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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Cantar" (1974)


Canto, Recanto

"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso



Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966 – embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto, foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.

Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards MacaléRogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.

Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”, agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de pólen colorido no negror dos anos de chumbo.

O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida. “Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a situação política e moral do país: “Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E finaliza, numa exclamação: “Quando a gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.

Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor de Maracujá”, um soul funkeado ao estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana, vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar lá em cima da escala na última palavra: “Mas da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.

Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas. Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco – por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita uma espécie de beat-box, expediente que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”, dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no exílio.

A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas lunar e flórea do disco como um todo: “O mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do céu”.

Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam retoricamente: “Quem foi que disse que a mulher não voa?” Voa, sim.

Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso, diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta da saudade” mencionado na letra!

“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam. Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela, fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento, “Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está “no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.

"Barato Total" - Gal Costa



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FAIXAS:

1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”, Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
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Ouça:








terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Nei Lisboa - Show "Duplo H" - Teatro Renascença - Porto Alegre/RS (12/06/2018)




Sou daqueles diletantes que comemoram datas de aniversários dos discos que gosto. Tenho feito isso direito no Clyblog por meio, principalmente, de resenhas da seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, que me dão oportunidade de falar a respeito de obras que admiro e ainda homenageá-las por estarem completando alguma idade fechada. Agora, nas comemorações de 10 anos do blog, tivemos o prazer de ter um desses discos aniversariantes resenhado pelo músico, escritor e jornalista Arthur de Faria: o “Hein?!”, do Nei Lisboa, que completa 30 anos de lançamento em 2018. Pois que, justo no Dia dos Namorados, tive – junto com Leocádia Costa, obviamente –, a felicidade de conferir pela primeira vez um show desse talentoso artista gaúcho especial não somente às três décadas do referido “Hein?!” como, igualmente, aos 20 de outro ótimo trabalho de sua discografia: o ao vivo “Hi-Fi”.

O show, muito bem intitulado “Duplo H”, referência às letras iniciais em comum do título de cada disco, fez lotar o Teatro Renascença em duas sessões naquele dia, sendo a anterior a que assistimos extra, devido à grande procura. Tocando os dois discos inteiros e na sequência, um simpático e sempre sagaz Nei Lisboa hipnotizou o público com o repertório ao mesmo conhecido, mas capaz de emocionar ao ser reouvido – ainda mais considerando a egrégora particular da ocasião.

Com Nei e Paulinho Supekóvia no violão/guitarra e Luis Mauro Filho ao piano/teclados, a apresentação deu a largada, conscientemente, pelas 14 faixas de “Hi-Fi”, cujo formato acústico original mostrou-se ideal para “começar os trabalhos” e por caber mais a este tipo de formação do conjunto. Os standarts, hits e AOR da música pop internacional, muito bem pescados por Nei para o set-list de “Hi-Fi”, são imbatíveis, visto que muito afins com o estilo e gosto pessoal dele. Tocando e, principalmente, cantando muito bem, Nei e a banda executaram as versões já tão queridas quanto suas originais, oscilando entre o folk, o blues, o country rock e as baladas no estilo da “Mellow Mafia” dos californianos anos 60/70. Casos de “Everbody's Talking”, do norte-americano Fred Neil; a linda “Summer Breeze”, da dupla setentista Seals & Croft; a beatle “Norwegian Wood”; “Fifity Ways to Leave you Lover”, do craque Paul Simon; e a sensibilíssima releitura de “Still... You Turn Me On”, da Emerson, Lake & Palmer.

Nei, ao centro, com sua enxuta e competente banda
Isso sem falar na emocionante “Cool Water”, de Bob Nolan e imortalizada na voz de Joni Mitchell, no reggae estilizado para “I Shot the Sherif”, de Bob Marley, no bluesão “Walking Away Blues”, de Ry Cooder, e em “Ruby Tuesday”, dos Rolling Stones, que, segundo Nei, embora não tenha entrado no show acústico em 1998, foi gravada em estúdio obedecendo a mesma ideia de arranjo, pois, “se tinha Beatles, não poderia faltar uma dos Stones”.

