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quinta-feira, 13 de julho de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Charly Garcia - “Clics Modernos” (1983)



 

por Roberto Sulzbach 

- I want to make a record ("Eu quero fazer um disco").

- Your dad is rich or what? ("Seu pai é rico ou o quê?"


Nova Iorque, 1983, entrada do lendário Eletric Ladyland Studio, fundado por Jimi Hendrix. Batem à porta, dois argentinos com uma maleta e acontece este diálogo descrito acima.

Enquanto isso, o homem de bigode bicolor abre a maleta e pega um dos maços de notas de 100 dólares: "Do you want it, or not?" ("Você quer, ou não quer?"). Então, a porta se abre. 

Trinta anos atrás, os argentinos eram Charly García e Pedro Aznar. Os dois já eram lendas do rock de seu país. O primeiro, possuía o status de gênio musical por ser cantor, tecladista e protagonista em 3 grandes bandas do cenário portenho: o duo-folk Sui Generis, e as bandas de rock progressivo La Máquina de Hacer Pájaros e Serú Giran. O segundo, foi baixista de Charly na Serú Giran, e já era membro junto ao Pet Metheny Group. Lógico que, em Nova Iorque, ninguém sabia disso. 

Começaram os preparativos para as gravações do que seria, segundo muitos, a Magnum-opus do Rock Argentino, e quiçá, do idioma espanhol. A ideia inicial era se chamar “Nuevos Trapos”, mas depois de Charly se deparar com uma pixação escrita “Modern Clix” pelas ruas de Nova Iorque, não havia como não se chamar “Clics Modernos”. Foi-lhe entregue uma lista, contendo o nome de todos os produtores que trabalhavam regularmente no estúdio, onde encontraram o nome perfeito. Constava como: "Joe Blaney – The Clash"

Joe Blaney havia acabado de trabalhar no projeto mais ambicioso e criticamente aclamado do conjunto punk londrino, o "London Calling", e buscava um novo desafio. Nas palavras dele, quando chegou ao estúdio, não possuía a dimensão de com quem estava, e aos poucos foi percebendo o talento e a estatura dos músicos que estava prestes a produzir. Charly estava tão na vanguarda, que praticamente toda a parte de percussão foi feita em uma TR808, da Roland. Criada por Ryuichi Sakamoto, García apelidou o equipamento de “La Ryuchi”

O disco abre com "Nos Siguen Pegando Abajo", já demonstrando a forte influência do new wave. Musicalmente, é uma composição fenomenal, mesclando sintetizadores, a bateria da Ryuichi, somada de uma base em 4 tempos, enquanto a guitarra, toca o riff em 7 tempos, sendo assim, 2 compassos simultâneos. Apesar de ser um tema para tocar em festas, a música cita "los hombres de gris" ("homens de cinza", como referência à polícia), e o próprio título, que pode se traduzir como “seguem nos reprimindo”, referência à ditadura ainda vivida na Argentina.

"No soy um extraño" é uma balada dançante, impulsionada por batidas e palmas digitais, e carregada pelo baixo simples e certeiro de Aznar. A música aborda a história de dois homens buscando ver um tango antigo, tipo em que a dança era realizada apenas por rapazes, não envolvendo uma mulher, como hoje é popularmente conhecido. O tom expressado, tanto pela melodia, tanto pela letra, nos transmite o medo da homossexualidade ser descoberta publicamente.

Aznar e Charly: amigos e parceiros de Buenos Aires
a Nova Iorque para produzir uma obra-prima
"Dos Cero Uno" é a canção mais minimalista do disco, e que tem como base, além das batidas eletrônicas, a Tabla, instrumento popular na Índia e similar a um bongô. Nos traz quase um relato autobiográfico de Charly, falando sobre sua maturidade e mudança, o colocando como um personagem. "Nuevos Trapos" é uma balada new wave, uma canção moderna de amor, colocando piano e sintetizadores, que se sobrepõe harmoniosamente. 

A letra de "Bancate ese Defecto" trata de lidar com defeitos que todos têm, erros que todos cometem e a dificuldade da autoaceitação, mas que errar faz parte da experiência de ser humano (incluindo um trecho em que chama o ouvinte de narigudo). Quando chegamos à metade da música, Charly engata uma quinta, e em ritmo alucinado, dispara mais “verdades” aos nossos ouvidos. Finaliza com os sintetizadores imprimindo um tom de mistério, ao lado da linha de baixo de Aznar, finalizando, de forma magistral, o lado A. 

O lado B arranca com um sample (direto da Ryiuchi) de um grito de James Brown em “Hot Pants Pt.1”, para iniciar "No me Dejan Salir", sendo esse apenas um dos samples do cantor de soul utilizados na música (temos a adição de trechos de "Please, Please, Please" e "Super Bad" no decorrer da canção). Certamente, a música “más bailable del disco”, com pontes bem estruturadas e refrão grudento, além de ser a única música que contém uma bateria verdadeira, além do TR808. Vale a pena também conferir o icônico clipe da música, gravado um ano depois, e que conta com a participação do então tecladista, e futuro artista globalmente conhecido, Fito Paez, segurando um mocassim para a câmera. 

Um acorde grave dá início ao tema mais profundo da obra. Uma acorde que arrepiou, arrepia, e arrepiará gerações de argentinos, e (por que não?) latino-americanos em geral. "Los Dinosaurios" é uma eulogia aos desaparecidos da sanguinária ditadura que matou, perseguiu e reprimiu milhões de pessoas no país vizinho, e que também é válido para o nosso caso. Charly fez questão de dizer que vizinhos, artistas, jornalistas e nem mesmo seu amor está seguro, e podem desaparecer. “Clics” foi lançado um mês antes do retorno à democracia na Argentina, e imediatamente, se tornou um hino sobre os acontecimentos dos anos anteriores, convertendo-se em uma espécie de memória viva, em forma de hit, em forma de arte. O piano é tocado com sutileza, expressando o pesar do passado, ao mesmo tempo que vislumbra um futuro esperançoso. 

"Plateado Sobre Plateado (Huellas En El Mar)" continua o tom de protesto, tratando sobre o exílio, tanto autoimposto quanto compulsório, nos transportando para aquela realidade. O contrabaixo sedimenta a melodia, apenas em duas notas, enquanto o teclado coloca, em sincronia, acordes em dissonância, para explodir em um refrão harmônico repleto de riff de guitarras rompantes. Finalizando o álbum, "Ojos de Videotape" nos introduz uma novidade: um piano acústico! Sintetizadores, uma ampla capacidade vocal de Charly e uma preocupação com o vício das pessoas no escapismo digital. Em um mundo sem smartphones, tablets, internet, parece até bobo que a televisão fosse um grande problema na concentração e na própria concepção de mundo da sociedade. 

