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domingo, 26 de outubro de 2025

"Se Eu Fosse Minha Mãe", de Gary Nelson (1976) vs. "Sexta-Feira Muito Louca", de Mark Waters (2003)

 


Sabe quando um time não tá funcionando bem, pinta aquela crise no vestiário e um setor começa a reclamar do outro? O pessoal do ataque cobra da defesa por tomar tantos gols, mas aí o pessoal da zaga argumenta que os atacantes não tem a menos noção da dificuldade que é marcar porque nunca se preocupam com isso e não ajudam nem na saída de bola. Os dianteiros, por sua vez, se defendem alegando que o meio deveria colaborar mais, que jogam muito espaçados e que o volante deveria proteger a área. Aí é a meiúca que acusa os laterais de avançarem muito e deixarem a parte defensiva muito exposta. Os homens dos flancos, por seu turno, ofendidos, alegam que tem que ir e voltar o tempo todo e que ninguém trabalha como eles no time... "Queria ver se fossem vocês!", dizem. Enfim, ninguém se entende!

No nosso duelo cinefutebolístico da vez, pegamos dois filmes em que, exatamente, uma personagem não tem a exata noção das dificuldades da outra e acaba precisando viver na pele os problemas do outro lado para perceber que perrengues não são exclusividade sua.

"Se eu Fosse Minha Mãe" e "Sexta-Feira Muito Louca" têm basicamente a mesma história. Mãe e filha, intolerantes às questões da outra, depois de uma discussão (mais uma!!!) acabam por um incidente metafísico trocando de lugar, mudando de corpo. A mãe no corpo da filha e a filha no corpo da mãe, mas com a mesma cabeça, os mesmos conceitos, os mesmos pensamentos e preocupações. Em nome de manter as aparências e tentar deixar as coisas sob controle até que, de alguma forma, tudo volte ao normal, elas concordam em assumir seus papéis durante aquele dia e cumprir as tarefas uma da outra. Aí é passar um dia encarando os desafios cotidianos do outro lado tão subestimados por cada uma delas.

No original de 1976, a mãe, Ellen, vivida por Barbara Harris, é meramente uma dona de casa e suas particularidades basicamente se limitam à rotina do lar, como preparar a comida, lavar a roupa, cuidar do marido, solicitar manutenções, etc., retrato da época e do padrão desejado para uma mulher na sociedade dos anos 70. O universo da filha Annabelle, vivida por uma jovem Jodie Foster ainda em seus tenros 14 anos, além da escola, do convívio das amigas, inclui atividades esportivas nas quais, por sinal, ela se destaca, como hóquei e esqui aquático, o que representará dificuldades adicionais a quem assuma sua identidade.

Não precisaria nem dizer que a filha, no corpo da mãe, em casa tendo que atender o fogão, máquina de lavar, serviços de entrega, relações sociais e tudo mais, fica perdidinha e só toma decisões erradas. E a mãe, na escola, no corpo da filha, além de perceber que o universo escolar é mais complexo do que imaginava, nas atividades extraescolares não terá a menor destreza com tacos de hóquei, esquis e coisas do tipo.

Na refilmagem de 2003, a atualização é preciosa e rende muitos ganhos à nova versão. Tess, a mãe, interpretada por Jamie Lee Curtis, é uma mulher independente, de sucesso, trabalha fora, é viúva mas tenta dar uma nova chance à sua vida com um novo parceiro que, por sinal, é muito mal recebido pela filha adolescente Anna, ainda muito sentida pela perda recente do pai. Anna tem preguiça pra acordar pra ir pra escola, briga com o endiabrado irmãozinho menor, não é má aluna mas tem suas dificuldades na escola, seja com outras meninas, seja com professores implicantes. Tem uma quedinha por um gatinho da escola, tem personalidade forte, discute com a mãe por quase tudo e tem uma banda de rock que além de seu lazer, seu prazer, é quase seu escape para todo os estresses do dia a dia. O problema é que a mami não vê  bem assim. Acha que é só uma barulheira, é só mania, brincadeira de adolescente, que não tem importância alguma e no dia que pode ser o mais importante para o futuro musical da filha, ela quer pôr seu interesse à frente obrigando a garota a ir em sua festa do noivado com o futuro padrasto. Aí não, né! É claro que vai dar treta! Tá certo que Anna tem que entender que a mãe precisa de uma nova chance na vida, passado o luto, e que aquele é um momento especial, mas Tess também podia ter um pouquinho de noção que uma batalha de bandas, uma chance de mostrar seu talento, exibir aquilo que você curte e faz bem, de se autoafirmar como pessoa, é algo que não se pode deixar passar.

Só esse recorte já demonstra o quanto "Sexta-Feira Muito Louca" é mais bem estruturado, mais bem costurado, bem construído, ao passo que o outro tem questões pontuais, dilemas mais isolados e o problema final que é o de Ellen no corpo da filha tendo que participar de uma demonstração de esqui, enquanto Annabelle no corpo da mãe, com uma licença de adulto mas sem nenhuma prática na direção, tem que dirigir até o local do evento aquático para impedir que algo de pior aconteça à filha..., digo à mãe..., a mãe que na verdade é filha... Ah, sei lá! Até já me confundi.

Fato é que o remake é muito superior. A própria troca de papéis tem uma "lógica" mais justificável na segunda versão, com os biscoitos da sorte no restaurante chinês, do que no primeiro filme quando se dá simplesmente durante mais uma discussão na qual ambas acabam falando ao mesmo tempo. Sem falar na rotina escolar de Anna, no cotidiano mais complexo da mãe, na relação mais engraçada da garota com o irmão, a situação do namoradinho que se encanta com a mulher mais velha, que no primeiro é meramente um bocó da vizinhança enquanto na refilmagem é um gatão de moto e que tem participação relevante em um elemento importante da trama.  Ou seja, "Sexta-Feira Muito Louca" tem tudo para passar por cima de "Se Eu Fosse Minha Mãe".

Mas futebol e cinema se decide dentro das quatro linhas e, apesar das aparências, o filme de 1976 não é nenhuma galinha-morta. Dois times com boas duplas de ataque! De um lado, "Se eu fosse minha mãe" tem a belíssima Barbara Harris num papel até bem competente dadas as limitações do personagem, e a jovem Jodie Foster que viria a ter dois prêmios The Best FIFA na estante (ou seja, dois Oscar da Academia) mas que até aquele instante era apenas mais uma boa promessa do sub-15. Mas se não era possível prever que no futuro aquela adolescente sardentinha seria uma oscarizada, quem apostaria que um dia a final-girl de Halloween, Jamie Lee Curtis também teria um Oscar pra chamar de seu? Pois é, alguns anos depois, uma das primeiras rainhas do grito, também viria a levar seu 'premio FIFA' por "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo". Ou seja, se o negócio é prêmio grande, TEMOS.  E pros dois lados.

Já a mãe da versão original e a filha da versão nova, nunca chegaram a ter essa projeção toda, embora Harris tenha recebido uma indicação ao Oscar e Lindsay Lohan tenha sido um ícone de sua geração especialmente nas comédias juvenis. O problema com LL é que foi tipo aquele jogador porra-louca que teve bom desempenho em duas ou três temporadas depois de subir pro profissional mas estragou tudo e jogou a carreira fora.