Completado “Hi-Fi”, agora era partir para as desafiadoras 11 faixas de “Hein?!”. Desafio duplo: primeiro, porque a formação do grupo não contava com bateria, fator essencial para a sonoridade do disco de 1988. “Como Nei vai resolver o arranjo?”, perguntava-me enquanto curtia o primeiro “H” da noite. O segundo desafio era mais íntimo ao próprio autor, uma vez que o disco foi composto sob a aura de uma tragédia na vida de Nei: a perda da então namorada, Leila Espellet, com quem se acidentou de carro na estrada, matando-a. “Como está o coração dele hoje, passadas três décadas, depois daquele acontecimento fatal? O que guarda no peito ainda: culpa, remorso, saudade, serenidade?”, passava-me à mente.

Parte da resposta veio na conversa com a plateia antes de começarem os números. De forma muito aberta e bonita, Nei pediu uma salva de palmas à memória da ex-companheira e executou na íntegra aquela que é apenas uma vinheta de abertura no álbum, “Zen”, escrita para o filho de Leila, à época com apenas 6 anos de vida. A música, a qual não conhecia por completo, apenas os poucos versos que foram parar na edição final de “Hein?!”, são um tocante recado de conforto de um padrasto talvez tão perdido e triste quanto àquele então pequeno órfão. “A vó da gente é mãe/ Da mãe da filha/ A filha da tia/ O pai do filho/ O espírito são/ Gente do bem, do mal/ Gente gorda, gente fina/ Quando vai pro céu/ O céu se ilumina”, diz a letra. Noutra parte (que também não consta no disco), Nei mostra o quanto aquelas palavras são tanto para ele quanto para o garoto: “Não tem desculpa, não tem culpa/ A culpa é sempre minha/ A culpa é da vizinha/ É uma chatice infernal.”

Um show carregado de canções fortes e emocionais já começou assim! O coração seguiu batendo forte com “No Fundo” e a brilhante faixa-título, uma das melhores do cancioneiro do gaúcho de Caxias do Sul. Nela foi possível conferir o acerto na escolha do arranjo, visto que se trata de uma música-chave do disco e que, se não funcionasse sem a bateria (possante nas baquetas de Renato Mujeiko no disco de 1988), correria sério risco de perder intensidade e, por consequência, identidade. Não foi o que aconteceu. Harmonizando com o arranjo dado à primeira parte do show, o formato violão/guitarra/teclado se encaixou muito bem também na segunda metade da apresentação. A mesma sensação ficou em outras duas igualmente adoradas por mim e pela plateia: a sentida “Nem Por Força” (“Nem por força do diabo/ Eu volto a vegetar/ Nessas malditas esquinas/ Na pressa de te encontrar”) e “A Fábula (Dos 3 Poréns”), debochada mas igualmente ferida pela perda que a motivou ser escrita: “Quebrei uns vinte, trinta espelhos/ De perguntar/ Se tinha alguém mais bela que ela/ Noutro lugar/ Comi todas maçãs da feira/ Pra adormecer/ E em vez do príncipe encantado/ Veio um baixinho assim”.

“Faxineira”, um blues elétrico, ganhou uma sonoridade de piano-bar muito adequada, além de uma leve modernização na letra que, segundo Nei, são para a “faxineira empoderada” dos tempos atuais. Outras que sofreram adaptação para o arranjo foram a country-rock “Fim do Dia”, menos acelerada, e o sucesso “Telhados de Paris”, que, embora parecesse a mais fácil de se adaptar – haja vista que é originalmente só no violão e voz –, ganhou o acertado acompanhamento do piano de Mauro Filho e teve a linha vocal levemente modificada. Nada que comprometesse um dos hinos da Porto Alegre moderna.