García disse que: "K7´s são para as praias, CD´s para os shoppings, e os discos são discos". Esse álbum tem uma “artesania” de disco, não somente músicas gravadas e compiladas. E definitivamente, se trata de um disco, uma obra-prima, que o estúdio construído por Jimi Hendrix, teve a honra de conceber, e não o contrário.

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FAIXAS:
1. "Nos siguen pegando abajo (pecado mortal)" - 3:30
2. "No soy un extraño" - 3:18
3. "Dos cero uno (transas)" - 2:09
4. "Nuevos trapos" - 4:08
5. "Bancate ese defecto" - 4:56
6. "No me dejan salir" - 4:21
7. "Los dinosaurios" - 3:28
8. "Plateado sobre plateado (huellas en el mar)" - 5:02
9. "Ojos de video tape" - 3:37
Todas as músicas de autoria de Charly García

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OUÇA O DISCO:






Roberto Sulzbach Cortes é porto-alegrense, gosta de viajar (principalmente a Buenos Aires) e possui alma de baby boomer. Futuro jornalista, cresceu escutando de tudo. De Nirvana a Chico e de Notorious B.I.G a Miles Davis.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Música da Cabeça - Programa #312

 

Sei que não dá pra ver direito assim de longe o que tá escrito no dirigível. A gente põe uma lupa pra facilitar, mas já dava pra imaginar que é o anúncio do MDC 312, né? O que mais seria? Sobrevoando a cidade hoje estão Nas, Pixinguinha, Lobão, The Clash, Planet Hemp e mais. No quadro especial, um Sete-List daqueles de pura interessância. Também quer viajar nesse balão? Vem com a gente, que é só subir às 21h, na zepeliniana Rádio Elétrica. Produção, apresentação e altos voos: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

terça-feira, 14 de maio de 2019

Young Marble Giants – “Colossal Youth” (1980)



“Lá vem os jovens gigantes de mármore/
Trazendo anzóis na palma da mão.”
Renato Russo
da música “L’Age D’Or”, 
da Legião Urbana, de 1992

A história do rock é escrita por linhas tortas. Aliás, não poderia ser diferente em se tratando do gênero mais subversivo da história da arte musical. Seria superficial traçar um caminho direto que fosse de Berry-Elvis nos anos 50, Beatles-Stones-Velvet-Floyd nos 60, Led-Sabbath-Bowie-Pistols nos 70 e U2-Prince-Madonna-Metallica nos 80, chegando aos 90 da Nirvana-Beck-Radiohead. Às vezes, trabalhos distintos surgem para riscar um traço transversal no mapa do rock, demarcando algo novo e que se incluirá nessa linha evolutiva, influenciando artistas que virão dali para frente. Ou o que mais seria a Can, intersecção entre a psicodelia dos anos 60 e o krautcock alemão, que alimentaria as cabeças da galera da britpop dos 90? Ou Grace Jones, que, no início dos 80, se pôs entre o reggae jamaicano e a new wave para apontar rumos ao pop que viria logo em seguida?

Um desses acidentes altamente influentes na trajetória rock é a Young Marble Giants, trio indie galês que, com um único disco, “Colossal Youth”, lançado pelo icônico selo Rough Trade, em 1980, foi capaz de abrir caminho para toda uma geração influenciada pelos acordes básicos do punk mas, naquele início de década, já desejosa de uma maior leveza pop – a qual os punks, definitivamente, não entregavam em seu grito de protesto. Era o chamado pós-punk, subgênero a que a YMG é considerada precursora. Motivos para esse apontamento existem, haja vista as marcas que a música da banda deixou em ícones como R.E.M., 10.000 Maniacs, Everything But the Girl, Nirvana, Massive Attack, Air e MGMT.

E o mais legal: a YMG fez tudo isso se valendo do mínimo. O som é calcado em um riff de guitarra, base de baixo, teclados econômicos, leve percussão eletrônica e voz. Dito assim parece simplório. Mas aí é que começam as particularidades da banda. Não se trata de apenas uma voz, mas sim o belo canto de Alison Statton em inspiradíssimas melodias vocais. Os riffs, geralmente tirados da guitarra ou dos teclados de Stuart Moxham, cabeça do grupo, são bastante inventivos. Curtos, mas inteligentes, certeiros. As bases de baixo do irmão de Stuart, Phillip, seguem a linha minimalista assim como as programações rítmicas, as quais cumprem sempre um papel essencial em termos de harmonia e texturas.

"Searching for Mr. Right", que abre “Colossal...”, de cara apresenta isso: um reggae estilizado em que baixo e guitarra funcionam em complemento fazendo a cama para um vocal doce e cantarolável. Já o country rock "Include Me Out" lembra o som que outra banda britânica da Rough Trade faria alguns anos deli e se tornaria famosa: uma tal de The Smiths.

O estilo sóbrio e produzido com exatidão dá ao som da YMG uma aura de art rock, lembrando o minimalismo da The Residents mas sem o tom sombrio ou da Throbbing Gristle sem a dureza do industrial rock. Pelo contrário: a sonoridade é delicada e lírica. Até mesmo quando namoram com a dissonância, como em “The Man Amplifier” e na ótima “Wurlitzer Jukebox”, a intenção soa melodiosa.

A lista de fãs da YMG impressiona pela quantidade de ilustres. Kurt Cobain e Courtney Love, especialmente, teceram os maiores elogios aos galeses, revelando o quanto os influenciaram. ”Music for Evenings" e “Constantly Changing” deixam isso bem claro no estilo de compor, tanto no riff da guitarra, na função contrapositiva do baixo e na melodia de voz. Mas a que deixa a reverência do casal Cobain/Love mais evidente é "Credit in the Straight World", das melhores do disco e que traz todas as características do que tanto Nirvana quanto Hole produziriam anos mais tarde. Tanto é que a Hole fez-lhe uma versão em 1994, no seu exitoso disco de estreia “Live Through This”. Se o Pixies é “a banda que inventou o Nirvana”, "Credit...”, da YMG, pode ser considerada a música que cumpriu esse papel gerativo da principal banda do grunge.

