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segunda-feira, 18 de julho de 2022

Lee Morgan - "Lee-Way" (1961)

 

"Todos ficavam espantados: tinha um garoto que tocava como um veterano e tinha grandes ideias. Ninguém restava dúvida 
de que ele seria uma estrela." 
Charli Persip, baterista da orquestra de Dizzie Gillespie

Mais de uma vez já falamos aqui sobre a trágica morte de Lee Morgan, dada a narrativa novelesca que envolve o crime (foi alvejado pela própria esposa, Helen) como, principalmente, pela prematuridade da perda deste grande talento da história do jazz. Contudo, não há o que lamentar. Nos pouco menos de 34 anos que viveu e dos 15 em que produziu, desde seu surgimento através da orquestra de Dizzie Gillespie e da banda Art Blakey, na segunda metade dos anos 50, até sua partida, que completa 50 anos em 2022, o trompetista edificou uma das mais notáveis obras da discografia jazz moderna. Com o aval e a qualidade técnica do selo Blue Note, Morgan deu a largada na carreira solo em 1956 e só parou no fatídico 19 de fevereiro de 1971. 

Embalado, ele começava os anos 60, seus mais produtivos, com mais de 10 discos entre próprios e em participações protagonistas. Tanto que, no primeiro ano daquela década, não tardou a vir primeira obra-prima: “Lee-Way”, gravado em 1960 e lançado um ano depois. Acompanhado de um supertime que contava com Jackie McLean, no sax alto; Bobby Timmons, ao piano; Paul Chambers, baixo; e o professor Blakey na bateria, Morgan explora todas as vertentes que o influenciaram e compunham o cenário do jazz da época. Hard bop, cool, modal e be-bop e até uma passadinha pela vanguarda: tudo com absoluta fluidez e, às vezes, simultaneamente. É o que se vê na brilhante faixa de abertura, "These Are Soulful Days". Obra de um front man maduro, apesar dos apenas 22 de idade à época, seu arranjo não apenas se constitui desses vários estilos como, principalmente, é possível vê-los hibridizando-se naturalmente. O ouvinte começa escutando um blues elegante, suingado, mas sem perceber, dentro do próprio riff, já está submerso num clima melancólico de cool jazz, quase sensual. Repete-se o chorus e, ao invés de seguir na mesma linha, o compasso cai para um ritmo marchado, dando uma pitada de avant-garde.

E quem começa solando? Morgan? Não: Chambers. Craque do baixo, o homem que já havia entrado para os anais do jazz ao tocar em “Kind of Blue”, de Miles Davis, um ano antes, desfila um estiloso solo. O qual, aliás, grosso modo ele não termina, visto que mantém seu suingue por debaixo do improviso seguinte. De Morgan agora? Não: de Timmons. Mais um lindo solo carregado de alma blueser aproveitando as escalas de Lá e Si. Quem pensa que agora será a vez do band leader, está enganado. Parceiro generoso, Morgan concede a McLean o espaço para uma contribuição carregada de sentimento para, finalmente, entrar em campo. Que improviso com desenvoltura e graça!

"These...” mostra que Morgam sempre soube muito bem abrir um disco, pegando pelo ouvido quem escuta já de pronto. O que se veria em “The Sidewinder” e “Serach for the New Land”, iniciadas com suas memoráveis faixas-título, ou em “The Gigolo”, com outra célebre, “Yes I Can, No You Can't”. Depois, em tese, o trajeto é mais facilitado, certo? Não é esta a escolha do “caminho de Lee”. Em clima de trilha de filme policial, "The Lion and the Wolff" tem no piano um martelado em notas graves extremamente soul e na bateria sincopada de Blakey a base para outro tema excepcional de “Lee-Way”. Morgan, se se conteve na abertura para dar evidência a seus companheiros de banda, aqui é ele quem domina, solando com avidez por 2 min 30’. Mas todos têm espaço. E quando se diz “todos”, é o grupo inteiro, mesmo. Depois de TImmons, Chambers ensaia seu solo e passa a bola para o mestre Blakey dar um show com as baquetas em seu estilo de tocar carregado de africanidade. Mais um hard-bop exemplar.

Mais longo número do disco, com pouco mais de 12 min, a animada "Midtown Blues" traz novamente o blues, literalmente, para o centro das atenções. Outro riff contagiante, outro show de interpretações, outra mostra de sinergia de toda a banda. De autoria de McLean, é Morgan, no entanto, quem dá o sopro inicial em um improviso que joga luz sobre os velhos mestres do Mississipi. O saxofonista é quem entra em seguida com a autoridade de criador que conhece os atalhos. Com justiça, aliás, McLean é o que mais se demora performando, preenchendo quase 5 min da música, que traduz em sons a dinâmica agitada da região central nova-iorquina. Timmons também não deixa por menos ao piano, entregando notas ligeiras e agudas. Fica a Chambers a incumbência de fazer a última parte antes do chorus finalizar com a energia lá em cima.

