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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Aquisições porto-alegrenses

Quem me acompanha nas redes sociais vê que vira e mexe estou escutando alguma coisa “na vitrola”. Embora tenha uma boa coleção, sabe como é, né? Colecionador de discos está sempre de olho em outros para comprar. Não é comum eu ir aos sebos de Porto Alegre (ainda mais agora na pandemia), até por causa dos horários comerciais, durante os quais geralmente estou ocupado, e porque, afinal, acaba sendo mais um gasto. Mas quando surgem boas oportunidades, é impossível resistir. Pois dias atrás, vi uma postagem do antenado e generoso amigo Juarez Fonseca sobre um amigo seu que estaria, em suas palavras, “se desfazendo de sua coleção de discos de vinil. Tem Chico, Caetano, Gil, Milton, Elis, Mercedes Sosa, Jaime Roos, Jimi Hendrix, muita coisa de jazz e raridades da música gaúcha. Uma mina de ouro.” E Juarez arremata o post alertando: “todas as capas estão reproduzidas no Facebook.”

Não deu outra: com tamanha propaganda, fui conferir. O amigo era Raul Boeira, músico, compositor e violonista de Porto Alegre com mais de 50 anos de estrada. E realmente: centenas de ótimos títulos em LPs e todos visivelmente bem cuidados por Raul, que me confessou posteriormente em troca de mensagens fazer cerca de 10 anos que não mais tinha toca-discos e que não havia “razão para esse som todo ficar aprisionado aqui no armário”. Não demorou muito para eu saber que outros dois colecionadores como eu, os também amigos Marcello Campos e Lucio Brancato, já estavam empenhados em alforriar tamanha qualidade musical. Diante do desprendimento e simpatia de Raul – e, claro, do meu desejo – adquiri sete unidades da encarcerada discoteca, os quais descrevo aqui brevemente um a um. Alguns já foram parar direto na vitrola:


“Do Romance ao Galope Nordestino”,
 Quinteto Armorial (1974)

Um dos fenômenos mais originais da história da moderna música brasileira, o Quinteto Armorial representa mais do que música, mas um conceito de brasilidade. Com a benção de Ariano Suassuna, líder intelectual do movimento Armorial, que buscava criar bases brasileiras para todas as formas de arte - entra as quais, a música - a banda que lançou o hoje famoso Antonio Nóbrega, em seu primeiro disco, traz sua sonoridade sui generis que alia clássico medieval e barroco aos sons formativos do Nordeste. E o que é essa capa de Gilvan Samico?! Uma obra-prima por dentro e por fora.



“Nice Guys”,
Art Ensemble of Chicago (1979)
A banda de Lester Bowie, Malachi Favors Maghostut, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Don Moye num de seus mais celebrados discos. Os inventores do pós-jazz passeiam pelo bop, avant garde, blues, fusion, reggae e art music em sua musicalidade intergaláctica. “É possivelmente o mais representativo álbum da banda, uma vitrine variada que ilustra muito do que eles fazem de melhor”. Isso não sou eu quem digo, mas a Down Beat. Destaque para “Já”, "Folkus" e "Dreaming of the Master" . E a arte caprichada da capa e contra! Impecável como qualquer produto ECM. 



“Lilás”,
Djavan (1984)
Já totalmente inserido no mercado norte-americano, Djavan lançava em grande estilo, com produção gringa caprichada, um de seus discos de maior sucesso lá e aqui no Brasil. Embora tenha recebido certas críticas pelo excesso de elementos eletrônicos à época, o disco, sexto do artista, praticamente repete o antecessor “Luz”, pois é daqueles álbuns de carreira que parecem coletânea: a faixa-título, “Íris”, “Esquinas” e “Infinito” integram o repertório, por exemplo. Suingue, complexidade harmônica, arranjos ricos, vocais grandiosos. Um luxo.




“Jogos de Dança”,
Edu Lobo (1983)
Imagino que quando convidaram Edu Lobo - que já havia coescrito com Chico Buarque para o Balé Guaíra o clássico "O Grande Circo Místico" dois anos antes - uma nova trilha para dança somente instrumental ele, afeito muito mais à música do que ao canto, vibrou com a oportunidade. O resultado é um dos melhores discos da discografia do autor de "Disparada", que antecipa em pelo menos 10 anos o conceito de trilhas que o Grupo Corpo adotaria: artistas nobres da MPB compondo para balé trabalhos especiais e que vão além dos palcos: são música para se ouvir dançando ou parado.




“Tempo Presente”,
 Edu Lobo (1880)
Outro lindo disco de Edu Lobo que consagra sua década mais produtiva, os anos 70. Junto com “Missa Breve”, “Limite das Águas” e “Camaleão”, forma a quadra de álbuns em que o legítimo filho musical de Tom Jobim passeia pelos variados estilos, da bossa nova ao baião, do jazz ao clássico. Parcerias principalmente com Cacaso e Joyce, primor de arranjos, produção caprichada de Sérgio de Carvalho. Edu, assim, em plena fase criativa é ouro em pó.