A influência da YMG, no entanto, não termina aí. Percebem-se em outras faixas de “Colossal...” o quanto previram tendências do rock, que se revelariam somente mais adiante. As instrumentais “The Tax” e “Wind in the Rigging” lembram o gothic punk minimalista que Steve Severin e Robert Smith fariam no icônico “Blue Sunshine”, de três anos depois (assim como “Colossal...”, o único disco da The Glove); “Choci loni” e “N.I.T.A.” antecipam ideias da Cocteau Twins de “Treasure”, de 1984, e da Air de “Moon Safari”, de 1998; "Eating Noddemix" é tudo que a Frente!, banda dos anos 90, queria ter feito; “Violet”, maior sucesso da Hole, poderia ser denunciada como plágio de "Brand - New - Life"; e até mesmo no Brasil a bossa nova pós-punk da Fellini traz muito da construção melódica da YMG.

A considerar o hermetismo de P.I.L, Joy Division e The Pop Group, a pegada avant-garde de Polyrock e Gang of Four, a guinada para o reggae/ska da segunda fase The Clash ou a preferência synth de Suicide e New Order, a YMG pode ser considerada, sim, a precursora do pós-punk tal como este gênero ficou conhecido. Eles conseguiram unir todas essas forças sonoras advindas com o punk e a new wave e sintetizá-las de forma concisa e pop. Como que com “anzóis na palma da mão” muito bem arremessados, os“Jovens Gigantes de Mármore” lançaram ao longe as linhas que fariam içar uma série de outros organismos vivos do rock nas décadas subsequentes, marcando, com sua simplicidade e criatividade, o pop-rock até hoje. Linhas estas, aliás, tortas, evidentemente.

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FAIXAS:
1.    "Searching for Mr. Right" – 3:03
2.    "Include Me Out" – 2:01
3.    "The Taxi" – 2:07
4.    "Eating Noddemix" (Phillip Moxham/ Alison Statton) – 2:04
5.    "Constantly Changing" – 2:04
6.    "N.I.T.A." – 3:31
7.    "Colossal Youth" – 1:54
8.    "Music for Evenings" – 3:02
9.    "The Man Amplifier" – 3:15
10.  "Choci Loni" (Moxham/ Moxham) – 2:37
11.  "Wurlitzer Jukebox" – 2:45
12.  "Salad Days" (Moxham/ Statton) – 2:01
13.  "Credit in the Straight World" – 2:29
14.  "Brand - New - Life" – 2:55
15.  "Wind in the Rigging" – 2:25
Todas as músicas de autoria de Stuart Moxham, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

The Sonics, The Wailers & The Galaxies - "Merry Christmas" (1965)


“Gozação com alegria e contemplação particular. A The Sonics capturou o espírito dessas duas atmosferas na contribuição para o álbum”.

“Em ‘Christmas Album’, eles [The Wailers] capturaram o clima que desejavam: a sensação de Natal em um novo estilo”.

“A The Galaxies expressa sons frescos e velozes como a neve do Natal” 
Textos da contracapa do disco

Convenhamos: não é todo mundo que gosta de Natal. Talvez até mais pessoas que se suspeite, porque tem um monte das que verbalizam não gostarem e aquelas que se entristecem nessa época, resgatando tudo de ruim que aconteceu na vida inteira assim que dezembro entra. Quem não tem um parente ou amigo assim, que jogue a primeira pedra. Pois foi celebrando essa desconformidade, esse descompasso com as festas natalinas que o selo alternativo norte-americano Etiquette Records lançou, em 1965, “Merry Christimas”, o qual reúne faixas de três grupos de seu cast: The Sonics, The Wailers e The Galaxies.

No álbum “descomemorativo” está a raiz daquilo que se fortaleceria a partir de então nos EUA e na Inglaterra: as garage bands. Psicodélicas e arraigadas no rock e no blues, elas passariam a ser chamadas de proto-punk anos mais tarde por terem aberto caminho – mesmo sem saberem que estavam fazendo isso – para que Sex Pistols, Ramones, The Clash, Dead Boys, Buzzcocks e outras reivindicassem de vez a anarquia punk. Pois as três bandas de “Merry...”, juntamente com contemporâneas como The Chocolate Watchband, The Seeds, Deviants, The Troggs, Monks e outras, já criavam, quase uma década antes da onda punk explodir em Nova York e Londres, um som inconformado, agressivo e fora dos padrões da grande indústria. O pop-rock eles deixavam para os astros Beatles, Rolling Stones, Byrds e cia. Eles queriam mesmo era dar sua mensagem de contrariedade e fazer barulho. Muito barulho. Filhos dos mesmos traumas e transformações sociais do pós-Guerra, cabia a eles escancarar o grito contra o establishment. Nada mais apropriado para se criticar, então, do que um dos símbolos do capitalismo: o Natal.

Nessa, sobrou, claro, para o Papai Noel. A desavença com o Bom Velhinho fica clara na primeira faixa: “Santa Claus”, dos Sonics. Na letra, o jovem roqueiro cheio de ilusões pergunta: “Papai Noel, onde você tem andado?/ Eu estive esperando aqui apenas para deixá-lo entrar/ Sim, Papai Noel, o que você tem nas suas costas?/ Existe algo para mim que dentro de saco?/ Eu quero um carro novo, uma guitarra twangy/ uma pequena bonita e muito dinheiro/ Papai Noel, você não vai me dizer, por favor?/ O que você vai colocar debaixo da minha árvore de Natal?”. A resposta não poderia ser mais insensível e decepcionante. “E ele simplesmente disse:/ "Nada, nada, nada, nada.”  Suficiente para suscitar a fúria juvenil. A guitarra fuzz rosnando, o riff básico quase "pogueante" e o jeito indolente de cantar do vocalista Gerry Rosie mostram o quanto a batata (ou o peru) do Papai Noel assou.

Num tom de rock embalado e romântico, a The Wailers vem com sua primeira do disco: “She's Comin' Home", em que o rapaz está implorando à garota para que volte para casa no Natal. A The Galaxies, por sua vez, abre a participação numa versão apimentada de "Rudolph the Red Nosed Reindeer", clássico do cancioneiro infanto-natalino, dando-lhe um ritmo entre a surf e o country rock. 

A The Wailers não só retoma o country ao estilo Bob Dylan na batida de violão encorpada e na sonoridade “rancheira”, como também a contrariedade ao “espírito natalino”. É "Christmas Spirit??", assim mesmo, com DUAS interrogações. O órgão mantém-se permanente, enquanto a letra critica, já naquela época, o consumismo da sociedade moderna que engole a todos no Natal: “Entre numa fila/ Compre uma grande bola de barbante/ Qualquer coisa que você possa colocar em suas mãos/ Não importa o que você dá/ Só tenho que pegar um presente/ Não sabe o que você está dando/ A única coisa que conta é a marca e o valor/ Que vem de uma loja cara”. 