Se a elegância sempre foi uma marca de Morgan, já o era assim nesta fase inicial de carreira, a se ver por "Nakatini Suite". O riff talvez engane, pois o desenrolar da música revela um ritmo intenso, exigindo habilidade e ligeireza dos músicos. Depois de Morgan e Timmons, é Blakey novamente quem “apavora” em inebriantes rolos na caixa, surdo e tom-tom tomados de técnica e habilidade, em que dá para perceber sua desenvoltura no chimbal e a forma como segura a baqueta, movimentada pelo pulso e não pelo bíceps como fazem clássicos bateristas igual a ele.

Neste ano em que se completam cinco décadas sem o enfant terrible do jazz, nada melhor do que, ao invés de lembrar de sua morte, fazer o raciocínio contrário: lembrar da aurora de Lee Morgan. “Lee-Way” é para muitos a mais bem-acabada de suas obras do começo da carreira e, quiçá, de toda a marcante discografia do músico. O álbum que deu o caminho que ele seguiria marcando com seus passos firmes e intrépidos enquanto esteve sobre o planeta blue.

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FAIXAS:
1. "These Are Soulful Days" (Calvin Massey) - 9:25
2. "The Lion and the Wolff" (Morgan) - 9:40
3. "Midtown Blues" (McLean) - 12:09
4. "Nakatini Suite" (Massey) - 8:09

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Kenny Dorham - "Quiet Kenny" (1959)

 

“Foi no trompete que Kenny expressou seus sentimentos e emoções mais profundos e, como 'Quiet Kenny' demonstra de forma conclusiva, suas ideias e sua capacidade de trazê-las à vida o colocam entre os melhores."
Dan Morgenstein, do texto da reedição especial de Quiet Kenny de 2005

Os orientais são os que mais celebram o silêncio dentro da música. Aquilo que chamam de "ma" (algo como “intervalo”, “tempo”, “espaço”) pode ser interpretado e captado de diversas formas, seja filosófica, prática ou formalmente. Advinda da filosofia dualista do yin e yang, a ideia de “silêncio” trazida do Oriente se incutiu também em músicos do Ocidente, aqueles cujos ouvidos e sentimentos souberam compreender essa sabedoria milenar originária da própria natureza. Kenny Dorham foi um desses perspicazes aprendizes. Como um mestre taoísta, ele transpôs para seu trompete a sabedoria do silêncio oriental através de uma das formas mais sublimes que os sentidos humanos podem captar: a quietude. Não por coincidência, seu melhor disco chama-se “Quiet Kenny”, uma definição sintética, didática e até profética de si mesmo.

Dorham, formado nas big-bands de be-bop dos anos 50 de Lionel Hampton, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie e Mercer Ellington, além do quinteto de Charlie Parker e a primeira formação da Jazz Massangers de Art Blakey, curiosamente não é tão celebrado quanto alguns de seus colegas de instrumento como Miles Davis, Lee Morgan e Chet Baker. Os motivos podem ser vários para ser considerado, como disse o crítico e escritor Gary Giddins, “sinônimo de subestimado”. Uma suspeita pode-se levantar: “Quiet...”, um trabalho tão definidor de sua verve e sua primeira incursão no selo Prestige, saiu justo no mesmo ano do acachapante “Kind of Blue”, de Miles, que, além de ser o álbum de jazz mais vendido da história e revolucionário por "inventar" um subgênero, o jazz modal, marcou justamente a saída de Miles do selo Prestige para a abastada gravadora Columbia. “Quiet...”, com a sombra ainda de outras obras daquele ano, como “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, e “Time Out”, de Dave Brubeck, igualmente marcantes para o jazz, pareceu, como o título sugere, aquietar-se.

No entanto, passados os anos e o impacto midiático de seus concorrentes, “Quiet...” mostra-se tão fresco e brilhante quanto merecia ter sido recebido à época de seu lançamento. O estilo depurado de Dorham, tanto de compor e versar quanto de, principalmente, tocar, estão cristalinos no disco. Acompanhado de Tommy Flanagan, ao piano, Paul Chambers, no baixo, e Art Taylor, bateria, Dorham desfila estilo e classe sem, contudo, perder o diálogo com seu ouvinte ao exercitar uma pronúncia clara e sem rodeios do trompete. Essa proposta fica bem evidente em "Blue Friday" e "Blue Spring Shuffle", em que preserva a linguagem pop do blues ao lhe captar a essência e sem complexá-la desnecessariamente. Simplicidade. Até os ouvidos menos rebuscados conseguem sorvê-las saborosamente.

Antes disso, porém Dorham mostra que também sabia ousar, provando que apenas os desatentos o subestimavam. "Lotus Blossom", que abre o álbum, é um dos mais originais e engenhosos temas do jazz daquele final de anos 50, quiçá de toda a história do hard-bop. Intensa, lírica, dissonante, desconcertante. De andamento que ondula, surpreende por seu riff inteligente, mas também pela variação de ritmos e encadeamentos, bastante a cargo, aliás, das baquetas de Taylor. "Lotus...”, aberta referência ao Oriente, tem condensado, em menos de 5 min, tudo isso: solos incríveis de Dorham, Flanagan e de Taylor, subidas e descidas, be-bop, blues e música indiana.

