Faz anos desde que falaram para ela sobre isso A escuridão que o corpo dela possuiu E as cicatrizes ainda estão lá no espelho Cada dia que ela se veste Mas a dor está a milhas e milhas atrás dela E o medo é agora uma fera dócil Se você perguntar para ela por que ela ainda está indo Ela vai lhe dizer que isso faz ela completa
Eu corro pela esperança, eu corro para sentir Eu corro pela verdade, por tudo que é real Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida
É uma mancha desde que me falaram sobre isso Como a escuridão pegou seu pedágio E eles cortaram a minha pele e eles cortaram o meu corpo Mas eles nunca vão ter um pedaço da minha alma E agora eu ainda estou aprendendo a lição Para acordar quando eu ouvir o chamado E se você me perguntar por que eu ainda estou correndo Eu vou te dizer que eu corro por todos nós Eu corro pela esperança, eu corro para sentir Eu corro pela verdade, por tudo que é real Eu corro pela sua mãe, sua irmã, sua esposa Eu corro por você e eu, meu amigo, eu corro pela vida
E algum dia se eles falarem sobre isso Se a escuridão bater à sua porta Lembre-se dela, lembre-se de mim Nós vamos estar correndo como estivemos antes Correndo por respostas Correndo por mais
"O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico."
Caetano Veloso
EChico chega aos 80. Mais do que somente um aniversário ou uma mera contagem numérica, o fato de ser ele, Chico, a completar oito décadas de vida, diz muito sobre o Brasil. Um Brasil que, em algum momento, contrariando todas as expectativas negativas e detrações, deu certo. Uma nação colonizada, saqueada e profundamente escravagista que, naqueles anos 40 de seu nascimento, urbanizava-se a duras penas. Um mero exportador de matéria-prima, de traços rurais, que cedia ao populismo e perseguia contrários (entre eles, artistas e pretos). Uma sociedade convencida da falácia da Democracia Racial. Uma terra de revoltas e levantes, oprimida ora pela Política do Café com Leite, ora pela Política da Bombacha. Um Brasil violento, homicida, aporofóbico e injusto e de senso militarista, o mesmo que se conduziu ao poder e à barbárie por tantos tempo anos mais tarde.
Mas, no meio disso tudo, nasceu Chico. Caetano, contemporâneo, disse isso com a sapiência que a admiração lhe confere: "Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil". Do mundo, não sei. O que sei é que Chico concentra tudo que há de melhor num pais continental violento e dado à desgraça, mas, talvez por isso, pela necessidade de contrapor o que se é por destino, mágico e incomparável. Chico é isso: mágico e incomparável. Seja nas obras-primas às menores, independente da fase da carreira. Há uma regularidade sublime em sua obra, tanto na literatura, no teatro ou no cinema.
Na música, sua praia desde a adolescência (e pensar que esse admirador de Niemeyer queria ser arquiteto...), essa regularidade se expressa numa obra tão extensa quanto coesa e profundamente simbólica. Quando se fala em resistência da MPB nos Anos de Chumbo, de quem se lembra? E junto a “Coração de Estudante”, não é sempre “Vai Passar” que vem à memória quando se revive o histórico momento das “Diretas Já!”? Chico está embrenhado em nossa história como nação nestes 80 anos que vivemos junto com ele.
Em todas as épocas, Chico, seja o da “flor da idade” ou “o velho”, traduz em sua música o que há de melhor (ou de pior, traduzido da melhor forma) em nós. “As Cidades”, seu 28º álbum de estúdio, é um dos mais perfeitos exemplos. À época, já consolidado como escritor, o autor passava a cada vez mais rarear seus discos, geralmente intercalados, agora, por algum novo livro. Afora projetos esparsos, “Paratodos”, por exemplo, trabalho musical imediatamente anterior, havia 6 anos de lançamento. Neste ínterim, lançara o segundo romance, o celebrado “Benjamin”, de 1995. Assim, havia, além de grande expectativa para o que traria em um novo álbum de música, o questionamento se ele faria jus à mitologia. “Estará agora dando mais atenção à literatura?” “O homem das canções terá perdido a capacidade de inventar preciosidades como “Mulheres de Atenas” ou “Tatuagem”?” “Chico será ainda Chico?”
Resultado: 100 mil cópias vendidas. Disco de ouro. Ele provava que, sim, ainda era Chico. “As Cidades”, com arranjos e produção de Luiz Claudio Ramos e a marcante capa de Gringo Cardia, abre com a malemolente “Carioca”, uma declaração de pertencimento: "Cidade Maravilhosa, és minha". Samba sincopado marcado no piano, é uma tradução da Rio de Janeiro nada óbvia, pois abrangente, generosa, cronista. “O pregão abre o dia/ Hoje tem baile funk/ Tem samba no Flamengo/ O reverendo/ No palanque lendo/ O Apocalipse”. Música que, aliás, daria exemplo aos trabalhos subsequentes de Chico, com aberturas ou encerramentos dedicadas à sua cidade: “Subúrbio”, em “Carioca” (2006), e “As Caravanas”, de “Caravanas” (2017).
A belíssima “Iracema Voou”, de melodia delicada e letra ainda mais, redimensiona para os tempos modernos o mito indianista de José de Alencar. Que beleza da divisão e do tempo musical dos versos: “Tem saudades do Ceará/ Mas não muita”! O bonito tango rumbado “Sonhos Sonhos São” antecede a igualmente delicada “A Ostra e o Vento”, tema escrito para a trilha sonora do filme homônimo de Walter Lima Jr. de um ano antes. Uma joia. A voz infantil de Branca Lima em duo com Chico transmite a sensibilidade desta canção, capaz de fazer referências visuais ao cenário inóspito do filme, uma ilha de marinheiros apartada do mundo, e àquilo que estes elementos trazem de significado: a ostra, o afloramento da sexualidade feminina; o barco, o destino; o peixe, a fecundidade; o vento, o erotismo e a passagem do tempo.