Irascíveis, os Sonics voltam à carga contra o Papai Noel. Lembram do desaforo que ele fez deixando o cara na mão na música de abertura? Pois “The Village Idiot” é diretamente em homenagem a ele, o “Idiota da Aldeia”. Irônicos, dizem: “Como é divertido rir e cantar/ A canção hoje à noite num trenó”. A famosa melodia de “Jingle Bells” é totalmente avacalhada pela debochada turma. Gritos e alaridos de chacota acompanham o órgão, que desenha os acordes enquanto a bateria castiga as caixas e o bumbo. Tudo com doces sininhos tinindo ao fundo. Um desavisado poderia dizer tranquilamente que se trata de uma faixa de “The Great Rock ‘n’ Roll Swindle”, dos Sex Pistols, de 1979, haja vista a semelhança, inclusive, da galhofa de “Friggin’ in the Riggin’”. Subversiva ao extremo.

Cabe aos Sonics dar sequência, ou seja, uma nova pedrada: “Don't Believe in Christmas". Precisa dizer mais alguma coisa? Precisa. Olha a letra: “Bem, mamãe e papai disseram que podíamos/ Então eu fiz o que deveria/ Eu pendurei minha meia em uma parede/ Eu não entendi nada/ Porque eu não recebi nada no ano passado/ Bem, ficando acordado até tarde/ Para ver Santa Claus voar/ Bem, com certeza você não sabe/ O gordo não apareceu”. Como se vê, o velho furão frustrou a Noite Feliz da galera mais uma vez. Com refrão pegajoso e ritmo alucinante, daqueles que dá vontade de entrar numa roda punk, lembra a versão de “Too Much Monkey Business”, de Chuck Berry, feita pelos pais das garage bands, a The Kinks.

Depois disso, Wailers e Galaxies intercalam as quatro últimas faixas: as baladas "Please Come Home for Christmas" e “Christmas Eve”, ambas da Galaxies; e "Maybe This Year" e "The Christmas Song", da Wailers, que também apostam em duas canções açucaradas para terminar a coletânea. Afinal, a mensagem já estava dada. Entendem agora quando os Garotos Podres cantam: “Papai Noel, velho batuta/ Aquele porco capitalista”? Pois é, a primeira pedra estava lançada lá, em 1965, por estes heróis da contracultura. Nada mais rock ‘n’ roll do que um Natal de contestação.

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FAIXAS:
1 – "Santa Claus"- The Sonics (Gerald Roslie) - 2:49
2 - "She's Coming Home" – The Wailers (K. Morrill/R. Gardner) - 2:55
3 - "Rudolph The Red Nosed Reindeer" - The Galaxies (Johnny Marks) - 2:31
4 - "Christmas Spirit??" - The Wailers (K. Morrill/R. Gardner) - 3:05
5 - "The Village Idiot" ("Jingle Bells") - The Sonics (J. Pierpont) - 2:35
6 - "Don't Believe In Christmas" - The Sonics (Gerald Roslie) - 1:41
7 - "Please Come Home For Christmas" - The Galaxies (C. Brown/G. Redd) - 3:04
8 - "Maybe This Year" - The Wailers (K. Morrill/N. Anderson/R. Gardner) - 3:15
9 - "Christmas Eve" - The Galaxies (R. Gardner) - 4:05
10 - "The Christmas Song" ("Chestnuts Roasting On An Open Fire") - The Wailers (M. Torme/R. Wells) - 3:09

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OUÇA
The Sonics, The Wailers & The Galaxies - "Merry Christmas"

Daniel Rodrigues
Agradecimento a João Carneiro pela dica

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Música da Cabeça - Programa #81


Se o teu celular achou que o horário de verão já tinha começado, não acredita nele e se programa pra ouvir o Música da Cabeça de hoje. Tem coisa legal pra caramba pra que deixar de escutar só por causa de uma máquina perdida no tempo! Vê se não é verdade: terá Air, Luiz Gonzaga, Echo & the Bunnymen, Carlos Dafé, Elastica, Carlinhos Brown e The Clash – só pra ficar em parte do que vai rolar. Ainda, os quadros “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e “Sete-List”. É ou não é motivo pra não perder o programa? Então, te agenda pras 21h, na Rádio Elétrica, que não vai ter confusão. Produção e apresentação (sem fuso horário): Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Música da Cabeça - Programa #58


A abolição da escravatura completou esta semana 130 não sem sofrimento e luta ao longo deste tempo. Claro, não poderíamos deixar passar (nem em branco e muito menos em preto!) essa data, que falaremos no nosso Música da Cabeça de hoje. Isso e muita música, evidentemente, entre elas coisas de The Clash, Emicida, Pepeu Gomes e Nação Zumbi. Ainda, “Palavra, Lê”, “Música de Fato” e um "Sete-List" homenageando os 7.0 de Brian Eno. Tudo isso no programa desta noite. É às 21h, pela Rádio Elétrica, com produção e apresentação de Daniel Rodrigues. Por que negra é a raiz da liberdade.


Rádio Elétrica:

terça-feira, 2 de maio de 2017

Talking Heads – “77” (1977)



“Sem essa de Elvis, Beatles, ou Rolling Stones/
(...) Em 1977, eu espero ir para o céu.”
Da letra de “1977”, do The Clash


O ano de 1977 pode ser considerado o do nascimento oficial do punk-rock. As duas principais bandas da cena, Sex Pistols e The Clash, lançavam seus primeiros discos naquele ano, empestando o ar do Velho Mundo com o mau cheiro de um som cheio de fúria e crítica junto com Buzzcocks, Damned, Wire, The Stranglers e outros. Do outro lado do mundo, “Rocket to Russia”, do Ramones, tornava-se um clássico imediatamente que chegava às lojas; a dupla do Suicide trocava guitarras por teclados, forjando um som tão sujo quanto o de qualquer grupo de formação tradicional; “Marquee Moon”, do Television, espantava público e crítica pela inventividade de Paul Verlaine e Cia.; e Richard Hell, com “Blank Generation”, carimbava seu documento definitivo na história do rock. Decididamente, o espírito do “faça você mesmo”, surgido no underground norte-americano desde a segunda metade dos anos 60 – através da música, da moda, da arte gráfica, entre outros –, chegava, enfim, ao grande público. Sem mais Baetles, Rolling Stones ou Elvis Presley: a vez era do punk.

