabar se rendendo. Eu me rendi.

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FAIXAS:
1 - Come Together
2 - Something
3 - Maxwell's Silver Hammer
4 - Oh! Darling
5 - Octopus's Garden
6 - I Want You (She's So Heavy)
7 - Here Comes the Sun
8 - Because
9 - You Never Give Me Your Money
10 - Sun King
11 - Mean Mr. Mustard
12 - Polythene Pam
13 - She Came in Through the Bathroom Window
14 - Golden Slumbers
15 - Carry That Weight
16 - The End
17 - Her Majesty


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Ouça:


Cly Reis

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Morcheeba - "Big Calm" (1998)



"Seria impossível para nós não 
soar como Morcheeba." 
Ross Godfrey

Os anos 90 foram, em termos de música pop, muito bem resolvidos, obrigado. Além dos remanescentes das gerações anteriores ainda a pleno vapor, como Peter Gabriel, Sting, The Cure, U2, Madonna, R.E.M. entre outros, houve uma série de bandas e artistas oriundos da última década do século XX que souberam aproveitar o melhor dos que os antecederam e valerem-se, igualmente, das novas possibilidades técnicas e sonoras de então. Se antes não era uma realidade comum o incremento dos elementos do hip hop ou da música eletrônica, por exemplo, ao pop-rock noventista isso estava na veia. Tinha Smashing Pumpkins, que sabia oscilar do heavy metal à mais delicada balada; a Portishead, original mistura de gothic punk, rap e dream pop com pitadas jazz; a The Cranberries, verdadeiros seguidores de Smiths e Cocteau Twins; a Jamiroquai, dignos da linhagem jazz-soul; a Massive Attack, onde o trip hop encontrava a medida certa da psicodelia indie rock e o clubber; ou a Air, a engenhosa dupla francesa que vai do clima das trilhas dos anos 50 a eletro-pop num passo.

Mas uma dessas bandas parecia unir todas as qualidades de suas contemporâneas. Tinha os samples e scratches do rap; a batida druggy do dub; a voz feminina adocicada; uma guitarra criativa e hábil; a atmosfera soturna; as texturas eletrônicas; os hits cantaroláveis. A dois anos de fechar a década de 90, os ingleses do Morcheeba catalisavam tudo isso em “Big Calm”. Completando 20 anos de lançamento, o segundo álbum da banda liderada pela cativante cantora Skye Edwards e os talentosos irmãos Paul, DJ, e Ross Godfrey, guitarrista e vários outros instrumentos, é certamente um dos mais bem acabados que a música pop já produziu.

Acordes de baixo e guitarra wah-wah anunciam a entrada da voz macia de Skye, que diz os versos: “Flocking to the sea/ Crowds of people wait for me” (“Flocando para o mar/ Multidões de pessoas esperam por mim”). É “The Sea”, um dos hits do disco. Uma batida funkeada arrastada, peculiar do estilo downtempo, entra para ajudar o arranjo a se avolumar aos poucos. Ao final, já se somaram à cozinha scratches e uma orquestra de cordas, além de solos de guitarra de Ross. Pode-se compará-la em clima e estrutura a “All I Need”, da Air, e “It’s A Fire”, da Portishead. A marcante faixa de abertura é seguida da brilhante "Shoulder Holster", esta, um funk bem mais empolgado e onde aparecem pela primeira vez as influências indianas, seja nos samples de vozes, seja no som de cítaras e percussões típicas da terra de Ravi Shankar.

Outra faceta da Morcheeba está em "Part of the Process", que é o folk-rock. O violão de cordas de metal de Ross segura o riff, enquanto sua slide guitar solta frases em todo o decorrer do tema. Igualmente, o violino bem country de Pierre Le Rue. Tudo, claro, não sem diversos efeitos eletrônicos. O refrão, daqueles que pegam no ouvido, vem numa batida funky, enquanto Skye canta: “It's all part of the process/ We all love looking down/ All we want is some success/ But the chance is never around”. Num estado parecido, mas injetando a sonoridade indiana, a boa instrumental "Diggin' a Watery Grave" funciona quase como uma vinheta em que Ross destrincha sua habilidade com a cítara e uma guitarra pedal steel muito country, aproximando oriente e ocidente.