Mas, pasmem, aqui, no estágio da carreira de cada uma, a Lindsay 'Lôca', supera a bi-oscarizada Jodie Foster. O retrato de adolescente, as particularidades da sua época, as atualizações do roteiro, a parte musical, favorecem enormemente a maluquete dos anos 2000 e ela desequilibra a favor do seu time.

"Se Eu Fosse Minha Mãe" - Abertura


Apesar de tudo indicar uma vitória fácil do remake, para surpresa geral, o original é quem abre o placar nos primeiros segundos de jogo. A abertura em animação, graciosa e cativante é um diferencial do time de 1976. Muito bonitinha! Gol relâmpago! SEFMM 1x0.

Mas parece que era tudo que o time setentista tinha para dar. A dinâmica do remake, os contextos familiar e escolar, a atualização do olhar sobre a mulher, a introdução do elemento do padrasto, a existência da banda, tudo isso representa um ganho considerável para o novo filme. Jogada coletiva, toca daqui toca de lá e SFML empata rapidamente. 1x1.

Numa tabelinha espetacular de Jamie Lee Curtis com Lindsey Lohan, SFML faz o segundo. As situações em que elas contracenam logo após a troca, quando compreendem que mudaram de corpo e teriam que encarar pelo menos um dia daquele jeito, são de se mijar de rir. Cada uma pegando as falas, as manias, os trejeitos da outra é algo absolutamente hilário! Experiência aliada à juventude e SFML vira o jogo: 1x2.

Por falar em experiência e juventude, a cena em que o crush de Anna, Jake, um rapaz da escola que ajuda na detenção, dá carona de moto para a mãe, achando que está caidinho por ela (mas é pela filha), além de saborosa e engraçada, é embalada por uma versão matadora de Joey Ramone para o clássico "What a Wonderfull World". Aí não tem como, né? É gol do time de 2003. 1x3 no placar.


"Sexta-Feira Muito Louca" - cena da moto
"What a Wonderfull World", Joey Ramone


A relação com o irmão menor é mais engraçada na segunda versão mas não faz tanta diferença para representar um gol; a origem da "maldição", com o restaurante chinês, o biscoito da sorte e tudo mais é apenas mais bem resolvida na refilmagem que o do original, mas não chega a ser nada genial e não  representa, um diferencial considerável. O que faz a diferença, sim, é a sequência final que, enquanto no primeiro filme se resume a uma desastrada demonstração de esqui aquático e uma perseguição automobilística totalmente pastelão, na nova versão tem o clímax dividido entre a festa de noivado da mãe e a batalha de bandas da filha, colocando frente a frente os interesses de cada uma e a capacidade de compreender a necessidade da outra. A sequência toda culmina em nada menos do que um show de rock com um solo de guitarra de Anna, no corpo da mãe Tess, salvando a própria pele, uma vez que a quem está ali no palco, pelo menos em corpo, é ela mesmo. Literalmente..., show!1x4.

Num jogo realizado numa sexta-feira e em que tudo parecia fora do lugar - o volante jogando de ponta esquerda, o zagueiro de centroavante, o lateral na meia - "Sexta-Feira Muito Louca" mostra mais qualidades, mais variações de jogo, troca de posições, e atropela seu original dos anos '70. Se eu fosse a Jodie Foster, eu chamava minha mãe porque a surra foi feia.

Pois é, futebol moderno exige que os jogadores atuem em mais de uma função.
Tem que aprender a jogar na posição da outra.
(À esquerda, Annabelle e Ellen, na primeira versão,
e à direita, Anna e Tess, na refilmagem)



A defesa do time de 1976 foi uma mãe e

 facilitou a vitória do time de 2003.


por Cly Reis

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

cotidianas #876 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura #2 - "Metamorphosis"




Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Gregório Barata se viu metamorfoseado num... humano. 
Estava deitado sobre suas costas, que eram peludas como a de um macaco. Ao levantar um pouco
a cabeça, viu sua barriga roliça, lustrosa, lisa que se elevava alto quase cobrindo a visão da porta daquele porão onde se encontrava.
“O que aconteceu comigo?”, ele pensou.
Enquanto refletia sobre a situação em que se encontrava, viu um pequeno grupo de baratas saindo de uma fresta e subconscientemente entendeu que era sua família. Ouviu um “Oh!”, vindo de uma delas. Estranhamente entendia o que elas diziam mesmo naquela 'língua' de insetos. "O que você se tornou, Gregório!!!", exclamou a irmã aterrorizada!
Havia se transformado num humano! Logo eles, os humanos, que haviam provocado uma guerra nuclear deixando seu próprio habitat tão impróprio à vida que agora somente as baratas que resistiam às condições radioativas da Terra, habitavam sozinhas o planeta. "Que tipo de animal é capaz de acabar com o próprio lar, de exterminar a própria espécie?" pensou a irmã. E agora o irmão se tornara aquilo. Aquela espécie de animal.
“Bem...”, limtou-se a dizer Gregorio, plenamente consciente de que agora não fazia mais parte daquela espécie asquerosa.
Percebeu que não poderia de modo algum deixar que aqueles insetos vivessem. Quem era o ser superior ali? Teria de agir. Embora mais lento que os integrantes de sua família, agora era maior e suas atuais capacidades de movimento lhe ofereciam novas possibilidades. Com alguns passos gigantes alcançou o pai e a mãe que corriam tentando em vão encontrar alguma fresta, e com pisadas firmes, esmagou a ambos.
Restava a irmã que estava acuada em um canto. Naquela posição seria mais difícil acertá-la mas, por outro lado, ela parecia tão atônita, sem reação, que talvez até fosse mais fácil. Estava certo. Ainda que suplicando, "Não, Gregório, não!", não ofereceu nenhuma resistência quando o irmão, usando o dedão do pé, pressionando entre as duas paredes, a esmagou sem qualquer remorso.
Sentiu um bem-estar físico diferente de tudo o que já sentirá em sua vida anterior de inseto.
Limpou a gosma que os cadáveres dos familiares deixaram em seus pés e, revigorado com sua nova forma, dirigiu-se à porta do porão. Teria muito trabalho para exterminar todos aqueles insetos nojentos. Mas pensou que talvez, assim como acontecera com ele, outros também tivessem tido aquela metamorfose... Poderia ter ajuda no seu plano de extermínio e, quem sabe, com fêmeas, recriar a espécie humana.
Sim, era hora de agir. Tinha que dar o primeiro passo para refazer toda a glória da humanidade.
Saiu daquele porão. A porta foi fechada e finalmente se fez silêncio.



Cly Reis
livremente inspirado em "A Metamorfose",
de Franz Kafka


quinta-feira, 9 de outubro de 2025

“Inverno da Alma”, de Debra Granik (2010)

 

O calor do frio

Há um profundo amor quase impenetrável nos meandros de determinadas obras. Como na peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, no conto “Chacais e Árabes”, de Franz Kafka, ou num filme como “O Rito”, de Ingmar Bergman. Obras duras que ainda hoje digiro. Tão intrincados de perscrutar que a própria manifestação afetiva, vencida por motivos indignos, parece nem existir. Mas ela está lá, mais viva que se possa sugerir à primeira vista. É o caso do bom “Inverno da Alma” (EUA – Winter’s Bone, 2010), da diretora norte-americana Debra Granik, cujo enredo evoca sentimentos motivadores genuínos, mesmo que encobertos de rancores, medos e inseguranças próprios do ser humano.