“Bandalhismo”,
João Bosco (1980)
Dos discos de Boscão da fase com Aldir Blanc que não tinha. Além da arte sempre magistral de Elifas Andreato, que aproveita cortes e dobraduras diferentes, “Bandalhismo” é mais um documento da resistência à ditadura militar e a opressão social que o Brasil vivia como os vários que a dupla compôs nessa época. Abre com a sarcástica “Profissionalismo é Isso Aí”, mas também guarda joias como “Siri Recheado e o Cacete” e “Sai Azar”, que também são deste repertório.





“Atlantis”,
Wayne Shorter (1985)
Único da leva de compras que não tenho conhecimento de como é. Disco dos anos 80 de um dos imortais do jazz, que nunca decepciona. O que se sabe de antemão é que traz ritmos brasileiros e funk em várias faixas em arranjos muito bem elaborados. São 11 músicos em estúdio contando com Shorter revezando numa instrumentação entre o elétrico e o acústico. Boas expectativas.







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+ 2

Além dos LPs que adquiri, generosamente ganhei do próprio Raul Boeira em CD dois de seus discos: “Raul Boeira: Volume 1”, de 2009, e “Cada Qual com Seu Espanto”, dele e de Márcia Barbosa, de 2016. Assim como o Shorter, ainda não tive tempo de soltá-los na vitrola, mas não demorará.



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 11 de março de 2021

João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia - "Brasil" (1981)

Brasil com "H"

 

Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips,
Universal e em edição conjunta com 
o disco
imediatamente anterior de João, "Amoroso"

"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário". 
Gilberto Gil

"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira". 
Maria Bethânia

"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado". 
Caetano Veloso

Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...

O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços? A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa da produção intelectual mundial.

Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores, chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado "Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo, juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus versos. 

O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas, sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos 50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.

Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João
ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para, num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.

A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”, samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas, joão-gilbertiando o que há de bom.

A união de vozes do trio volta para interpretar uma deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia, que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e a bossa nova em si –, mínimo é mais.

A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante: pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.

Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente, faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual. 

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documentário "Brasil", de Rogério Sganzerla (1981)

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FAIXAS:
1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34
2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks, Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18
3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13
4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50
5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57
6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Exposição “Raiz Weiwei”, de Ai Weiwei - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e Paço Imperial - Rio de Janeiro/RJ



A arte como resistência
por Daniel Rodrigues

"A arte não é um fim, mas um começo."
Ai Weiwei

O imaginário social criou a ideia do artista que se doa de corpo e alma para a sua arte e que, se não for assim, uma entrega total e desenfreada até chegar à moléstia, não vale. Os poetas românticos que morriam de amor no século XIX ou o alcoolismo da geração de 20 reforçam essa premissa um tanto questionável. Vendo a exposição “Raiz Weiwei”, do artista visual chinês Ai Weiwei, presentes no CCBB e no Paço Imperial, ambos no Rio de Janeiro, é possível compreender uma ressignificação deste conceito. O artista, mais do que ser a sua própria arte, é, tanto quanto, um vórtice transformador de sua realidade político-social. E a doença não é do artista, mas sim a do estado, a da sociedade de consumo, reelaborada nas entranhas do artista e exposta sob o caráter da crítica, da ironia, de resgate cultural, de empoderamento. Da arte.

A partir de uma visão profundamente humanista, Weiwei, que realizou uma residência no Brasil a convite do curador Marcello Dantas, põe-se abertamente do lado certo da história, o dos oprimidos. Filho de um literato perseguido pelo Regime Comunista de Mao, ele traz a sua carne para dentro da obra, chegando sempre no mesmo fim: a denúncia ao sistema. Seu objeto – e quando se materializa esse “objeto” chega-se a qualquer tipo de plataforma que comporte a mensagem: vídeo, porcelana, madeira, fotografia, lego, pedra, gesso, PVC, bambu – é a eterna tensão entre os que dominam e os que são dominados. Ou, no caso de pessoas como ele, os que lutam contra essa dominação.

Cabides: representação
da resistência da arte
Assim, tudo que se concebe da cabeça de Weiwei vem carregado de simbologia. Sem exceção. E não somente altamente simbólicas, como impactantes – pois belas desde e a partir de sua gênese, desde a raiz de Weiwei. É isso que faz um simples “Cabide” (madeira, aço e cristal, 2011, 2012 e 2013) se tornar um ato de resistência, haja vista que, durante a detenção arbitrária de Weiwei pelo autoritário regime chinês, cabides de plástico eram um dos poucos itens permitidos no espaço do cárcere privado. Qualquer semelhança com Ray, Beuys e Duchamp não é mera coincidência.

