É desumano. E ponto. Colocando o assunto em discussão, o MDC vem em escala digna de trabalho onde batem o ponto Fellini, Danilo Caymmi, Stevie Wonder, Ultramen, Beck e mais, como Torquato Neto, que completaria 80 anos de firma. Com tempo de folga, o programa pega no batente às 21h na trabalhadora Rádio Elétrica. Produção e apresentação em escala 4x3: Daniel Rodrigues (arte-base de @maripveiga)
O cinema brasileiro se solidificou como um grande produtor de documentários desde a retomada, no início dos anos 2000. Embora já tivesse uma considerável tradição documentarista, desde o Ciclo de Cataguases aos cinemanovistas, foi principalmente a partir da década de 2010 que explodiram produções documentais em diversos formatos e temas, sendo um deles o da história cultural do País. O aperfeiçoamento das formas de pesquisa e dos recursos de tecnologia juntam-se ao interesse dos novos realizadores em contar essa riqueza histórica, que oferece um panorama amplo de entendimentos políticos, comportamentais e sociais do Brasil. Artistas, autores, personalidades, movimentos, escolas e projetos passaram a se tornar objeto de análise fílmica, rendendo muitos filmes de excelência, mas outros nem tanto.
É o caso do recente “Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, que se debruça sobre o movimento musical mineiro cujo principal álbum é considerado um dos maiores de todos os tempos no Brasil. Há pouco, a revista norte-americana Post Magazine, igualmente, colocou-o entre os 10 melhores entre os 300 mais emblemáticos da música pop, algo semelhante ao que fez o livro "1001 Discos para se Ouvir Antes de Morrer" ao incluí-lo na listagem juntamente com outros 15 brasileiros. Mas, infelizmente, o documentário de Ana Rieper perde a chance de explorar toda a riqueza que o tema oferece. Na esteira do festejado mas pouco envolvente “Elis & Tom - Só Tinha de Ser Com Você” (Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, 2023), “Nada Será...” busca resgatar, a partir da visão de seus principais atores, a alma deste outro disco clássico: "Clube da Esquina", de 1972. Faz isso resgatando a formação do famoso Clube, apelido da turma de músicos mineiros liderados por Milton Nascimento que faz referência a uma esquina de Belo Horizonte, entre as ruas Paraisópolis e a Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, onde moravam, nos anos 60, os igualmente protagonistas irmãos Borges (Márcio, Lô, Telo e Marílton). Uma cena artística absolutamente original e de uma qualidade incomparável ainda hoje, que reunia talentos e todas as forças da música brasileira àquela época: a tradição do samba, as influências do rock e do jazz, os ritmos do Nordeste e do sertão, o classicismo, a herança religiosa, a tradição ibérica e a veia sul-americana. Tudo muito bem conjugado, sintetizado, orquestrado.
Porém, os problemas do filme começam, de certa forma, na maneira de contar essa trajetória. Intercalando depoimentos recentes dos Borges (principalmente, Márcio e Lô, este último, o coautor do celebrado disco com Milton), Beto Guedes, Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Flávio Venturini e outros, quando se trata de Milton, os registros de entrevistas são “velhos”. Não que não o valham. Pelo contrário, só enriquecem. Porém, Milton, diferentemente de outro importante personagem como Fernando Brant, ainda está vivo, e seria fundamental, mesmo que prejudicado pelo atual estado de saúde que atrapalha sua fala, contar com depoimentos atuais de Bituca, indiscutivelmente o centro de todo aquele movimento.
Milton em entrevistas de anos atrás: blindagem da família ou desleixo da produção?