Premiado em Sundance e Berlim, o filme, indicado ao Oscar de Melhor Filme, conta a história de Ree Dolly (Jennifer Lawrence), uma jovem de 17 anos cuja imensa responsabilidade de gerenciar com parcos recursos uma casa com dois irmãos pequenos e uma mãe mentalmente doente é ainda mais dificultada quando se vê necessitada a encontrar seu desaparecido pai, Jessup Dolly, depois que ele põe a mesma casa como garantia de sua liberdade condicional. Diante da possibilidade de perder o teto, Ree desafia os códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo onde moram arriscando a vida para salvar sua família. O medo dos que, de alguma forma, estiveram envolvidos com seu criminoso pai, então, começa a se manifestar na forma de mentiras, defesas e agressividade.

Ree aborda várias pessoas na tentativa de encontrar Jessup. Mesmo assim, o fato de seu pai ter dívidas com muita gente parece tornar as barreiras para a verdade intransponíveis. Mas só parece. Um dos elementos utilizados pela diretora para narrar a história com sua lente segura e rigorosa são as diversas portas daquelas simples casas, ao mesmo tempo protetoras dos frios do inverno e da alma. A cada abordagem atrás de ajuda, a protagonista lança-se numa busca onde é preciso transpor as “portas” daquele “íntimo coletivo” magoado e culpado – e, por isso, instintivamente hostil.

Na primeira metade da fita, por mais que pudesse adentrar em algum lar, a tentativa é sempre nula, como se a esperança de chegar a seu único objetivo (encontrar o pai vivo ou morto) fosse imediatamente negada. Passagens que se fechavam. No entanto, o elemento simbólico dessa busca mantém-se na persistência da personagem, e é então que as atitudes passam a gerar consequências, e as soluções, de forma amarga e realista, aparecem. Seu próprio tio, Teardrop (o ótimo John Hawkes), irmão de Jessup (e tão “durão” quanto o consanguíneo), que de início lhe negara apoio, tentando com brutalidade demovê-la da empreitada, é quem, depois, convencido a ajudar a sobrinha, resgata-lhe dos inimigos com a verdadeira intenção de, a partir dali, protegê-la.

Sobre a questão da busca é impossível não referenciar o cinema iraniano, como o dos cineastas Abbas Kiarostami ou Mohsen Makhmalbaf, cujas obras são marcadas por esta representação simbólica. Eles direcionam o olhar do espectador de modo a se encontrar, junto com os protagonistas, aquele algo que existencialmente lhes faz falta. É o caso dos road movies “Vida e Nada Mais” (1992) e “Gosto de Cereja” (1999), de Kiarostami, e “Um Instante de Inocência” (1996), de Makhmalbaf, para ficar em três bons exemplos que vão exatamente nesta linha.

Provinda do cinema alternativo norte-americano, Debra tem, de certa forma, ligação com cinemas de fora do circuito comercial. Quando, no final dos anos 80, o cinema do Irã e de outras nacionalidades “exóticas”, como Japão (Kitano, Miike), Hong Kong (Kar-wai, Wang, Woo) e Dinamarca (von Trier, Vinterberg e a turma do Dogma 95), principalmente, ganharam mercado e trouxeram novas abordagens ao cinema mundial, a antenada produção alternativa dos Estados Unidos soube se aproveitar disso. O resultado foi que, com mais uma das tantas crises do cinemão americano, em meados dos anos 90, o consistente cinema alternativo, autoral por natureza, saiu somente das marginais projeções em Sundance para ganhar da situacionista Academia um espaço, agora, difícil de desocupar. Esse processo ainda em curso motiva, hoje, por exemplo, a conquista do Oscar de Melhor Filme de “Crash – No Limite” (Haggis, 2004) e a indicação ao mesmo prêmio de “Inverno da Alma”.

Ree com a família: desafio aos códigos e a lei do silêncio
do inóspito e gélido vilarejo

Essa abordagem que o filme de Debra propõe dá-lhe, portanto, contornos diferenciados do modelo hollwoodiano. A fotografia entre o azulado e o acinzentado de “Inverno da Alma”, ressaltando a seca floresta de altos e opressores pinheiros, imprime uma sensação de solidão e mistério, contrastando com a tonalidade alaranjada dos enquadramentos de rostos, tudo pontuado por uma câmera quase que invariavelmente estática. Um pouco como “Fargo”, dos irmãos Coen (1996), inocência e subversão convivem num microuniverso à parte de tudo, escancarando um ser norte-americano interiorano longe dos belos tipos de Nova York ou Los Angeles comercialmente vendáveis ao mundo. Aqui, não: são gentes pobres e feias, enrugadas, de peles e cabelos maltratados, vestidas de jeans surrados e sem nenhum sinal de sensualidade (chega a ser estranho ver um filme americano onde nada é erotizado…).

A considerar os dois longas da diretora – seu outro, “Down to the Bone”, de 2004, retrata uma mulher presa em um casamento e que luta para criar seus filhos e controlar o hábito secreto de se drogar –, percebe-se um olhar bastante humanístico e sensível sobre questões muitas vezes obscuras da vida social norte-americana, como os vícios, as desarticulações familiares e as pressões psicológicas impostas por aquela sociedade. Longe da exuberância fotográfica e mais próxima das composições visuais precisas, o estilo de Debra vale-se de um enxergar amplo das coisas, direcionando suas lentes a questões sociais e operando do externo para o interno, o que gera reações íntimas e profundas nos personagens.

Hawkes, muito bem, concorreu ao Oscar
de ator coadjuvante naquele ano
É neste pequeno mundo que, impulsionada por um desejo convicto, Ree enfrenta com coragem suas manifestas limitações: a solidão da liderança, a angústia da vida pobre, os medos, a fragilidade física de menina num recinto bruto. Isso, motivada pela autoproteção e pelo amor sincero – mesmo sem sorrisos – aos que lhe dependem. Ela transforma, assim, aquela realidade aparentemente congelada pelo frio dos corações. Jessup, segundo o irmão, não tivera essa força interna para conseguir desviar-se da contravenção e viver em paz com os filhos que tanto amava. A ternura descomplicada de Ree se estende não só aos irmãos e a mãe, mas a esta sombria figura do pai, cuja investigação acaba por lhe abrir espaço a um novo e inesperado motivo, identificando-o tanto na figura do tio, quanto no significado que a busca em si passa a representar: um encontro consigo mesma. Tal pai, tal filha.

Há uma cena em que Ree folheia com os irmãos um álbum de fotografias onde reveem fotos da família. Numa delas, está o pai, jovem e feliz ao sol. Segundo Ree, quando tinha sua idade. Essa identificação parece, aos poucos, funcionar como libertadora da jovem quanto às preconcepções de sua origem nefasta, tão alardeadas e imputadas por todos como sendo inatas dos Dolly.