Se a serenidade está mais escondida numa faixa tão vívida quanto a de abertura, nada melhor do que aplicá-la num clima de balada. É o que Dorham sabiamente faz na versão de "My Ideal", em que conta com uma rica dobradinha com o piano de Flanagan e a condução consciente de Taylor, só nas escovinhas e pratos, e de Chambers, acostumado com estas ocasiões sonoras visto que recentemente saído do quinteto que acompanhou anos Miles em seus clássicos discos pela Prestige, tais “Steamin’” e “Cookin’”. Tratamento delicado e semelhante o band leader traz para outra adaptação: "Alone Together". O trompete, que atinge notas altas de pura emoção romântica, é transparente, sem exaltação, um exemplo de como utilizar as pausas e ataques de forma sutil e fluida. Nota-se a mesma limpidez do conjunto sonoro – muito ajudada pela captação sempre perfeita do engenheiro de som Rudy Van Gelder – nos “quiet blues” "I Had the Craziest Dream" e "Old Folks". Em ambas, contracenando com Dorham, o piano de Flanagan prioriza as teclas pretas, agudas e faceiras, enquanto o baixo e a bateria mantêm a base ideal para o desenvolvimento harmônico. 

Kenny Dorham é fatalmente menos lembrado que outros trompetistas contemporâneos a ele. O temperamento reservado que manteve até sua morte sem alardes, aos 72 anos, após anos de doença renal, provavelmente explique o descompasso entre reconhecimento e qualidade artística. Esse ofuscamento pode ter sido também pela genialidade ou pela personalidade explosiva de Miles? Pelo carisma ou a intempestividade midiática de Lee Morgan? Pelo charme ou a face polêmica de Chet Baker? Probabilidades. Há de se supor, quem sabe, que a diferença de prestígio recaia sobre o estilo, quiçá mais identificável nestes outros. De fato, diversamente destes, Dorham não vai nem pela economia estruturada de Miles, nem pelo virtuosismo jovem de Morgan e nem pela expressividade cool de Chet, mas, sim, pela simplicidade. Esse era seu campo e onde atuava com desenvoltura. 

Não se sabem ao certo os motivos, porém nada disso impediu que Dorham, a seu modo, demarcasse o seu lugar entre os grandes do jazz norte-americano. Tranquilo, discreto e quieto como classificou a si próprio, Dorham não promoveu uma revolução do nível do free jazz, da avant-garde, do modal ou cool jazz, mas sim, uma (quase) silenciosa. A sua própria revolução: interna e consciente. Como um sensei do jazz.

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FAIXAS:

1. "Lotus Blossom" [also known as "Asiatic Raes"] (Kenny Dorham) - 4:39
2. "My Ideal" (Richard A. Whiting/Newell Chase) - 5:06
3. "Blue Friday" (Dorham) - 8:46
4. "Alone Together" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) - 3:11
5. "Blue Spring Shuffle" (Dorham) - 7:38
6. "I Had the Craziest Dream" (Harry Warren/Mack Gordon) - 4:40
7. "Old Folks" (Dedette Lee Hill/Willard Robison) - 5:11
8. "Mack the Knife" (Bertolt Brecht/Kurt Weill) - 3:02 (faixa bônus da reedição em CD)

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 27 de abril de 2021

Charles Mingus - "Mingus Ah Um" (1959)

PARA LEMBRAR CHARLES MINGUS: 99 ANOS





Quatro capas de diferentes versões: a original, da Columbia, 
com a fantástica arte de Neil Fujita, e as posteriores
pelos selos Pan Am, Green Corner e Jazz Images
"É incrível que Mingus consiga extrair da contemporaneidade a potência e a graça curativa da música. Peças como ‘Fables of Faubus’ e ‘Goodbye Pork Pie Hat’ e outras são milagres de uma espécie. Estão ali, disponíveis. Poesia e música são para aqueles que têm conexões diretas entre ouvidos, olhos, cabeça, coração, e intestinos".
Diane Dorr-Dorinek, do texto original da contracapa do disco

Em maio de 1959, Charles Mingus saía do estúdio com sua mais importante obra concluída. Aos 37 anos recém completos, o compositor (que completaria 99 anos no dia 22 se vivo) finalizara "Mingus Ah Um". Foram exatos sete dias de gravação, de 5 a 12, em que Mingus e seu contrabaixo estiveram à frente de um septeto – John Handy (sax-alto e clarinete), Shafi Hadi (sax-alto e sax-tenor), Dannie Richmond (bateria) , Horace Parlan (piano), Booker Ervin (sax-tenor) mais os trombonistas Jimmy Knepper e Willie Dennis se revezando em todas as faixas – e deixaram registros que resumiam sua (já longa) trajetória musical até aquele período além de lançar as sementes daquilo que estaria presente em sua obra pelas seguintes duas décadas, até sua morte em 1979.