Pode-se sondar que Milton tenha sido blindado pela superprotetora família (para não dizer "arredia"), cuidadosa em expô-lo desta forma – o que é bem possível que Ana tenha esbarrado. Mas não soa como uma explicação totalmente plausível, visto que o documentário parece, justamente, ressentir-se de documentos. Há menos vídeos e fotos de shows ou de apresentações do que se espera. Existem, sim, como as imagens do “Show do Paraíso”, o Woodstock mineiro realizado em uma fazenda nas proximidades da cidade de Três Pontas, que reuniu grandes nomes da música brasileira, como Tiso, Beto Guedes, Lô, Nelson Ângelo, Gonzaguinha, Fafá de Belém, Francis Hime, Chico Buarque, Clementina de Jesus, entre outros. Mas não passa muito disso, o que faz com que se fique com a sensação de que pouco se embrenhou nos arquivos. Do próprio Brant, falecido em 2015, há, grosso modo, uma sequência apenas de uma conversa numa mesa de bar em que se celebra o grande poeta do Clube da Esquina. E só. Sem registros de entrevistas em vídeo ou áudio do autor que colocou em palavras alguns daqueles clássicos, como “Para Lennon e McCartney”, “Travessia” e a própria música que dá título ao filme. Seria isso em razão de uma (estranha) decisão pelo fato de Brant não estar mais vivo? Não, pois o outro grande letrista da turma, Ronaldo Bastos, mesmo ainda vivo, depõe em uma única e solitária vez.
Talvez por certa tentativa de dar um ar de “mineirice” à narrativa, num tom de “dedo de prosa” e puxando para Márcio e Lô o papel de condutores, o filme tenha recaído numa certa superficialidade diante do dimensão do tema central. Além da pequena participação de Ronaldo e da inexplicável redução da figura de Brant, outros personagens coadjuvantes - mas de participação efetiva para a composição do disco - nem citados são. Casos de Alaíde Costa, a voz principal da espetacular faixa “"Me Deixa em Paz", ou o fotógrafo e designer Cafi, autor da famosa foto dos meninos da capa que tão bem simboliza o álbum. É preciso assistir ao filme "Salve o Prazer!" (Lírio Ferreira e Natara Ney, 2020) para que, ali, Cafi conte, enfim, a história da fotografia e como ela se tornou, por decisão de Milton, a capa do disco.
A opção narrativa de Ana também incorre em um outro aspecto, que é a definição daquilo que, de fato, está se falando: o Clube da Esquina como grupo, como cena artística ou como disco? Não que não se fale e não se pudesse falar dos três concomitantemente. Aliás, é o ideal, visto que seria muito estranho tratar de um como se o outro não existisse ou que não sejam diretamente correlacionados. Contudo, fica a dúvida de que olhar a diretora e roteirista quis dar. Ora se detalha elementos técnicos como o solo de Toninho Horta em “Trem Azul”, ora se abstém de abordar faixas memoráveis do mesmo repertório, como “Cais” e "Me Deixa em Paz". Então, conclui-se que não é só sobre o disco. Em contrapartida, também não é somente sobre o grupo/cena. Não se fala, por exemplo, do legado do Clube da Esquina, como sua influência para a world music quando Wayne Shorter (outro esquecido no filme) leva o amigo Milton para os Estados Unidos para gravarem “Native Dancer”, em 1975. Nem muito menos o “Clube da Esquina 2”, de 1978, que, mais do que uma continuidade, agregou àquele grupo nomes como Chico, Elis Regina, Azymuth, Joyce e Danilo Caymmi, expandindo os ecos originais.
Em suma, ao não aprofundar estes três pilares (ou não se optar por algum para, aí sim, dissecá-lo), tudo fica um tanto incompleto. Afinal, o Clube da Esquina merece muito mais aprofundamento, pelo que é e pelo o que representa. Mesmo que sua centelha tenha sido aquela naturalidade quase inocente que Lô bem descreve, o Clube da Esquina virou muito mais do que isso. Assim, o final poético dado pela cineasta, por mais bonito que seja, sofre certo esvaziamento. Para arrematar, a música que roda nos créditos é a própria “Nada Será Como Antes”. Até aí, tudo bem. Porém, é exatamente a mesma versão do início do filme. Mais uma elemento desabonador em um filme que parece ter economizado em pesquisa e atenção ao objeto pesquisado. Uma pena, tendo em vista que se perde uma boa oportunidade de trazer à luz algo, como dito no início, importante para a reconstrução histórico-cultural do Brasil moderno. Ainda bem que, diferentemente do passado menos denso em documentários no cinema brasileiro, hoje pode-se, tranquilamente retornar ao mesmo assunto, agregando mais visões ao mesmo tema. E quem sabe, retratando o Clube da Esquina com maior fidelidade e trazendo, enfim, muito mais do que foi como antes. Amanhã.