Retomando a atmosfera viajandona do downtempo de “The Sea”, outro hit de “Big Calm”: "Blindfold".  Mais que isso: exemplo de perfect pop. Acerto do início ao fim: estrutura melódica, composição, execução, arranjo, produção.  A negrinha Skye dá um show de vocal com sua voz afinadíssimo e cujo timbre suave, quase frágil, mas com uma pitada de rouquidão que a aproxima das cantoras da soul. Ao final, mais uma vez as cordas adensam a emotividade da canção. E outro refrão de cantarolar junto com ela:  “I'm so glad to have you/ And it's getting worse/ I'm so mad to love you/ And you evil curse.” 

Os sucessos (e os clássicos) de “Big Calm” não param: na sequência, vem "Let Me See", misto de trip hop e canção pop. Arrebatadora. Aqui, o grande responsável pela melodia é Paul Godfrey, visto que a música se constrói a partir dos beats e scratches criados ele. Já Skye, de tão bem que está, exala sensualidade. Dá pra viajar no seu canto lânguido e penetrante. Detalhe para a flauta doce que executa os solos do veterano Jimmy Hastings.

A outra “instrumental” do disco, “Bullet Proof”, mostra o quanto a Morcheeba é competente com a melodia e a instrumentalização. Trip hop típico, com samples psicodélicos e descontínuos que formam a base, tem como diferencial – além dos scratches do DJ convidado First Rate, que montam uma espécie de linha vocal com as vozes sampleadas – a brilhante guitarra de Ross. Ele mostra ser de uma linhagem de guitarristas britânicos do pós-punk, como Robin Guthrie e Johnny Marr: criativos e habilidosos, mas que usam o instrumento a serviço da ideia musical (efeitos, ambiências, texturas, etc.), sem necessariamente recorrer a rebuscamentos de solos extensos e desnecessários.

Já as baladas "Over and Over" e a rascante "Fear and Love” parecem ter saído de alguma sessão de gravação do Abbey Road em que George Martin arregimenta uma orquestra sobre a concepção musical de Lennon e McCartney. Românticas, têm, antes de mais nada, melodias caprichadíssimas. "Fear and Love”, em especial, conta com um violão que sustenta a base enquanto as cordas e metais formam o corpo sonoro ao fundo, fazendo lembrar bastante o arranjo também de um clássico do pop anos 80: “Please, Please, Please, Let Me Get What I Want”, dos Smiths. Precisa de mais referências que estas?

Mais uma joia, o reggae “Friction”, assim como Jamiroquai também cumprira com sua “Drifting Alone”, faz uma deferência aos mestres jamaicanos do gênero – ainda mais pela novamente linda voz de Skye, uma oferenda ao deus Jah. O disco finaliza com a lisérgica da faixa-título, em que concentram em 6 minutos o que há de melhor da banda. Sobre uma base em compasso 2/2, os irmãos Godfrey deitam e rolam. Paul, com a programação rítmica funk cadenciada, e, principalmente, Ross, que comanda os sintetizadores e a guitarra wah-wah, com a qual dá um verdadeiro show. O rapper Jason Furlow, coautor da música, engendra seus versos rappeiros enquanto o DJ Swamp lança scratches ao psicodélico tecido sonoro. Arrematando, Skye ainda faz suaves melismas, e o disco acaba num clima apoteótico.