"Mingus Ah Um" era também o resumo de todas as heranças que compunham a complexa personalidade de seu autor, um negro americano nascido quase na fronteira do México e que tinha entre seus antepassados alemães, suecos, ingleses, nativos americanos e negros que haviam sido trazidos da África como escravos. Musicalmente, a maior influência de Mingus vinha de Duke Ellington e seu gosto pelas orquestras. Daí sua escrita musical avançada, que incorporava elementos da música religiosa e dos compositores eruditos. Tudo isso seria ainda mais liquidificado a partir do contato de Mingus com Charlie Parker. Os dois se aproximariam no começo dos anos 50 e o saxofonista seria decisivo na carreira do contrabaixista. Mingus e Parker continuariam próximos até a morte do segundo, em 1955. Foi pela gravadora fundada por Mingus (e pelo baterista Max Roach), a Debut, que seria registrado o antológico concerto de 15 de maio de 1953, em que Mingus se juntou a Dizzy Gillespie, Parker, Bud Powell e Roach para um concerto no Massey Hall em Toronto. Este foi o último registro Gillespie e Parker tocando juntos.

Mingus gostava de trabalhar com formações médias, maiores que os tradicionais quintetos e menores do que as orquestras. Quase sempre eram grupos que reuniam entre sete e dez músicos. Conhecidos como jazz workshops, os grupos tinham como característica a alta rotatividade entre seus integrantes. Mingus mesclava veteranos e jovens com a intenção de formar instrumentistas que se moldassem ao seu estilo e que acompanhassem a sua vertiginosa capacidade de produção musical – num período de dez anos, Mingus gravou 30 discos para várias gravadoras, aí incluídas a Debut, Atlantic, Candid, Columbia e Impulse.

Assim, Mingus chegaria a 1959 como uma força ascendente no jazz – o que não era pouco num ano que teve ainda Miles Davis com "Kind of Blue", Dave Brubeck com "Time Out" e John Coltrane com "Giant Steps". Em "Ah Um", Mingus mirava o futuro fazendo referência aos antepassados. "Goodbye Pork Pie Hat" era uma elegia a Lester Young, que havia morrido dois meses antes. "Open Letter to Duke" é uma explícita homenagem a Duke Ellington, e estrutura-se em três das peças compostas por Mingus anteriormente ("Nouroog", "Duke’s Choice" e "Slippers"). "Jelly Roll", outra clara referência, homenageia o pianista Jelly Roll Morton e traz uma citação de "Sonnymoon for Two", de Sonny Rollins, durante o solo de piano de Horace Parlan. E "Bird Calls", que poderia ser uma homenagem a Parker, na verdade – segundo Mingus – faz referência aos pássaros. No repertório, destaque ainda para "Self-Portrait in Three Colors", originalmente escrito para "Shadows", o primeiro filme de John Cassavetes como diretor, e a engajada "Fables of Faubus", um ataque à postura de Orval Faubus, governador segregacionista do Arkansas que em 1957 havia se colocado contra a integração racial das escolas de Little Rock, desafiando as decisões da Suprema Corte e forçando o presidente Eisenhower a enviar Guarda Nacional para cumprir a decisão.

Com Mingus, a música também era uma forma de fazer política.

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FAIXAS:
1. Better Git It In Your Soul - 7:23
2. Goodbye Pork Pie Hat - 4:46
3. Boogie Stop Shuffle - 3:41
4. Self-Portrait In Three Colors - 3:10
5. Open Letter To Duke - 4:56
6. Bird Calls - 3:12
7. Fables Of Faubus - 8:13
8. Pussy Cat Dues - 6:27
9. Jelly Roll - 4:01
Todas as composições de autoria de Charles Mingus

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OUÇA O DISCO:


por Márcio Pinheiro
Texto extraído originalmente do site AmaJazz

segunda-feira, 12 de abril de 2021

John Coltrane Quartet - "Crescent" (1964)



“Em vários aspectos, ‘Crescent’ é um rascunho da tela concebida por inteiro em ‘A Love Supreme’”. 
Ashley Kahn, jornalista de música, autor de “A Love Supreme: A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane”

“Considerei ‘A Love Supreme’ pelo que era, mas esse disco nunca atingiu minha alma do mesmo jeito que ‘Crescent’”.
Michael Cuscina, produtor de jazz

Grandes obras da arte dificilmente acontecem da noite pro dia. Seja na literatura, no cinema, nas artes visuais ou na música, não raro há alguma obra antecedente ou mais que abriram caminho para que aquela ideia se concretizasse e a consagrada obra, enfim, fosse concebida. O que seria do estilo próprio de Pablo Picasso não fossem os quadros das fases azul e cubista? Ou as fotos do jovem Stanley Kubrick para a revista Look, nos anos 40, que apuraram seu senso fotográfico para o cinema anos depois? É o mesmo caso com outro gênio da arte do século XX: John Coltrane. Como uma Guernica de Picasso ou um filme como “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick, é difícil alguém não conhecer pelo menos de ouvir falar no seu mais famoso e definitivo disco, “A Love Supreme”, de 1965. 