Porém, a contestação ao establishment, elemento chave da cultura punk, era nutrido de múltiplas interferências. Tanto que não era preciso necessariamente andar esfarrapado como Joey Ramone, arranjar confusão como os arruaceiros dos Dead Boys ou ser um junkie declarado como Syd Vicious. Havia aqueles que comungavam das mesmas ideias transgressivas, mas à sua maneira: sem briga, sem drogas e, universitários que eram, vestindo a roupa que seus pais lhe enviavam de presente no Natal. Com cara de bons moços, os Talking Heads contribuíam sobremaneira para a cena mandando ver, isso sim, no som.

Foi no hoje mítico bar CBGB, em Nova York, que David Byrne (voz, guitarra), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (guitarra e teclado) trouxeram a gênese do som que conquistaria o mundo pop por mais de uma década. Este rico embrião está num dos discos mais marcantes do ano de 1977, cuja história, hoje, transcorridos 40 anos, mostra não ser coincidência chamar-se justamente “77”. O debut da banda une a crueza da sonoridade punk a um estilo muito peculiar das composições, cujos elementos melódicos e harmônicos já apontavam claramente para referências além da combinação de três acordes do punk. Byrne, líder e principal compositor, já denotava preferências por harmonias fora do tempo, variações bruscas no compasso, a incursão de ritmos latinos e exóticos, a desaceleração em comparação ao ritmo frenético do tipo “hey, ho, let’s go!” e, claro, seu inigualável vocal, de timbre bonito e considerável alcance mas não raro propositalmente rasgado ou picotado. Resultado dessa química esquisita é um disco que abre portas para aquilo que viria na esteira do punk, a new wave.

Produzido por Lance Quinn e Tony Bongiovi – este último, responsável por dar corpo a outro marco do punk naquele mesmo ano, o já mencionado “Rocket to Russia” –, “77” traz uma sonoridade potente e muito bem equalizada, dando destaque a todos os instrumentos, que soam com vivacidade. "Uh-Oh, Love Comes to Town" abre mostrando que, além disso, eles não eram convencionais de fato na composição. Nada de batida acelerada e guitarras arrotando distorção. Os Heads dão seus primeiros acordes num funk estilo “I Want You Back“, dos Jackson Five, porém com as guitarras sujando o espaço sonoro e a voz de Byrne funcionando quase como um arremedo yuppie à do pequeno Michael Jackson.

Uma das joias do disco, “New Feeling”, por sua vez, já começa a apresentar a faceta atonal de Byrne e sua turma. As duas guitarras cumprem, cada uma num tempo, duas linhas melódicas diferentes. Isso fora o ritmo quebrado, que dá a sensação de desequilíbrio e descompasso que tanto explorariam em discos como “Fear of Music” (“Paper”, “Mind”), de 1979, ou “Speaking in Tongues” (“Swamp”), de 1983. A paródia militar "Tentative Decisions" – cuja ideia se verá noutras canções do grupo mais adiante, como “Thank You for Sending Me an Angel” e “Road to Nowhere” – abre caminho para uma canção mais linear, “Happy Day”, balada quase pueril que traz outras peculiaridades da banda, que são o refrão criativo – um dos motivos dos Heads se tornarem empilhadores de hits – e a guitarra “percutida”, em que as cordas são raspadas, friccionadas, extraindo do instrumento um som exótico, africanizado, diferente do tradicional.

“Who Is It?” retraz o funk, agora mais desengonçado (ou seria “com atitude punk”?) do que nunca. É muito interessante ver como Byrne desmembra os ritmos da raiz da música pop para, logo em seguida, reescrevê-lo à sua maneira. A faixa antecede uma das melhores do álbum e das principais sementes plantadas pelos Heads em termos de musicalidade: “No Compassion”. A exemplo de outros temas que a banda viria a escrever, como “Warning Sing” (1978) e “Give Me Back My Name" (1985), esta carrega uma atmosfera densa e que a faz naturalmente soar como um clássico desde que se ouvem os primeiros acordes. A batida forte e cadenciada de Frantz; o baixo de Tina impondo-se; a primeira guitarra de Harrison executando uma base dividida em dois tempos; a guitarra solo desenhando um riff sinuoso. A sonoridade é tão bem produzida que servirá de matriz para o que desenvolveriam junto a Brian Eno em “More Songs About Buildings and Food”, no ano seguinte. Além disso, é das poucas que tem momentos de punk-rock pogueado, mostrando que o Talking Heads estava, sim, muito próximo de seus companheiros de CBGB.

O segundo lado do formato vinil começa ainda melhor que o primeiro com "The Book I Read". A guitarra “percutida”, como um cavaquinho ou algo parecido, anuncia um riff um tanto dissonante. Mas o que se apresenta quando a banda e o vocal entram juntos é um belíssimo pop-rock em que Byrne dá um show de vocal – ao menos, a seu estilo, que vai do melódico ao rascante. Destaque especial para o baixo da competente Tina, que além da base muito bem executada é quem faz o “solo” num acorde de quadro notas junto com o cantarolar (“Na na na na”) de Byrne. Diz-se “solo” entre aspas pois, afinal, eles são uma banda punk, sem a habilidade dos dinossauros do rock de então, mas que sabiam resolver ideias com muita criatividade – o que, convenhamos, é até melhor em muitos casos.

Mais um exemplo típico da musicalidade diferenciada de Byrne é “Don't Worry About the Government”, canção cheia de sinuosidades, mas bastante melodiosa, visto que sua base é um toque semelhante ao de uma delicada caixa de música. Outra das brilhantes é "First Week/Last Week... Carefree", um rock com toques latinos e a cara do que os Heads formaram enquanto estilo ao longo dos anos haja vista várias outras músicas de semelhante ideia como: “Crosseyed and Painless” (1980), “Slippery People” (1983), "The Lady Don't Mind" (1985) e “Blind” (1988). Estão em “First Week...” elementos como os instrumentos afro-latinos (reco-reco, marimba), o canto gaguejado de Byrne, seus vocalizes malucos e o uso de metais, que lançam frases sonoras típicas de um “Ula Ula” havaiano.

Como todo grande disco, “77” tem seu hit. E neste caso é a imortal (com o perdão da expressão) "Psycho Killer". Engenharia de som perfeita: o baixo inicial e todos os outros instrumentos que entram são claramente notados, conjugando-se com a voz mais uma vez liberta de Byrne para um riff matador (sic) e uma melodia de voz daquelas que não desgrudam da mente – ou da psique. Tanto que é quase impossível os acordes tocaram e alguém não saber cantarolar o refrão: “Psycho killer/ Qu'est-ce que c'est/ Fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, far better/ Run, run, run, run, run, run, run, away”. Ouvem-se sem erro em “Psycho...” Gang of Four, P.I.L., Polyrock, Replacement e outras bandas advindas com o post-punk anos mais tarde. Além de um clássico, revela o estilo próprio da banda e porque ela foi/é tão influente a toda uma geração do rock.