Mesmo sendo um extra da versão em CD, "The Music That We Hear", outro hit, vale muito ser referida. Espécie de ula-ula estilizado, traz as síncopes do ritmo havaiano para dar forma a outro perfect-pop em que, mais uma vez, a melodia de voz – e a própria voz! – de Skye encantam. Com esta, termina um dos discos mais impecáveis da música pop, certamente um dos 10 melhores da sua década. Capaz de sintetizar aquilo que de bom ocorria à sua volta, a Morcheeba concebia assim, o seu estilo. Psicodélico, chapado (afinal, o pessoal gostava da erva:“morcheeba” significa “maconha” e “big calm” faz referência ao efeito tranquilizante da droga) e, acima de tudo, musicalmente rico. O que dizem os versos de “The Music...” parecem até, de certa forma, traduzi-los: “A música que fazemos curará todos os nossos erros e nos guiará”.

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FAIXAS:
1. "The Sea" – 5:47
2. "Shoulder Holster" – 4:04
3. "Part of the Process" – 4:24
4. "Blindfold" – 4:37
5. "Let Me See" – 4:20
6. "Bullet Proof" – 4:11
7. "Over and Over" – 2:20
8. "Friction" – 4:13
9. "Diggin' a Watery Grave" – 1:34
10. "Fear and Love" – 5:04
11. "Big Calm" – 6:00 (Godfrey/Godfrey/Edwards/Jason Furlow)
12. "The Music That We Hear" – 3:49 (bonus track)
Todas as composições de Paul Godfrey, Ross Godfrey e Skye Edwards, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:
Morcheeba - "Big Calm"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Exposição “The Beatles Kids & Fans” – Acervo fã-clube Revolution – Praia de Belas Shopping – Porto Alegre/RS



A semana não poderia ser melhor para os fãs de Beatles porto-alegrenses. No último dia 9,  terça, completaram-se os 77 anos de nascimento de um dos maiores gênios da história da música: o beatle John Lennon. Além disso, o outro gênio da banda, Paul McCartney, se apresenta na cidade no próximo dia 13, no Estádio Beira-Rio, repetindo (se não, superando) o histórico show que fizera neste mesmo palco e chão em 2010 – ocasião em que eu felizmente estava presente.

Para fechar essa programação com topete mullet, o Praia de Belas Shopping, próximo ao local do show da sexta e num ponto bem central da cidade, ainda está promovendo, até dia 15, o “The Beatles Kids & Fans”. Com entrada gratuita, a mostra traz artigos do acervo do Revolution, de São Paulo, único fã-clube de Beatles da América Latina reconhecido oficialmente pela Apple, corporação fundada pelo grupo que cuida da marca The Beatles. Na exposição, é possível conferir objetos como: revistas, cards, fotos, matérias, reportagens, bonecos e discos, que contam um pouco da trajetória do grupo.

Tive a oportunidade de conhecer e conversar com o diretor do fã-clube Revolution, o Marco Antonio Mallagoli. Com muita simpatia e amor pela banda, Marco, único brasileiro que esteve com as quatro lendas, me disse: “Os Beatles são precursores não só na música, mas na liberdade das pessoas. É uma música muito forte a que eles fizeram, tanto que, 50 e poucos anos depois que eles começaram, ainda estamos falando deles”.

Dentre as relíquias expostas, um baixo Hofner 63 idêntico ao que Paul usava no início da banda – e autografado pelo autor de “Hey Jude”. Igualmente, uma agenda assinada por John Lennon do dia em que Marco o conheceu em frente ao famoso edifício Dakota, em Nova York, onde o músico morava e onde, fatidicamente, foi assassinado. Detalhe: a foto é de 10 de outubro de 1980, um dia depois do aniversário de John e menos de dois meses antes do trágico acontecimento.

A mostra tem ainda um espaço dedicado, como o nome sugere, às crianças. Estive na exposição e pude ver que a gurizada realmente se divertem e interagem com os elementos e a história dos Quatro Rapazes de Liverpool. Para elas, têm atividades como: oficina de paper toys; Guitar Hero; pinturas; painel de fotos com o Beatles Cartoon; entre outras.