Mas o que talvez nem todos se atentem é que Coltrane vinha construindo, juntamente com seu quarteto clássico, já de alguns anos aquilo que resultaria em sua obra-prima. Construção esta que passa, aliás, por outros grandes discos, sendo o que mais se aproxime desta sublimação é “Crescent”, de 1964. Dotado de características que unem com absoluta propriedade a sonoridade dos trabalhos anteriores do artista, o disco aponta indubitavelmente para o que viria logo a seguir na carreira de Coltrane, e que marcaria a vida e a obra tanto dele e de seus músicos, quanto de toda a história do jazz e da música moderna.

Já considerado um mito no meio jazz desde suas participações na banda de Miles Davis, nos anos 50, e na carreira solo, desde o início marcante, foi em Elvin Jones (bateria), McCoy Tyner (piano) e Jimmy Garrison (baixo) que Trane achava a química certa para elevar a sua música a patamares antes não atingidos. “Era uma banda de verdade. Eles sabiam completar a frase um do outro”, diz Ravi Coltrane, filho do artista e também talentoso saxofonista e compositor como o pai. Já para outro ilustre músico do jazz, o igualmente saxofonista Joshua Redman, o jazz se baseia na noção de relaxamento e tensão, e o quarteto de Coltrane representa o ápice deste conceito.

A entrada de “Crescent” é algo peculiar, mas que já vinha sendo amadurecido no estilo de Coltrane: spiritual jazz. Absoluta magia perfaz a faixa-título, cujo enigma já está nas notas soltas com delicadeza mas sem hesitação pelos quatro integrantes, como que se não precisassem se “acompanhar” para formar a matéria-som (ou a alma, como preferir). O tema revela seu lado bluesy depois da longa abertura de mais de 1min 30', quando o sax do autor, então, resolve voar. Digressões, rubatos, ciclos, saltos tanto de escala e quanto quânticos. Tudo se expande, cresce. Mescla de paixão e força. Via-se nascer um Coltrane que deixava para trás de vez a fúria e a impaciência para um outro tipo de urgência, mais contemplativa e circunspecta. Há, contudo, uma reminiscência romântica impregnada na melodia de “Crescent”, por vezes repousante, que, embora preveja o misticismo da seguinte e definitiva fase do artista, mantém uma ligação com a tradição bop, como que invocando em novas cores baladas como “Naima” e “I'm Old Fashioned”, dos seminais “Giant Steps” e “Blue Train”, respectivamente.

A delicadeza não só não se encerra como se agiganta. Queriam tema 100% romântico? Pois ganhem, então, “Wise One”. Tyner com seu piano acende uma vela de chama suave e solene, que faz iluminar a entrada dos pratos de Jones e o baixo introvertido de Garrison. Mas não só, obviamente. Sob aquela luz natural e apenas suficiente, a alma de Coltrane sopra solfejos que, em círculos magistrais, mágicos, fazem como se se retomasse ao início do sonho. Uma, duas, três vezes. Até que o sonho, enfim, começa. Leve aceleração no ritmo, mas ainda dormente, mesmo padrão de “Acknowlegement”, de “A Love...”. Além dos pratos, Jones incorpora agora estampidos de baquetas na borda da caixa e leves e secas batidas nos tom-tons. Nesta altura, sono profundo, quem está solando é Tyner, com seu tocante domínio da escala: poético, ousado, econômico em impulsividade, mas nunca em emoção. Coltrane, elevando um pouco mais a “anima”, impõe um batimento cardíaco mais passional, mas ainda sem acordar, ainda sobrevoando uma noite encantada. No final, a melodia torna à feição que lhe originou, o que faz com que se percebe agora sê-la mais spiritual do que se suspeitava. Nova batida à porta de “A Love...”.

Aí, vem um hard-bop como os mestres ensinaram e aprenderam. “Bessie's Blues” é Dex, é Cannonball, é Monk. É Miles, é Shorter, é Rollins, é Dolphy. Mas é também algo que se veria em “Resolution”, de “A Love...”, principalmente em seu balanço 4/4. Time solto, entrosado, à vontade como que inebriados pela fumaça dos night clubs nos quais se apresentavam quase todas as noites. É tanta perfeição, que talvez até escape a percepção de que esta pode manifestar-se em um breve blues, a menor faixa de um disco disposto a celebrar tudo aquilo que cresce dentro dos corações. 