Curiosamente, a forma como a Ree prova a morte do pai para, enfim, poder ficar com a casa, é levando ao delegado as mãos do morto, cortadas por uma motosserra. E por serem justamente as mãos, o aspecto do inatismo reaparece como metáfora, lembrando a dicotomia levantada por um dos clássicos do cinema expressionista alemão, “As Mãos de Orlac – O Calvário de Um Artista”, de Robert Wiene (1924) – mesmo diretor do essencial “O Gabinete do dr. Caligari”. No filme, o pianista Paul Orlac sofre um acidente de trem onde perde as mãos. Na cirurgia de emergência, transplantam-lhe as mãos do assassino Vasseur, que acabara de ser executado. Ao saber disso, o sensível músico entra em um grande conflito interno que o leva à loucura: passa a, igualmente ao “dono” das mãos, matar com elas. As mãos de Orlac assumem o caráter de um símbolo: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem revela sua humanidade ou desumanidade, elas são um signo material do sujeito, tanto como objeto da expressão dos sentimentos quanto demonstração objetiva da personalidade.

Não à toa, é com um sutil toque no ombro do seu tio que Ree, mesmo temerosa, demonstra-lhe empatia, firmando ali o elo emocional entre os dois. Ao tomar consciência da própria personalidade, as coisas começam a tomar rumos que, de uma forma ou outra, acabam se encaixando. Pela iniciativa de alguém para mudar o cenário, os corações, agora timidamente sorridentes, parecem motivar-se a se aquecer. “Vida e nada mais”.

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Cena de "Inverno da Alma", de Debra Granik


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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Clyblood #2 - "Thanatomorphose", de Éric Falardeau (2012)

 



Tanatomorfose é o nome dado ao processo morfológico de alterações que ocorrem nos organismos após a morte, o que se passa com órgãos, tecidos, células, ou seja, a deterioração do corpo.

É o que vemos acontecer em vida com a jovem Laura ao longo do filme que leva o nome deste processo biológico, "Thanatomorphose". No desconfortável e reflexivo longa do diretor canadense Éric Falardeau, Laura, uma artista plástica bloqueada criativamente, começa a sentir que seu corpo está se decompondo aos poucos. Tudo começa depois de uma noite de sexo intenso com o "namorado", um cara egoísta e abusivo com quem tem relações. Manchas e hematomas começam a surgir em seu corpo. Amigos chegam a achar que sejam resultado de agressões do namoradinho machão e ela mesmo tem dúvidas se a intensidade da transa teria causado os primeiros ferimentos. Mas será que fora mesmo a noitada de sexo ou aquele ponto de partida teria sido apenas simbólico quanto ao que já se passava com a garota? Laura se sente vazia, carente, desrespeitada, mal tratada em seu relacionamento, sem inspiração na sua arte, desconfortável em seu próprio lar... Sente que ela mesmo não é nada, que está morta, que está apodrecendo por dentro. E vamos acompanhando essa decomposição progressiva, primeiro uma feridinha, depois as unhas caindo, largas mechas de cabelo, dentes, orelha, pele. Em determinado momento, conformada, chega a parecer estar gostando da deterioração, sentindo mais prazer do que sentia com o namorado, talvez sentindo-se mais sexy do que se sentia antes. Antes sem criatividade para dar continuidade a uma escultura inacabada de argila, agora vai incorporando partes suas à obra, dedos, pele, como que se misturando ou se transferindo para a obra, tentando talvez se completar fora de si, criar uma outra Laura quem sabe melhor do que é.

Bem conduzido, "Thanatomorphose" não é um terror de sustos, de surpresas, é lento, estático, silencioso, mas é assustador pelo que está por vir. Chega a dar medo da próxima parte dela que vai cair e como isto vai acontecer. E nesse sentido, se você não vai virar o rosto ou fechar os olhos para não ver uma morte violenta como em tantos filmes de horror, vai fazê-lo para não ver a podridão avançando num corpo humano. Sem dúvida, um dos filmes mais repugnantes que já se fez.

A tanatomorfose da jovem Laura em pleno andamento...



por Cly Reis

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"Thanatomorphose"
Título Original: "Thanatomorphose"
Direção: Éric Falardeau
Gênero: Horror Corporal
Elenco: Kayden Rose, Rich-Denis Gagnon, Émile Beaudry
Duração: 100 min
Ano: 2012
País: Canadá
Onde assistir: YouTube






terça-feira, 6 de maio de 2025

BPE + Cultura - Rua Riachuelo - Porto Alegre/RS (03/05/2025)

 

Que coisa louca essa vida: há exatamente um ano atrás, Porto Alegre, assim como maior parte do Rio Grande do Sul, estava debaixo de uma chuva torrencial, que não parava há dias. Vários bairros da capital, dentre eles, parte do Centro, inundados ou sem luz. Eis que, contrariando qualquer trauma, que nós gaúchos ainda estamos aprendendo a superar, o tempo se mostra há mais de uma semana ameno, ensolarado, solar, outonal, agradável. E melhor: sem um pingo d'água sequer.

Cenário perfeito para um evento de rua - algo inimaginável naquele começo de maio de 2024. Convidado como um dos autores do BPE + Cultura, promovido todo primeiro sábado do mês pela Biblioteca Pública do RS na própria Rua Riachuelo, em pleno Centro Histórico, tive o privilégio de autografar alguns dos meus livros “Chapa Quente”, “Anarquia na Passarela” e a antologia “Lar”, lá de 2014. Ainda, rever amigos e, claro, curtir o clima desse sábado iluminado de Porto Alegre.

Na companhia amorosamente inseparável de Leocádia e da simpatia canina de Bolota, foi possível aproveitar comes, cerveja artesanal, intervenções literárias, contação de histórias, oficinas e os shows, como o de samba do competente Quinteto Benguelê. Cheios de simpatia e com uma cantora carismática e talentosa, o grupo mandou ver em vários clássicos autores do samba, como Elis Regina/Baden Powell (“Vou Deitar E Rolar”), Cartola ("Tive Sim"), Dona Yvone Lara ("Sonho Meu") e Nelson Cavaquinho ("Palhaço"). Teve também uma emocionante apresentação do grupo teatral Dança do Leão e do Dragon, que trouxe a apresentação de dança O Despertar da Fortuna baseada nas tradições chinesas. O impactante vídeo da performance sinuosa e misteriosa do dragão ao som dos tambores típicos não deixa mentir.   