Gurizada tocando Beatles no Guitar Hero
Não irei ao show de Paul desta vez, mas conferir a exposição "The Beatles Kids & Fans" e poder conversar com alguém que conheceu não apenas Paul, mas todos os seus três companheiros de jornada, me deixa, pelo menos, com um gostinho de estar perto do universo beatle.

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serviço
exposição “The Beatles Kids & Fans”
Acervo fã-clube Revolution
endereço: Praia de Belas Shopping - Av. Praia de Belas, 1181 (1º piso)
período: até 15 de outubro
horário: Segunda a Sábado – 10h às 22h / Domingos e Feriado – 11h às 22h.


Entrada: Gratuita
Mais informações: www.praiadebelas.com.br

Totens com a história da Fab Four
Outra relíquia do acervo: um baixo Hofner 1963 autografado por Paul
O disco de ouro de "She Loves You", presente de John a Mallagoli
Fotos de e com Paul McCartney
Criançada aproveitando para pintar 


Joguinhos dos anos 60 com temática beatle
A agenda com o autógrafo de John e a foto tirada 2 meses antes da morte do artista
Baquetas e objetos relativos a Ringo Star
Paper toys de John, Paul, George e Ringo
Visão superior de toda a exposição
Selfie em plena Abbey Road (eu estou de pés descalços, mas não aparece)

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pink Floyd – “The Piper at the Gates of Down” (1967)


“’Sim’, disse o Rato gravemente. ‘Ele está desaparecido há alguns dias, e as lontras caçaram em todos os lugares, de alto a baixo, sem encontrar o menor vestígio, e também perguntaram a todos os animais por milhas ao redor, e ninguém sabe nada sobre ele.’”
trecho do conto infantil “O Vento nos Salgueiros”,
de Kenneth Grahame, de onde Syd Barrett tirou a frase
“The Piper at the Gates of Down” (“O Flautista nas Portas do Alvorecer”)


A explosão de talentos ocorrida no rock dos anos 60 ainda é inigualável em comparação a qualquer outra época da história do gênero mais popular e subversivo da música moderna. Além de hábeis compositores, eram verdadeiros mestres na reelaboração dos elementos do blues e não raro sob a lisérgica roupagem psicodélica. Jimi Hendrix, John Lennon, Eric Clapton e Van Morrison são exemplos incontestes. Em alguns casos, entretanto, a psicodelia era tanta que a sonoridade pendia para a vanguarda experimental, caso dos igualmente brilhantes Frank Zappa, Don Van Vliet, Mayo Thompson e Roky Erikson. De fato, nem todo mundo conseguia soar pop e equilibrar uma escrita musical própria com a tendência psicodélica, a qual, por si, apontava para infinitos caminhos. Quem melhor chegou a esta química – que continha em sua composição muita droga psicotrópica, em especial LSD – foi o gênio louco Syd Barrett, cabeça e fundador do Pink Floyd.

“Diamante Desvairado”, como os companheiros de banda o apelidaram, é a melhor classificação que podia ser dada a Syd Barrett. A perturbação mental e emocional sempre lhe foram uma faca de dois gumes. Suspeita-se que sofria de Síndrome de Asperger, condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades na interação social e comunicação não-verbal, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Em contrapartida, tal condição lhe evidenciava uma criatividade acima da média – ou, quem sabe, não era suficiente para suplantar-lhe o ato de criar. “Não acho que seja fácil falar de mim, tenho uma mente muito irregular”, dizia, referindo-se a si próprio. De fato, como os misteriosos caminhos percorridos pela lontra Portly ao perder-se na floresta em “O Vento nos Salgueiros”, não é simples entender por quais meandros psiconeurológicos percorriam a mente de Barrett, artista capaz de conciliar rock com música barroca, conto de fadas, expressionismo abstrato, duendes, jazz avant-garde, teosofia e B movie numa única sinapse cerebral. Naturalmente uma mente de vanguarda. “The Piper at the Gates of Down”, um dos ícones do rock psicodélico, é a melhor representação dessa equação ímpar engendrada por Barrett. Junto com “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, o primeiro do The Doors, “Velvet Underground & Nico” e alguns outros clássicos do rock que completam 50 anos em 2017, a estreia do Pink Floyd continua inovadora a cada audição, inundando de referências gerações e gerações.