A talvez mais punk-rock, a agitada “Pulled Up", encerra o disco, um dos grandes de estreia da história do rock – figura em 68º da lista dos 100 melhores primeiros álbuns pela Rolling Stone, entre os 300 dos 500 maiores da história da música pop, pela mesma revista, e entre os 1001 essenciais de se ouvir antes de morrer, conforme livro de Robert Dimery. “77” aponta a rota que a banda e, mais amplamente, a própria cena punk iriam tomar. Fora os já mencionados grupos post-punk, dá para dizer com segurança que um ano depois o álbum já se fazia essencial: a Devo, produzida por Eno, não existiria sem o exemplo dos Heads e nem o Blondie rumaria com tamanha assertividade a uma “popficação” de seu som sujo original. Junto ao que os também estreantes Sex Pistols, The Clash, Television, Richard Hell e outros, o Talking Heads assinalava aquele ano como um dos mais estelares da história do rock, um ano capitulado como “77”.

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Talking Heads - “Psycho Killer”



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FAIXAS:
1. "Uh-Oh, Love Comes to Town" – 2:48
2. "New Feeling" – 3:09
3. "Tentative Decisions" – 3:04
4. "Happy Day" – 3:55
5. "Who Is It?" – 1:41
6. "No Compassion" – 4:47
7. "The Book I Read" – 4:06
8. "Don't Worry About the Government" – 3:00
9. "First Week/Last Week ... Carefree" – 3:19
10. "Psycho Killer" (Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth) – 4:19
11. "Pulled Up" – 4:29
Todas as faixas compostas por David Byrne, com exceção da indicada.

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

sábado, 29 de abril de 2017

"Mate-me Por Favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain - ed. L&PM (2005)


"A primeira vez que eu vi Richard Hell,
ele entrou no CBGB's usando uma camiseta com um alvo
e as palavras "Mate-me Por Favor".
Aquilo era uma das coisas mais chocantes que eu já tinha visto."
Bob Gruen,
fotógrafo e cineasta

"Lendo 'Mate-me Por Favor' me senti como se estivesse lá...
Espere um pouco, eu estava lá.
Este livro conta como foi.
É o primeiro livro a fazê-lo."
William Burroughs,
escritor



Um dos meus livros preferidos mas que curiosamente nunca falei aqui no blog e que sempre achei que merecia deferência por ser um dos meus livros de cabeceira, é o excelente "Mate-me por favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain, um retrato do punk desde seus primórdios até seus últimos suspiros contado de forma magnífica pelos personagens que fizeram essa história. Montado a partir de inúmeras entrevistas com músicos, produtores, jornalistas, empresários, fãs, groupies, roadies ou seja lá quem tivesse participado ou presenciado todo aquele alvoroço, "Mate-me por favor" consegue graças a uma organização impecável, que deve ter dado um trabalho enorme, conferir um ritmo quase de romance à série de relatos, resultando num livro empolgante de tirar o fôlego.
O livro "narra" o processo de formação do punk rock partindo ainda lá do final dos anos 60 com o The Doors e seu comportamento transgressor, Velvet Underground e sua música revolucionária; passando pela sujeira dos Stooges, a crueza do MC5, a provocação dos New York Dolls e pela sofisticação do Television; encontrando a cena norte-americana do CBGB's da qual os Ramones podem ser possivelmente considerados os principais representantes; chegando à cena londrina com Sex Pistols, Clash; e ainda dando uma passada pelo que resultou dessa trajetória toda.
A frase inconsequente e niilista que deu título ao livro escrita na camiseta  Richard Hell, como tantas outras naquele momento, é apenas um exemplo da inconformidade dos jovens naquele final de anos 70, muitas vezes não compreendida com exatidão nem por eles mesmos, mas que acabaria resultando numa identidade visual e comportamental até hoje inevitavelmente associada ao punk e que curiosamente hoje vemos com frequência em todo lugar na forma de calças rasgadas, acessórios de couro, cabelos moicanos, etc. Malcolm McLaren que o diga! Um dos que tiveram visão e deram um jeito de faturar o seu com aquela rebeldia toda. E isso também é contado lá.
As páginas de "Mate-me Por Favor" trazem e alternam momentos emocionantes, empolgantes, tensos e hilários. Gravações, shows, brigas, noitadas, excessos, putarias estão presentes na brilhante compilação de entrevistas que compõe o livro. O episódio da briga dos Dead Boys em que o baterista Johnny Blitz fora esfaqueado é tenso e dramático. "...Então vejo a camiseta e percebo que é Johnny quem está n chão (...) Estava cortado desde a porra da virilha té o pescoço e com o peito aberto de um lado a outro. Estava aberto. Ele estava... aberto", conta Michael Sticca, ex-roadie da banda. O que Iggy Pop é solto da cadeia vestido de mulher é hilário. Ray Manzareck, dos Doors, foi lá pagar a fiança: "Jim, isto é um vestido de mulher!", "Não, Ray. Devo tomar a liberdade de discosrdar. Isto é um vestido de homem.". Bem como é hilário o episódio do show em que o vocalista dos Dead Boys ganha um boquete no palco, contado por Babe Buell, a mãe da atriz Liv Tyler: "Alguém me disse para ir no CBGB's ver a melhor banda do mundo, os Dead Boys. Então fui lá uma noite quando eles estavam tocando, entro e a primeira coisa que vejo é Stiv sendo chupado no palco.". Um dos mais emocionantes, no entanto, é o que Jerry Nolan, ex-baterista dos Dolls, nos últimos dias de vida relata o show em que viu a sola furada do sapato de Elvis Presley. "Este show, embora aos 10 anos de idade, realmente mudou minha vida. Fui dominado por Elvis. Pude sentir o que é tocar música. Mas acima de tudo lembro de duas coisas daquele show: minha irmã perdendo completamente o controle e o buraco no sapato de Elvis.". Uma espécie de síntese poética do que é ser rock'n roll.
Livro que é obrigatório para amantes de música e sobretudo para os que tem especial admiração, respeito, curiosidade por aquele período, por aquele "movimento" que com toda suas limitações, sua anarquia, suas loucuras foi definidor de atitudes, comportamento e tendências, deixando um inegável e valioso legado para as gerações posteriores. Foi relançado posteriormente em versão pocket em dois volumes, sendo ainda hoje facilmente encontrado até em bancas de jornal por conta do formato prático. Ou seja, não tem desculpa pra não ter e não ler.
Um dos meus livros preferidos e frequente fonte de pesquisa, "Mate-me Por Favor" é a história do punk contada por quem esteve lá, por quem quem a viveu, inclusive os próprios autores, o que confere autenticidade e credibilidade ainda maior ao livro. Ali estão os fatos apresentados sem frescura, sem panos quentes ou papas na língua. A verdade nua, crua, suja, chapada, barulhenta e furiosa.