Mapa feito com a madeira recuperada:
preservação de identidade
A voz inquietante de Weiwei ecoa em questões do seu país natal, como nos vários mapas (“Mapa da China”, de 2015, feita com madeira recuperada de templos destruídos da Dinastia Qing, ou “Quebra-cabeça da liberdade de expressão”, 2015, porcelana, típica técnica chinesa); do Brasil, “He Xie”, 1000 caranguejos em porcelana, iguaria na China, abundância no país tropical, “Mutuofagia” (2018), gigantesca foto do próprio Weiwei e um menino abarrotando-se de frutas tropicais, ou as impressionantes telas de couro de vaca com escritos ao estilo do Alfabeto Armorial, a linguagem pluriartística idealizada por Ariano Suassuna, com ditos igualmente avassaladores como "Se pudessem, colocavam o negro de novo na escravidão" ou “A língua nunca é neutra”, citando Paulo Freire; e, sobretudo, do planeta, viste que toca nas mazelas universais de um mundo desigual e desequilibrado. Haja vista a preocupante questão dos refugiados (“5 910 fotos relacionadas a refugiados”, 2016-17, “Lei da viagem”, 2016, ou “Bicicletas Forever”, 2015).

Centenas de bicicletas em aço inundam de beleza a parte externa do CCBB
Weiwei nos mostra que, antes de ser artista, deve-se ser humano. E que arte e indignação caminham juntas, basta ter coragem de acessá-las. Talvez seja por isso que seja impossível ficar passivo diante da sua obra. Sobretudo Arte é arte da resistência – independe do formato em que se exprima. Quer maior ato de demonstração de resistência, internalização e comprometimento com a arte do que a selfie em que Weiwei sendo preso arbitrariamente pela polícia do governo do próprio país? Arte não se prende: se ilumina.

Papel de parede "Iluminação", de 2009: nome mais apropriado impossível

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Arte completa
por Cly Reis 

"Tudo é arte. Tudo é política."
Ai Weiwei

Eu já havia ouvido falar de Ai Weiwei, sabia de seu engajamento, de sua atuação política, conhecia superficialmente seus problemas com as autoridades chinesas, mas não tinha a verdadeira noção do quanto seu trabalho era comprometido e constantemente repleto de conteúdo. Nada nele é sem propósito, nada é por acaso. Uma cor, um material, um ângulo, uma pose, uma palavra, nada é sem motivo e sempre terá contido em si alguma mensagem ou contestação, pois, como ele mesmo afirma, os caminhos da arte são necessariamente indissociáveis aos da política.

A questão dos refugiados e a
urgência por um mundo mais humano
Ai Weiwei é a arte em estado puro. Desde uma notável sensibilidade estética e conceitual, à utilização do objeto mais banal e cotidiano como elemento artístico. É impressionante sua capacidade aplicar mais sentido, mais interpretações a uma obra que, por si só, já teria valor estético tornando-a ainda mais valorosa, então, pelo poder de sua sugestão. É o caso dos vasos de porcelana, já belíssimos se apreciados à distância, mas que, vistos em detalhe revelam recortes de situações de refugiados ao longo da história, aos quais o artista faz questão de lembrar sob um olhar crítico e corajoso, do impressionante papel de parede “egípcio” que ocupa uma parede inteira da exposição e que, de perto, revela também episódios de refugiados ao redor do mundo . E o que dizer das "Sementes de Girassol" (2010), milhares de réplicas cerâmicas, produzidas uma a uma, manualmente, obra repleta de simbologias remetendo ao mesmo tempo à vida das mulheres chinesas, aos direitos humanos e à época da Revolução Cultural.


Cerâmicas feitas manualmente: resistência e ancestralidade
“Raíz” é uma exposição daquelas que impressiona, perturba, alerta, encoraja, transforma, inspira e nos faz lembrar, tanto materialmente quanto conceitualmente, quais os verdadeiros objetivos da arte.

A impressionante arte de Weiwei: perturbação e alerta

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Manifesto
por Leocádia Costa

"Minha palavra favorita? É Agir!"
Ai Weiwei

Ai Weiwei reuniu a mim, Daniel e Cly numa incursão curiosa ao acervo que veríamos do ativista chinês no CCBB, que reúne lucidez e ação. À medida em que fomos entrando no processo de criação, misturado a trabalhos já realizados e outros mesclados ao solo brasileiro, fui me emocionando, porque somos parte do que ele faz.

Arte hoje é ativismo, mas não porque o artista de antes nunca tenha sido um interlocutor consciente do cenário onde vivia e da sua função mas, principalmente, porque hoje o artista possui uma conexão muito mais ágil, acessível e que em um único gesto é capaz de viralizar.


Selfie com os potes: riqueza no Ocidente,
sem valor no Oriente


A delicadeza da porcelana oriental e a contundência da palavra

Weiwei sabe disso.

Ele dá aquele grito derrubando muros de hipocrisia e medo. Ele coloca a verdade nua e crua dentro de um contexto histórico, afinal de contas, não somos meros personagens da vida, mas sim pessoas que fazem a história e, por isso, tem responsabilidade sobretudo com o que existe e acontece. Essa participação é viva, necessária, e se for artística fica ainda muito melhor. No caso dele é tudo isso de forma inspiradora.

"Panda a panda", bicho de pelúcia,
material impresso e cartão SD com
documentos confidenciais vazados
 por Edward Snowden
Em algumas fases da história da arte e, logicamente, da nossa civilização, manifestos foram impressos e levaram a linha de pensamento para fronteiras até então muito longínquas. Weiwei deixou de certa forma um manifesto impresso nas paredes e nos olhos que quem foi prestigiar essa exposição e que diz muito sobre o que ele faz e como ele percebe o seu lugar no mundo.

A partir das frases destacadas pela curadoria nos ambientes expositivos tomei a liberdade de montar esse manifesto, que com certeza elucidará sua mensagem aos ainda insensíveis e divergentes ao mesmo tempo em que inspira quem busca, como nós, agir.

"Eu não diria que me tornei mais radical: eu nasci radical. A história nos ensina que no início das maiores tragédias havia ignorância. Muitas vezes penso que o que estou dizendo é para as pessoas que nunca tiveram a chance de ser ouvidas. Eu quero que as pessoas enxerguem o seu próprio poder. Temos que lembrar que não temos escolha. Ou estamos do lado certo ou do lado errado. Minha palavra favorita? É Agir! Uma pequena ação vale um milhão de pensamentos. O meu mundo é uma esfera, não há Oriente nem Ocidente. A liberdade diz respeito ao nosso direito de questionar tudo. A arte não é um fim, mas um começo. Se você desviar o olhar você é conivente.”


O trio que comanda o Clyblog se esbaldando na exposição de Weiwei

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Confiram outras fotos das exposições:

A minúcia de Weiwei já na entrada da mostra:12 telas e centenas
de vídeos e imagens em sincronia

"Obras de Juazeiro do Norte" une a técnica ancestral do
artesanato em madeira do Brasil e da China

Ofertas votivas tradicionais que fiéis fazem a divindades
como sinal de gratidão e devoção. Entre estes, o "foda-se"

Visitantes no CCBB com o papel de parede "Iluminação" ao fundo

No piso, a bora "Florescer", símbolo da resistência do artista quando preso e,
ao fundo, a parede com a impressionante "5 910 fotos relacionadas a refugiados"

Sob os pés de Leocádia, "Máscara", em mármore (2013)

Detalhe de "5 910 fotos relacionadas a refugiados": ares da Guernica de Picasso

Detalhe de "Uvas", feito com 32 banquinhos da Dinastia Qing

Visitantes admirando a arte engajada de Weiwei no CCBB

Mulher atenta a um dos vários vídeos da mostra

As bikes de Wewei com a Candelária ao fundo

Olha eu lá interagindo com as luas de madeira, no Paço

Foto impressa em jogo de Lego: a criatividade sem limites de Weiwei

Uso do Alfabeto armorial em "Marca 11" (2018): citação de Seu Jorge,
Marcelo Yuka e Wilson Cappellette

A forte "Lei da Viagem", em PVC, no vão de entrada do Paço

Outra obra impactante, "Duas Figuras", feita em gesso

Uma das "Sete Raízes" extraídas de árvores nativas do Brasil

A violência policial no rico de detalhes da porcelana ao estilo chinês

Um "fuck" esculpido em bronze

As sementes de porcelana e, acima, "Taifeng" (2015), feita em bambu e seda

Metáfora à famosa cena da Praça da Paz Celestial, em Pequim

Outra parte de "Sete Raízes", que tem colaboração de artesãos do Brasil e da China

Caranguejos feitos em porcelana, animal que simboliza resistência
em diferentes dinastias chinesas ao longo da história

Tradicional arte em madeira para dizer... Recado dado

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Exposição "Raiz Weiwei", de Ai Weiwei
local: Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB e Paço Imperial
endereços: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro - Rio de Janeiro /RJ (CCBB) e Praça XV de Novembro, 48 - Centro (Paço)
horários: de quarta a segunda, das 9h às 21h (CCBB) e de terça a domingo, das 12 às 19h (Paço)
período: até 4/11/2019
ingresso: gratuito 


textos e fotos: Cly Reis, Daniel Rodrigues e Leocádia Costa