Belezas e delicadezas são, aliás, uma marca de Chico. “Xote da Navegação”, bem posta logo em seguida de uma música tão marítima quanto sensorial, amplifica esse sensação noutra preciosidade do disco. Parceria com o maior discípulo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, este xote com ares de fado lusitano retraz o Nordeste profundo, denotando, como disse certa vez Tom Zé, “quão barroca é a alma sertaneja”. “Com o nome Paciência/ Vai a minha embarcação/ Pendulando como o tempo/ E tendo igual destinação/ Pra quem anda na barcaça/ Tudo, tudo passa/ Só o tempo não”. É ou não é o que de melhor uma língua viva pode oferecer – no caso, o nosso tão desvalorizado Português? Como com a faixa “Carioca”, “Xote...” serve de espelho para os próximos trabalhos que Chico faria, quando põe, a aproximadamente esta mesma etapa do repertório, o baião “Ode aos Ratos” (do disco “Carioca”), "Tipo um Baião" (de "Chico", 2011) e “Massarandupió” (de “Caravanas”).
Outra parceria histórica é com o violinista e compositor Guinga na ardente “Você, Você”, típica melodia guinguiana, de inusitados intervalos e formações de acordes, vocalises e complexa harmonia. Na letra exímia de Chico, ele manda versos interrogativos como: “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?”
Se estamos falando de obras-primas, então vem outra: “Assentamento”. Extraída do projeto “Terra”, produzido por Chico juntamente com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 1997, é certamente uma das mais preciosas canções de todo o cancioneiro buarquiano. Resgatando a atmosfera de músicas antigas suas como “Fantasia” e “O Cio da Terra”, que carregam a temática das lutas fundiárias no Brasil, bem como a literatura de Guimarães Rosa, de quem declama os versos iniciais (“Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração”), “Assentamento” é um canto político e de esperança ao Movimento Sem-Terra. “Vamos ver a campina quando flora/ A piracema, rios contravim/ Binho, Bel, Bia, Quim/ Vamos embora”. A luta continua, companheiros.
vídeo de "Assentamento" do DVD "As Cidades Ao Vivo"
Dois belos sambas: “Injuriado”, em dueto com a irmã e referência no meio dos bambas Cristina Buarque, e outra antiga: “Aquela Mulher”, do repertório do filme “Ópera do Malandro”, de 1985, mas que, cantada à época pelo ator Edson Celulari e, logo depois, por Paulinho da Viola, nunca havia sido registrada na voz do seu próprio criador.
Mais uma fineza de música, “Cecília”, parceria com Ramos, antecede o final triunfal no chão onde Chico pisa com tanta emoção: a Estação Primeira de Mangueira. “Chão de Esmeraldas”, criada por ele e Hermínio Belo de Carvalho para o então recente projeto “Chico Buarque da Mangueira”, a música parece não só ter expressado o carinho de Chico pela escola como, pé quente em terreno brilhante, antevisto a vitória da Verde e Rosa após 11 anos no Carnaval de 1998 com Chico como tema.
Motivos para desacreditar no Brasil nestes ¾ de século não são poucos. Suicídio de Getúlio, Serra Pelada, Ditadura, facções criminosas, hiperinflação, RioCentro, roubo da taça, colarinho branco, Collor, Eldorado dos Carajás, Anões do Orçamento, Carandiru, Golpe de Dilma, Lava-Jato, Extrema-Direita, 8 de Janeiro... E o que falar de Marielle, Edson Luiz, Amarildo, Mãe Bernadete, Herzog, Stuart Angel, Chico Mendes?... Não é fácil ser brasileiro.
Mas Chico é sempre Chico. É sempre uma qualidade acima da média, a qualidade potencial de um povo. Por causa dele, “todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam”, diz Caetano. Chico é a Seleção de 70, as formas de Brasília, o oxigênio da Mata Atlântica, a batida de João, o traço de Tarsila, a sintaxe do Português, o baião de Gonzaga, o batuque do terreiro, a cintura da mulata. Chico materializa aquilo que podemos ser. E como é bom ser cidadão de um povo que tem como compatriota Francisco Buarque de Hollanda! Ou pode chamá-lo somente pelo apelido, que ele é gente como a gente. Essa gente.
Em 11 de dezembro de 1970, John Lennon lançava sua primeira investida pós Beatles: o "Plastic Ono Band". Vinte e nove anos depois, em 11 de dezembro de 1999, este, que vos escreve, nascia, em um hospital da zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Comemorar meu aniversário junto dessa obra chega a ser um motivo de orgulho. Um marco na música pop e um último prego no caixão do movimento hippie, o qual tinha o próprio Lennon como símbolo. O disco contou com Klaus Voormann, amigo desde a época que viveu em Hamburgo com o restante do Fab Four; Phil Spector, produtor e pianista; Billy Preston, também no piano; Yoko Ono, creditada como “ar” (Lennon depois explicou que ela montou a "atmosfera’ das músicas"); Ringo Starr, na bateria (por óbvio) e Mal Evans, creditado como “chá e simpatia”.
Meu primeiro contato com a obra foi em uma das milhares de vezes que assisti Os Simpsons com o meu pai, em uma época que a série ainda era criticamente aclamada como uma grande paródia da sociedade americana do fim do século XX/início do XXI. O segundo capítulo da décima quinta temporada da série, traz o retorno de Mona, mãe ausente do personagem Homer (por ser uma hippie ativista contra grandes corporações em fuga desde o final dos anos 60) em um episódio comovente. Ao final, Homer é “abandonado” novamente por sua mãe e após ela o deixar, não haveria música melhor para sintetizar o momento que “Mother”.
Julia Stanley, mãe de John, cedeu a guarda do filho, quando ainda era pequeno para sua irmã, por conta de denúncias de negligência com o próprio filho. O pai de Lennon, Alfred, era um marinheiro, que raramente se encontrava em Liverpool e não viu o filho crescer. Julia morreu quando John tinha apenas 16 anos de idade, vítima de um atropelamento, justo em um momento em que o garoto se reaproximava da mãe. “Mother” é a sintetização da raiva, tristeza e desabafo, em forma de berros, que estavam guardados no artista. A letra inicia com “Mãe, você me teve, mas nunca tive você; eu queria você, mas você não me queria.” “Pai, você me deixou, mas nunca te deixei; Eu precisava de você, mas você não precisava de mim”. Em seguida, John esboça uma despedida, como se quisesse abandonar esse passado com “agora, eu só preciso lhes dizer; adeus”, para que então, Lennon se contrarie na estrofe seguinte dizendo “mamãe, não vá! Papai, volte para casa”. De forma alguma é necessário ter passado por situação semelhante para entender o que John sentia em relação a sua família.