Enfim, um presente a nós e a todos os porto-alegrenses: a ocasião e a de poder aproveitá-la numa tarde de sol abençoada. Confiram um pouco de como foi:

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Dia perfeito para feira na rua


Uma visão geral do começo da tarde no evento promovido pela Biblioteca Pública do RS



Com os meus livros e com Bolota aguardando os autógrafos


Autografando um "Anarquia"


Batendo um papo com o amigo Otávio Silva, que foi me prestigiar


Com a escritora e parceira de autógrafos Maiza Lemos


Contação de histórias rolando com a criançada


Um trechinho do Quinteto Benguelê 
tocando Cartola


Com a diretora da BPE, Ana Maria de Souza, e Rafael Correia, curador do evento


Nossa parceira de feira


Nós três nesta tarde em que o sol sorriu pra Porto Alegre



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

domingo, 20 de abril de 2025

cotidianas #861 - Eu Sou a Ressurreição

 




Pra baixo, você me põe pra baixo
Eu escuto você batendo na minha porta
E eu não consigo dormir a noite

Seu rosto não tem lugar
Nenhum lugar na minha casa
Eu preciso ficar sozinho

Não gaste suas palavras eu não preciso de nada de você
Eu não ligo pra onde você esteve ou o que você planeja fazer

Dá o fora, eu espero que você aprenda

Existe um tempo e um lugar pra tudo
Eu tenho que aprender isso

Relaxe porque você já era
Eu não poderia aguentar mais um segundo com sua companhia

Não gaste suas palavras eu não preciso de nada de você
Eu não ligo pra onde você esteve ou o que você planeja fazer

Apedreje-me, porque você não consegue ver?

Você é um sem lar e que ficaria melhor morto
Sua língua é muito grande
E não gosto de como ela suga e pronuncia
de forma incompreensível cada uma das minhas palavras

Eu sou a ressurreição e  eu sou a vida
Eu não poderia sempre me forçar a te odiar como eu gostaria

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tradução da letra da canção
"I'm the Resurrection"
da banda The Stone Roses

Ouça:

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Melhores do Ano Accirs 2024

O ano de 2024 foi desafiador para todo gaúcho por conta dos desastres climáticos de maio. A área do cinema, claro, foi bastante afetada, seja pela interrupção das atividades, seja pelo prejuízo material a espaços e salas de cinema, seja pela natural inserção no cenário local enquanto atividade cultural e econômica, Claro que, indireta e até diretamente em alguns casos, a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), em seu 16º ano de atividade, também foi afetada. Atividades que ocorreriam em junho não se realizaram e outras nem se pode cogitar isso. Porém, uma delas, foi mantida: a já tradicional eleição dos Melhores do Ano, que tem por base produções lançadas em mostras e festivais, no circuito comercial e também em plataformas de streaming, no caso, de 2024.

Dividida em dois turnos, a votação selecionou os melhores longas-metragens estrangeiro, brasileiro e gaúcho, além do melhor curta gaúcho do ano. Ainda, os membros da associação entregam, desde a primeira edição dos Melhores do Ano, o Prêmio Luís César Cozzatti, que reconhece filmes, projetos, instituições ou pessoas de destaque no cenário audiovisual gaúcho. Os vencedores foram revelados em primeira mão durante evento sobre crítica online e atuação internacional com o historiador e crítico de cinema Waldemar Dalenogare, realizado no dia 14 de janeiro, na Sala Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana, o qual tive o privilégio de mediar. Sala lotada, público interessado, muitas interações e selfies.

Confira, então, os vencedores do Prêmio Accirs 2024:

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Melhor curta-metragem gaúcho:
"Pastrana", de Melissa Brogni e Gabriel Motta

É hat-trick que se fala quando no esporte alguém atinge a marca de repetir três vezes o mesmo feito, né? Podemos dizer que "Pastrana", dos jovens cineastas Melissa e Gabriel, marcou esse triplete. Primeiro, no 52º Festival de Gramado, em agosto, quando nosso júri do "Gauchão", o Prêmio Accirs para curtas-metragens gaúchos dentro da Mostra Assembleia Legislativa, votou nesta produção para o filme. Mais adiante, em novembro, igual: nosso júri de crítica formado para o 2º Festival de Cinema de Canoas o escolheu. Agora, para ratificar, o grupo de membros consagra este belo documentário de montagem ágil, imagens impactantes e narrativa tocante que presta, por meio de um enfoque muito pessoal, homenagem ao skatista de downhill Allysson Pastrana, falecido trágica e precocemente em 2018 durante uma competição.



Melhor longa-metragem gaúcho:
"Até Que a Música Pare", de Cristiane Oliveira

A Accirs ainda não havia premiado Cristiane nem com o belo "A Primeira Morte de Joana", de 2023,  como também ao brilhante "Mulher do Pai", de 2017, um dos mais importantes filmes da nova cinematografia gaúcha. Agora, enfim, veio o reconhecimento ao seu terceiro longa, que conta a história de Chiara, matriarca de uma família de descendência italiana, e seu marido, Alfredo, que decide acompanhá-lo em uma de suas viagens a trabalho para não ficar só em casa depois que o último de seus filhos sai do lar para morar sozinho. A sensível história, contada com ainda mais sensibilidade pela cineasta, põe o casal diante do maior desafio de suas vidas com o casamento de 50 anos à prova. 



Longa-metragem nacional:
"Ainda Estou Aqui", de Walter Salles

O filme que arrebatou crítica e, incrivelmente, público fora e dentro do Brasil. Mas o fenômeno "Ainda Estou Aqui", embora raro para o cinema brasileiro, tendo em vista o tema e a abordagem competentes mas nada pop como as comédias da Globo Filmes, é totalmente merecido. O filme que levou Fernanda Torres ao Globo de Ouro e o Brasil ao Oscar é uma sensível e comprometida reconstrução da história real da família Paiva, que viu o pai de cinco filhos e marido da resistente Eunice Paiva ser levado pelos militares para nunca mais voltar. Obra forte e necessária - principalmente, no atual momento em que as manifestações fascistas volta a ameaçar as democracias e os direitos humanos.



Longa-metragem Internacional:
"Anatomia de uma Queda", de Justine Triet

O que os olhos enxergam? Que olhos são esses, o do espectador? O da diretora? O de um personagem cego? Os de um cão de olhos sadios, mas irracional? O olhar da Justiça? O brilhante e incomum thriller de Justine é um misto muito bem argumentado de drama familiar, filme de tribunal e análise sociocomportamental da sociedade francesa. Todas as interrogações que o filme levanta e convida o espectador a acompanhar o desenrolar da trama, ora desvendando, ora impondo novos questionamentos. Com isso, outros pontos também surgem: o cinema não seria exatamente isso, a dúvida do que se vê ou se escuta? Mesmo com outros ótimos filmes internacionais em 2024, como "Dias Perfeitos", "Os Colonos" e "Pobres Criaturas", a Accirs teve a lucidez de premiar "Anatomia de uma Queda", outra obra de cineasta mulher assim como os brasileiros "Pastrana" e "Até que...". 



Prêmio Luís César Cozzatti (destaque gaúcho):
Hélio Nascimento

Um dos mais respeitados críticos de cinema em atividade no Brasil, Hélio Nascimento assina há 64 anos uma coluna semanal sobre cinema no Jornal do Comércio, de Porto Alegre. Atualmente com 88 anos de idade, foi agraciado, em 2022, com o Prêmio Gramado 50 Anos no Festival de Cinema de Gramado, honraria destinada a pessoas cujas trajetórias em cinema se destacaram ao longo das décadas. Hélio tem dois livros lançados: "Cinema Brasileiro", de 1981, e "O Reino da Imagem", de 2002, e integra o livro "50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho", publicado em 2021 pela Accirs e da qual é sócio-honorário.


Daniel Rodrigues

domingo, 28 de julho de 2024

20 filmes... daonde mesmo? - Filmes de países com pouca (ou nenhuma) tradição no cinema mundial

 





E começaram as Olimpíadas!!!
Sabe quando começam a passar aquelas delegações na cerimônia de abertura e a gente estranha cada país que nem fazia ideia que existisse, ou, em alguma competição qualquer a gente pensa, "nem sabia que se praticava esse esporte num lugar desses..."? Pois é. Em cinema às vezes acontece algo parecido. Acostumados com o cinema norte-americano e mais uns três ou quatro núcleos cinematográficos tradicionais como França, Itália, Alemanha talvez... uma Suécia vá lá, um Japão por causa do Kurosawa e dos filmes de terror refilmados em Hollywood, Espanha pelo Almodóvar, mexicanos e sul-coreanos que estamos acostumando agora, argentinos cada vez mais consolidados e tal, mas, de um modo geral, até pelo bombardeio midiático, pelo apelo comercial ainda é estranho ver produções de lugares como África, América Central ou Leste Europeu.
Eis que, hoje, depois da entrada das delegações na Olimpíada do ClyBlog, o Claquete destacará filmes de alguns desses lugares que nem sempre têm potencial para ganhar uma medalha de ouro, mas que, podem crer, não fazem feio diante das potências cinematográficas, sendo inclusive, muitas vezes inspiração para muitos remakes na terra do Tio Sam.
Seguem abaixo 20 filmes daqueles lugares que a gente só lembra no dia da abertura das Olimpíadas. Alguns são bem desconhecidos, outros nem tanto, outros já gozam de um status de cult, alguns até premiados são, mas o que todos tem em comum é que são daqueles lugares que muita gente perguntaria, "mas se faz filme nesse lugar?". Se faz, sim. E coisa boa.

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1. "A Felicidade das Pequenas Coisas", de Pawo Choyning Dorji (
🇧🇹Butão /2019): E lá se faz cinema no Butão??? Não só se faz cinema, como se faz um baita filme. Um jovem professor, cujo sonho verdadeiro é ser cantor e morar na Austrália, é designado pelo governo butanês a lecionar numa escola... no fim do mundo. No ponto mais alto do país, acesso dificílimo, depois do transporte rodoviário dias de caminhada montanha acima, sem telefone, sem internet, com poucos recursos, sem nada que o jovem Ugyen estava acostumado na capital. Contrariado, do início, Ugyen vai se apegando ao local, à pequeníssima população, aos costumes, às crianças e até a um yak, animal típico da região que, por vezes tem que ficar dentro da sala de aula e 'morar' na escola. Belíssimo filme indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2022.






2. "O Assobio do Mal", Gisberg Bermudez Molero (
🇻🇪Venezuela /2017): O longa, inspirado em tradições e lendas venezuelanas, traz a figura do Assobiador, um espírito que assobia antes de atacar, uma figura fantasmagórica que segundo se fala, aparece à noite e devora pessoas. Embora um pouco picotado na narrativa, parecendo uma colcha de retalhos, o filme não é mau. Tem até uma boa produção, boa direção de arte, fotografia adequada para a proposta e boas opções estéticas. E o melhor, para quem gosta de terror: consegue ser bem brutal em determinados momentos.







3. "A Green Fever", de Taiwo Egunjobi (
🇳🇬Nigéria /2023): Em um país sob estado de sítio, um arquiteto pede socorro em uma mansão isolada, de propriedade de militares, a fim de socorrer sua filha que ele alega sofrer de uma rara doença chamada Febre Verde. Lá, num clima de constante desconfiança e ameaça, o arquiteto depara-se com situações de corrupção e crueldade por parte dos militares. Mas existe a tal febre ou aquilo seria somente um pretexto para que um civil rebelde se infiltrasse dentro de um núcleo ditador? Filme com alguns problemas, algumas travas, elementos que poderiam ter uma condução melhor, mas não há como negar que mantém o espectador tenso do início ao fim.







4. "Cemitério Geral", de Dorián Fernadez-Moris (
🇵🇪Peru /2013): Invocação por tábua Ouija e tal, só que aqui, dentro de um cemitério e registrada em estilo documental por um dos integrantes da expedição sinistra. Meio tosco é verdade, mal iluminado em determinados momentos, amadorísticos às vezes... mas talvez, exatamente essa limitação torne "Cemitário Geral" mais assustador. A correria entre as vielas do cemitério é inquietante, as imagens em visão noturna, mesmo já tão batidas pelo uso excessivo em filmes do gênero, são aterrorizantes. Não se engane pensando, "ah, terror peruano...". Não caia nessa. É dos bons found-footage que existem por aí.








5. "Cafarnaum", de Nadine Labaki (
🇱🇧Líbano /2018): Filme pesado sobre a dura realidade de crianças no Líbano, seja nas relações familiares, no trabalho infantil, na exploração sexual, seja no que for... Aos doze anos, Zain, sobrecarregado com obrigações do lar de pais ausentes, se revolta definitivamente quando sua irmã de onze é forçada a se casar com um homem mais velho. Ele então foge de casa e passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças que, diferentemente dele, não chegaram lá por conta própria. Entre tantas qualidade do longa está a opção por usar a câmera na mão, muitas vezes à altura dos olhos do menino, reforçando a sensação de realidade e aumentando o impacto de tudo aquilo que estamos vendo. Destaque para atuação do menino Zaim, que transmite uma verdade, uma intensidade incrível em cada uma de suas cenas.
"Cafarnaum" foi vencedor do Prêmio do Júri em Cannes em 2018






6. "Espíritos - A Morte Está a Seu Lado", de Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom (
🇹🇭Tailândia /2004): Nem todo mundo sabe mas a Tailândia é uma grande produtora de filmes de terror e um dos mais célebres representantes desse segmento no cinema tailandês é "Espíritos - A Morte Está A Seu Lado", filme que já ocupa seu lugar entre os clássicos do horror.
Desde que atropelou uma pessoa e fugiu da cena do acidente, um fotógrafo, Thun, passa a ser atormentado por visões e começa a identificar sinais sobrenaturais em suas fotos. Intrigado, ele e a namorada passam a investigar as fotos e curiosamente as pistas sobre as aparições vão convergindo para o próprio Thun e para alguns de seus amigos que, "coincidentemente" começam a morrer de forma trágica, um a um.
As figuras nas fotos já são de arrepiar, mas a cena final do filme é de ter pesadelos.







7. "Baskin", de Can Evrenol (
🇹🇷Turquia /2015): Terror bizarro!
Um grupo de policiais, de folga num bar, recebe uma chamada de um lugar que supunham nem existir mais. Mas, ok, se estão chamando de lá, então, vamos atender a chamada... No caminho sofrem um acidente, buscando socorro encontram pessoas estranhas e ameaçadoras e refugiam num casarão, que por acaso, revela-se o próprio local da missão. O problema é que o lugar é o verdadeiro inferno! Um antro de tortura e dor onde delírios, pesadelos, demônios interiores e demônios reais revelam-se para punir a cada um deles, tudo liderado por um anão careca deformado, uma espécie de mestre de cerimônias do inferno, que conduz as ações mais sádicas e brutais.
Um dos filmes mais repulsivos e perturbadores que já assisti.
Pra completar, o final é um verdadeiro nó na mente.
Ponto pro cinema turco.