Em quantas direções mais haveriam de crescer? Não precisa recorrer ao ápice de “A Love...” para encontrar a resposta a esta retórica pergunta, pois ela está cristalizada não muito longe dali. Aliás, bem perto, na faixa seguinte: “Lonnie's Lament”. Assim como “Crescent”, novamente a abertura insinua uma melodia completa. São quase 2 min de um lamento tristonho e poético, vaporoso, vagaroso. Isso para depois entrarem em um jazz modal, mais uma vez, retrazendo aquilo que erigiram juntos a partir do exemplo de “Kind of Blue”, de Miles, de 1959, em que Coltrane é um dos nobres coadjuvantes, e praticado com destreza pelo quarteto nos anos seguintes, principalmente, a partir de “My Favourite Things”, de 1961. Tyner se encarrega de um longo improviso, dedilhando suas mágicas quartas justas ou aumentadas e os voicings, tudo em redor da tônica em Dó. Quem também ganha espaço é Garrison, com a deferência de todos os colegas calarem os respectivos instrumentos para seu solo. Ao final desta entrega do baixista, torna a vaporosidade da abertura, aquela que havia deixado com impressão de tratar-se de uma melodia final. E é ela, sim, que finaliza o lamento. Impossível não lembrar de “Presuance”, do clássico “A Love...”, prenunciada pela ideia do solo de baixo.

Talvez a mais distinta música de todo o repertório é também a mais parecida com o que Coltrane e seu grupo trariam no emblemático disco procedente a “Crescent”. A semelhança com a faixa “Psalm”, do álbum de 1965, é inconteste. Com uma percussão tribal e monorritimca, usando apenas tímpano e pratos, Jones marca o andamento com constância. É “The Drum Thing”, que, como o título indica, concentra-se na percussão – elemento altamente ligado à cultura e à religiosidade africana, que Coltrane tão bem resgata ao desenvolver o spiritual jazz. O ritualístico se manifesta nos sons percutidos, sobrando para o sax de Coltrane, geralmente protagonista, apenas sutis pronúncias da melodia ao início e ao final. Jones, afinal, é quem domina a faixa de cabo a rabo, engendrando um solo impressionante de aproximadamente 4 min e quando se vê sua habilidade incomum de variações rítmicas, de timbres e o fraseado "legato", límpido. Não poderia haver maneira peculiar e exata de encerrar o álbum.

Mesmo com toda a reverência e inegável influência de "A Love..." para o jazz e para a música moderna, não são poucos os que consideram “Crescent” o melhor trabalho de John Coltrane. Frank Lowe, Dave Liebman e Michael Cuscina são três grandes conhecedores de sua obra e da discografia jazz que defendem esta tese. Interposto entre a gênese de seu estilo spiritual e a exaltação deste, que desembocaria “A Love...”, "Ascension" e outros discos da fase final do artista antes de morrer, em 1966, este disco marca um momento ímpar na história de Coltrane e do jazz. Um instante imediatamente anterior a uma revolução. Por isso, “Crescent” é mais do que um disco: é a ligação entre passado e futuro, a união dos tempos - ou sua dissolução. Ao ouvi-lo, mesmo quase 60 anos depois de sua gravação, tudo vira presente, tudo está vivo. Para isso, tanto quanto para se chegar ao amor supremo, a uma Guernica ou um “2001”, é essencial passar por fases anteriores.  É essencial antes ter sabido crescer.


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FAIXAS:
1. "Crescent" – 8:41
2. "Wise One" – 9:00
3. "Bessie's Blues" – 3:22
4. "Lonnie's Lament" – 11:45
5. "The Drum Thing" – 7:22
Todas as músicas de autoria de John Coltrane

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OUÇA:
John Coltrane - "Crescent"


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Ao mestre, com carinho

Gil e a imagem de um de seus mestres
homenageados: Bob Marley
É comum que músicos reverenciem seus mestres. Intérpretes e mesmo os compositores gostam de, invariavelmente, recuperar temas ou referências daqueles em quem se inspiram, muitas vezes intercalando-os com suas próprias autorias seja em discos ou em shows. Não raro veem-se, inclusive, artistas consagrados, a certa altura da carreira, gravarem aquele disco só de versões dos outros. No rock, isso é bem recorrente: John Lennon, Siouxsie & The Banshees, R.E.M., Rage Against the Machine, Titãs e Ira! são casos típicos para ficar em alguns exemplos dos inúmeros possíveis.

Mas um artista autoral abrir mão de composições suas para se dedicar apenas ao repertório do seu mestre, aí já é mais raro. No entanto, fomos atrás e listamos alguns trabalhos assim: aprendizes homenageando seus mestres. Não valem aqui discos de intérpretes, por melhor que sejam as obras, como Gal Costa em seu "Gal Canta Caymmi" ou Sarah Vaughn com seu "Plays Beatles", por exemplo. Álbuns memoráveis estes, mas de cantoras fazendo aquilo que melhor sabem, que é interpretar. Também não entram aquelas “homenagens” ou shows especiais, mesmo que de apenas um artista para outro. Não caberia, por exemplo, “Loopicinio” (2005), em que o músico Thedy Correa faz um exercício de modernização ao samba-canção “dor de cotovelo” de Lupicinio Rodrigues. Válido, mas sabe-se que Lupi não é bem O “mestre” para quem formatou sua carreira no pop rock beatle com como Thedy.

