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manipulação digital sobre foto de
Leocádia Costa
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Horário de pico, entrou no metrô quase arrastado pela
multidão na estação já pelo meio do trajeto do trem. Seu objetivo de vida ficava
uma estação antes do fim da linha e chamava-se “casa” – pelo menos naquele fim
de tarde frio e chuvoso, depois de um dia puxado no trabalho. Como faltava um
bom tempo ainda para chegar, procurou naquele aperto um espaço para se
acomodar, equilibrando-se minimamente entre tantos que faziam o mesmo. Parou de
frente a uma moça e um rapaz que, sentados, conversavam animadamente. “Bem
bonita”, pensou. Tipo executiva, cabelo aloirado preso no coco sem soltar
nenhum fio sequer, maquiagem em dia mesmo no fim de tarde, tailleurzinho risca-de-giz
cinza. Muito elegante, ou seja: “não é pro meu bico”, arrematou para si em cima
imediatamente. “Seriam namorados os dois?”, ocorreu-lhe.
Não valia a pena interessar-se. Um chinelão indie e pobretão
como ele jamais despertaria algo numa mulher como aquela. Tornou, então, a se
concentrar no seu objetivo-fim de retornar para o sossego do lar. Porém, não
demorou muito para a cena roubar-lhe a atenção de novo. Percebeu que,
realmente, não eram namorados, embora a intenção disso provavelmente passasse
pela cabeça do interlocutor. Afinou o ouvido e, como suspeitava, viu que conversavam
sobre relações, namoros, ex-namorados, pegas, festas, paqueras, ficantes, coisas
afins. Eram estudantes de Direito indo para a aula noturna na Universidade
Católica, captou. Também percebeu que não trabalhavam juntos: ela, estagiária
em um escritório de advocacia no Centro; o outro, um tipo engomadinho e
metidinho, embora a empáfia fosse de advogado formado também estagiava num
escritório – pelo que entendeu, num dos grandes da cidade.
Deu ainda para atinar que a moça bonita tinha um ex de quem
falava mal e que, até onde pegou a conversa, dera nele um pé na bunda há mais
de um ano. O rapaz, em contrapartida, enrolado no próprio ego, já tinha
namorado várias colegas do escritório e da faculdade (a Fabi, a Márcia, a
Katiuscia e a Lê foram os nomes que conseguiu reconhecer) e, ainda que reclamasse
que sempre terminava por culpa delas, estava estampado na cara que se vangloriava
da quantidade de casos. A moça, entretanto, mesmo que não fosse colega de
trabalho ou de aula – o que não deu para ele pescar – era sem dúvida um alvo,
afinal, se abordavam aquele tipo de assunto tão tranquilamente, sem ressalvas
nem melindres, era porque talvez houvesse interesse de ambos e porque não havia
ocorrido ainda nada entre os dois. Ficou feliz quando percebeu que ela não nutria
as mesmas intenções para com o tal semiadvogado metido a besta, e isso não pelo
o que ouvira, mas pelo o que sentiu no ar. Mas a conversa, essa sim, a
absorvia: linda, soltava risinhos de vez em quando, mudava a expressão conforme
o tema, formava uma covinha na bochecha direita quando ria, piscava os olhos
para começar a falar, ouvia de boca aberta quando se impressionava... “Uma
graça...”.
Entretanto, o cansaço do trabalho no restaurante do dia o
fez voltar a seus botões novamente. Ordenou-se: “Deixa eles que eu tenho mais do
que cuidar”. A mãe e os dois cachorrinhos lhe aguardavam em casa como todos os
dias. Embora seu ouvido atento naturalmente captasse acontecimentos externos
como aquele bate-papo, queria mesmo era esvaziar a cabeça. E para um roqueiro
como ele, que escondia por debaixo do uniforme os braços inteiramente tatuados,
a melhor maneira de desopilar é ouvindo rock ‘n’ roll. E alto! Assim, enquanto
os dois seguiam ali trocando palavras aos montes, sacou de um dos bolsos da
mochila o fone de ouvido, que acoplou ao celular para ouvir música no restante
do trajeto. Buscou na playlist Th’ Faith Healers, disco “Imaginary Friend”, dos
seus preferidos. “Alternative rock da melhor qualidade!”, animava-se
mentalmente, orgulhoso de certamente ser o único em todo o metrô a conhecer uma
banda dessas. Pôs para rolar no volume máximo, o que lhe levou imediatamente
para um outro mundo de guitarras, pedais de distorção, vozes, batidas, baixos,
melodia, poesia. Amava aquele grupo. Dos companheiros de viagem à sua frente,
nem interessava mais o que diziam. Via apenas suas bocas se mexerem, as
covinhas dela se formarem quando sorria, as piscadas mais demorados quando
falava (provavelmente de algo que lhe afligia), as viradas de olhos (sabe-se lá
por qual motivo). Tudo ao som de Th’ Faith Healers, como uma trilha sonora
ruidosa e melodiosa. Parecia que, a partir do momento que enfiou os fones, a
cena daquela conversa corriqueira e sem graça diante dele transformara-se num
videoclipe bastante poético.
Próximo à estação de acesso à universidade, viu, imerso na
massa sonora de "Sparklingly Chime", que abre o disco, ela falando
algo para o advogadinho, que trocou com ela dois beijinhos para depois pegar a
mochila e se despedir. Para sua surpresa, ela permaneceu sentada, olhando para
baixo, como que resignada. Parecia ter ficado chateada sem o companheiro de
viagem, o qual teve seu lugar ocupado imediatamente por um dos vários
passageiros. Ele manteve-se de pé à frente dela, mais porque o vagão não
esvaziou do que por querer necessariamente ficar ali. Ela não levantou em
nenhum momento a cabeça e nem o viu. Obviamente, uma moça daquele alto nível não
tinha como notá-lo, um estranho sem sentido para ela tal como todos os outros
ali no vagão.
Ela levanta-se ao sinal sonoro da estação seguinte. Educadamente,
ele deu espaço para que passasse. Foi quando, de repente, ela lhe olha, mira-o
por alguns segundos e diz alguma coisa. Claro que ele não entendeu bulhufas,
pois, além de ela ter falado baixo, o volume nas alturas não deixava que
ouvisse nada além do que o fone lhe fornecia. Viu apenas uma boca carnuda e rosada
de batom gesticular-lhe algo. Franziu o cenho como que perguntando: “O que é?”
Ela, então, repetiu mais pausadamente o que dissera na primeira vez (ainda sem
ser ouvida, por sinal) adicionando à sua comunicação, entretanto, o gesto de apontar
com o indicador para o ouvido. “Ops!”, deu-lhe um estalo: não se trata da um
aviso fortuito: “Ela quer me dizer algo mesmo!” De modo a entendê-la, então, tirou
o fone direito, que emitia agora no ar um ruído quase indefinível da música que
seguia rolando enquanto o outro fone continuava ensurdecendo seu ouvido
esquerdo:
- Sim?
- “Heart Fog”, né? – perguntou ela.
Não compreendeu logo de cara a pergunta, talvez porque fosse
absolutamente improvável que aquela executiva linda do mundo das leis e dos
códigos corretos da sociedade conhecesse como ele, um chinelão indie e pobretão,
o Th’ Faith Healers e tivesse, ainda, identificado justamente a segunda faixa
do disco que ele escutava, coisa que provavelmente ninguém naquele trem,
naquele bairro, naquela cidade fizesse ideia do que se tratava. Impossível.
Seria surreal. Ela, contudo, querendo fazer-se entender antes de descer do
metrô, prosseguiu:
- Entendeu o que eu disse? É “Heart Fog” mesmo que você tá
escutando?
- É... é... sim. – forçou-se a responder num tom besta, pois
ainda mais impressionado agora (embasbacado, na real), pois ela estava se
referindo, sim, à mesma coisa que ele. “Incrível!”
- Cara, eu adoro eles também! Logo percebi que era essa que você
tava escutando quando passei perto de ti. Tá tão alto teu fone que dá pra ouvir
o som aqui de fora, reh reh reh.
Ele riu também, misto de encabulado e orgulhoso, baixando,
então, o volume para continuar a conversa.
- Eu gosto muito do Th’ Faith Healers.
- Sim, Th’ Faith Healers com o “the” sem a letra “e” e aquela
apóstrofe esquisita! – lançou ela, animada; e não a animação que ele observara
quando a viu conversando anteriormente, mas uma animação verdadeira – O
“Imaginary Friend” é demais! Sabe, prefiro ainda o disco “Lido”, mas esse é
muito bom também. E minha preferida é justo essa, “Heart Fog”! Que coincidência,
cara! “Heart fog/ seems so
cold to me/ feels so insecure”. – cantarolou um pedaço.
- Sim! –, disse, já contagiado pela animação, porém, visto
que o ponto final dela se aproximava, antevendo a perda da presença daquela
entidade surreal que lhe aparecera, da nova colega de fã-clube. Ainda surpreso,
mas ciente de que presenciava um momento especial em sua vida tão monótona e repetitiva,
ele, antes de conseguir articular uma fala que a contivesse ali, viu que o trem
já começava a frear para parar na estação. Um bolo de pessoas se acumulou
diante da porta para retornar ao frio da rua, enquanto ele lhe olhava com olhos
desorientados e infantis, sabendo não ter mais tempo de continuar o papo
healeriano naqueles poucos segundos em contagem regressiva que restavam.
Abriu-se a porta automática, subiram pessoas, desceram
outras. Mas ela não se movia.
- Você não vai descer? – indagou ele sem entender, antes de
a porta se fechar.
- Sabe o que é: já matei a aula hoje, mas também não tava a
fim de ir direto pra casa. E agora me bateu uma vontade de ouvir Faith
Healers...
Saiu daquele rosto mal barbeado que o cabelo desgrenhado
cobria em parte um sorriso entendedor e contente. A porta se fechou e o trem
seguiu em direção à próxima estação.
***