Mas os questionamentos que levantei intimamente no início do show sobre o envolvimento emocional de Nei Lisboa com o marcante motivo de “Hein?!”, mesmo que não tenham sido respondidos totalmente, deram-me a entender que permanecem de alguma maneira ainda latente nele, homem amadurecido e vivido em relação àquela época da composição do disco, anos 80. O que talvez tenha me passado a impressão de que as baladas não eram de uma época, assim, tão remota foi a supressão dos últimos versos de uma das preferidas da galera: “Baladas”. Emotiva, a canção fala sobre a referida perda de Leila e a briga interna para manter-se íntegro e desvencilhado do passado. Porém, os versos de “Baladas” escritos depois do acidente, como relatou Arthur de Faria, desta vez não foram cantados: "Só, muito além do jardim/ Viajo atrás de sombras/ Não sei a quem chamar/ Mas sei que ela diria ao acordar/ ‘Tudo bem/ Você me arrasou, meu bem/ E qualquer dia desses eu como as tuas bolas/ Mas agora esqueça o drama na sacola/ Não puxe o cobertor/ Não tape o sol que resta nessa dor’/ Foi bom: não durou”.

Se Nei optou por não cantá-los por não enxergar-lhes mais sentido ou por qualquer outro motivo, os da talvez ainda mais carregada “Teletransporte nº 4” foram ditos na íntegra. Faixa que finaliza o disco num clima de balada triste, foi tocada exatamente como é originalmente: violão, guitarra, piano e muita dor. E que versos fortes! “Porém o céu parece estúdio/ Nem o silêncio não diz nada/ Mesmo essas frases vão pro lixo/ São como lenços de papel/ Ainda por cima aquelas pernas/ Algumas coisas serão eternas/ Que bela ideia acreditar/ Que o mundo te aprendeu.” Para arrebatar os corações apaixonados em pleno 12 de junho.

Depois de 25 sessões em que a carga emocional só foi aumentando, partindo das músicas de “Hi-Fi” para as de “Hein?!”, Nei Lisboa encerra com uma que não entrou no repertório do primeiro por acaso: “Live and Let Die”, de Paul McCartney, numa competentíssima versão que dispensou até a orquestra que embala as aventuras de James Bond. Show perfeito do início ao fim deste que é um dos ícones da cultura de Porto Alegre. Se já tinha assistido ao vivo Tangos & Tragédias, Replicantes, De Falla, Renato Borghetti e Orquestra da Ospa na Praça da Matriz, faltava-me um show de Nei Lisboa para completar a lista dos patrimônios culturais da minha cidade. Uma estreia de luxo.

SET-LIST:

"Hi-Fi":
1 Everbody's talking   
(Fred Neil)
2 Bennie & The Jets  
(Bernie Taupin, Elton John)
3 Summer breeze  
(Dash Crofts, Jim Seals)
4 Norwegian wood  
(John Lennon, Paul McCartney)
5 Sometimes it snows in April  
(Lisa Coleman, Rogers Nelson, Prince, Wendy Melvoin)
6 Fifty ways to leave your lover   
(Paul Simon)
7 I'm having a gay time  
(Alberta Hunter)
8 That's why God made the movies  
(Paul Simon)
9 Walking away blues  
(Ry Cooder, Sonny Terry)
10 Still... you turn me on  
(Lake)
11 Cool water  
(Nolan)
12 Ventura highway  
(Deney Bunnel)
13 I shot the sheriff   
(Bob Marley)
14 Ruby Tuesday  
(Mick Jagger, Keith Richards)


"Hein?!"
15 Zen [Vinheta] 
16 No fundo 
17 Hein!? 
18 Nem por força 
(Ricardo Cordeiro, Nei Lisboa)
19 A fábula [Dos três poréns] 
20 Faxineira 
21 Baladas 
22 Rima rica / Frase feita 
23 Fim do dia 
24 Telhados de Paris 
25 Teletransporte n 4 
(Glauco Sagebin, Nei Lisboa)
Todas composições de Nei Lisboa, exceto indicadas

Bis:
26. Live and Let Die
(Paul McCartney) 



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Mesma melodia, letras diferentes


O fato de apresentar o programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, é meio que mera desculpa minha para ir à cata de listas. Sempre gostei de criá-las a partir das coisas que curto, das criteriosas às mais estapafúrdias. Uma dessas que me veio à mente para usar no programa se refere a músicas que têm a mesma melodia, mas letras diferentes. A parte musical e o arranjo podem ser idênticos, mas o que é cantado, não. Às vezes, até melodias de voz e cantores diferentes. Dois lados da mesma moeda ou - por que não? - do mesmo disco.