“Hold On” segue o disco com um riff de guitarra tranquilo, em que John começa a se acalmar e reafirmar que vai dar tudo certo. A música é doce e oferece um certo refúgio à pedrada que o ouvinte escutou, como um choro triste, e provavelmente emula o que Lennon passou ao longo das gravações do álbum (que era interrompido constantemente por crises de choro e gritos por parte dele). “I Found Out” trata sobre falsas religiões, cultos e até mesmo, a idolatria que ele exercia sobre uma massa gigantesca de ouvintes “eles não me queriam, então me fizeram uma estrela”, cantou.
Em “Working Class Hero”, em estilo Dylanesco (em "Masters of War", principalmente), Lennon escreve uma de suas maiores músicas. Apenas portando o violão, O "Herói da Classe Trabalhadora" se rebela contra o sistema imposto, e questiona toda a máquina capitalista e a eterna luta incentivada à população por subir na escada corporativa e econômica. A música causou impacto tão grande, que um tal de Roger Waters passou a questionar a produção de suas letras psicodélicas e começou a expor maiores críticas à sociedade, que resultou, inicialmente, em "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd.
“Isolation” finaliza o lado A, abordando a solidão que o autor enfrentava, tanto por ter se separado de seus amigos, e banda, quanto pelas críticas que ele e Yoko sofriam constantemente por parte da mídia. “Remember” nos traz uma realidade paralela, em que Guy Fawks (membro da “Conspiração da Pólvora”, que planejava bombardear, em 1605, a Câmara dos Lordes) conseguiu colocar em prática seu plano. Uma anedota de aquecer o coração é que a canção foi gravada no dia do aniversário de Lennon, e felizmente, foi registrado em vídeo, os amigos John e Ringo recebendo a visita do outro ex-companheiro de banda, George Harrison, que entregou de presente, uma demo de “It’s Johnny’s Birthday” (de "All Things Must Pass", de Harrison).
Talvez a canção mais ingênua e doce de Lennon seja “Love”. Simples e direta: “O amor é real, real é o amor”. Não há muito o que dizer de uma música que, em poucas palavras, e um piano "silencioso", consegue transcorrer uma imensidão de significados que não podem ser quantificados. “Well Well Well” descreve pequenos casos da vida à dois de John e Yoko, como caminhar em um parque, dividir uma refeição e falar sobre temas como ‘revolução’ e ‘libertação das mulheres’. “Look at Me” nos traz um Lennon direto do “White Album”, perguntando ao ouvinte “quem que devo ser?”.
“God” é filosófica, existencial, e acima de tudo, impactante. Uma canção que começa com “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, não tem como não chamar a atenção. Com um piano espaçado e dramático, Lennon subverte todas as crenças que possuía, e não possuía, dizendo que não acredita na Bíblia, tarot, Jesus, Hitler, Kennedy, Budha, Yoga, Elvis, Zimmerman (Bob Dylan), e mais importante, não acredita nos Beatles. Após citar sua antiga banda, uma pausa dramática precede a frase “eu só acredito em mim. Em Yoko e em mim”. Ele segue com “o sonho acabou” e “Eu era a Morsa (referência a I Am The Walrus), agora sou o John”. Ou seja, estamos diante do verdadeiro John Lennon, e que é necessário deixar o passado Beatle para trás. O álbum finaliza com “My Mummy’s Dead”, uma balada curta e poderosa, que faz o contraponto com “Mother”, pois ao invés dos berros, Lennon canta calmamente que ainda não superou a morte de sua mãe, mesmo que ela tenha morrido há tanto tempo.
Acima de tudo, "Plastic Ono Band" nos apresenta quem era o ser humano John Lennon, mesmo que ele tenha representado ¼ de um dos maiores fenômenos da música mundial. Da minha parte, acho uma coincidência barbara a pequena conexão de nascer no mesmo dia em que o disco foi lançado, anos antes. Mesmo com a perda do meu parceiro de Simpsons há muitos anos (e de música, inclusive era fã do Lennon), fico feliz de ter, tanto Homer, quanto John, para me acompanhar na sequência da minha caminhada sem ele.
********* FAIXAS: 1. "Mother" - 5:34 2. "Hold On" - 1:52 3. "I Found Out" - 3:37 4. "Working Class Hero" - 3:48 5. "Isolation" - 2:51 6. "Remember" - 4:33 7. "Love" - 3:21 8. "Well Well Well" - 5:59 9. "Look at Me" - 2:53 10. "God" - 4:09 11. "My Mummy's Dead" - 0:49
Há 15 anos atrás tinha o privilégio de assistir a um show do Kraftwerk. Desde então, tive, para mim, a convicção de que havia presenciado o melhor show de minha vida. Até por conta disso, não tinha a intenção de vê-los ao vivo novamente. Pra que? Já havia me satisfeito e, provavelmente, não seriam melhores do que foram naquela vez.
Só que o tempo passou e, dentro desses 15 anos que me separam daquele show, tive uma filha. Ela tem 11 anos hoje e, ao longo de sua formação musical, sem que eu forçasse, sem que eu influenciasse decisivamente, acabou por adorar Kraftwerk. E eis que, eu que já me dava por satisfeito por tê-los visto uma vez, descubro que os caras vêm pro Brasil de novo! Eu tinha que levar minha filha para ver. Não sei se, a essas alturas, eles vêm de novo, se vão continuar fazendo turnês, se Ralph Hütter não vai pendurar as chuteiras, ou mesmo se sua "bateria" ainda vai durar por muito mais tempo, uma vez que, brincando brincando, já são 76 anos nas costas ("toc, toc", batendo na madeira). Era agora ou, possivelmente, nunca mais.