Aqui, a proposta é outra e até mais desafiadora a quem está acostumado a escrever as próprias músicas. O mergulho na obra de quem o inspirou é, desta forma, duplamente instigante: manter a autoexigência do que costuma produzir e, no mesmo passo, fazer jus à obra daquele que reverencia. Chega a ser um exercício de desprendimento. Tanto é diferente este tipo de projeto, que não é extensa a listagem, não. Pelo menos, daquilo que encontramos. Se os leitores identificarem novos trabalhos semelhantes, o espaço está aberto para aumentarmos nossa lista de álbuns dos seguidores aos seus mestres.


Eric Clapton
– “Me and Mr. Johnson” (2004) 

Para Robert Johnson

Vários roqueiros já gravaram Robert Johnson, de Rolling Stones a Red Hot Chili Peppers. Mas quem pode ser considerado um filho artístico do pioneiro do blues do Mississipi é Clapton. Já resenhado nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, este poderoso disco do mais seminal blues rock é o encontro do céu com o inferno: Deus, como Clapton é apelidado, e o Diabo, com quem dizem Johnson ter feito um pacto para que tivesse tanto talento. Se foi ação do bem ou do mal, o fato é que funcionou tanto para ele quanto para seu maior aprendiz. Só podia dar num disco essencial.





FAIXAS:
01. "When You Got a Good Friend" 
02. "Little Queen of Spades"  
03. "They're Red Hot"  
04. "Me and the Devil Blues" 
05. "Traveling Riverside Blues" 
06. "Last Fair Deal Gone Down" 
07. "Stop Breakin' Down Blues" 
08. "Milkcow's Calf Blues" 
09. "Kind Hearted Woman Blues" 
10. "Come on in My Kitchen" 
11. "If I Had Possession Over Judgement Day" 
12. "Love in Vain" 
13. "32-20 Blues" 
14. "Hell Hound on My Trail"  


Velha Guarda da Portela
– “Homenagem a Paulo da Portela” (1988)
Para Paulo da Portela

Celeiro de alguns dos melhores compositores do samba brasileiro, como Alberto Lonato, Candeia, Manaceia, Mijinha e Chico Santana, a Velha Guarda da Portela reuniu-se para homenagear aquele que considera o maior deles: Paulo da Portela. E o faz com time completo: Monarco, Casquinha, Argemiro, Jair do Cavaquinho e as pastoras originais. Se o padrinho do conjunto é merecidamente Paulinho da Viola, é o outro Paulo o que ocupa o lugar de principal referência de compositor para a turma da escola a qual levou no próprio nome com autoridade.




FAIXAS:
01. Linda Guanabara
02. Homenagem ao Morro Azul / Para que Havemos Mentir
03. Teste ao Samba
04. Conselho
05. Deus te Ouça
06. O Meu Nome Já Caiu no Esquecimento
07. Quem Espera Sempre Alcança
08. Linda Borboleta
09. Cocorocó
10. Este Mundo é uma Roleta
11. Ópio 
12. Cantar para Não Chorar


Gilberto Gil
 – “Kaya N'Gan Daya” (2002)
Para Bob Marley

O múltiplo Gil, mesmo na época da radicalização do Tropicalismo, nunca escondeu que seus mestres eram Luiz Gonzaga, João Gilberto e Bob Marley. Ao primeiro ele dedicou o conceito e regravações na trilha de “Eu Tu Eles” e em “Fé na Festa”, mas aos outros dois rendeu discos completos com o que mais lhe fazia sentido em suas obras. Para o Rei do Reggae criou um disco de ótimos arranjos, juntando letras no inglês original ou versões muito bem traduzidas, como a faixa-título e “Não Chore Mais” (“No Woman, no Cry”), tal como ele havia pioneiramente versado em “Realce”, de 1979. A sonoridade, aliás, não fica somente no reggae, mas também dialoga muitas vezes, justamente, com o baião de Gonzagão. 




FAIXAS:
01. "Buffalo Soldier"  
02. "One Drop" 
03. "Waiting in Vain" 
04. "Table Tennis Table" 
05. "Three Little Birds" 
06."Não Chore Mais (No Woman, No Cry)"
07. "Positive Vibration" 
08. "Could You Be Loved" 
09. "Kaya N'gan Daya (Kaya)" 
10. "Rebel Music (3 O'Clock Road Block)"  
11. "Them Belly Full (But We Hungry)" 
12. "Tempo Só (Time Will Tell)"  
13. "Easy Skankin'"   
14. "Turn Your Lights Down Low"  
15. "Eleve-se Alto ao Céu (Lively Up Yourself)" 
16. "Lick Samba"


Zé Ramalho
– “Tá Tudo Mudando” (2008)
Para Bob Dylan

O músico paraibano sempre reverenciou o autor de “Like a Rolling Stone”. Neste álbum, contudo, fez como só ele poderia: arranjos entre o rock e a música brasileira, sotaque nordestino e as letras em português. Difícil traduzir um Nobel de Literatura? Sim, mas Ramalho, com talento e conhecimento de fã, acerta em cheio. Magníficas "O Homem Deu Nome a Todos Animais" (“Man Gave Names to All the Animals”), regravada por Adriana Calcanhotto em seu “Partimpim 2”, e, a versão para a clássica “Knockin' on Heaven's Door”, provando pros tupiniquins com “síndrome de vira-lata” que criticaram à época, que soa muito melhor um refrão com os versos "Bate bate bate na porta do céu" do que "Knockin' knockin' knockin' on heaven's door". Perto da solução achada por Ramalho, a original nunca mais deixou de soar cacofônica. "I'm sorry, mr, Dylan".