“The Piper...” é surpreendente do início ao fim. A começar pela capa, que não poderia ser mais tradutora da psicodelia da época, em que os integrantes do grupo se misturam como num caleidoscópio lisérgico. A produção de Norman Smith se vale do luxuoso aparato técnico do estúdio Abbey Road, em Londres, para criar a devida atmosfera espacial e jogar luz sobre todos os detalhes (não raro exóticos) ressaltados por Barrett e a jovem banda, que trazia Roger Waters, baixo e voz; Richard Wright, teclados, sintetizador; e Nick Mason, bateria e percussão – ou seja, os integrantes clássicos do Pink Floyd somados a David Gilmour, substituto de Barrett a partir de 1968. Comandando a guitarra e os vocais, Barrett dá o direcionamento conceitual do álbum, que começa com a tensa "Astronomy Dominé". Sinais intermitentes de um contador Geiger iniciam a música prenunciando a instabilidade do tema. Em uníssono, o vocal canta sobre um compasso monofônico: “Verde-limão límpido, uma segunda cena/ Uma luta entre o azul que você uma vez conheceu/ Flutuando para baixo o som ressoa/ Pelas águas geladas e subterrâneas/ Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/ Netuno, Titã, estrelas podem assustar”. Uma espécie de refrão sem letra se dá numa frase de guitarra e um vocalize que, unidos, assemelham-se a um uivo selvagem. Isso até chegar a 1 min 35 da faixa, ponto onde ela muda totalmente. Parece que a canção irá se manter nesse rumo sob sons de órgão, efeitos, interferências de rádio e improvisações. Entretanto, a melodia de repente volta ao tema inicial e o término é igualmente intenso, quase catártico. Isso tudo é o disco recém começando...

A magnífica “Lucifer Sam” – cuja produção e a engenharia de som de Peter Bown são irretocáveis – é, basicamente, um blues ritmado com certa pegada surf music. Não fosse sua atmosfera sombria e mística (“Lucifer Sam, um gato siamês/ Sempre sentado ao seu lado/ Sempre ao seu lado/ Esse gato tem algo que não posso explicar/ Jennifer Gentle você é uma bruxa/ Você está do lado esquerdo/ Ele está do lado direito/ Esse gato tem algo que não posso explicar...”), que a leva mais para uma obscura trilha de série de TV. Efeitos como chocalhos, o órgão de Wright, a guitarra-base, o baixo de Waters e a bateria de Mason são perfeitamente ouvidos, mas o que se destaca mesmo é a segunda guitarra de Barrett, que executa um riff em tom grave, a qual contém uma das características compositivas dele: os leves atrasos nos tempos. Como se sempre algo estivesse fora do presente, pondo-se entre a realidade e o sonho. E se o virtuosismo não é a característica de Barrett – como será a de Gilmour, que assumirá as guitarras logo em seguida na banda –, o solo da faixa (toque percutido, exploração dos efeitos de pedal, variação de escala) é de pura criatividade.