8. "Rafiki", de Wanuri Kahiu (
🇰🇪Quênia /2018): Aquela conhecida luta contra o conservadorismo muito bem retratada, desta vez mostrando a realidade num país africano. Duas amigas, Kena e Ziki, acabam se apaixonando e, além de lutar contra as diferenças das famílias, rivais na política local, têm que encarar o preconceito da sociedade. Num ambiente altamente homofóbico e violento, elas precisam fazer a escolha entre viver suas vidas como querem ou encarar as ameaças que aquela situação acaba lhes gerando.
O filme foi festejado em Cannes, teve reconhecimento mundial para o novo cinema africano, mas, por outro lado, acabou banido de seu próprio país por conta da temática homossexual, proibida no país.
Mexeu em algo que incomodou...
Não é pra isso que serve a arte?
 


 


9. "JeruZalém", de Doron Paz e Yoav Paz (
🇮🇱Israel /2015): Terror foud-footage, em primeira pessoa mas não gravado com uma câmera na mão e sim com um Google Glass.
Uma jovem norte-americana de origem israelense, viaja para a Terra Santa, acompanhada da melhor amiga, a fim de espairecer um pouco depois da prematura morte do irmão. Ela usa o óculos tecnológico a pedido do pai, de modo a manter a comunicação e também estar sempre conectada com informações, pontos turísticos, eventos, etc. Só que lá, entre festas, namoros, bebedeiras, está se dando o início de um anunciado apocalipse previsto por todas as religiões. Algo como zumbis-demônios-vampiros alados tomam conta de tudo atacando as pessoas e transformando-os também em mortos-vivos. Daí é que a correria começa e não para! Vielas, túneis, lugares sagrados, cavernas, tudo na visão do óculos tecnológico da turista.
A última meia hora é frenética e o final é bem interessante, de certa forma dialogando com tudo isso que está acontecendo hoje, na Faixa de Gaza. Se ninguém se entende, se continuarem brigando a vida inteira por convicções, religião, território, ou seja lá o que for, Israel, a Palestina, tudo vai se transformar num inferno.






10. "Fantasmas do Passado", de Óskar Thór Axelsson (🇮🇸Islândia /2013): Duas situações aparentemente sem relação alguma: uma senhora suicida cujo caso é analisado por um psiquiatra que, por acaso, também enfrenta um drama pessoal do desaparecimento do filho; e um casal que se compra uma casa e se muda para uma região isolada do país, para, além de reformar o local visando um um futuro empreendimento turístico, reafirmar a relação. Só que coisas esquisitas começam a ocorrer nas duas pontas da história. O psiquiatra encontra cruzes misteriosas nas costas do cadáver da idosa, fotos de crianças desaparecidas em outras épocas e, além disso começa a ter visões de uma criança que pode ser seu filho. Na casa velha, Katrin, a esposa, começa a ver coisas e perceber alguma presença sinistra no lugar.
Como essas coisas se juntam? Não vou revelar porque você pode topar com o filme por aí e não vai querer que eu quebre a surpresa, mas pode acreditar que desfecho é absolutamente inesperado e faz valer todo o enredo e a condução lenta e paciente do diretor Óskar Thór Axelsson. O que posso adiantar é que a resposta estava por perto o tempo todo






11. "Antes da Chuva", Milcho Manchevski
  (🇲🇰Macedônia /1994): Um lamento pela guerra e pelos conflitos da antiga Iugoslávia, "Antes da Chuva" traz três narrativas sobre os desencontros que as diferenças entre os homens podem causar. Na primeira, um monge se apaixona por uma jovem refugiada albanesa acusada de assassinato e abandona as obrigações monásticas para fugir com ela pelos vales da Macedônia; na segunda, uma fotógrafa, editora de imagem, em Londres, vive o dilema de continuar com o marido ou ceder à paixão pelo amante, um fotógrafo de guerra macedônio que reaparecera em sua vida; e na última, que incorpora as duas anteriores, o mesmo fotógrafo, o amante da história anterior, volta à sua terra natal a fim de permanecer por lá, mesmo com todas as dificuldades, diferenças e desavenças que vive o país.
Pequeno recorte dos conflitos que dividiram um país, separaram pessoas e destruíram vidas.
Ganhou o Leão de Ouro em Veneza, em 1995.






12. "Cão Come Cão", de Carlos Moreno (
🇨🇴Colômbia /2008): A realidade dura da pobreza, da violência e do domínio do tráfico em algumas regiões da Colômbia é tema recorrente no cinema do país, e um dos filmes que retratam situações envolvendo o submundo do crime é o bom "Cão Come Cão", um thriller policial astuto, envolvente repleto de regionalismos e características típicas da cultura da América do Sul, como música, dança e misticismo.
Após a morte de seu afiliado, El Orejo, um violento chefe do tráfico em Cali, ligado ao vudu, contrata dois matadores para um serviço e os põe hospedados num mesmo quarto de hotel, esperando instruções de um terceiro homem sobre a missão que ainda desconhecem. Na verdade, sabedor que um deles fora o responsável pela morte de seu sobrinho e que o outro ficara com uma quantia sua em uma transação, o chefão pretende mesmo é que um devore o outro. Que um cão coma o outro.
Filme policial bem tramado, repleto de contornos e envolvimentos. Uma espécie de Tarantino sul-americano.





13. "Macabre", de Kimo Stamboel, Timo Tjahjanto (
🇮🇩Indonésia /2009): Aquela mania de ser gentil, solidário... Um grupo de amigos, a caminho do aeroporto, socorre uma mulher na beira da estrada e, ainda com muito tempo antes do voo, resolve levá-la para casa. Chegando lá, em agradecimento, a garota socorrida convida os bons samaritanos a entrarem, comerem alguma coisa, e diante de tanta gentileza e insistência da mãe da jovem, resolvem aceitar. Péssima ideia!
Ao ficarem presos ali, à mercê daqueles psicopatas, é dado início ao pior pesadelo que poderiam imaginar. Canibalismo, mutilações, crueldades, sadismo, um banho de sangue como poucas vezes se vê no cinema.
A família, liderada pela belíssima matriarca Dara, lembra a do "Massacre da Serra Elétrica" só que sem aquela sutileza da sugestão do clássico de 1974. Aqui não tem sutileza. É hardcore, mesmo.







14. "A Onda", de Roar Uthaug (
🇳🇴Noruega /2015): Os noruegueses, de uns tempos pra cá, enveredaram para fazer filmes catástrofe e, olha, não se saíram mal. "Terremoto", "O Túnel", "Presos no Gelo", todos atendem bem as exigências do gênero.
"A Onda" é um bom filme na categoria. Tem uma boa premissa, coerência, mantém o espectador tenso e não decepciona nos recursos técnicos, qualidade atestada pela indicação ao Oscar de melhor filme internacional no seu ano de lançamento.
Uma avalanche provoca um descolamento de um fiorde causando uma onda gigantesca que atingirá em cheio o povoado de Geirander. Como de costume, alguém avisou e não quiseram ouvir: o geólogo Kristian, mesmo diante da oportunidade de sair da cidadezinha e trabalhar na capital num bom emprego, alertado por anomalias nas leituras dos índices, resolve ficar e salvar quem conseguir, inclusive sua família. Quem devia tomar providências de alerta, evacuação e tudo mais, não deu a devida atenção, aí, o que resta? É correria e cada um tentando salvar suas vidas.
Como a gente já sabe, uma tragédia sempre começa quando um cientista avisa e as autoridades demoram para agir...