Então fiz o "esforço" de ir ao show no C6 Fest. Sinceramente, fora o fato da oportunidade de minha filha ter essa experiência, não guardava maiores expectativas. Imaginei que, velhinhos, com a vida ganha, com um repertório incontestável, depois de várias passagens por aqui, os homens-máquina fossem entrar no palco só pra cumprir tabela: aquele showzinho burocrático, tipo entro lá, ligo a programação eletrônica, cumpro uma horinha de show, ganho minha grana vou embora...
Que nada!
Os caras tavam pilhados!
Um show dinâmico, com espontaneidades, "improvisos", uma pedrada emendando na outra e, mesmo dentro daquele tradicional comedimento dos alemães, uma certa animação e uma movimentação incomum, especialmente do líder e fundador Ralph Hütter.
"Numbers" que abriu o show, combinada com "Computer World" já foi algo espetacular, musical e visualmente, com as impressionantes projeções sincronizadas no telão. "Spacelab" a seguiu trazendo a todos a surpresa da homenagem ao Rio de Janeiro, no telão, com a nave do Kraftwerk sobrevoando a cidade e pousando em frente ao Vivo Rio, levando o público à loucura. E teve uma "The Model" empolgante, "Autobahn" reinventada, muito mais livre e quase espontânea, "The Man-Machine emocionante, "Trans-Europe Express" arrasadora, um medley das partes de "Tour De France" e um gran-finale com uma "Music Non Stop" descontraída e cheia de pequenas variações. Senti falta, é verdade, de "Radioactivity" que podia muito bem ter entrado no lugar de "Planet of Visions", mas nada que desvalorize tudo o que acontecera lá.
Para quem achava que já havia visto o suficiente da banda, que era dispensável assistir a outro show, que eles estariam apenas cumprindo uma formalidade, acabei saindo com a sensação de ter presenciado outro dos grandes espetáculos da minha vida. Uma banda muito a fim, quase um "show de rock" por sua dinâmica, Ralph Hütter cheio de tesão, quase elétrico naquela sua movimentação contida. Balançou a cabeça, mexeu os ombros, bateu o pezinho e, no final, naquele momento em que os integrantes vão deixando o palco, um a um, desceu de seu posto, fez uma reverência, até sorriu e bateu no peito, agradecido, me parecendo, ali, até um pouco emocionado... Será? Será que o robô está se tornando humano? A convivência com nossa espécie teria feito com que, mesmo, uma máquina como ele adquirisse a capacidade de sentir emoções? Em época de discussões sobre Inteligência Artificial, a questão bem que procede, não. Mas como diria o policial Murphy, a propósito, um homem-robô, na frase final de "Robocop 2", "Somos apenas humanos".
trecho de "Computer Love"
trecho de "The Robots"
★★★
A revolução das máquinas
porDaniel Rodrigues
Se me perguntassem quais shows que eu ainda gostaria de ver de artistas que estejam em atividade (ou minimamente estejam vivos), listaria alguns difíceis e outros quase impossíveis. Das possibilidades, Ministry, John Cale e Pixies são um caso. Já dos improváveis, Th’ Faith Healers, Can e My Bloody Valentine encabeçam a lista. Claro: tem aqueles grandes shows que nunca fui mas que ainda são passíveis de um dia, seja no Brasil ou numa ocasião fora do país, serem presenciados por mim, como Madonna, Björk, David Byrne, Neil Young, Stevie Wonder e os Rolling Stones, que pode ser que venham à minha terra novamente como Roger Waters, que retornará a Porto Alegre por conta das memoráveis apresentações que fez na cidade para sua despedida dos palcos em novembro.
Mas de todos estes posso dizer com tranquilidade que o que mais queria ver era a Kraftwerk, desejo que foi realizado no último dia 18, no Vivo Rio. Desejo, não: sonho. Após duas vindas dos alemães ao Brasil, uma no Free Jazz Festival de 1998, quando eu nem sequer trabalhava para custear um ingresso tão caro a São Paulo, e outra, em 2009, quando estiveram no Rio de Janeiro, em plena Praça da Apoteose. Esta sim eu lamentei por não ter ido. Mesmo com os reiterados convites do meu irmão, que foi ao show, para que eu tentasse dar um jeito de ir ao Rio, onde pelo menos pouso garantido teria, as condições financeiras da época fecharam totalmente a porta. Minha lamentação foi alimentada durante estes 15 anos que se transcorreram desde aquela última apresentação da Kraftwerk em terras tupiniquins, ainda mais quando da morte de um dos cabeças do grupo neste meio tempo, Florian Schneider, em 2020. Embora já fora da banda há algum tempo, sua morte despertou o alerta de que o outro principal integrante, Ralf Hütter, já com quase 80 anos, pudesse, pelo óbvio, também ter sua “máquina desligada”.
Com a menor atividade da Kraftwerk, pensava que, para eles retornarem ao Brasil, quiçá, somente lá em 2024 ou 25, já que, ao menos, os shows estão retornando com tudo neste pós-pandemia. Considerando que os velhinhos já puseram seus sistemas em modo slow, até seria um tempo considerável um ou dois anos para que se mexessem. Mas eis que, para minha surpresa, eles são anunciados para estrelarem o C6 Fest, no Rio e em São Paulo. E agora, primeiro semestre do ano, em maio! E mais: meu irmão iria ao show com minha mãe, que aprendeu a adorá-los conosco, e minha sobrinha, Luna, fã da banda e que presenciaria seu primeiro grande show ao vivo. Num esforço coletivo, peguei uma mesa ao lado da deles e embarquei para o Rio. Todo o empenho, expectativa e lamentação foram totalmente recompensados.
Os desenhos estilo new look em movimento em "Autobahn"
Num formato pocket ("calculator", claro), adequado ao line-up de um festival, o quarteto liderado por Ralf entregou uma apresentação empolgante e empolgada em aproximadamente 1 hora e 20 de palco. A disposição foi a de sempre: os quatro enfileirados com roupas iluminadas em led e com suas mesas mágicas com programadores, sintetizadores, computadores e outras engenhocas saídas do estúdio Kling Klang direto de um laboratório de Düsseldorf, e, ao fundo, projeções magníficas que dialogam com os sons através de imagens, luzes, grafismos e vídeoartes. Porém, o grupo estava muito a fim e deu a plateia brasileira um espetáculo cheio de vontade e musicalidade, que se percebia no manejo altamente espontâneo dos “leitmotiv” de cada música.