Novamente revelador, o disco traz a estranha mas brilhante “Matilda Mother”, que muda totalmente pelo menos umas três vezes em pouco mais de 3 minutos de canção. O arranjo vocal, incrivelmente variante, é um primor, lembrando bastante no refrão o estilo que o Pink Floyd adotaria muitas vezes a partir de então, como em “Breath” (1973) e “The Thin Ice” (1979). O teclado e o baixo pronunciam o acorde inicial, pausado e contemplativo. O universo lúdico da infância, ao mesmo tempo fantástico e tempestuoso, é expresso na letra, em que Barrett clama pela mãe e pela criança que não mais é: “Havia um rei que governou a terra/ Sua Majestade estava no comando/ Com olhos prateados a águia escarlate/ Banhou de prata as pessoas/ Oh, Mãe, me conte mais”. Depois de algumas sinuosidades melódicas, lá por 1 min 25 entra um solo de órgão de ares barrocos. Porém, o que mais se destaca é a psicodélica percussão gutural de Barrett. De repente, as vozes se intensificam, a guitarra dita o riff e... volta tudo à melodia inicial, num proposital corte abrupto – como uma contação de estória sendo interrompida, ou melhor, deslocando-se no tempo psicológico em que o autor se dá conta de que a infância se foi. Em 2 min 25, um novo fim falso, que leva a música até o desfecho num clima ainda mais onírico.

“Flaming” não só se mantém no universo anedótico como o expande, levando o ouvinte a um céu estrelado e azul com unicórnios e animais da floresta de toda ordem. A melodia é ondulante, obscura, exótica. Não é para menos, pois se trata de um dos mais fiéis relatos de uma viagem lisérgica de LSD: “Observando botões-de-ouro moldarem a luz/ Dormindo em um dente-de-leão/ É demais, eu não vou te tocar/ Mas até poderia”. Exemplo de melodia composta no violão e devidamente arranjada pela banda em que todos se destacam, principalmente Barrett ao violão e Wright, que segura o clima no órgão e no solo de cravo ao final.

Nova surpresa, nova montanha-russa, nova obra-prima. Os sons articulados na goela e na faringe não apenas reaparecem como sustentam a abertura da sui generis “Pow R. Toc. H.”. O que se ouve são cacos vocais e sons quase demenciados sobre curtos e esquisitos rufares percussivos igualmente gerados por aparelho vocal humano. Essa configuração estranha se transforma em seguida num som de culto indígena, haja vista os gritos tribais e o ritmo ritualístico ditado pelo tambor – agora da própria bateria. Essa nova formatação sonora, entretanto, se altera rapidamente de novo numa perfeita transição executada na mesa de estúdio, fazendo a melodia se transformar agora num... elegante jazz! É Wright quem brilha nessa parte, solando no piano por quase 1 minuto sobre a ainda tribal percussão. Isso é interrompido mais uma vez, claro. Sons de órgão e de guitarra improvisam e se entrelaçam por quase 2 min, direcionando o tom jazzístico para uma polifonia. Tudo isso, para retomar a linha melódica inicial, agora com a guitarra, os efeitos de mesa e de pedal e os ensandecidos alaridos finalizando o número. Junto com “Peaches en Regalia”, de Zappa, é um dos temas instrumentais mais criativos do rock anos 60. Além disso, é, ao lado de “Interstellar Overdrive”, a única composição coletiva do disco, que já denota claramente que o Pink Floyd não era (e não seria, fatalmente) apenas Syd Barrett.

Composição de Waters, “Take Up Thy Stethoscope And Walk” é mais um belo exemplar do rock psicodélico que 1967 emoldurava. Isso se deve em parte, principalmente na primeira parte – ou melhor, até onde vai a seção cantada, a pouco mais dos 30 segundos iniciais, tendo em vista que o restante, exceto o rápido desfecho, é tomado de delírios instrumentais da banda inteira – a Barrett, que se vale, novamente dos cacos e sons guturais em conjunção com os efeitos e as texturas sonoras para compor o arranjo.

Centro do disco, a já mencionada “Interstellar Overdrive” é um hino lisérgico, que se assemelha em formato e proposta a outro clássico do rock composto naquele mesmo ano: “Heroin”, do Velvet Underground. Quase uma pequena sinfonia, começa como um hard rock cuja semelhança à sonoridade de Black Sabbath e Led Zeppelin não é mera coincidência. A 2 min e 20, a guitarra parece trancar como se tivesse arranhado o sulco naquele ponto (novamente, sente-se o estranhamento com o tempo). Essa ideia – lapidada pela maestrina do pós-jazz Carla Bley em “Musique Mecanique III”, de 1979 – reproduz no instrumento outra das peculiaridades da música de Barrett: os fonemas cacofônicos, ditos com certo engasgo. É como se fosse o sintoma da formação de uma linguagem atípica e excêntrica do Asperger, aliado ao dos padrões repetidos da doença, traduzido para música, para arte.

Seguem-se cerca de 7 minutos de improviso de toda a banda, que forma uma sonoridade espacial, quando não de uma viagem alucinógena ou uma trilha de filme de ficção científica. Até que, quase no fim do tema, um ruidoso e longo rolo de Mason traz de volta o riff inicial. Mas... algo estranho está embaralhando os ouvidos e os sentidos... É Norman Smith mais uma vez valendo-se do aparato do Abbey Road e de sua técnica como produtor operando uma radical alteração do balance, o qual joga rapidamente todo o som de um lado para o outro nas caixas de som: enquanto uma fica em silêncio, a outra recebe toda a massa sonora. Isso gera um efeito de desequilíbrio, espiral, revolto, que age diretamente sobre os sentidos humanos. Parece que se está escutando a arte da capa do disco. Impossível ficar impassível, pois o efeito atingido aqui pelo Pink Floyd chega a ser físico. Por todas essas particularidades, “Interstellar...” pode-se dizer a precursora do rock progressivo, que faria tantas bandas surgirem ou aderirem (como o próprio Pink Floyd em certa medida) nos anos 70.

Aí, como se nada tivesse acontecido, colada à intensa “Interstellar...”, entra a faixa seguinte, “The Gnome”: uma singela ciranda infantil sobre seres elementais. Só que não! Igualmente brilhante e consideravelmente sinistra, “The Gnome” (“Quero te contar uma história/ Sobre um homenzinho/ Se eu puder/ Um gnomo chamado Grimble Crumble/ E pequenos gnomos que ficam em suas casas/ Comendo, dormindo, bebendo vinho...”) realça o belo timbre de voz de Barrett e sua pronúncia elegante – o que confere ainda mais obscuridade ao tema. Os cacos fonéticos e a preferência por vocábulos “engasgados” (“GRimble”, “CRumble”, “tunIC”, “ADventure”) aparecem em abundância, intensificados pela dicção do cantor.

Rivalizando com outras duas canções daquele ano, “Within You Without You”, dos Beatles, e “The End”, dos Doors, “Chapter 24” ergue uma mística capela sonora. Wright é exímio ao imitar nos teclados o som de um fole nórdico. A percussão, inteligente, é apenas nos pratos e sinos, emprestando muita naturalidade. Apenas o baixo é mais “moderno” na sonoridade de “Chpater 24”, haja vista que o canto de Barrett soa quase litúrgico. Talvez a mais linear faixa do disco – se é que dá pra classificar qualquer uma das peças assim, tão simploriamente –, abre caminho para a totalmente medieval “Scarecrow” com suas flautas celtas e percussão barroca. Genialmente, Barrett dissolve qualquer noção de tempo – o mesmo “tempo” que ele, mentalmente perturbado, não consegue apreender. A bela letra é talvez a mais autobiográfica e – haja vista a metáfora essencial, a comparação de si com um “espantalho” – tristemente reveladora. Merece ser reproduzida por completo:

“O espantalho preto e verde
Como todo mundo sabe
Ficava com um pássaro no seu chapéu
E palha por todo lado
Ele não se importava
Ele ficava num campo onde o milho cresce
Sua cabeça não pensava, seus braços não se moviam
Exceto quando o vento soprava
E ratos corriam pelo chão
Ele ficava num campo onde o milho cresce
O espantalho preto e verde é mais triste do que eu
Mas agora ele está resignado com seu destino
Pois a vida não é má
Ele não se importa
Ele fica num campo onde o milho cresce.”

O que resta a um disco impecável como este? “Scarecrow”, por seu final quase épico, dá indícios de fim. Mas clássico que é clássico tem mais uma joia reservada. É o caso da originalíssima e sarcasticamente circense “Bike”, forjada sobre um único compasso. A voz de Barrett, tão cristalina quanto alucinada, joga versos em demasia sobre os intervalos – mas eles fazem caber no tempo musical, hábeis em harmonia como são. A festa no picadeiro lúgubre parece terminar a 1 min 45', mas sons de bugigangas (entre estas, relógios, como os que aparecerão 6 anos mais tarde em “Time”, do “The Dark Side of the Moon”), comandados pelos teclados fasmáticos de Wright, entram para preencher o restante da faixa a la John Cage. Esta, no entanto, termina da talvez mais apavorante forma que qualquer disco da música pop – e olha que bate muita dark music. O volume vai baixando aos poucos, anunciando o final, quando surge um som que parece ser de uma boneca enguiçada. Misto de gargalhada macabra com urro de dor e de prazer carnal, vai subindo até um clímax, que chega a chocar os ouvidos. Porém, logo em seguida, vai caindo até terminar o disco finalmente. Dá para imaginar uma cena de filme de terror em que o palhaço assassino aproxima-se, chegando a centímetros do escondido e amedrontado perseguido, mas que, não o encontrando, afasta-se e vai embora. No quarto de brinquedos, quebrados e tristes, está terminada a obra sinistra de Barrett e Cia.

A aparente infinita inventividade de Barrett, por infelicidade, teve sim um fim. Acometido pela deterioração mental, agravada pelo exagerado uso de drogas, Barrett afastou-se da banda antes de lançar um segundo trabalho com eles, restando apenas mais uma (e igualmente brilhante) composição sua em “A Saucerful of Secrets”, de 1968: “Corporal Clegg”. Vieram ainda duas obras-primas solo em 1970: “The Madcap Laughts” e “Barrett”, nos quais já se nota o progressivo agravamento do quadro físico e psíquico. Logo em seguida, entra numa reclusão autoimposta de 30 anos até a morte, em 2006. Porém, os parcos 6 anos em que produziu seguem influenciando profundamente a cultura pop meio século depois de seu surgimento em “The Piper...”. Para o próprio Pink Floyd foi assim: com talento, souberam apreender e reelaborar o legado de seu ex-líder, avançando em suas ideias mas mantendo-lhe uma ligação permanente. Mesmo com as capacidades criativas de e liderança tanto de Waters quanto de Gilmour, o Pink Floyd foi e sempre será como um tal personagem de conto de fadas chamado Syd Barrett.

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“The Piper…” teve, em 1967, uma edição norte-americana que, além de alterar a ordem das faixas e suprimir duas delas (“Bike” e “Astronomy Dominé”), conta com uma nova, “See Emily Play”.  Em 1974, os dois primeiros álbuns do Pink Floyd são reunidos num único volume, “A Nice Pair”. Ainda, “The Piper...” consta na íntegra com outros discos nas caixas “First XI” (1979), “Shine On” (1992), “1997 Vinyl Collection” e “Oh By the Way” (2010).

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FAIXAS:
1- "Astronomy Domine" – 4:12
2 - "Lucifer Sam" – 3:07
3 - "Matilda Mother" – 3:03
4 - "Flaming" – 2:46
5 - "Pow R. Toc H." (Nick Mason, Richard Wright, Roger Waters, Syd Barrett) – 4:26
6 - "Take Up Thy Stethoscope and Walk" (Waters) – 3:05
7 - "Interstellar Overdrive" (Barrett, Mason, Waters, Wright) – 9:41
8 - "The Gnome" – 2:13
9 - "Chapter 24" – 3:42
10 - "The Scarecrow" – 2:11
11 - "Bike" – 3:21
todas as composições de autoria de Syd Barrett, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


por Daniel Rodrigues