FAIXAS:
01. "Wigwam / Para Dylan" 
02. "O homem deu nome a todos animais (Man Gave Name To All The Animals)" 
03. "Tá tudo mudando" 
04. "Como uma pedra a rolar"  
05. "Negro Amor (And it's All Over Now, Baby Blue)" 
06. "Não pense duas vezes, tá tudo bem (Don't Think Twice, It's All Right)" 
07. "Rock feelingood (Tombstone Blues)" 
08. "O vento vai responder"  
09. "Mr. do pandeiro (Mister Tambourine Man)"  
10. "O amanhã é distante" 
11. "If Not for You" 
12. "Batendo na porta do céu - versão II" 


Rita Lee
– “Bossa ‘n Beatles” (2001)
Para The Beatles

Quando Ramalho gravou seu “Tá Tudo Mudando”, já havia um antecedente de 7 anos antes na discografia brasileira de artista que versou outro monstro sagrado do rock como Dylan dando-lhe caracteres brasileiros. Depois de uma via crúcis para pegar autorização com Yoko Ono para versar a obra do seu ex-marido, Rita conseguiu, finalmente, juntar duas paixões as quais domina como poucos: o rock libertário dos Beatles e as ricas harmonias da bossa nova. Tão filha musical dos rapazes de Liverpool quanto de João Gilberto, somente Rita pra prestar uma homenagem como esta.




FAIXAS:
01. "A Hard Day's Night"
02. "With A Little Help From My Friends"
03. "If I Fell"
04. "All My Loving"
05. "She Loves You"
06. "Michelle"
07. "'In My Life"
08. "Here, There And Everywhere"
09. "I Want To Hold Your Hand"
10. "Lucy In The Sky With Diamonds"
Faixas bônus:
11. "Pra Você Eu Digo Sim (If I Fell)"
12. "Minha Vida (In My Life)"


The The
– “Hanky Panky”
(1995) 
Para Hank Williams

O talentoso “homem-banda” Matt Johnson é um cara fiel às suas origens. Depois de relativo sucesso na metade dos anos 80, ele capturou o amigo de adolescência Johnny Marr, guitarrista recém-saído da The Smiths, para gravar os dois melhores álbuns da The The. Porém, o autor de “This is the Day” queria ir ainda mais a fundo nas autorreferências e foi achar a resposta no músico country “vida loka” Hank Williams. Embora bem arranjado por Johnson e D. C. Collard, “Hanky...”, já sem Marr na banda, por melhor que seja, deixa, no entanto, aquela interrogação para os fãs: “não teria sido ainda melhor com Marr?”





FAIXAS:
01. "Honky Tonkin'"
02. "Six More Miles"
03. "My Heart Would Know"
04. "If You'll Be A Baby To Me"
05. "I'm A Long Gone Daddy"
06. "Weary Blues From Waitin'"
07. "I Saw the Light"
08. "Your Cheatin' Heart"
09. "I Can't Get You Off of my Mind"
10. "There's a Tear in My Beer"
11. "I Can't Escape from You"


Gilberto Gil
– “Gilbertos Samba”
(2014)
Para João Gilberto

12 anos depois de prestar tributo a Bob e de referenciar Luiz Gonzaga em mais de uma ocasião, Gil fecha, então, a trinca de seus mestres musicais. O repertório é lindo, uma vez que, homenageando João, a sua batida e seu estilo de cantar, escola para toda a geração pós-bossa nova a qual Gil pertence, outros artistas importantes para o baiano também são contemplados, como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Caetano Veloso, todos compositores incorporados no cancioneiro de João. Mas por melhor que seja a produção e por mais lindo que seja o violão de Gil, diferentemente de “Kaya...”, quando a sua voz estava ainda "ok ok ok", os anos comprometeram-na. Rouca e de alcance bastante prejudicado, se perto da voz do próprio Gil saudável já é covardia, imagina, então, comparar com a o do homenageado? Projeto lançado, uma pena, tardiamente.



FAIXAS:
01. "Aos Pés da Cruz" 
02. "Eu Sambo Mesmo"  
03. "O Pato" 
04. "Tim Tim por Tim Tim" 
05. "Desde Que o Samba é Samba"  
06. "Desafinado"  
07. "Milagre"  
08. "Um Abraço no João"  
09. "Doralice"  
10. "Você e Eu"  
11. "Eu Vim da Bahia" 
12. "Gilbertos"  

Daniel Rodrigues
com colaboração de Cly Reis