Cly Reis

terça-feira, 3 de maio de 2016

The Modern Lovers – “The Modern Lovers” (1976)


A capa original de 1976,
só com o logo da banda e a da
reedição em CD, de 1989.
“The Modern Lovers
é a minha banda de rock favorita
 de todos os tempos”.
David Berson,
executivo da Warner

“Bem, algumas pessoas
tentam pegar as meninas/ 
E são chamados de cuzões/ 
Isso nunca aconteceria
com Pablo Picasso”
Jonathan Richman,
da letra de “Pablo Picasso”



Muito tem se falado sobre disco de estreia dos Ramones, o grande marco inicial daquilo que o mundo pop passou a conhecer como punk-rock e que está completando dignos 40 anos. Mas quem se embrenha um pouco mais na cena underground norte-americana sabe que este movimento e sua sonoridade rebelde e anti-establishment – que remetia à simplicidade do rock ‘n’ roll básico dos anos 50 e a culturas pop apreciadas por uma rapaziada contrária ao modo de vida padrão da sociedade – vinha sendo alimentado desde meados dos anos 60. Detroit, Boston, San Francisco e principalmente Nova York concentravam essa galera criativa e crítica que não admitia que o planeta Terra se configurasse daquele jeito que se anunciava: Guerra do Vietnã matando inocentes por nada, crises econômicas mundo afora, ascensão de ditaduras, repressão militar e os ecos de um inacabado 1968.

Uma das bandas fruto dessa efervescência é a The Modern Lovers. Liderados pelo inventivo Jonathan Richman, o grupo de Boston estava, assim como o Ramones, tão de saco cheio com o sistema político e social que seu discurso era, por pura ironia, totalmente apolítico. Nada de afrontamentos políticos ou denúncia das mazelas sociais. A maneira de protestarem era falar sobre aquilo que a sociedade não falava ou considerava coisa de moleque de classe baixa: comer as menininhas do bairro, a falta de grana, se chapar com a droga mais fuleira que tiver, andar de carro em alta velocidade (sem ter carro para isso) e paixões raramente retribuídas. Temas que não eram novidade no mundo jovem mas estavam esquecidos pelos grandes astros que a mídia havia criado. Com o espírito punk do “faça você mesmo”, o Modern Lovers e os tresloucados da cena punk revitalizaram tais questões com muita ironia, deboche e realismo. Nada de carrões, de levar lindas modelos para a cama e superequipamentos para superespetáculos em superestádios. O negócio era curtir um pouco daquela merda de vida que tinham, sonhar em comer a garota gostosa do bairro num motel barato e tocar em garajões fétidos de Nova York – como um em plena East Village, chamado CBGB. Eram aquilo que viviam e pensavam, e tudo isso está encapsulado no essencial “The Modern Lovers”, o qual, assim como o primeiro dos Ramones, também faz quatro décadas de seu lançamento.

A Modern Lovers mandava ver um som curto e grosso, mas com inventividade. Sem grandes habilidades técnicas, compunham um rock básico, vigoroso e pautado na realidade que vivenciavam nas ruas. Riffs magníficos saíam da cabeça do guitarrista e vocalista Richman e seus parceiros de ensaio e de punheta: Ernie Brooks (baixo), Jerry Harrison (teclados) e David Robinson (bateria). A produção do mestre underground John Cale avalizava aquele primeiro trabalho de estúdio da Modern Lovers, cujo título é tão irônico quanto autocrítico, haja vista que boa parte dos temas que abordavam era, justamente, a fragilidade e inadequação sexual e afetiva daqueles jovens dentro da sociedade moderna. Sem grana no bolso e longe de aparentarem os abastados roqueiros do rock progressivo, astros da época, era difícil ser mais do que um arremedo de “amante moderno”.

A nasalada e tristonha voz de Richman anuncia o que vem numa contagem até 6. É “Roadrunner" abrindo o disco, clássico do rock alternativo que a grande banda do punk britânico, o Sex Pistols, gravaria dois anos depois. Riff marcante e de acorde simples, apenas três notas. “Roadrunner, roadrunner/ Going faster miles an hour/ Gonna drive past the Stop 'n' Shop/ With the radio on”, canta Richaman com seu timbre bonito, algo entre o vocal de Joey Ramone e o de outro contemporâneo deles, Richard Hell. Bateria suja, guitarra e baixo e bem audíveis. A sonoridade proposta por Cale junta a secura das garage bands dos anos 60, a irreverência do New York Dolls e a atmosfera proto-punk do Velvet Underground com uma pitada daquilo que se chamaria anos depois de new wave. Isso muito ajudado pelos teclados moog de Harrison, numa influência direta do glam rock, mistura de punk e pop que este ajudaria a levar para outra banda referencial da cena de Nova York a qual formaria um ano depois: o Talking Heads.

Como Joey e Hell, Richman, guitarrista e líder da banda, era mais que um vocalista: era um dos porta-vozes daquela turma. Seus versos muitas vezes reproduziam as angústias e vontades daqueles jovens deslocados que não queriam ser certinhos nem hippies: queriam ser apenas eles mesmos. Com este substrato, Richman é capaz de criar versos verdadeiramente geniais, formando rimas cantaroláveis e cheias de expressividade. “Astral Plane” é um exemplo. Rockzão embalado, fala de um rapaz sozinho em seu quarto, prestes a enlouquecer, pois sente que nunca mais terá a garota que gosta. Seu desespero é tanto que já está aceitando até encontrá-la num outro plano imaterial e, digamos, “não-carnal” (“O plano astral para o escuro da noite/ O plano astral ou eu vou enlouquecer”).