Já no repertório, somente clássicos, que se emendaram uns aos outros sem pausa para respirar e, sim, para se admirar e absorver. Foi uma sequência para tirar lágrimas de qualquer fã, a começar pelo duo “Numbers/Computer World”, na abertura e com o qual eles poderiam ficar ali no palco por 1 hora inteira só brincando com os elementos de cada música, os números e os algoritmos digitais provocando sons, que jamais cairia na monotonia. Pra acabar com o coração dos kraftwekianos, mandam na sequência uma surpreendente execução de “Spacelab”, que além de ser um barato ouvi-la ao vivo e tocada de forma tão espontânea dentro dos limites do que o aparato eletrônico permite, foi uma atração à parte sua projeção, que mostrou a viagem da nave espacial (comandada por eles, obviamente) do espaço até chegar na Rio de Janeiro e pousar em frente ao próprio Vivo Rio, para delírio da galera.
“Autobahn”, com a ideia genial de animação dos carros desenhados manualmente da capa original de 1974, e a sequência “Tour de France/ Tour de France – Etape 1 e 2", com as imagens "vintage" da tradicional volta da França para a qual eles compuseram a trilha-tema em 1983, também foi de tirar o fôlego. Igualmente, o perfect pop “The Model”; a autorreferenciativa “The Robots”, com sua arte geométrica ao estilo da escola soviética; a altamente dançante “Planet of Visions”, motivando uma arte orgânico-digital-futurista; e a apoteótica “Trans-Europe Express/Metal on Metal”, cuja viagem do trem em 3D pelos trilhos europeus acompanha um desfile de execução dos quatro, mostrando que estavam se divertindo com a energia que emanava do público.
trecho de "Tour de France"
De todas as grandes performances, talvez a mais marcante tenha sido justamente a que fechou o show: a minissinfonia “Electric Cafe”: “Boing Boom Tschak/ Techno Pop/ Musik Non Stop”. As projeções, com a estrutura dos robôs e desenhos feitos em computador, mesclado arquitetura, design, música e arte, foi um digno final. Na despedida, um a um executava improvisos (sim, improvisos!) e saí do palco, até a vez do líder Ralf, ovacionado. Não à toa: Ralf Hütter é um “computer hero”, um esteta, um gênio da modernidade.
O maior show que já vi. Um dos maiores espetáculos da Terra. Uma das mais importantes bandas da música de todos os tempos, e não apenas da música pop, isso digo com certeza. Tanto quanto obras de Bach, Mozart, Wagner, Cage, Beatles, Dylan, Coltrane, João, a Kraftwerk é importante para a evolução da humanidade como espécie, pois que excede o patamar simplesmente artístico. Toda a parafernália tecnológica, como nossos smartphones ou aparelhos digitais que nos rodeiam, não teriam a comunicabilidade sonora que têm hoje não fosse os "homens-máquina" terem inventado esta linguagem. Somente robôs como eles teriam esta sensibilidade: a de saber como seus pares se comunicam conosco, humanos. E se a tecnologia é reflexo de nossa capacidade de criação, talvez ser robô seja o verdadeiro sentido de ser humano.
PS: De quebra, ainda levamos um showzaço da Underworld para fechar a noite, que não deixou nada a desejar para os mestres da eletrônica.
Hino autorreferente: "The Man-Machine"
Brincando com os teclados em "The Model"
Trecho da emplogante "Planet of Visions"
Um trem eletrônico passou pelo Rio: "TEE" + "Metal on Metal"
Falar de Paulo Moreira requer o exercício de se contemplar coisas
grandes e pequenas. Ao menos, aparentemente pequenas. Desde que nos conhecemos
e naturalmente nos amigamos, ouso chamá-lo de Paulinho, assim, no diminutivo. Taí
a aparente coisa pequena, mas diminutivo este que, travestido de carinho, só
faz representar o gigante espaço que esta querida figura ocupa em minha vida.
Jornalista admirável, amigo generoso.
Desde antes de conhecê-lo pessoalmente, ainda adolescente, fui,
assim como muito porto-alegrense que conheço, ouvinte assíduo do Cultura Jazz, apresentado
por ele anos 90 e 2000 adentro. Nem sei quantas vezes me peguei embasbacado por
tamanhos conhecimento e paixão de Paulinho a tudo que nos apresentava. E sempre
com muita generosidade. Jovem admirador do gênero, foi no Cultura Jazz que meu gosto
se expandiu. Não fosse, o coração abarcador do professor Paulinho, jamais haveria mais
este fã de jazz que aqui vos fala.
Mas não só isso. O jazz e a música, por maior que seja, é
uma fração de tudo isso que ele representa. Os trânsitos entre nós pelo cinema,
literatura e futebol vieram em decorrência. Lembro da alegria dele ao encontrar
a minha esposa Leocádia, a meu irmão Cly Reis e a mim no Vivo Rio para o show
de Wayne Shorter e Herbie Hancock, em 2016, a qual ele, em razão de outros conterrâneos também presentes, de "caravana jazzística gaúcha". Ou quando, ano passado, na última
vez que o vi pessoalmente, mesmo sem ter participado da edição como autor, foi (generosamente)
prestigiar a mim e aos outros colegas de ACCIRS no lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”. O comentário elogioso dele para minha mãe, que também prestigiava, referindo-se a mim e a meu irmão denota essa nobreza pauliniana.
Paulinho entre eu irmão e eu: generosidade e amizade
E tudo isso invariavelmente sob
este olhar atencioso, principalmente o dele, que afetuosamente
me apelidou, em virtude das “esquisitices” ouvidas por mim e compartilhadas nas
redes sociais, de “cabeção”. Assumi relativamente o título, que virou inclusive
nome de um quadro do meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica,
justamente com esta ideia (e obviamente, dedicado a ele). Por outro lado, a
alcunha, dita neste escancarado aumentativo, é grande demais para eu comportar.