15. ""Conflitos Internos"", de Andrew Lau e Alan Mak (
🇭🇰Hong Kong /2002): Já citado aqui no Clyblog, "Conflitos Internos", originou o remake "Os Infiltrados", de Martin Scorsese.
A refilmagem realmente é melhor e mais completa, mas a trama principal do filme honconguês, muito engenhosa e envolvente, não à toa inspirou os norte-americanos a aproveitarem seu enredo.
Um agente de polícia trabalha infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, formado na academia policial, trabalha na polícia, a serviço do criminoso. Percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, a polícia e a máfia, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.
"Conflitos Internos" não é o único caso de thrillers policiais interessantes produzidos por lá e, para os mais desavisados, pode-se até afirmar que Hong Kong é especialista nesse tipo de produção.




16. "A Casa", de Gustavo Hernández (
🇺🇾Uruguai /2010): Que a Argentina tem uma excelente produção cinematográfica a gente já sabe, mas... o Uruguai??? Sim, os outros vizinhos aqui do Prata também sabem fazer bons filmes e um que merece destaque especial é o terror psicológico "A Casa", longa já mencionado aqui no ClyBlog, o primeiro filme de terror a ser feito em uma tomada, sem cortes, em plano sequência.
Na história, uma jovem (Laura) vai com seu pai a uma casa de campo de um amigo da família para dar ao local alguma manutenção e limpeza enquanto o dono se ausenta. Lá ela começa a sentir, ver, perceber coisas estranhas que parecem querer lhe revelar algo. Ruídos e movimentos misteriosos assombram a garota e, de certa forma, a chamam para o andar de cima onde verdades inesperadas (até para o espectador) acabarão se revelando. Impactante!
Sim, o Uruguai está no mapa do cinema. Tanto está que os norte-americanos copiaram e já meteram um remake desse novo clássico do terror, o também bastante bom "A Casa Silenciosa". Esses EUA não perdem tempo...






17. "Dente Canino", de Yorgos Lanthimos (
🇬🇷Grécia /2009): Antes de entrar no grande circuito e  conquistar Hollywood com "A Favorita" e "Belas Criaturas", o diretor Yorgos Lanthimos já produzia coisas bem interessantes em seu país de origem, a Grécia. É o caso de "Dente Canino", filme que parte de um argumento bizarro mas nada absurdo. A ideia de proteger os filhos do mundo exterior e as questões originárias e resultantes dessa escolha. Por eles? Por mim? Pela família? Pela sociedade?
Na trama, um pai e uma mãe se utilizam de falsos argumentos, conceitos fictícios e regras próprias para manter os três filhos longe de qualquer contato com o mundo exterior, mentiras, traumas, castigos são utilizados de modo que os filhos sequer pensem em sair dos limites da propriedade da família. Não precisa nem dizer que no desenvolvimento dessa ideia, Lanthimos sabe ser chocante e impactante como poucos.
Um ensaio provocativo sobre família, poder, limites, sociedade  e individualidade, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010 e o impulso definitivo para a entrada de Yorgos Lanthimos na cena dos grandes diretores da atualidade.






18. "À Sombra do Medo", de Babak Anvari (
🇯🇴Jordânia/🇶🇦Qatar /2016): Mais um terror? Eu sei, eu sei... Mas esse não é exatamente um filme de terror. Aparentemente um filme de assombração, fantasmas e tal, mas no fundo, na verdade, um drama humano repleto de simbologias. Um drama sobre o terror da guerra e o impacto que essa praga tem, especialmente sobre as partes frágeis dessa irracionalidade: as mulheres e crianças. Uma mãe, em meio à guerra Irã-Iraque, nos anos 80, fica cuidando sozinha da filha quando o marido é recrutado para trabalhar nas trincheiras. No entanto, não ficam seguras onde estão, uma vez que sua cidade também sofre frequentes bombardeios. A rotina de explosões, ameaças, incertezas e medo afeta brutalmente a saúde mental das duas, mãe e filha e elas passam a ser atormentadas por 'assombrações' que rondam o apartamento onde vivem. O sumiço da boneca da menina como símbolo da perda infância, o hijab ameaçador (véu que cobre o rosto das mulheres muçulmanas) que as ataca, simbolizando a inferiorização da mulher, a sombra da bomba, presa na estrutura do telhado, como uma ameaça constante, simbolizando a constante ameaça das guerras, a projeção da sombra em forma de cruz, fazendo referência às crenças e aos conflitos por religião, fazem de "Sob a Sombra" mais que meramente um filme de terror.
Mesmo tendo um diretor iraniano, o longa, co-produção de Jordània e Qatari, com apoio britânico, caracteriza mais um daqueles casos nos quais um diretor não consegue trabalhar com liberdade criativa dentro do Irã, por conta das restrições e perseguições políticas e culturais, e acaba tendo que exprimir sua arte fora de seu país.







19. "O Cheiro da Papaia Verde", de Tran Anh Hung (
🇻🇳Vietnã /1993): Mui, uma mulher bem colocada socialmente, relembra os dias de dificuldade até chegar ali. Lembra que trabalhara para uma família rica no Vietnã, de como era bem tratada pela patroa que a tomava quase por filha, lembra de quando fora designada para uma família chinesa, de como as coisas pioram financeiramente e ela teve que ser encaminhada para um novo patrão, um pianista, por quem se apaixonaria e tornaria-se, depois, seu marido. Mas de todas as lembranças, o que faz seu fio da memória para os acontecimentos de uma vida é o cheiro do mamão papaia verde.
Um filme cujo maior mérito talvez seja essa capacidade de conjugar os sentidos, combinar imagem, com cheiro, fazer supor o sabor, o frescor da fruta, o calor de uma pele, os sons ocultos em cada uma dessas coisas.
Pra quem acha que Vietnã é só filme de guerra, Rambo, ameaça comunista americana, etc., "O Cheiro da Papaia Verde" é a resposta definitiva que não. O Vietnã é capaz de produzir um filme verdadeiramente saboroso.






20. "Infância Roubada", de Gavin Hood (
🇿🇦África do Sul /2010): Único filme africano a ganhar um Oscar, "Infância Roubada" acompanha a trajetória de Totsi, um jovem delinquente de vida sofrida, que após um acidente com um carro que roubara, descobre no banco traseiro um bebê. Desnorteado com a situação, ele leva a criança para seu bairro, na periferia de Johanesburgo e tenta convencer uma amiga, Miriam, a cuidar do bebê. O novo personagem em sua vida, a relação com uma jovem a quem pede ajuda pela experiência de maternidade, a criminalidade em seu bairro, a situação precária de vida, e a impotência diante de uma solução para o problema, desencadeiam uma série de novos sentimentos e sensações no rapaz que, até então, nunca tiver muito tempo nem atenção para emoções dessa natureza.
Tem filme bom na África também!




C.R.