Outro caso é o da clássica “Pablo Picasso”, em que, com criatividade e atrevimento, engendra uma rima de “asshole” (“cuzão”, em inglês) com "Picasso". Dentro da sua classificação estilística, este tipo de rima pode ser considerado como “rima rica”, quando a combinação é formada por vocábulos de classes gramaticais distintas entre si. Além desta, a rima de Richman também se enquadra no que se pode chamar de “rima preciosa”, ou seja, quando se combina em versos palavras de dois idiomas diferentes. Ele altera a pronúncia da palavra estrangeira para rimar com outra na língua vernácula da obra (inglês). Nos versos em questão, o sobrenome do artista plástico espanhol, o substantivo próprio de origem malaguenha "Picasso", é dito com uma leve distorção no seu último fonema, o que faz com que se equipare fonética e sintaticamente a “asshole”, um adjetivo originário da linguagem chula. Além disso, a letra em si é superespirituosa, pois endeusa a figura do autor da Guernica pelo simples fato de ser um nome público, como se por causa disso jamais ele passasse pelo vexame de não conseguir pegar as meninas como eles. Pura inventividade.

Fora a letra, “Pablo Picasso” é um blues ruidoso no melhor estilo Velvet, roupagem que Cale fez questão de dar ao intensificar a distorção das guitarras sobre uma base quase de improviso, a exemplo de "The Gift" e “European Son”. O produtor, inclusive, foi, um ano antes, o primeiro a gravá-la no clássico álbum “Helen of Troy”, apresentando ao mundo do rock aquele jovem criativo chamado Jonathan Richman. Com menos distorção mas de levada empolgante, “Old World”, “Dignified And Old” e “She Cracked” são daquelas gostosas até de poguear. Todas com um cuidado na linha dos teclados, inteligentemente utilizado com diferentes texturas por Cale, o que cria atmosferas próprias para as canções. “She Cracked”, em especial, que fala sobre o ciúme sentido por um rapaz em relação a uma mulher madura e independente, é outra de refrão pegajoso, das de cantar em coro com uma galera: “She cracked, I'm sad, but I won't/ She cracked, I'm hurt, you're right”. O riff é de um minimalismo quase burro: como uma “Waiting for the Man”, apenas uma nota sustenta toda a base.

Já na meio-balada “Hospital”, de Harrison, a figura feminina inatingível a um adolescente pobre do subúrbio está presente de novo: “Às vezes eu não suporto você/ E isso me faz pensar em mim/ Que eu estou envolvido com você/ Mas eu estou apaixonado por este poder que você mostra através de seus olhos”. Novo petardo: “Someone I Care About”, com sua combinação de 4 notas, lembra direto Ramones, mas com um toque mais apurado por conta da produção de estúdio. Reduzindo o ritmo novamente, a balada ”Girl Friend” volta a falar sobre as meninas desejadas mas… sem sucesso. A letra brinca com a sintaxe da palavra em inglês (olha aí Richman mais uma vez se esmerando na poesia) juntando os dois vocábulos (“girlfriend”, namorada) ou separando-os (“girl friend”, garota amiga, justamente com o que ele não se contenta, mas não tem coragem de confessar). Nesta, o teclado soa como piano, dando-lhe um ar ainda mais melancólico.

Mais uma acelerada, “Modern World”, mesmo não sendo das conhecidas, é um exemplo de rock bem feito: pulsação, melodia de voz eficiente, vocal honesto, guitarras rasgando sem precisar de excesso de distorção. E a letra é hilária: o rapaz, querendo convencer a garota a ir para a cama com ele, larga um papo de que aderiu ao “mundo moderno” e à liberdade sexual. “If you'd share the modern world with me/ With me in love with the U.S.A. now/ With me in love with the modern world now/ Put down the cigarette/ And share the modern world with me” (Se você quiser compartilhar o mundo moderno comigo/ Comigo no amor com os EUA agora/ Comigo no amor com o mundo moderno agora/ Largue o cigarro/ E compartilhe comigo o mundo moderno.”)

O álbum deu luzes à geração punk tanto nos Estados Unidos, como para Talking Heads, Blondie e Television, quanto na Inglaterra, como Sex Pistols, The Clash, Jam, Buzzcocks e The Stranglers, bandas nas quais se vê claramente toques da Modern Lovers. Várias outras, inclusive, da leva pós-punk, como The CureGang of FourPolyrock e P.I.L. beberiam também na fonte de Richman & Cia. Se os Ramones elevaram a ideologia do “faça você mesmo” ao showbizz, revolucionando para sempre a música pop, a The Modern Lovers, na mesma época, já dava a mensagem de que, o importante era fazer por si próprio, sim, mas que havia espaço para refinar um pouco aquela tosqueira toda.

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A versão em CD lançada pelo selo Rhino em 1989 pode ser considerada a definitiva deste álbum tão influente. Primeiro, por trazer o remaster das faixas originais do LP, evidenciando o trabalho inteligente de Cale na mesa de som e o vigor sonoro da banda. Segundo, porque traz faixas extras que, ao que se percebe, só não entraram na edição de 1976 por pura falta de espaço no vinil. Estas, aliás, são fruto da parceria do grupo com outro mestre da subversão, Kim Fowley. Ele produz duas das melhores músicas do disco: “I’m Straight”, rock de veia blues em que, hilariamente, um adolescente, fascinado pelo poder que rapaz tem para com as mulheres, tenta reafirmar sua masculinidade dizendo: “Eu sou hétero” (mais uma vez, uma maravilha de rima rica de Richman: “But I'm straight/ and I want to take his place”). Fowley vale-se do expediente de aumentar o microfone do vocal, fazendo com que se captem os mínimos suspiros. Junto, enche o timbre da caixa da bateria, que estronda alta. Guitarra e baixo, em escala média, soam, entretanto, bem audíveis, formando um som orgânico. Alguma semelhança com o estilo de sonoridade dada por Steve Albini ao Pixies ou Nirvana não é mera coincidência.

A outra assinada por Fowley é a também muito boa: “Government Center”, que desfecha-o CD num rock de ares de twist mas que, pela característica da produção (as palmas acompanhando o ritmo, o moog, a marcação no baixo), remete a The Seeds, The SonicsThe Monks e a outras garage bands norte-americanas.
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FAIXAS:
1. Roadrunner - 4:05
2. Astral Plane - 3:00
3. Old World - 4:03
4. Pablo Picasso - 4:21
5. I'm Straight - 4:18
6. Dignified And Old - 2:29
7. She Cracked - 2:56
8. Hospital (Jerry Harrison) - 5:35
9. Someone I Care About - 3:39
10. Girl Friend - 3:54
11. Modern World - 3:43
12. Government Center - 2:03
todas as composições de autoria de Jonathan Richman, exceto indicada.

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OUÇA O DISCO: