Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta “Os Bons Companheiros”. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta “Os Bons Companheiros”. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ATRIZ
MELHOR ATOR COADJUNVANTE
MELHOR TRILHA SONORA
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
MELHOR MONTAGEM
MELHOR FOTOGRAFIA
MELHOR FIGURINO
 

Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.

O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.

Llly no papel da rica indígena Mollie:
atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.

Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.

A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo,
15 filmes com Scorsese

Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.

Foto dos verdadeiros Osage usadas
de forma documental no film
e
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.

A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha. 

Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.

***********

trailer de "Assassinos da Lua das Flores"




Daniel Rodrigues

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Living Colour - "Vivid" (1988)

 

"'Dougie, eu gostei dessa banda. O que você acha que devo fazer?' Eu disse a ele: 'Você é Mick Jagger, cara! Leve-os ao estúdio e faça algo com eles.'"
Doug Wimbish, atual baixista da Living Colour

Chuck Berry e Little Richards nunca esconderam a frustração de, mesmo sendo músicos negros como eles os inventores do rock ‘n’ roll, os louros tenham ido para artistas brancos. Não que Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Bill Halley não tenham grande valor, mas é fato que a indústria fez abafar por uma imposição mercadológica racista a importância de autores negros como eles ou os irmãos Fats Domino, Bo Diddley e Sister Rosetta Tharpe. Com o passar dos anos, o estilo se desenvolveu e vieram os Beatles, os Rolling Stones, a Pink Floyd, a Led Zeppelin, a Black Sabbath... todos majoritariamente brancos. A Love, rara banda de rock composta somente por membros negros, era uma exceção onde deveria ser regra. Jimi Hendrix, como Pelé, virou um mito sem cor. Os punks Bad Brains e Death nunca tiveram a mesma vitrine que Ramones ou Sex Pistols. A "solução" da indústria? O mesmo mercado que desapropriou a criação do rock dos negros lhes deu o “direito” de serem pais de ritmos inquestionavelmente pretos, como a soul music e o jazz. Ou seja: sistematizou o apartheid musical. 

Claro que Berry e Richards garantiram, por aclamação, seu lugar no panteão da música universal. Porém, por muito tempo pairou aquela sensação de que os negros, os verdadeiros inventores do gênero mais popular do século XX, tinham uma dívida a cobrar. As décadas se passaram desde que o rock veio ao mundo cultural, e a indignação só fazia aumentar. Foi quando uma turma resolveu cobrar com juros e correção monetária esse débito e reclamar para si a verdadeira gênese do rock ‘n’ roll. “É pra gente mostrar que negro faz rock melhor que qualquer um? Então, aqui está!” Com esta vividez corajosa e empoderada surgiu a Living Colour, formada somente por músicos de fina estampa: o vocalista Corey Glover, o baixista Muzz Skillings, o baterista William Calhoun e o guitar hero Vernon Reid, principal compositor do grupo. Negros.

Produzidos pelo tarimbado Ed Stasium e por ninguém menos que Mick Jagger, que apadrinhou a banda após descobri-los tocando no underground de Nova York, “Vivid” é a extensão da própria ideia de uma banda cujo nome ressalta a vivacidade da cor da pele preta. Afinal, como disse o poeta: "Negro é a soma de todas as cores." Nas suas linhas melódicas, na sua potência, na sua sonoridade, nas letras de crítica social, no seu visual, o primeiro disco da banda resgata todos os tons da tradição do rock em um dos mais bem elaborados sons produzidos na música pop em todas as épocas. O rock pesado da Living Colour soa como se fosse inevitável valer-se dos altos decibéis para manifestar com autenticidade tudo aquilo que esteve guardado anos e anos. Tem hard rock, heavy metal e punk pincelados de funk, blues e jazz, aquilo que os negros fazem como ninguém. Ou seja: a Living Colour, com o perdão da redundância, dá cores muito próprias à sua música. O hit "Cult of Personality", faixa de abertura, é como um traço original num quadro que condensa todas essas tintas. Riff arrebatador, daqueles de dar inveja a Metallica e Anthrax. E a letra, na voz potente e afinadíssima de Glover, referencia Malcom X e critica a superficialidade da sociedade: “Olhe nos meus olhos/ O que você vê/ O culto da personalidade/ Eu conheço sua raiva, conheço seus sonhos/ Eu tenho sido tudo o que você quer ser”.

Hard rock de primeira, "I Want to Know" antecipa "Middle Man", outra de sucesso do álbum que também ganhou videoclipe na época de ouro da MTV. Reid, excepcional tanto na criação do riff quanto na condução da melodia e no solo, mostra porque é um dos maiores guitarristas de todos os tempos, capaz de variar de um suingue a la Jimmy Nolen ou fazer a guitarra urrar como uma das big four do trash metal. Já a pesada "Desperate People" destaca o talento de Calhoun nas baquetas, seja no ritmo, que vai do funk ao hardcore, quanto na habilidade e potência, ainda mais quando martela os dois bumbos. Mais um sucesso, e das melhores do repertório da banda, visto que uma tradução do seu estilo: "Open Letter (To a Landlord)". A letra fala da realidade da periferia (“Essa é minha vizinhança/ Aqui é de onde vim/ Eu chamo este lugar de meu lar/ Você chama este lugar de favela/ Você quer expulsar todas essas pessoas/ É assim que você é/ Trata pessoas pobres como lixo/ Vira as costas e ganha dinheiro sujo”) e traz um dos refrãos mais emblemáticos e tristes daquele final de anos 80, o qual, inteligentemente, repete os primeiros versos da letra, só que cantados agora numa melodia vocal especial: “Now you can tear a building down/ But you can't erase a memory/ These houses may look all run down/ But they have a value you can't see” (“Agora você pode derrubar um prédio/ Mas você não pode apagar uma lembrança/ Essas casas podem parecer estar em mau estado/ Mas elas tem um valor que você não pode ver.”).

O punk rock vem com a alta habilidade de músicos de ouvidos acostumados com o jazz fusion em “Funny Vibe”. Isso, no começo, porque depois a música vira um funk ao estilo James Brown com pegadas de rap, principalmente no jeito de cantar em coro – lembrando o hip-hop raiz de Run DMC e Afrika Bambaata – e na participação de Chuck D e Flavor Flav, MC’s da Public Enemy, a banda de rap mais politizada de todos os tempos. Aí, vem outra das grandes da banda: sua versão para a escondida proto-metal “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads. Pode ser que, para uma banda estreante como a Living Colour, tenha pesado a indicação de Stasium, que havia trabalhado com o grupo de David Byrne nos anos 70. Porém, a influência do produtor vai até este ponto, visto que a leitura da música é totalmente mérito de Reid e de seus companheiros. O arranjo é perfeito: intensifica os aspectos certos da harmonia, faz emergir o peso subentendido da original e aplica-lhe pequenas diferenças, como leves mudanças na melodia de voz, que personalizam esta que é, certamente, uma das melhores versões feitas no rock dos anos 80.

Já na melodiosa "Broken Hearts", Reid exercita sua técnica deixando de lado o pedal de distorção para usar um efeito slide bastante elegante, assim como o vozeirão aveludado de Glover. Nesta, Jagger solta sua gaita de boca abrilhantando a faixa. Numa linha também menos hard e ainda mais suingada, “Glamour Boys”, que também tocou bastante à época e que tem participação de Jagger aos vocais, precede outra de vital importância para o discurso de reivindicação levantado pela banda: “What's Your Favorite Color?”. Seus versos dizem: "Qual é a sua cor favorita, baby?/ É branco?/ Fora de moda". 

E quando se pensa que se ouvirá mais um heavy metal furioso, com a mesma naturalidade eles enveredam para um funk psicodélico de fazer orgulhar-se dr. P-Funk George Clinton pelos filhos musicais que criou. Noutro hard rock pintado de groove, "Which Way to America?", com destaque para o baixo em slap de Skillings, solta o verbo contra a sociedade de consumo e a ideologia racista da televisão, veículo concentrador das amálgamas no mundo pré-internet, alinhando-se novamente ao discurso dos parceiros Public Enemy, ferozes denunciadores do branconcentrismo da mídia norte-americana.

Com outros bons discos posteriores, como “Times Up”, de 1990, o qual traz o maior hit da banda, “Love Rears It's Ugly Head”, a Living Colour abriu em turnê para os Rolling Stones e foi atração de festivais como Hollywood Rock de 1992, tornando-se, por incrível que pareça, o primeiro grande grupo do rock integralmente formado por negros, mais de 40 anos depois dos precursores mostrarem o caminho para as pedras rolarem. Além disso, mais do que seus contemporâneos Faith no More, eles expandiram as falsas fronteiras do rock pesado, injetando-lhe uma propriedade que somente os “de cor” poderiam realizar. Depois deles vieram a Infectious Grooves, a Body Count, a Fishbone, todos com bastante influência daquilo que ouviram em “Vivid”. Todos que não deixaram esquecer jamais que o rock é, sim, essencialmente preto. E vamos parar com essa palhaçada! As memórias de Berry e Richards agradecem.

**********
FAIXAS:
1. "Cult of Personality" - 4:54 (Glover/ Skillings/ Reid/ Calhoun)
2. "I Want to Know" - 4:24
3. "Middle Man" - 3:47 (Reid/ Glover)
4. "Desperate People" - 5:36 (Glover/ Skilling/ Reid/ Calhoun)
5. "Open Letter (To a Landlord)" - 5:32 (Tracie Morris/ Reid)
6. "Funny Vibe" - 4:20
7. "Memories Can't Wait" - 4:30 (David Byrne/ Jerry Harrison)
8. "Broken Hearts" - 4:50 
9. "Glamour Boys" - 3:39
10. "What's Your Favorite Color? (Theme Song)" - 3:56 (Reid/ Glover)
11. "Which Way to America?" - 3:41
Todas as composições de autoria de Vernon Reid, exceto indicadas

**********
OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

******

Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Curtis Mayfield - "Curtis" (1970)



“Curtis escreveu um material que se tornou o exemplo clássico de como um negro inteligente, preocupado com a situação das pessoas, pode estabelecer novos objetivos e injetar orgulho na música. O talento único de Curtis combina uma melodia cativante, instrumentação interessante e comentários expressos que o levaram a um grande respeito na comunidade negra.”
Richard Robinson, para a revista Billboard

“Vidas negras importam”. 
Mensagem escrita em 
cartazes nas ruas norte-americanas 
durante as manifestações contra 
a morte de George Floyd

A história da música soul nos Estados Unidos é marcada pela revelação de talentos tão intensos que acaba sendo impossível de serem represados. O baterista contratado pela Motown estritamente para acompanhar bandas como Martha and the Vandellas e The Marvelettes no final dos anos 50 era também um cantor e compositor tão completo, que não demorou para a gravadora perceber que ele fazia jus em assinar sozinho os próprios trabalhos com o seu nome artístico: Marvin Gaye. Outro, o pianista da banda de Otis Redding nos anos 60, ganhou o protagonismo merecido antes mesmo daquela década terminar, tornando-se o genial “Black Mose” autor de “Shaft” e outras obras essenciais à música soul. Era um rapaz corpulento e de voz grave chamado Isaac Hayes.

Com Curtis Mayfield aconteceu algo semelhante. Um dos integrantes do grupo vocal de rhythm and blues de Chicago The Impressions, ele rapidamente destacou-se sobre seus companheiros, igualmente bons cantores como ele, mas não apenas pela afinadíssima voz tenor e, sim, pela incrível capacidade compositiva e de liderança que o diferia dos demais. Quem escuta os discos da banda, a qual pertenceu de 1963 a 1969, percebe que, desde a composição do primeiro sucesso, a clássica "Gypsy Woman", até o último disco como integrante, “The Young Mods' Forgotten Story”, todo escrito por ele, Curtis se tornara maior do que a Impressions. Ele não cabia mais num trio: precisava ser uno. Precisava alçar o voo solo.

Baldwin e Angela: referências
da luta racial nos anos 70
Vários fatores contribuíam para que a investida solitária de Curtis Mayfield fosse aguardada por público e crítica naquele início de anos 70. Aquele passo tinha tudo para representar uma guinada para alguém já experimentado como artista, pois acostumado com as paradas e com o showbizz, mas também de quem se esperava sintonia com o então efervescente momento de lutas raciais nos Estados Unidos. Fazia pouco que dr. King e Malcom X haviam sido assassinados, abrindo uma fenda emocional e de representatividade para a cultura negra. Em compensação, a ação dos Panteras Negras e o ativismo de figuras como Angela Davis e James Baldwin mantinham de pé as lutas pelos direitos civis. Mas dada a gravidade da situação, era preciso revoltar-se, e quanto mais (e qualificadas) vozes, melhor. A Sly & Family Stone já havia soltado o grito de resistência “Stand!”; Muhammed Ali defendia com punhos e verbos seu povo; James Brown versava as palavras do líder sul-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m black and proud!” (“Diga alto: sou negro e orgulhoso!”); o movimento Black Power tomava as ruas exigindo “respect”. Porém, a comunidade negra precisava de mais, e Curtis, então com 28 anos, representava a ascensão e a afirmação de uma população segregada e violentada como cidadã. É nesse cenário que Curtis se lançava para um voo solo: carregando sobre suas asas a responsabilidade tanto artística quanto política da Black Music.

Ouvem-se, então, os primeiros acordes do disco: um som grave de baixo, que prenuncia um riff cheio de groove e inteligência musical. Talvez os “brothers and sisters” que a escutavam pela primeira vez naquele setembro de 1970 não percebessem que estavam diante de um dos mais célebres começos de disco de todos os tempos na música pop. Entram, na sequência, bongôs de matiz africano e vozes entrecruzadas levantando questões polêmicas, as quais são logo catalisadas pela do próprio Curtis, que anuncia com ecos retumbantes: “Não se preocupem: se houver um inferno abaixo de nós, para lá todos iremos!” É “(Don’t Worry”) If There's a Hell Below We're All Going to Go”, a arrebatadora faixa de abertura de um disco que não podia ter outro nome que não, simplesmente, “Curtis”. À exceção do tom pastel da capa, trata-se de um álbum negro em todas as dimensões possíveis: na sonoridade, no resgate da ancestralidade, na mensagem afirmativa e de denúncia e no comprometimento com o movimento negro.

Era a confirmação de que Curtis registrava sua emancipação como artista. A música conhecia pela primeira vez sua obra autoral, que abria com esse funk de reverências a James Brown e à africanidade. Curtis, consciente de seu papel, não fugia às discussões sérias, falando sobre preconceito, violência policial e repressão política: “Irmãs, irmãos e desfavorecidos/ negros e mulatos/ A polícia e os seus apoiadores/ Eles são todos os atores políticos”. “If There's...” antecipava outro trunfo da música soul daquele início de anos 70: a Blackexplotation. Quem escuta o primoroso arranjo de cordas, as percussões afro e o baixo marcado da faixa é impossível não associá-la às trilhas sonoras de filmes feitos com e para negros que “explodiriam” àquela época na indústria cinematográfica norte-americana – dentre as quais, a de “Superfly”, que Curtis assinaria poucos anos mais tarde.

Se o disco começa com algo que resume o estilo sofisticado de Curtis – as primorosas harmonias, os arranjos suntuosos, as cordas entusiasmadas, a levada groove da guitarra, o ritmo tão funky quanto fluido e, claro, o apurado falsete de sua voz –, agora ele, dono de seu rumo, queria mais. Queria tudo que lhe fosse de direito e de seus irmãos. “Other Side Of Town”, cuja abertura com harpas em cascata faz remeter à ideia de um sonho, é uma balada como as que se acostumara a escrever, mas com uma nova densidade tanto estilística quanto discursiva. O arranjo de metais dá-lhe um ar épico, como uma música triunfal da realeza africana, para, em contraste, fazer uma crítica ao apartheid a que os negros do gueto são submetidos socialmente. “Depressão faz parte da minha mente/ O sol nunca brilha/ Do outro lado da cidade/ A necessidade aqui é sempre de mais/ Não há nada de bom na loja/ Do outro lado da cidade/ (...) Minha irmãzinha, ela está com fome/ De um pão para comer/ O meu irmão me entrega sapatos/ Agora estão mostrando os pés”.

Curtis tocando ao vivo à época do disco:talento
confirmado como artista solo
"The Makings of You", novamente com o som da harpa bem presente, lembra bastante temas como “Keep On Pushing” e “For Your Precious Love” da Impressions, e comprova a incrível afinação de Curtis, que performa com sensibilidade e técnica tons agudos para cantar esta linda canção, que novamente traz as questões sociais. Porém, desta vez, relatando uma tocante cena: a de um rapaz que distribui doces para as crianças e as alegra por alguns instantes capazes de fazer com que o autor enxergue esperança “no amor da humanidade”.

A harmonia entre os homens, entretanto, está longe de se concretizar, e Curtis tinha consciência disso. Não à toa, vem, na sequência, a reflexiva “We People Who Are Darker Than Blue” (“Nós, pessoas que somos mais escuras que o azul”). Não por acaso também se trata de um lamentoso blues, o qual seu lindo canto cadencia versos como: “Nós, pessoas que somos mais escuras do que o azul/ Não há tempo para segregar/ Eu estou falando sobre marrom e amarelo também/ Garota tão amarela que você não pode contar/ Eu sou apenas a superfície do nosso poço profundo e escuro/ Se a sua mente puder realmente ver/ Você veria que sua cor é igual à minha”.

Outra preciosidade de "Curtis" é "Move on Up", grande sucesso da carreira solo do artista que prova o quanto ainda sabia escrever hits (a versão reduzida dos mais de 8 min originais passou 10 semanas no top 50 da parada de singles do Reino Unido em 1971, chegando ao 12º lugar, e se tornou um clássico da música soul ao longo dos anos). Esta empolgante soul, com exuberantes arranjos de cordas e metais, traz mais uma vez a intensa percussão afro e uma performance impecável de Curtis, responsável não apenas pela guitarra, mas por vários outros instrumentos. Aqui nota-se um músico totalmente dono de sua obra: ao mesmo tempo em que se vale de sua música para a crítica, também domina a arte de criar canções para as massas. Para os que acham que seu auge é "Superfly", "Move..." prova que este momento já estava em “Curtis”.

Curtis com a filha ainda criança,
nos anos 70
Na suingada e lúdica "Miss Black America", Curtis inicia dialogando com sua filha criança perguntando-lhe o que ela, em seus sonhos, se imagina quando crescer. A resposta induz a algo que, novamente, retraz as conquistas por direitos dos negros, uma vez que a recente vitória de uma mulher preta no concurso Miss Universo em 2019 (a sul-africana Zozibini Tunzi), ainda surpreende o mundo. "Wild and Free", com seus metais e cordas intensos, é mais um funk que reitera o discurso pelo respeito à causa racial e ao direito de ser "selvagem e livre". Agora, aliás, subindo o tom ao incrementar na letra a icônica mensagem anti-racismo "power to the people" ("Respeito por essas pessoas/ Poder para as pessoas/ Estabelecendo a velha geração/ Trazendo o novíssimo/ Selvagem e livre com a paz finalmente").

A suave "Give it Up" tem a primazia de fechar o brilhante debut de Curtis Mayfield, trabalho assustadoramente atual mesmo 50 anos após seu lançamento. A catarse mundial gerada pela revoltante morte do ex-segurança George Floyd, vitimado recentemente pela violência da polícia e da sociedade norte-americana, evidenciou o quanto as questões levantada neste disco, há cinco décadas, estão longe de serem resolvidas. Se o racismo ainda está aí, Curtis é morto desde 1999, quando, após complicações motivadas por um fatídico acidente que o deixara paraplégico, despedia-se prematuramente aos 57 anos. Só assim para frear o seu talento.

Embora não tenha feito o mesmo sucesso que seus contemporâneos de black music Marvin Gaye, Al Green, Stevie Wonder e Barry White, Curtis pode tranquilamente ser considerado integrante do.panteão dos grandes criadores da soul norte-americana. Ele é daqueles autores cuja obra demarca um “antes” e um “depois”, tanto pela beleza única de suas composições quanto pelo o que representou para o movimento negro e a luta pelos Direitos Civis norte-americanos naquele inicio de década de 70. O disco “Curtis” antecipa em um ano, inclusive, uma trinca de obras que se eternizaria, entre outras qualidades, justamente pelo teor de resistência: “What’s Going On”, de Gaye, “Pieces of a Man”, de Gil Scott-Heron, e “There’s a Riot Goin’ On”, da Sly. Curtis dizia que suas músicas sempre vieram de perguntas para as quais precisava de respostas. Vendo o quadro político-social de hoje ainda tão desigual, se estivesse vivo, 50 anos depois de ter levantado e respondido várias dessas questões, provavelmente voltaria numa delas e se indagaria: “o inferno, que eu pensava estar abaixo de nós, é aqui mesmo, então?”

Curtis Mayfield - "Move on Up"




************

FAIXAS:
1. "(Don't Worry) If There's a Hell Below, We're All Going to Go" - 7:50
2. "The Other Side of Town" - 4:01
3. "The Makings of You" - 3:43
4. "We the People Who Are Darker Than Blue" - 6:05
5. "Move On Up" - 8:45
6. "Miss Black America" - 2:53
7. "Wild and Free" - 3:16
8. "Give It Up" - 3:49
Todas as composições de autoria de Curtis Mayfield

************

OUÇA O DISCO
Curtis Mayfield - "Curtis"

Daniel Rodrigues

sábado, 21 de dezembro de 2019

"O Irlandês", de Martin Scorsese (2019)




Assim que acabei de percorrer as mais de três horas de "O Irlandês", tão logo a porta do quarto fica entreaberta e iniciam-se os créditos, veio a minha cabeça, quase que imediatamente, a dúvida se aquele não seria o melhor filme de Martin Scorsese. Como sabia que iria escrever sobre o filme aqui para o blog, Não que eu precisasse de confirmação mas, por curiosidade, fui dar uma conferida em outras impressões na Internet, em outros blogs, sites e páginas especializadas, para ver se meu entusiasmo fazia sentido ou se eu estava sozinho nessa. Ainda que tenha encontrado os que achassem cansativo, longo, lento, os que não tenham sido fisgados pelo filme, os que comparassem depreciativamente com outros filmes do diretor, uma boa parte das críticas que li, exaltava o novo filme de Martin Scorsese, e não foram poucas as vezes que encontrei a expressão obra-prima. 
O verdadeiro Frank Sheeran, o Irlandês,
interpretado no filme,
com a habitual competência por De Niro.
De fato, diante da ambição e do porte do atual projeto, e com uma filmografia riquíssima como a de Scorsese, não há como deixar de traçar comparativos com trabalhos anteriores como "Os Bons Companheiros" e "Cassino", especialmente, pelos contextos e temáticas mas também pelo nível de qualidade que estas outras obras atingiram. Mas "O Irlandês" não decepciona diante dos trabalhos consagrados do diretor. Pelo contrário, parece tirar o melhor de cada um deles para criar uma nova peça cinematográfica clássica. Tem os traços característicos do cinema do diretor como a narrativa em primeira pessoa, os flashbacks, os travelings, a crueza das cenas de violência, mas guarda um caráter único e novo em relação a seus demais filmes de máfia. Embora tenha uma trilha, como de costume, muito bem escolhida, ela não é tão incisiva quanto em outros momentos pontuando de maneira mais sutil as cenas. "O Irlandês" é muito "Os Bons Companheiros", é muito "Cassino", mas não tem aquela condução, muitas vezes, meio videoclípica do diretor, com o rock'n roll comendo solto emoldurando uma cena movimentada de edição rápida e frenética. Nesse sentido, o novo filme assemelha-se um pouco com "Touro Indomável", um filme mais denso, mais arrastado em seu enredo que, por sinal, também tinha no personagem principal um homem com dificuldades nas relações familiares. "O Irlandês" é sobre família, ou melhor sobre famílias. Um homem, Frank Sheeran, um veterano de guerra conhecido como Irlandês, que conquista a confiança de um gangster, Russel Bufalino, e passa a servir a núcleos da máfia e é indicado por estes mesmos para "trabalhar" com o líder trabalhista, Jimmy Hoffa, tem, por outro lado, enorme dificuldade em conduzir sua vida como marido e pai, especialmente com a filha Peggy (Anna Paquin), que desde cedo entende as atividades do pai e, naturalmente, as desaprova. E é isso, e todos os desdobramentos dessa atuação nesses dois pólos que ele mesmo, Frank Sheeeran, nos conta, já velho, remoendo resignado arrependimentos e remorsos, num lar de repouso. 
A propósito de idade, o tão falado rejuvenescimento digital, especialmente de Robert De Niro, para as cenas de passado de Sheeran, na minha opinião ficou meio artificial demais parecendo, muitas vezes, uma colagem sobre o filme, mas diante de tudo o que a obra como um todo nos oferece, este é um detalhe quase desprezível. A trinca estrelar, Robert De NiroAl Pacino e Joe Pesci, corresponde à expectativa que se alimenta quando se vê nos créditos três nomes de peso como estes. De Niro fazendo um protagonista sorumbático, muitas vezes dividido, às vezes inseguro, mas sobretudo, extremamente convincente; Pesci sóbrio, comedido, mas irrepreensivelmente preciso; e Pacino, um pouco mais vigoroso na atuação que os outros dois, pela característica do personagem, não é menos impressionante e espetacular.
Se é uma obra-prima ou o melhor filme de Martin Scorsese eu não sei, o que me parece certo é que temos mais um grande trabalho na filmografia deste grande diretor que pode ser colocado, sem constrangimento algum, ao lado dos outros dele que já figuram eternos na galeria das glórias do cinema. Bom, talvez um pouco acima deles...


"O Irlandês" - trailer 



Cly Reis

sábado, 8 de setembro de 2018

10+1 Grandes Planos-Sequência do Cinema




De repente o cara está, ali, assistindo a um filme, numa boa, e percebe que uma cena não foi interrompida desde que começou. E ela vai, muda direção, volta no mesmo ponto, entram outros personagens, e se alonga e se alonga e o cara que está ali vendo aquilo vai ficando cada vez mais sem fôlego com aquilo que vê. Assim são os planos-sequência, cenas mágicas, um balé cimatográfico minuciosamente coreografado em que diretores usam de todo seu recurso técnico para imitar a realidade de uma maneira ainda mais fiel do que o fazem usualmente, praticamente nos levando para dentro do filme.
Selecionamos aqui, sem ordem de preferência, alguns planos-sequência que, seja por sua técnica, duração, dinâmica, significado, são marcantes e tem lugar de destaque na história da sétima arte:



1. "O Jogador", de Robert Altman (1991) - Este é um dos planos-sequência de que mais gosto. A entrada e o passeio pelo pátio dos estúdios de uma produtora de cinema, passando por diversas situações curtas envolvendo atores, produtores, entregadores, roteiristas, culminando na chegada à sala onde o produtor, Tim Robbins, que, na trama principal, virá a ser ameaçado por um roteirista rejeitado, conversa com Brian de Palma (interpretando ele mesmo) sobre mais um roteiro esdrúxulo de Hollywood. Cena absolutamente fantástica que deixa o espectador nada menos que fascinado. A mim, pelo menos, sempre deixa.






2. "O Segredo de Seus Olhos", de Juan José Campanella (2009) - Este é um caso interessante pois fui assistir ao filme por causa do plano-sequência. É verdade que ele já vinha sendo bastante elogiado, era cogitado para disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro (o que não só acabou se confirmando, como venceu o prêmio) mas a informação de que o filme  tinha uma cena sem cortes de mais de sete minutos num estádio de futebol foi decisiva para que eu fosse ao cinema. O plano, que tem alguma trucagem, é verdade, começa no alto, no céu, descendo direto para dentro do campo no estádio do Huracán, deslocando-se para as arquibancadas e à descoberta, em meio à multidão de torcedores, do homem procurado pelo protagonista, Benjamin Espósito (Ricardo Darín), passa a uma frenética perseguição com direito a gol, correria pelos corredores do estádio, pulo de um muro alto e até invasão de campo . Ótimo filme que mistura policial, romance e drama histórico da ditadura argentina.





3. "Nostalgia", de Andrei Tarkovski (1984) - Eis aqui um plano-sequência bem pouco convencional, sem maiores complexidades, aparentemente muito simples mas que é muito bem executado emocionalmente, como aliás é característico de Andrei Tarkovski. O poeta exilado Andrei Gorchakov, sabendo da morte, do autoflagelo em Roma do "louco" Domenico, a quem conhecera na pequena cidadezinha de Bagno Vignoni, antes de deixar o lugarejo, finalmente tendo entendido as atitudes daquele homem mal compreendido por todos e o que queria lhe dizer em suas complexas conversas, resolve cumprir uma tarefa que Domenico deixara inacabada e que percebia agora ser de extrema importância simbólica para não só para o amigo com para ele mesmo também: atravessar terma natural da cidade de um lado a outro com uma vela acesa. A fonte termal está temporariamente vazia, é verdade, o vento apaga a vela, ele volta acende de novo, cobre com a outra mão, cobre com o casaco mas não abandona o intento num ato de fé, respeito, humildade e generosidade. Nove minutos de silêncio com a câmera apenas acompanhando lentamente o protagonista de um lado a outro do tanque com algum mínimo movimento ao fundo dos moradores do lugar alvoroçados por verem o forasteiro repetindo o gesto do maluco da cidade. Poucos diretores fariam de uma cena tão simples algo tão emocionante.





4. "Filhos da Esperança", de Alfonso Cuarón (2006) - Que cena, senhoras e senhores! Praticamente filmada toda dentro de um carro, alternando ora entre o ângulo de visão do assento do carona, ora a dos passageiros do banco traseiro, e entre a visão do motorista, a cena, depois de um pequeno momento inicial de descontração, mantém a tensão o tempo inteiro. É carro incendiado bloqueando a estrada, é coquetel-molotov, é perseguição com o carro andando de ré, é tiro, é batida policial, tudo na maior perfeição técnica numa cena incrível de alto grau de dificuldade para ser realizada, dirigida por Alfonso Cuarón, que é bem chegado num plano-sequência, mas com grandes méritos para Emmanuel Lubezki, o premiadíssimo diretor de fotografia, que sempre propicia essa dinâmica aos diretores com quem trabalha.






5. "Gravidade", de Alfonso Cuarón (2013) - Eu não disse que ele gosta de um plano-sequência? Alfonso Cuarón novamente com a contribuição fundamental da cinematografia de Emmanuel Lubezki, está à frente de mais este grande filme que, por sinal, lhe rendeu o Oscar de direção e nos traz, entre algumas tantas sequências mais curtas, uma incrível cena ininterrupta de quase treze minutos. Tem montagens, trucagens técnicas, é verdade, mas inegavelmente é uma cena contínua de mais de oito minutos na qual, assim como em "Filhos da Esperança", o ângulo de visão se modifica continuamente, passando pelo rosto de um personagem, pelas costas de outro, por baixo da nave, pelo reflexo do capacete, tudo tendo como pano de fundo o planeta Terra sempre mudando para o espectador entre dia e noite, oceano e continente, alvorada e poente, enquanto gira em sua rotação infinita e enquanto a nave orbita em torno dela. Da tranquilidade da visão da Terra observada do espaço, a situação de um grupo de astronautas que faz manutenção externa no telescópio de sua nave se complica quando destroços de um satélite que explodira são lançados em direção a eles em alta velocidade. A cena é impressionante, angustiante, continuamente tensa e realizada com primor por Cuarón.
* Como não encontramos a cena toda, do início ao fim, vai ela aqui em dois segmentos, sendo o segundo, mais especificamente, o do momento da colisão.

"Gravidade" - 1
"Gravidade" - 2



6. "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese (1990) - Cena emblemática do grande filme de Martin Scorsese. A sequência, apresentada como tal, sem interrupção, serve para nos introduzir ao universo dos mafiosos que protagonizam a ação. Ao partir do exterior de uma casa de espetáculos, circular entre os clientes que esperam na fila para entrar no lugar, adentrar clandestinamente pela cozinha, expôr toda a intimidade venal do protagonista, Ray Liotta, com manobristas, porteiros, seguranças, cozinheiros, garçons, até vê-lo conseguir um lugar com visão privilegiada de frente para o palco, o diretor nos oferece uma certa cumplicidade deixando nos "participar" daquele ambiente contaminado por trocas, favores, dinheiro e interesses. 






7. "Boogie Nights - Prazer Sem Limites", de Paul Thomas Anderson (1998) - Este ótimo filme tem, na verdade, dois belos planos-sequência. Um deles bem parecido com o mencionado acima, de "os Bons Companheiros", de Martin Scorsese, por quem, é inegável que o diretor Paul Thomas Anderson fora bastante influenciado, em especial no filme em questão, uma espécie de "Touro Indomável" pornô. "Boogie Nights" acompanha a trajetória da revelação Dirk Diggler dentro da indústria do cinema pornográfico paralelamente às de outros elementos que fazem parte daquele mundo  como diretores, atrizes, empresários, etc. Uma destas pessoas é Little Bill (William H. Macy), um assistente de direção, marido de uma estrela pornô que, constantemente traído por ela (veja a ironia da coisa!), na festa de ano novo, na casa do diretor, depois de se deparar com a esposa mais uma vez na cama com outro e, como de costume, ser humilhado por ela, resolve dar fim a seus dias de corno manso protagonizando o outro grande plano sem cortes do filme ao qual me referiA cena que inicialmente parece alegre pela comemoração do reveillón, transita pelo cômico ao vermos mais uma vez aquele personagem sonso sendo chifrado, ganha ares de expectativa quando ele sai do quarto onde estava a esposa, de curiosidade quando ele vai até o carro, por um momento parece nos fazer relaxar quando achamos que ele resignado simplesmente vai ligar o carro e ir embora da festa, surpreende-nos quando percebemos que na verdade fora pegar uma arma no porta-luvas, torna-se tensa quando ele retorna ao local da traição, e ganha cores finais de tragédia com o insperado desfecho. Grande cena em que Paul Thomas Anderson dirige magistralmente não somente sua cena e como também as emoções do espectador.





8. "Oldboy", de Park Chan-wook (2003) - Este drama policial de vingança coreano inspirado em um mangá japonês tem um das cenas de luta mais incríveis de todos os tempos no cinema e o que é mais legal é que ela é feita de uma tacada só. Quando o protagonista Dae-su descobre onde fora aprisionado por quinze anos, volta ao lugar para obter pistas de quem fizera aquilo com ele. Embora consiga informações com uma certa "facilidade" (a custo de uma certa persuasão violenta), é lógico que o pessoalzinho de lá não ia facilitar em nada a saída do nosso herói daquele prédio. Aí é que a coisa fica feia! Uma porrada de capangas do dono do lugar armados de tacos de beisebol, paus e barras de ferro se amontoam à frente de Dae-su num estreito corredor para impedir sua passagem. Impedir a não ser que... A não ser que Dae-su enfrente aquele monte de gente. E é o que ele faz. Armado inicialmente apenas com um martelo, nosso herói parte pra porrada e, apesar de solitário com a vantagem dos anos ociosos que teve no cativeiro quando, sem nada melhor para fazer e já planejando uma vingança, tratou de treinar e aprender lutas na TV. Como se fosse num desenho animado, a câmera se coloca paralelamente à luta como se estivesse dentro da parede, acompanhando o ir e vir da horda que ataca covarde e atabalhoadamente aquele único homem. É pancadaria pura!!! Além do fato de não ter interrupções, a cena ganha em realismo pela intensidade, pelo desgaste físico dos lutadores que cansam, descansam, caem, levantam, se ferem, mancam, numa espécie de espontaneidade ensaiada que apesar do exagero, quase convence e arrebata em cheio quem assiste à cena.
Um dos melhores filmes de ação dos últimos tempos, admirado por Quentin Tarantino e, não por acaso, vencedor do prêmio do júri em Cannes em 2004 no ano em que este presidiu a mesa do festival.






9. "Breaking News - Uma cidade em alerta", de Johnie To (2004) - E permanecemos no oriente, mais especificamente em Hong Kong com essa preciosidade que é o plano-sequência de abertura do policial "Breaking News" do diretor Johnnie To. Devo admitir que não assisti a este filme, só topei com essa sequência por aí, pela internet e fiquei simplesmente fascinado. Meu Deus, que cena incrível! Cuidada nos mínimos detalhes. Cada posição de câmera, cada deslocamento, cada movimento dos personagens, de figurantes... É um reflexo num espelho, é um rosto num retrovisor, é um jornal caindo num para-brisa, detalhes que fazem do PS de "Breaking News" algo digno de verdadeira admiração. 






10. "A Marca da Maldade", de Orson Welles (1958) - Uma das cenas desta técnica mais famosas e emblemáticas do cinema. Cena que é uma verdadeira bomba-relógio. A ação começa com uma bomba sendo acionada e colocada debaixo de um carro que parte e ao qual passamos a acompanhar enquanto ao seu redor desenrolam-se situações corriqueiras como a de um casal conversando, que no caso é o do detetive Vargas (Charlton Heston) e sua esposa (Janeth Leigh), prestes a cruzarem a fronteira do México para os Estados Unidos. Numa coreografia mágica de elementos em cena e um magistral jogo de luz e sombras, embalados pela precisa trilha sonora de Henry Mancini, depois de estabelecida a tensão pela existência de uma bomba e a expectativa pelo momento de sua explosão pelo entra e sai do carro no enquadramento, a cena só é interrompida pela explosão que desencadeia então toda a ação do filme. Obra prima do genial Orson Welles. considerado por muitos um os melhores filmes de todos os tempos e seu plano-sequência, como não poderia deixar de ser, um dos mais lembrados e cultuados entre os cinéfilos.






10+1. "Festim Diabólico", de Alfred Hitchcock (1948) - Se já é bom um plano-sequência de três, de cinco, de dez minutos, o que dizer então de um de uma hora e vinte? Sim, um filme inteiro sem cortar. Poderia mencionar aqui o bom e eletrizante "Victoria", o oscarizado 'Birdman" mas prefiro ficar com o pai de todos quando o assunto é cena contínua. Hoje em dia com os recursos técnicos é "moleza" fazer um PS tão longo, queria ver fazer quando ninguém tinha feito. "Festim Diabólico", de Alfred Hitchcock, praticamente inaugurou a prática, e isso lá em 1948, sem as condições técnicas mais adequadas para o intento uma vez que os rolos de filme da época não permitiam que se rodasse todo o filme de uma vez só. Se, infelizmente, a tecnologia não acompanhava a cabeça de um gênio, o que fazer? Hitchcock, sempre que necessário, aproximava então a câmara de algum fundo escuro, como as costas de algum personagem, é trocava o rolo. "Ah, mas então não é um filme inteiro sem cortes!". Tá bom. Pode não ser, mas então são dez planos sequência orquestrados de maneira não menos brilhante com os atores por vezes servindo de cinegrafistas, com a câmera passando de mão em mão para se reposicionar; com o fundo da cena, na janela, de um fim de tarde para o anoitecer; com as paredes do cenário se movendo sobre rodas para dar espaço para as câmeras retornarem às suas posições, e tudo isso sem falar na capacidade de fazer de um assassinato quase banal, por motivo fútil, algo extremamente instigante e envolvente. Amém, Hitchcock, amém!
O baú, com o cadáver, que serve ao mesmo tempo de mesa para a pequena festa e de caixão.
Ao fundo, no cenário mutável da janela, a tarde vai caindo.

"Festim Diabólico" - filme completo


Poderia citar aqui mais um monte de planos-sequência incríveis, cada um admirável por suas próprias razões, seja pela complexidade, pela emotividade, pela duração, pela técnica, pelo ritmo, pela estética, ou qualquer outro motivo, mas acredito que os 11 citados acima além de comporem uma boa síntese do uso desta técnica, contém elementos que, particularmente, me fizeram um apreciador deste recurso no filmes.  Em todo caso, aí vão mais alguns que poderiam estar na lista e que merecem menção: a cena que o policial, Sam Rockwell, ganhador do Oscar pelo papel, invade a agência de publicidade no recente "Três anúncios para um crime", de Martin McDonagh; a abertura do fraco "A Fogueira das Vaidades", de Brian de Palma; a sequência "mágica" da morte do personagem de Jack Nicholson na cama do hotel em "O Passageiro - Profissão: Repórter" de Michelangelo Antonioni; a surpreendentemente boa cena de fuga e luta com zumbis no fraco mas eletrizante "Dead Rising: Watchtower", de Zach Lipovski, baseado no game de mesmo nome; a curta mas não menos linda e bem executada cena do incêndio de "O Espelho", de Andrei Tarkovski; a abertura e os créditos do premiado filme brasileiro "Durval Discos", de Ana Muylaert; a cena do carro rodeando Norma Bengel na praia, no clássico nacional "Os Cafajestes", de Ruy Guerra; e a cultuada cena do filme tailandês 'O Protetor", de Prachya Pinkaew, que demorou quatro dias para ser filmada.
Tem muito mais, é claro. Se o seu preferido não estiver aqui ou sentir falta de algum outro que mereça ser mencionado, não fique constrangido e indique nos comentários.




por Cly Reis