Afinal, como sempre lhe retruquei, o “cabeção” é ele. Ora: quem me apresentou a rebuscamentos como Toshiko Akiyoshi, a Anthony Braxton, a Carla Bley, a John Zorn ou a Sun Ra é,
este sim, o verdadeiro “cabeção”!
Comigo no lançamento do livro da ACCIRS
Chegou a hora, então, de retribuir ao menos um pouco todas
estas camadas de generosidade de Paulinho para comigo e para com a combalida cultura
de Porto Alegre. De quinta a domingo (2, 3, 4 e 5 de março), a cidade será
agitada pelo IFestival Paulo Moreira, evento coletivo totalmente dedicado a ele,
que está precisando de recursos para tratamento de saúde. A primeira edição vai
reunir mais de 15 grupos de música instrumental do Rio Grande do Sul, com apresentações
no Café Fon Fon, Espaço 373, Gravador Pub e Sala Jazz Geraldo Flach. Toda a
renda será revertida ao tratamento de saúde do jornalista. Criado por um grupo
de amigos, o projeto foi prontamente abraçado por espaços culturais e artistas
da cena gaúcha e contará também com o apoio do cartunista Fraga, que doará
obras para venda; dos fotógrafos Daisson Flach, Douglas Fischer e NiltonSantolin, da Atmosfera Produtora; de Texo Cabral e da Reverber Produtora, que
farão as captações de áudio e vídeo das apresentações no Gravador, e do Person
Piano.
Tentaremos Leocádia e eu estarmos presentes, mas tanto nós
quanto qualquer um pode fazer doações de qualquer valor mesmo que não compareça aos shows. Independentemente, é muito bom ter a oportunidade de ajudar este amigo e de poder falar dele desta forma, em vida. Tudo o que em aniversários a gente fica meio intimidado de dizer para não soar demasiado cerimonioso, esta oportunidade abre espaço para extravasar. Afinal, o gigante Paulinho merece tudo, das grandes às pequenas coisas. E aumenta o som aí!
******
I Festival Paulo Moreira
Os ingressos por noite custam o preço único de R$ 35,00. Confira os links para comprar no link da bio. Quem não for aos shows e quiser doar qualquer valor, o PIX é 01510705040 (CPF/ Roberta Brezezinski Moreira).
PROGRAMAÇÃO
2 de março | Quinta-feira | ESGOTADO! Café Fon Fon (Rua Vieira de Castro, 22 – Bairro Farroupilha) 21h – Thiago Colombo 21h30 – Paulo Dorfman 22h – Júlio "Chumbinho" Herrlein 22h30 – El Trio 23h30 – Quarteto Fon Fon
*** 3 de março | Sexta-feira | ESGOTADO! Espaço 373 (Rua Comendador Coruja, 373 – Bairro Floresta) 19h40 – Nico Bueno Café Trio com participação de Bernardo Zubaran 20h30 – Marmota com participação de Nicola Spolidoro e Ronaldo Pereira 22h10 – James Liberato 22h20 – Pedro Tagliani Quarteto
*** 4 de março | Sábado Gravador PUB (Rua Conde de Porto Alegre, 22 – Bairro São Geraldo) Abertura da casa: 14h Grupos musicais: 15h00 - Paulinho Fagundes, Miguel Tejera e Rafa Marques 15h45 - Instrumental Picumã + Pirisca Grecco 16h45 - Corujazz 17h30 - Rodrigo Nassif Trio 18h15 - Quartchêto 19h00 - Marcelo Corsetti Trio 19h45 - Funkalister 20h30 - Conjunto Bluegrass Porto-Alegrense 21h00 - Hard Blues Trio 21h45 Antonio Flores
*** 5 de março | Domingo | ESGOTADO! Sala Jazz Geraldo Flach 18h00 – João Maldonado Trio, com a participação especial de Ayres Potthoff 19h00 – Nicola Spolidoro, Caio Maurente e Luke Faro 20h00 – Luciano Leães, Cristian Sperandir, Paulinho Cardoso, Fernando do Ó e Ronie Martinez
Quando cheguei, ali pelas sete, a maioria do pessoal já estava lá. O Nelson falando bobagem como sempre, o Kiko com a filhinha, a Duda e a Rê fofocando na mesa, o Josué, o dono da casa, na churrasqueira e a mãe dele, a dona Leda, servindo os tira-gostos. Cheguei, cumprimentei o pessoal, o Nelson me zoou pelas entradas, pela barrigota, sentei, belisquei um petisco, demos umas risadas e tudo mais. Já tinha dado por completo, na minha contagem, o time dos convidados, quando surge do pátio a Lila. Que enorme surpresa! O resto do pessoal, de certa forma, sempre estivera próximo desde o final da faculdade. Era uma cervejinha de vez em quando, aniversário dos filhos, grupo de Zap, mas a Lila tinha ficado na dela desde o fim do curso. Nossa, a Lila era a mais linda da turma! Desejada por todos os caras no campus. Pelo que se sabia, agora, tava namorando um funkeiro, um tal MC Gutão. Nas redes sociais, só dava fotos deles em Paris, Salvador, Abu Dhabi... Nunca imaginei que ela fosse aparecer no nosso humilde churrasquinho. E agora estava ela ali... de biquíni. Estava brincando na piscininha de plástico com a filha do Nelson. Apareceu na churrasqueira rebolando e cantarolando "Piscininha, amor". Quando me viu, deu uma abanadinha, pegou um pedacinho de carne e veio na minha direção com os braços abertos. Disse que era bom me rever, fez algumas perguntas triviais, trabalho, família, contei da minha filha, se surpreendeu com a minha separação precoce, e, logo, despertada por um funk qualquer, foi arrastada pelo ritmo para a área livre entre a mesa e a churrasqueira, requebrando de uma maneira... ai, que nem é bom falar.
Com exceção da Lila, que era um fato excepcional, o restante da noite transcorreu dentro da normalidade: o Josué contando das suas, o marido da Flávia emburrado num canto, o Nelson e suas piadinhas, a Cláudia falando alto e a Rê passando da conta. Novidade eram os beliscões e reprimendas das mulheres para os maridos por causa da Lila que, por sua vez, parecia nem perceber os olhos masculinos pousando sobre seu corpo magnífico. Só queria saber de rir brincar e se divertir. Já seca e de roupa trocada, interagiu e conversou com todos, com simpatia e graça, mesmo sob alguns olhares tortos de esposas ciumentas. Era como se nunca tivesse ficado distante, como se tivesse ido a todos os churrascos anteriores, .
Pra mim, tinha dado a hora. Havia deixado minha filha com minha irmã e tinha prometido chegar cedo pra liberar a generosa "babá". Argumentaram que era cedo, se não podia ligar pra minha irmã pra dormir lá em casa com a minha filha... Disse que não dava. Me despedi, beijos, abraço e, de última hora a Lila resolveu que ia descer comigo. Não queria esperar táxi sozinha na rua. Beijos, beijos, promessas de comparecer nas próximas reuniões, e descemos.
Já na calçada, um táxi de aproximava mas, para minha surpresa, a Lila propôs que caminhássemos um pouco. Por mim, eu morava a poucos quarteirões dali, mesmo. Tudo ok exceto pelo fato que ela começou a andar para o lado oposto ao meu caminho. Ainda tentei adverti-la de que eu iria para o outro lado, mas ela já se distanciava alguns passos adiante e parecia se animar com umas luzes, mais à frente, depois da esquina, ensaiando uma corridinha para ver do que se tratava. "Vem, vamos lá ver o que que é aquilo". Olhei no relógio... Tá bom. Mais uns minutinhos.
Quando a alcancei já estava na frente do lugar. Era uma espécie de lançamento de empreendimento ou algo assim. Coisa grande! Malabaristas, fonte, barzinho. A Lila estava parada, fascinada, diante de um enorme painel de led passando ininterruptas manobras de surf. Mal parei a seu lado e ela já se desprendia, novamente, seduzida por alguma outra coisa. "Vem ver, vem ver...", ela chamou. Hipnotizado pelo telão, me demorei um pouco mas logo me apressei em sua direção. Era um espelho d'água com um chafariz. "Ah, perdeu! A água tava fazendo uma coisas legais", segundo ela. Me puxou pela mão. "Vamos entrar, quero beber alguma coisa", "Lila, não...", tentei argumentar mas ela já tinha entrado, atravessando um corredor de plantas ornamentais iluminado de verde por holofotes cênicos. No fundo do percurso, depois de conversar brevemente com uma espécie de cicerone do evento, com um gesto de mão e uma carinha de sapeca, Lila me chamava para segui-la. Não quis ser grosseiro, deixar que entrasse sozinha. Tomaria um drinquezinho e depois tomaria meu rumo.
No entanto, um inusitado acontecimento, aparentemente muito banal, acabaria por precipitar essa minha reorientação. Enquanto éramos conduzidos à mesa, ao ar livre, pelo garçom, perto de umas folhagens, algo pareceu passar correndo por trás dos arbustos. A Lila se assustou. Entrou num pânico desproporcional ao acontecido. Alardeava que era um rato, ao que o garçom, preocupado em não espantar os outros clientes e convidados, rebatia que devia ser só um miquinho, um esquilo ou algo parecido, e nisso já chegou o gerente oferecendo uma cadeira, uma água e era eu, o garçom e o gerente tentando acalmá-la.
Ela pegou minha mão... Disse que ficara assustada, pediu para que eu não fosse embora e ficasse com ela. Eu prometi que não iria. Disse que só ia pegar uma bebida para ela e voltaria logo e que, enquanto isso, o garçom tomaria conta dela. Ela resistiu em largar minha mão, mas permitiu que eu fosse. Fui até o balcão do bar. Achei que algo mais forte poderia fazer um efeito mais imediato então pedi um uísque. Quando estava voltando com a bebida, dei com o garçom que ficara com ela. Perguntei por que a deixara, uma vez que estava tão perturbada. Ele me acalmou dizendo que quando a deixara já estava bem melhor, que nem parecia a mesma que quase desmaiara minutos atrás.
Achei que era minha deixa. Entreguei-lhe o copo e pedi para que levasse para ela, e que dissesse que tive que ir, e para que me perdoasse.
Contornei o bar e saí pelo mesmo caminho de palmeirinhas iluminadas que atravessara antes. Minha filha estava me esperando em casa.
Pessoas desmaiando, passando mal, abandonando a sala de exibição... Ora! Vocês achavam que estavam indo ver o filme da Peppa Pig? É lógico que seria brutal. O primeiro já havia sido, e o diretor anunciara que seu objetivo era fazer algo ainda mais chocante. Então o que essa gente esperava quando foi ao cinema assistir a sequência de um dos filmes mais sanguinolentos de todos os tempos? "Terrifier", para mim, o primeiro, é, possivelmente, o pior filme de terror que já vi. E quando digo 'pior' é um elogio. Nada pode ser mais violento, sangrento, sádico, nojento, repulsivo que o rastro de mortes da estreia em longas do palhaço Art. O problema de "Terrifier 2" é exatamente o fato de, praticamente, se limitar a ser um exercício de superação de violência e intensidade em relação ao primeiro. E aí, por incrível que possa parecer, por mais forte, explícita que seja a violência, ela já não choca mais porque você já viu no primeiro e, com uma vantagem: a da surpresa.
No primeiro o espectador até pensava, "Não, ele não vai fazer isso...", "Será que ele seria capaz?", "Não vão mostrar uma cena dessa sem cortes...", mas nesse a gente tem certeza que tudo isso vai acontecer e já estamos preparados para aquilo. O novo filme até tem mais história, mais enredo, mas o que não a torna melhor por isso. O roteiro situa a trama dentro de um drama familiar que, até podia servir como mero pano de fundo, mas não precisava ter ganho a importância que teve. Enredo confuso, cheio de elementos vazios, como a espada da garota, e personagens vagos, como a menininha-palhaço que é uma espécie de ajudante do palhaço das trevas. Por conta dessa complexização da trama, o filme ganha uma duração muito maior que o habitual para filmes do gênero e algo com tão pouco conteúdo a apresentar. Se no primeiro filme tínhamos, meramente, um psicopata fantasiado de palhaço tocando o terror no Dia das Bruxas, e isso se bastava, em "Terrifier 2", Sienna, uma adolescente, ainda superando morte do pai, planeja ir à festa de Halloween da cidade com uma fantasia criada exatamente pelo falecido pai, talentoso para desenhos, enquanto o irmãozinho Elliot, esquisitinho, mórbido e sombrio, pretende usar uma fantasia de palhaço igual à do maníaco que assassinara várias pessoas no Halloween do ano anterior. O detalhe é que o pai, esquizofrênico e que morrera num acidente trágico em uma de suas crises, já tinha desenhos do palhaço assassino em seu caderno, antes mesmo do massacre, o que supõe algum tipo de ligação prévia, sabe-se lá de que natureza, daquela família com o carniceiro fantasiado. Mas talvez tudo não passe de um sonho, uma sugestão, um delírio, uma vez que, após uma discussão da mãe com Siena e Elliot sobre a festa e sobre o comportamento do menino, a filha adormece assistindo a um bizarro programa de TV e, praticamente daí, tudo se mistura e se desencadeiam as mortes e a ação do nosso slasher. A propósito disso, entre tantas "obras de arte" desse artista da dor e da tortura, a melhor delas, na minha opinião, é a da amiga da protagonista, Allie, que depois de escalpelada, multifraturada, esfolada, picotada, literalmente, é mantida viva pelo palhaço, praticamente sustentada pelos tendões, no limite de suas forças, só para que ele tenha o prazer de presenciar sua agonia.
Art, o artista, mostrando sua obra de arte.
Para quem, como eu, esperava uma sequência à altura do bom primeiro filme, deve ter se decepcionado. Agora, para quem queria, meramente, um banho de sangue, nesse sentido "Terrifier2" entrega o que se espera dele. Um festival de maldade ilimitada, brutalidade e violência gráfica impiedosa, que supera seu predecessor, sem no entanto, superar em impacto. Damien Leone, o diretor, já anunciou que vem aí um terceiro filme da franquia e que a nova sequência deve ser ainda mais sangrenta que os anteriores. Se, além da assustadora promessa, "Terrifier 3" amarrar algumas pontas, pode salvar o segundo, fazendo dele uma boa transição, e ainda, de quebra, pode recolocar a história do mímico assassino nos trilhos, fazendo justiça um dos matadores que já se coloca como um dos melhores da história do terror. Mas isso, se é que a ideia é que exista algum "trilho" para que a história siga. De resto, para quem notou, são muito legais as referências, os easter-eggs de clássicos do terror, como "Hora do Pesadelo", "Pague para entrar, reze para sair", "Hellraiser", "Poltergeist", bem como a trilha, muito eficiente, e a estética anos 80 que o diretor imprime muito bem a seu filme. Particularmente, tenho que admitir que esperava mais do filme mas, pelo menos, no quesito crueldade, "Terrifier 2" não dá motivos para reclamações. E quem reclamar do excesso, quem desmaiar, vomitar ou pedir o ingresso de volta, que vá assistir à Galinha Pintadinha. Francamente...
Foi uma tarde cheia de encontros – e autógrafos, claro – pro lançamento
do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”. Agora, na Feira do Livro de Porto Alegre, em sua 68ª edição, onde não poderíamos deixar de estar. Cerca de 20 de nós
membros da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), e foi possível conversar entre nós e os amigos, parentes e
convidados que nos prestigiaram. Editado pela ACCIRS, a coletânea traz 50 artigos sobre filmes gaúchos
lançados entre as décadas de 1950 e 2020 no Rio Grande do Sul. Mas com um diferencial
editorial-conceitual interessante: não se trata de um apanhado dos “melhores
filmes’, mas, sim, aqueles títulos que fazem sentido para cada autor dentro do
universo do cinema gaúcho. Ou seja, propõe uma abordagem muito pessoal sobre
cada obra, o que, indiretamente, cria ligações diferentes e próprias entre um
artigo e outro.
Caso, por exemplo, dos textos de Alice Dubina Trusz e
Jaqueline Chala – com quem pude trocar algumas proveitosas ideias durante a
sessão – os quais, juntamente com o de Ivonete Pinto, formam uma trinca complementar que
avaliou os três principais títulos do novo cinema gaúcho: “Deu pra ti, Anos 70”
(Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, 1981), “Inverno” (Carlos Gerbase e Giba,
1983) e “Verdes Anos” (Gerbase e Giba, 1984), respectivamente.
Enfim, uma tarde linda em Porto Alegre, de temperatura
agradável, final de semana e começo de mês (ou seja, pessoal com mais grana no bolso) motivou a
que a feira estivesse lotada, inclusive com algumas sessões de autógrafos com filmas bem extensas. Muito legal ver a Feira do Livro, mesmo com todas suas
ressalvas (preços não tão mais atrativos, ausência de uma praça de alimentação
e de área internacional, entre outras coisas), mobilizando a população a circular na praça aberta em
razão das letras. Depois do pesadelo do pior da pandemia, que reclusou a Feira
ao universo online, poder voltar a circular e ver pessoas, cores, cheiros,
artes, sons e tudo que os sentimentos possam captar é muito bom.
Confira aí, então, alguns cliques da sessão de autógrafos e
do clima da feira em si conosco aproveitando esse dia encantado em nossa
cidade:
*************
Fileira para os autógrafos coletivos da ACCIRS
Autografando o exemplar do amigo Rodrigo, que foi com sua querida mãe prestigiar a gente
Aqui com o colega de ACCIRS e trabalho Conrado Oliveira, também autor do livro
Depois de passar a fila, chegou minha vez de autografar!
Com a querida colega e coautora Jaque Chala, voz do cinema da minha adolescência da rádio FM Cultura
Deu também pra adquirir o "Cruber", livro de contos das andanças de Uber do querido colega de ACCIRS Cristiano "Criba" Mentz
Nós em plena praça, onde tudo começou há 11 anos...
Clima da praça com pessoal circulando sob a bênção dos jacarandás
Os corredores cheios da área infantil
Palhaço fazendo bolhas de sabão gigantes no meio da praça
E deu tempo de encontrar a hermana Carol, que foi ao nosso encontro
Céu azulzinho na linda tarde de sábado na Feira do Livro