Numa rápida pesquisa de memória, o interessante foi perceber que essa prática é comum nos mais diferentes gêneros, culturas e locais. Seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Inglaterra ou até na Jamaica, não há quem resista em usar aquela base que ficou superlegal de um outro jeito, numa outra roupagem. 

Pra compor esta lista de 15 + 1 exemplos, ainda contei com a ajuda de meu irmão e parceiro de blog Cly Reis, que contribuiu com algumas das duplas de músicas as quais não tinham me ocorrido.

Tom Zé e Tim: ambos com duas duplas
de músicas na lista
Importante ressaltar que não valem músicas até então instrumentais que ganharam letra depois de um tempo, casos de “Valsa Sentimental” (de Tom Jobim, que, quando letrada por Chico Buarque, virou ”Imagina”) e “A Rã” (originalmente, “O Sapo”, de João Donato, que passou a ter esse novo título na letra de Caetano Veloso). Neste caso, aceitou-se como exceção quando uma delas é instrumental e a outra cantada, mas desde que pertençam a um mesmo artista e que este as tenha composto para um mesmo projeto.

Igualmente, não se incluem canções “reprise” ou de letra mesmo que diferentes entre si, mas que se tratam de duas partes da mesma, nem mesmo versões para idioma diferente do original feita por outro artista. Músicas “irmãs”, tipo “Blue Monday” e “586”, da New Order, ou “Crush with Eyeliner” e “I Took Your Name”, da REM, não cabem, nem muito menos aquelas que samplearam a “alma” do tema que a inspirou, como o rap norte-americano costuma fazer. Essas todas ficam de fora – quem sabe, guardam-se para uma futura outra lista...

Do blues ao samba, do industrial a soul, do shoegaze ao psicodelismo. Têm dobradinhas bem interessantes e variadas.


1. "João Coragem"/ "Padre Cícero" - Tim Maia
Em 1970, Tim estava gravando seu disco de estreia quando Nelson Motta aparece no estúdio e fica maravilhado com "Padre Cícero". Tanto que pediu para Tim e Cassiano alterarem a letra para a música entrar na trilha da primeira novela da Rede Globo, "João Coragem".

2. "Sister Midnight"/ "Red Money" - David Bowie
A fase berlinense rendeu coisas maravilhosas e simbióticas para Bowie. "Sister Midnight", composta por ele e Iggy Pop para abrir "The Idiot", de Iggy, de 1977, serviu para o próprio Bowie finalizar sua própria trilogia na capital alemã dois anos depois com outro título e letra.

O mestre da "preguiça" baiana sabia muito bem fazer sambas geniais com pouquíssimos versos, quando não quase repetidos. Aqui, o que Caymmi repete é a parte instrumental idêntica a ambas, mas com melodias de voz e letras totalmente diferentes entre si.

"Strange Brew", que abre o cláscico disco "Disreali Gears", de 1967, é tão boa que dá vontade de reescutá-la. Não precisa, pois Clapton/Bruce/Baker a põem no fim do disco, só que com outro nome e letra. 


5. "Mã""Nave Maria" – Tom Zé
Uma mais percussiva, a outra mais world music, mas ambas de abertura de seus discos "Estudando o Samba", 1976, e "Nave Maria", 1984) e sobre o genial riff do baiano de Irará.

6. "Teenage Lust"/ "Heat" - Jesus & Mary Chain
"Teenage Lust" é um clássico da banda que coroa uma fase inspirada, marcada pelo disco "Honey's Dead", de 1992. "Heat", por sua vez, está na coletânea de B-sides "Stoned and Detoned", de um ano depois.

Vindo de Moz, artista que produz muito, não seria estranho haver esse tipo de repetição. No caso, "Alma Matters", hit do disco "Maladjusted", de 1997, tem como sombra "Nobody..,", da coletânea "My Early Burglary Years", de 1998.

8. "Waiting""Do You do It?" – Madonna
No talvez melhor disco de Madonna, "Erotica" (1992), a ousadia de pôr um mesmo tema duas vezes, sendo a segunda cantada não por ela, mas pelos rappers Mark Goodman e Dave Murphy.

9. "Pocket Calculator"/ "Dentaku" – Kraftwerk
Totalmente iguais, não fosse uma ser cantada em inglês e a outra em japonês. Aí os alemães conseguiram fazer, pro disco "Computer World", de 1981, duas obras totalmente diferentes sendo a mesma coisa.

Quase iguais, não fosse o título e algumas partes da letra. Mesmo estando no mesmo disco, o clássico "Pet Sounds", de 1966, é tão bonita que não há nenhum problema em "reouvi-la" com pouca diferença entre uma e outra.

11. "Os Escravos de Jó"/ "Caxangá" – Milton Nascimento
A censura, que comeu praticamente todas as letras de "Milagre dos Peixes", de 1973, inclusive "Os Escravos de Jó", parceria de Milton com Fernando Brant, já havia abrandado um pouco anos depois quando Elis Regina gravou "Caxangá" e depois o próprio Milton.

12. "Graveyard""Another" – P.I.L.
A instrumental "Graveyard", de "Metal Box" (1979), é, literalmente, a "Outra" em "Commercial Zone", disco de sobras de estúdio da mesma época. Coisas da cabeça conceitual de John Lydon e sua Public Image Ltd..

13.  "Jimi Renda-se"/ "Dor e Dor" – Tom Zé
A mente inquieta de Tom Zé faz com que, mais de uma vez, ele revisite a própria obra. Assim como "Mã"/"Nave Maria", a metaliguagem pega nestas duas também, de 1970 e 1972 respectivamente.

14. "Slave to the Rythmn""The Fashion Show" – Grace Jones
O disco de Grace "Slave to the Rhythm", de 1985, em si, é todo cunhado sobre a mesma base, mas estas duas não não são iguais pela letra.


15. "With no One elseAround"/ "Pra Você Voltar" – Tim Maia
Tim não tinha vergonha de reaproveitar melodias suas mais de uma vez, mas aqui ele fez melhor: uma em inglês, para o arrasador álbum de 1978, e outra na língua de Camões, um ano depois ("Reencontro"), em que até o sentido das letras são totalmente diferentes.


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+1. "À Flor da Pele""À Flor da Terra" – Chico Buarque
O título é igual, "O que Será?", eu sei, mas o fato de o subtítulo ser diferente faz, com perdão da redundância, toda a diferença. Escritas por Chico para a trilha sonora de "Dona Flor e seus Dois Maridos", de 1976, uma inicia o filme e outra o encerra - e as letras são totalmente distintas.


cena final do filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos" - tema: "À Flor da Pele"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Tribalistas - "Tribalistas" (2002)


“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”. 
Da canção “Mary Cristo”

Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.

A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.

A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.

Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.

Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual
na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.

Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos  - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.

A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.

"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).

Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.

Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.

O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.

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Clipe de "Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"


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FAIXAS:
1. "Carnavália" - 4:16
2. "Um a Um" - 2:41
3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10
4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54
5. "O Amor É Feio" - 3:11
6. "É Você" - 2:51
7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36
8. "Mary Cristo" - 3:00
9. "Anjo da Guarda" - 2:47
10. "Lá de Longe" - 2:17
11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58
12. "Já Sei Namorar" - 3:16
13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Tribalistas - "Tribalistas"

Daniel Rodrigues