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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

"Othelo, O Grande", de Lucas H. Rossi dos Santos (2024)



Othelo, o ainda maior

Uma das características emblemáticas das personagens criadas por William Shakespeare é a profundidade existencial. Há sempre nelas uma série de sentimentos que lhes podem ser associados e, não raro, mais de um ao mesmo tempo. Inveja, rancor, ciúme, ganância, torpor, vaidade, estoicismo, insegurança, euforia, culpa. E quanto mais se leem as obras do autor inglês, mais se identificam essências do comportamento humano, como se nunca chegasse a decifrar a complexidade e a grandiosidade dessas personagens.

Não é por acaso que o maior ator brasileiro de todos os tempos tenha recebido, ainda na infância, quando começava a revelar seu talento nos palcos, uma alcunha referente a um personagem shakespeariano: Othelo. Afinal, para minimamente dimensionar o tamanho simbólico deste pequeno mineiro de extenso nome Sebastião Bernardes de Souza Prata para a arte brasileira é justo associá-lo a um personagem tão fascinante quanto controverso e cuja personalidade ainda é uma esfinge a ser decifrada mesmo 4 séculos após a estreia da peça original. 

Curiosamente, o documentário “Othelo, O Grande”, de Lucas H. Rossi dos Santos, espelha a mesma contradição: um grande filme, mas insuficiente para dar a ideia da grandiosidade de seu protagonista. Mas como classificar de "grande filme" se este aparentemente falha em expressar com inteireza exatamente o objetivo analisado? A resposta está no próprio "objeto" analisado, Grande Othelo.

A opção narrativa do filme concentra todas as explicações, das quais decorrem o que é bom e o que não é tanto assim. Construído em forma de autodepoimentos, o documentário se vale de diversas e muito bem pesquisadas entrevistas, vídeos e fotos do múltiplo Grande Othelo, ator, comediante, cantor, poeta, compositor, produtor e entrevistador. Diante do que se propõe a narrar, o material, aliás, dá conta muito bem. A começar pela impactante sequência inicial em que se escuta a voz do ator falando de si mesmo numa entrevista para o Museu da Imagem e do Som enquanto, num outro registro, este, visual, ele, à vontade no sofá de casa, mira com olhar penetrante a câmera, que o foca em zoom até fechar em seu rosto sob o som de um samba enfezado. A junção de tempos de cada material e o "descompasso" entre o que se fala e o que se cala expressam muito bem uma das ideias centrais de “Othelo, O Grande”: a dificuldade de inserção de um homem negro e fora dos padrões excludentes da sociedade em uma nação jovem e preconceituosa. Mas também, metaforicamente, acaba por simbolizar uma fragilidade do filme.

Olhar forte e penetrante do maior ator do Brasil na sequência inicial do filme

Com uma edição impecável, capaz de interligar ideias distintas da cosmologia do ator e imprimir um ritmo muito interessante à narrativa, visto que convidativo à observação e à reflexão, o filme acerta ao trazer a voz na primeira pessoa, recuperando falas de Grande Othelo como as que ele rememora a infância, a primeira experiência com a Companhia Negra de Revistas, nos anos 20, a vez em que contracenou com Josephine Baker e a admiração que despertou em Orson Welles. As falas também são contundentes, como as que reclama abertamente do racismo que sofreu, da falta de oportunidades na carreira e de ver seu talento relegado. É revelador ouvi-lo dizer, em certo momento, que a Atlântida, estúdio de cinema responsável pelo sucesso das chanchadas dos anos 40/50, tinha dois símbolos: o chafariz, que estampa sua logo, e... Oscarito. Piada, só que não. Qualquer um que minimamente conheça as comédias "teatro de revista" desta fase do cinema brasileiro se refere à dupla indistintamente como a cara da Atlântida. Na hora de assinar os contratos, no entanto, não era bem assim, visto que o ator negro entre os dois era menos valorizado.

Há uma certa melancolia e até sisudez na forma como a figura de Grande Othelo aparece, contrapondo a imagem cômica que o Brasil guardou dele do cinema ou da TV. Essa quebra ideológica, proposital e perfeitamente aceitável, abre porta, contudo, para um dos aspectos em que o filme peca, que ė não ter explorado tudo que seu protagonista ofereceu em vida. As entrevistas que Grande Othelo conduziu na TV, espaço desejado por todos os artistas da época, e as esquetes humorísticas na Globo nos anos 60 (quando batizou Antônio Carlos Bernardes Gomes de Mussum) não são visitados. Igualmente, as novelas em que brilhou, como “Feijão Maravilha” e “Uma Rosa com Amor”. Também, o lado não só sambista, mas de poeta ou o envolvimento com o comunismo, visto que mantinha amizade próxima com Luís Carlos Prestes. Aspectos que não são mencionados e que ajudariam bastante a dar maior consistência ao teor "não-satírico" proposto.

Na história da dramaturgia brasileira, a percepção de Grande Othelo mais como ator e não apenas "escada" para outros começa a mudar na segunda fase do Cinema Novo, nos anos 60. Ele relembra que foi Joaquim Pedro de Andrade que o fez, já veterano, renascer no tropicalista "Macunaíma", de 1969, uma analogia com a clássica cena do parto inicial do filme – muito bem aproveitada, aliás, sob esta perspectiva simbólica no documentário. A montagem em que faz passar da cena de Macunaíma no rio para a de “Fitzcarraldo” é digna de aplauso. Porém, novamente o diretor parece ter se preocupado em não exagerar na exemplificação da magnitude de seu protagonista. "Barão Othelo e o Barato dos Milhões", a comédia non-sense escrita especialmente por Miguel Borges para o ator em 1971, é restringida a poucas cenas ilustrativas e sem maiores créditos.

Cena de "Quilombo": ausente no filme
Outro aspecto sobre Grande Othelo ausente no filme salta aos olhos de quem se acostumou a vê-lo no cinema brasileiro dos últimos 50 anos. Sua participação em obras marcantes da cinematografia nacional, por menor que fosse, sempre teve o poder de abrilhantá-las. Poder, aliás, que atores experientes e com considerável bagagem atingem a partir de determinada fase da carreira, como Jack Nicholson em “Questão de Honra” ou Marlon Bando em "Apocalipse Now". O filme não esquece de ressaltar esse fator ao resgatar muito bem a ponta de Grande Othelo em "Fitzcarraldo", a grande produção de Werner Herzog filmada na Amazônia brasileira em 1982. No entanto, haveria mais. Othelo, quando em cena, redimensiona com sua atuação filmes como "Quilombo", em que faz o sábio Baba, "Natal da Portela" (Seu Napoleão) e "Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia" (Dondinho). O filme, portanto, poderia ter trazido essa percepção exaltadora à figura de Grande Othelo, tão consciente na cultura norte-americana, dona da indústria cinematográfica mais pujante do mundo, e talvez muito pouco clara em terras tupiniquins.

Essa contradição, aliás, é desculpada até certo ponto em razão de refletir a própria vida de Grande Othelo, um artista subaproveitado. Fosse nos Estados Unidos, os diretores se estapeariam para colocá-lo em seus projetos. A se ver por Brando, cuja idolatria em seu país se assemelha a de Othelo no Brasil, não faltaram produções em que tenha protagonizado até que, por motivos próprios, se distanciasse das telas. Grande Othelo, pelo contrário, nunca o volume de convites acompanhou o reconhecimento popular. Até nisso o doc de Santos acerta indiretamente: não explora a totalidade da obra de um homem que não a teve em vida explorada em sua totalidade.

Mesmo com tudo isso, “Othelo, O Grande” é, sem dúvida, dos melhores documentários produzidos no país neste século. Excelentes edição, roteiro e condução. Entretanto, tal como o general mouro de Veneza, o Othelo do Brasil teria muito mais othelos para serem revelados, principalmente em um filme cujo título propõe, justamente, a dar a ideia do quão magnânimo é o seu homenageado. A sensação é que, mal comparando, ocorre com "Othelo,  O Grande" o mesmo que "O Palhaço" (Selton Mello): um ótimo filme que, por detalhe, perdeu a chance de ser uma obra-prima. Num documentário biográfico, não que seja obrigatório incluir tudo sobre o pesquisado, mas a impressão que fica é de que havia mais a ser dito e para conseguir amarrar tudo a seu jeito, preferiu-se omitir algumas coisas. 

O êxito da obra, embora essas lacunas, deve-se, claro, à competência de quem o dirigiu, capaz de lhe dar coesão e coerência discursiva ao que se propôs, mas também ao próprio personagem. Mesmo inexplorado, Grande Othelo garante ao espectador, principalmente, o brasileiro, o orgulho de também pertencer à mesma terra. Como falou o cineasta, professor e filósofo Dodô Oliveira: “Grande Othelo vive em mim”. Uma grandeza maior até do que aquilo que se silencia.

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trailer de "Othelo, O Grande"


"Othelo, O Gtrande"
Direção: Lucas H. Rossi dos Santos
Gênero: Documentário
Duração: 83 min.
Ano: 2024
País: Brasil
Onde encontrar: Cinemas


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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Jards Macalé - Show "Jards Macalé 72" - Espaço Cultural BNDES - Rio de Janeiro/RJ (25/04/24)

 

Quase encerrando uma temporada de alguns dias no Rio de Janeiro, Leocádia e eu, que já havíamos tido a mágica experiência de uma roda de samba na Portela, em Madureira (que, aliás, é mais do que uma experiência apenas musical, pois antropológica), pudemos fechá-la com chave de ouro assistindo a um show (gratuito!) do mestre Jards Macalé. Comemorando os mais de 50 (52 precisamente) anos de lançamento do seu primeiro LP, Macau e sua excelente banda entregaram um show como só um dos maiores da música brasileira (e latina, e mundial) pode entregar.

A juventude de Gulherme Heldt (guitarra) e Pedro Dantas (baixo) se unem à experiência do próprio Jards e de ninguém menos que Tutty, Moreno, lendário baterista da MPB integrante da banda original que gravou com Jards seu marcante álbum de estreia. A química é visível, com Jards comandando as ações com seu violão desconcertante e sua voz/canto rasgado e eles se integrando à atmosfera do genial maldito numa sonoridade híbrido de jazz fusion, samba e rock. Aliás, Jards é muito rock 'n roll! Absolutamente claro isso nas execuções de "Farinha do Desprezo", "Revendo Amigos", "Mal Secreto", "Pacto de Morte" e "78 Rotações", todas clássicas. Muito interessante de se notar o quanto se acertou na sonoridade jazzistica prevalecente naquele período na música brasileira do início dos anos 70 (a qual, inclusive, Jards é o principal artífice ao captar essa atmosfera cosmopolita no exílio em Londres) na arquitetura dessa nova banda, que soube renovar esse estilo e, principalmente, não fazê-lo datar.

Em homenagem à amiga Gal Costa, de quem tanto gostava, dedicou "Hotel das Estrelas", mas indiretamente também celebrou a memória de "Gracinha", como carinhosamente a chama, com "Vapor Barato" acompanhado só da guitarra, para trazer sua mais conhecida parceria com o poeta e agitador Wally Salomão. Ainda, tocou ao violão uma sentida "Movimento dos Barcos", num dos melhores momentos do show, e, recuperou as ainda mais antigas "Soluções" e "Só Morto", que compõem seu EP de 1970.

Além das faixas do repertório do disco, houve espaço também para as recentes "Trevas" e "Meu Amor é Meu Cansaço", parceria com a rapaziada Kiko Dinucci, Rômulo Fróes e Thomas Harres, do seu excelente "Besta Fera", de 2019. Teve também a linda e inédita bossa-nova "Um Abraço do João", motivada por uma inspiração "espiritual" no amigo e ídolo João Gilberto. A música, embora tenha ganhado letra da magnífica Joyce, foi tocada de forma instrumental, uma vez que, gracejador e simpático, Jards admitiu para o público e para a própria artista, que também prestigiava o show, não ter adicionado a letra à melodia ainda. Se no violão já ficou perfeita, imagine-se com letra de Joyce!

"Let's Play That", com Torquato Neto, foi mais uma de arrepiar com sua anarquia sonora implacável. Pra fechar, outra deferência a outro saudoso craque da MPB assim como João, Wally, Torquato e Gal: Luiz Melodia, na blueseira "Farrapo Humano". Para quem nunca o havia visto ao vivo como Leocádia e a mim, que o vira nos idos dos anos 90 num show especial em Porto Alegre dedicado a Noel Rosa, a oportunidade de assisti-lo no excelente palco do Teatro BNDES foi um presente. Presenciamos uma das obras mais grandiosas e sui generis da música brasileira, capaz de fazer pontes sem distinção entre o samba do morro, a vanguarda, o tropicalismo, a bossa-nova, o jazz e o rock. E ainda tivemos tudo isso sem precisar de muito dinheiro. Graças a Deus.

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Ao centro, Jards comanda sua banda tocando o repertorio de 1972


Trecho de "Farinha do Desprezo", número que abriu o show 


Sob o olhar do craque Tutty Moreno, remanescente do disco
de estreia de Jards, há 52 anos


Com a banda ao final e sob aplausos


fotos e vídeo: Leocádia Costa, Camila Santos e Gustavo Moita
texto: Daniel Rodrigues



quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Música da Cabeça - Programa #358

 

Andam dizendo que o ciclone Akará não é nada perto do furacão que o Brasil tá enfrentando no campo diplomático... Preparado para chuvas e trovoadas está o MDC de hoje, que vai ter New Order, Portela, My Bloody Valentine, Karnak e mais. No Cabeça dos Outros, ainda, Caetano Veloso, e um Palavra, Lê pela memória do revolucionário nicaraguense Sandino. Sem declarações bombásticas, o programa hoje vai ao ar às 21h na bem grata Rádio ELétrica. Produção e apresentação no olho do furacão: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

cotidianas #815 - "Sorriso Negro"



Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade

Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
negro é a solidão

Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade

Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade

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"Sorriso Negro"
Dona Ivone Lara
(composição: Adilson Barbado / Jair / Jorge Portela)

Ouça:

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Música da Cabeça - Programa #307

 

Naquele clima de fim de Carnaval? Não deixa as cinzas da quarta-feira te cobrirem. Mas como? A gente dá uma ajudinha no MDC. Levantando a poeira, o programa de hoje vem com The Cure, Chico Buarque, Yoko Ono, Tim Maia, Nina Simone e mais, além de uma da Velha Guarda da Portela pra não dizer que a gente se esqueceu de sambar. Hora de guardar a fantasia de rei ou de pirata ou jardineira pra tudo começar na quarta-feira, às 21h, na ressacada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e começo da quaresma: Daniel Rodrigues.


www,radioeletrica.com 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Paulinho da Viola - “Prisma Luminoso” (1983)



 

“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.” 
Zuenir Ventura


Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.

A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.

Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.

Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor. 

Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.

A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.

Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.

Irokô definitivamente sabe das coisas.

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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Música da Cabeça - Programa #248

 

Tá todo mundo falando do filme do meteoro? Depois de hoje, o assunto do momento vai ser o MDC, o primeiro do ano. Também, olha só quanta coisa legal: BaianaSystem, Talking Heads, REM, Argemiro da Portela, U2 e mais. No quadro especial, ainda, um Cabeça dos Outros com a Outros Nós. Faz o seguinte: antes de olhar para cima, confere o programa de hoje, às 21h, na comentada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e pano pra manga: Daniel Rodrigues

Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Monarco - "Terreiro" - Participação da Velha Guarda da Portela (1980)

 

“Compadre Monarco, se não confeitarem tua voz com clarinadas, violinadas e gastas dissonâncias violonísticas, o pessoal vai sentir o que é samba.” 
Juarez Barroso, escritor, poeta e produtor musical

“Monarco foi mais do que um grande sambista: trata-se de um grande brasileiro.” 
Sérgio Cabral, crítico e escritor

Posso dizer que estive muito próximo de Monarco desde bastante tempo. Certamente não tanto quanto os amigos, parceiros, moradores da comunidade de Madureira ou Oswaldo Cruz, dos portelenses que tinham o privilégio de conviver com ele. Mas meu contato com o mestre, que nos deixou no último dezembro, certamente foi muito maior do que para com muitos artistas que admiro mas que, como acontece na maioria dos casos, uma admiração somente à distância. Por isso, arrisco em afirmar que estive, pelo menos três vezes, quando não a metros, por um fio de distância de Monarco. Tão próximo que seria possível ouvir-lhe, como um bumbo de samba, a batida do coração.

Primeira vez que o vi presencialmente foi em 2014 quando este, juntamente com a Velha Guarda da Portela, presenteou Porto Alegre em uma apresentação ao vivo – e de graça – em pleno parque da Redenção para a celebração dos 80 da UFRGS. Já havia ficado um tanto frustrado em 2010 quando, com minha mãe, fui á quadra do bloco Cordão da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para uma feijoada em que tocaria a Velha Guarda da Portela, mas ele foi um dos ausentes. Na Redenção, no entanto, a alegria foi completa. Que momento histórico aquele! Lembro que foi uma sexta-feira, em que Leocádia e eu saímos de nossos compromissos e rumamos direto para o local do show, próximo ao espelho d’água. Com seu barítono em dia, mesmo com os mesmos 80 anos da universidade que o convidara, o baluarte, acompanhado das pastoras e de uma competente banda, fez sua escola do coração tomar conta do parque com sambas clássicos de sua autoria e de outros bambas como ele tanto da Portela quanto de outras agremiações.

Aliás, abrindo um parêntese aqui: igual a ele, talvez não tenha existido. Hildemar Diniz cruzou praticamente todos os momentos importantes nos últimos 70 anos do samba carioca e da Portela, agremiação da qual tinha apenas 10 anos menos. Monarco conviveu e cambiou com os principais nomes da sua comunidade e do samba carioca: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Candeia, Natal, Cartola, Manacéia, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Tia Vicentina, Dona Ivone Lara, Casquinha, Áurea Maria, Surica entre tantos outros. Uma simbiose que muitos não tiveram talento, nem perseverança e nem tempo de vida para tanto. Presidente de Hora da escola, Monarco tinha mais do que somente um título honorário mas sem propósito prático. Era quase como um cacique, um pai de santo, um líder religioso, uma majestade cujo respeito foi conquistado durante a vida e a quem todos recorriam para pedir-lhe a benção. A autoridade de um monarca do samba. 

Mas voltando às minhas vezes com Monarco, a segunda em que o vi bem de perto foi dois anos depois do show em Porto Alegre numa apresentação no CCBB do Rio de Janeiro celebrando os 100 anos do samba, quando, além de Leocádia, ainda tive o prazer da companhia de minha mãe, que, sempre antenada na programação cultural carioca, nos levou àquele deleitoso momento que contava também com a participação de Nei Lopes. O velho mas lúcido Monarco, então com apenas 18 anos menos que o próprio samba, não só cantou como contou histórias, o que fazia com maestria tanto quanto seus sambas, verdadeiras crônicas cotidianas.

Da discografia de Monarco, no entanto, “Terreiro”, seu segundo dos sete solo, de 1980, é talvez o mais especial. Com os companheiros de Velha Guarda, mas também outros craques como Mestre Marçal, Valdir 7 Cordas e o filho e parceiro Mauro Diniz, o disco desfila em azul e branco sambas de todas as épocas invariavelmente com a maestria de sua interpretação. Nas composições, as elegantes melodias de nuanças eruditas se juntam às letras que namoram com a melhor poesia parnasiana de um “sambista-historiador”, como definiu Sérgio Cabral. Dos temas do próprio Monarco tem “Homenagem À Velha Guarda” (“Vi os sambistas de fato/ Manacéia e Lonato e outros mais/ Juro que fiquei boquiaberto/ Nunca me senti tão perto/ Da Portela dos tempos atrás”), “Você Pensa Que Eu Me Apaixonei” (com Alcides), “Proposta Amorosa” e a clássica “Passado de Glória” (“A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu/ O Estácio de Ismael, dizendo que o samba era seu/ Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”), daquelas que não podem faltar em qualquer apresentação da Velha Guarda.

No disco tem também espaço para outras escolas que não só a Portela: “Silenciar a Mangueira”, numa interpretação inédita do amigo Cartola que morreria naquele mesmo ano, e “Estácio de Sá Glória do Samba”, em que Monarco, como era de sua natureza, deixa o clubismo de lado e homenageia uma das comunidades fundadoras do carnaval carioca. Prevalecem, no entanto, as composições de portelenses como ele. A linda “Chuva” (Hortêncio Rocha), a lírica “Conselho de Vadio” (Alvarenga) e a ufanista “Feliz Eu Vivo no Morro” (Josias/Pernambuco/Chatim). Tão bom quanto, o pot-pourri “Temporal” (Tia Doca), “Mulher Vai Procurar Teu Dono” (Rufino), “Caco Velho” (Caetano), e “Serei Teu Ioiô” (Paulo da Portela/Monarco) é uma mostra mais do que perfeita da grandiosidade poética e melódica da turma de Madureira.

Fora isso, as audições, tantas e tantas. “Tudo Azul”, da Velha Guarda da Portela, de 1999, furei de tanto ouvir. E quantos sambas, quantas joias da nossa cultura! “Lenço”, “O Quitandeiro”, “Coração em Desalinho”, "Obrigado pelas Flores", “Portela Desde Que Eu Nasci”, “Ingratidão”, “Agora é Tarde”, “De Paulo a Paulinho”, “Pobre Passarinho”... Ah, tanta beleza, que se for falar mais de Monarco, hoje eu não vou terminar.

Ah, mas faltou falar da terceira ocasião em que me vi junto a Monarco. Pois bem: embora mais longe fisicamente, foi a vez em que, curiosamente, tive-lhe mais perto. No início de 2019, minha irmã Kaká Reis, produtora cultural, trabalhava com o velho bamba e, por ideia de meu outro irmão e coeditor do blog, Cly Reis, arranjou-me para meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, uma entrevista com Monarco, com quem ela estaria em São Paulo para um show. Kaká não apenas viabilizou a conversa e a gravação como mediou a entrevista a partir das questões que cuidadosamente elaborei. No camarim, horas antes de subir ao palco, Monarco, com toda sua simpatia e sabedoria, prestou-lhe(me) uma entrevista deliciosa, que marcou a centésima edição do meu programa. A se considerar que irmãos são nós mesmos em outro corpo, posso dizer que estive, sim, com Monarco. Bem próximo, a seu lado, falando com ele. A centímetros do coração. E ele – como sempre fez através de sua obra grandiosa – falando comigo.

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Monarco
(1933-2021)



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FAIXAS:
1. "Homenagem À Velha Guarda" (Monarco)
2.a. "Temporal" (Tia Doca)
2.b. "Mulher, Vai Procurar Teu Dono" (Rufino)
2.c. "Caco Velho" (Antonio Caitano)
2.d. "Serei Teu Ioiô" (Paulo da Portela/Monarco)
3. "Sofres Por Querer Liberdade" (Mijinha/Monarco)
4. "Estácio De Sá, Glória Do Samba (Monarco)
5. "Conselho De Vadio" (Alvarenga)
6. "Feliz Eu Vivo No Morro" (Chatim/Josias/Pernambuco)
7. "Silenciar A Mangueira" (Cartola) - Participação: Argemiro
8. "Você Pensa Que Eu Me Apaixonei" (Alcides Lopes/Monarco)
9. "Chuva" (Hortênsio Rocha)
10. "Proposta Amorosa" (Monarco)
11; "Falsa Recompensa" (Mijinha/Monarco)
12. "Passado De Glória" (Monarco)

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OUÇA O DISCO:
Monarco - "Terreiro"

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

4º Curta Caicó - Os Premiados


 
Rio Grande do Norte do Sul, ou do Sul do Norte, tanto faz. Essa foi a ponte que se ergueu através do generoso convite que a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) fez à Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), a qual sou membro, para, como entidade irmã, integrar conjuntamente o júri da crítica das nove mostras do 4º Curta Caicó, festival de curtas-metragens realizado na cidade de Caicó, na região do Seridó Norte-rio-grandense. Juntamente com outros quatro integrantes gaúchos (Carlos André Moreira, Conrado Oliveira, Roberto Cotta e Rubens Anzolin), topei. Mesmo tendo recentemente participado da maratona de filmes para o júri da crítica do Festival de Cinema de Gramado, valia a pena achar um espacinho na agenda do dia e participar.

Em dupla com o simpático e competente Jonathan DeAssis, da ACCiRN, crítico de cinema de Natal que escreve o interessante Forma Fílmica no Instagram, coube a mim a análise da Sessão Especial, composto por filmes que dialogam com o fazer audiovisual e com a metalinguagem. Dos 10 títulos que avaliamos, todos bem pertinentes à proposta, dois nos saltaram mais à vista e nos motivaram a uma saudável troca de percepções: “Lua” e “Cabeça de Luz”, este segundo, o qual escolhemos como vencedor da mostra.
Imagens do universo plástico
e onírico da artista Lua

“Lua”, de Fábio Salvador (SP), embora não tenha me encantado numa primeira assistida, em razão de observações de Jonathan fez-me rever com outros olhos e apreciar suas qualidades. Trata-se de um documentário sensível e humano de uma jovem fotógrafa cujo nome astral dá título ao filme. Isso, através de uma montagem eficiente e uma fotografia bem condizente com o universo hiper-realista da paulistana Lua Morales. Em especial, a relação com a obra de Vincent Van Gogh e a perturbação mental que lhe era característica é bem interessante para a narrativa, visto que abre o curta com isso, quando ela está em uma plantação de girassóis fotografando um rapaz muito parecido com o pintor holandês. A ansiedade de Lua para captar a luz certa e tudo o que isso simboliza em termos psicológicos de certa forma conduz o filme através das inquietações artísticas e filosóficas dela.

Porém, o que nos pareceu melhor traduzir as intenções de um cinema autorreferenciado ao propor uma discussão instigante entre audiovisual e a forma como o espectador o recebe e o assimila foi, de fato, “Cabeça de Luz”. O filme potiguar de Carito Cavalcanti consegue, em pouco tempo de duração (8 min apenas) o feito que nem longas e nem curtas têm conseguido desde que a pandemia se instaurou, que é saber aproveitar a seu favor o cenário de confinamento de milhões de pessoas e a estética do “novo normal”. Privadas do mundo exterior e do convívio social, a arte – em especial o cinema – é uma das formas de transcender esse limite que se impõe aos corpos físicos. “Cabeça...” arranja um mosaico sensitivo em que vários depoimentos gravados e enviados via celular num ensaio que articula imagens de arquivo e de outras obras, trazendo-as para si e propondo-lhes novos significados, produzindo um fluxo de pensamento onírico cujo poder da imagem, dos sons e das palavras convidam o espectador ao sentir.

O impactante e poético "Cabeça de Luz": proveito da pandemia como linguagem

Ao contrário de todos os outros filmes ou produções televisivas que assisti feitos do ano passado para cá, quando o distanciamento social se impôs e impactou diretamente os processos de gravação, o filme de Cavalcanti não se vale disso como muleta, mas, sim, como proposta narrativa, assimilando os elementos visuais e psicológicos advindos deste período. Se noutras produções havia a tentativa de compensar esse gap realizando filmes com poucos atores e em espaços confinados (não raro, a casa do próprio realizador/protagonista) ou valendo-se dos recursos multitelas da vida cada vez mais virtual em que o mundo se viu obrigado a imergir – deixando, assim, evidentes as deficiências inerentes do momento a uma produção audiovisual minimamente ambiciosa – “Cabeça...” prova o quanto a sétima arte está, na verdade, na mente e nos corações das pessoas.

O festival ocorreu entre os dias 6 e 12 de setembro, então, não tem como se assistirem mais os filmes no momento. Mas quem quiser saber como foi a cerimônia de premiações desta categoria e das outras, dá pra acessar aqui.

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Mostra Nacional
Filme: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Direção: Matheus Farias e Enock Carvalho, por inabitável (PE)
Roteiro: Matheus Farias e Enock Carvalho, por Inabitável (PE)
Fotografia: Gustavo Pessoa, por Inabitável (PE)
Som: Guilherme Cássio, por Tom (RS)
Interpretação masculina: César Ferrario, por Joana (PB)
Interpretação feminina: Luciana Souza, por Inabitável (PE)
Menção honrosa: Elemento Suspeito, de Gustavo Paixão (SP)
Menção Honrosa: Reexisto, de Lethicia Galo e Rodrigo Campos (SP)

Mostra Seridó:
Filme: Fole, de Lourival Andrade (RN)
Direção: Lourival Andrade, por Fole (RN)
Roteiro: Jailson Valentim dos Santos, por Corpos (In)visíveis – Entre o Lixão e o Frei Damião (RN)
Fotografia: Fernando Leão e Zezinho Vídeo, por Fole (RN); e Damião Paz, Henrique José e Meysa Medeiros, por O Photógrafo Zézelino (RN)
Som: Fernando Leão e Pedro Andrade, por Fole (RN)
Interpretação masculina: Mané do Fole, por Fole (RN); e Damião Paz, por O Photógrafo Zézelino. (RN)
Interpretação feminina: Maria das Graças (Gracinha), por Propósito (RN)
Menção Honrosa: Cores da Resistência, de Hylka Rachel (RN)

Mostra Potiguar
Filme: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Direção: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Roteiro: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Fotografia: Pedro Medeiros, por A Terra me disse (RN)
Som: Herisson Pedro, por Nocaute (RN)
Interpretação masculina: Enio Cavalcante por Mais um João e pelo conjunto da obra (RN)
Interpretação feminina: Cássia Damasceno, por Vai Melhorar (RN)

Mostra Nordeste
Filme: Remoinho, de Tiago A. Neves (PB)
Direção: Élcio Verçosa Filho, por Vaudeville (AL)
Roteiro: Tiago A. Neves, por Remoinho (PB)
Fotografia: Diego Garcia, por Vaudeville (AL)
Som: Richard Soares, por Memórias Submersas (PE)
Interpretação masculina: Alexandre Guimarães, por Vaudeville (AL)
Interpretação feminina: Cely Farias, por Remoinho (PB)
Menção Honrosa: A Beleza de Rose, de Natal Portela (CE)
Menção Honrosa: Nossas Mãos São Sagradas, de Júlia Morim (PE)

Júri da Crítica: ACCIRN e ACCIRS
Mostra Nacional: Fragmentos ao Vento: 1945, de Ulisses da Mota (RS)
Mostra Nordeste: Vaudeville, de Elcio Verçosa Filho (AL)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: Sobre nossas cabeças, de Suzan Kalik e Thiago Gomes (BA)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Atordoado, eu permaneço atento, de Henrique Amud e Lucas Rossi (RJ)
Mostra Cine Rio Branco: Mãtãnãg, A Encantada, de Shawara Maxakali e Charles Bicalho (MG)
Mostra Sessão Especial: Cabeça de Luz, de Carito Cavalcanti e Fernando Suassuna (RN)

Júri Popular
Mostra Nacional: De mim para você, de Rodrigo Peres (DF)
Mostra Nordeste: Distopia, de Lilih Curi (BA)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: 4 Bilhões de Infinitos, de Marco Antonio Pereira (MG)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Elos Positivos, de Eduardo Oliveira (SP)
Mostra Cine Rio Branco: Como um peixe fora d´água, de Arthur Lombriga (BA)
Mostra Sessão Especial: Cine Aurélio, de Kennel Rogis (PE)

Prêmios Especiais
Prêmio de Aquisição Elo Company: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Prêmio Cardume: Ser Feliz no vão, de Lucas Hossi (RJ); e O Homem das Gavetas, de Duda Rodrigues (SP)
Prêmio Místika de Pós-Produção: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio CTAV de Mixagem de som: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio Referência de Contribuição Artística: Zezita Matos e Biró Modesto.


Daniel Rodrigues