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trailer de “Nada Será Como Antes - A Música Do Clube Da Esquina”, de Ana Rieper
“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”.
Danilo Caymmi
Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.
“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.
Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.
Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.
Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli.
Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.
Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.
Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.
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FAIXAS: 1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25 2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45 3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05 4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44 5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54 6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55 7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37 8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16 9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07 10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15
********* OUÇA O DISCO: Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"
Rio de Janeiro e Salvador, por motivos históricos e culturais tão distintos quanto semelhantes, são conhecidas como as capitais brasileiras que guardam maiores mistérios. Mas quando o assunto é música, nada bate Belo Horizonte. A musicalidade sobrenatural de Milton Nascimento, o fenômeno Clube da Esquina, o carioquismo mineiro de João Bosco, a sonoridade crua e universal da Uakti, o som inimaginável da Som Imaginário. Afora isso, a profusão há tantos anos de talentos do mais alto nível técnico e criativo a se ver (além de Milton, carioca, mas mineiro de formação e coração) por Wagner Tiso, irmãos Borges, Cacaso, Beto Guedes, Marco Antônio Guimarães, Fernando Brant, Toninho Horta, Samuel Rosa, Flávio Venturini, Tavinho Moura...
Mas quer maior mistério mineiro do que a banda Aum? Além do próprio nome, termo de origem hindu que lhes representa o som sagrado do Universo, pouco se sabe sobre eles há 40 anos. O que se sabe, sim, é que o grupo formado em Beagá por Zé Paulo, no baixo; Leo, bateria; Guati, saxofone; Marcio e Taquinho, guitarras; e Betinho, teclados, embora a diminuta nomenclatura, é dono de uma sonoridade enorme, visto que complexa, densa e sintética, que se tornou um mito na cena instrumental brasileira. Mais enigmático ainda: toda esta qualidade foi registrada em apenas um único disco. E se o nome da banda traz uma ideia mística, o título do álbum é uma referência direta àquilo que melhor lhes pertence: "Belorizonte". E escrito assim, no dialeto "mineirês", tal como os nativos falam coloquialmente ao suprimir letras e/ou juntar palavras.
A coerência com o "jeitin" da cidade não está somente impressa na capa. Vai além e mais profundamente neste conceito. O som da Aum é, como se disse, complexo, denso e sintético, pois faz um híbrido impressionante (e misterioso) de rock progressivo, jazz moderno e a herança da "escola" Clube da Esquina. "Belorizonte" destila elegância e beleza em suas seis requintadas faixas, remetendo a MPB, à música clássica e a cena de Canterbury, mas imprimindo uma marca única, uma assinatura. De forma independente, a Aum gravou “Belorizonte” no renomado estúdio Bemol, por onde passaram grandes mineiros como Milton, Toninho, Nivaldo Ornellas, Tavinho e Uakti e um dos primeiros estúdios na América Latina a possuir um aparato de áudio profissional para gravações em alto nível.
Esta confluência de elementos é como um retrato sonoro de onde pertencem: da topografia dos campos e serras, da vegetação do Cerrado, da coloração avermelhada da terra, da energia emanante dos minérios. Das feições mamelucas dos nativos, da influência ibérica e indígena, da religiosidade católica e africana. Aum é a cara de Belo Horizonte. Por isso mesmo, chamar o disco de outra coisa que não o nome da própria cidade seria impensável.
Suaves acordes de guitarra abrem "Tema pra Malu", o número inicial. Jazz fusion melódico e inspirado, embora não seja a faixa-título, não é errado dizer que se trata da mais emblemática do álbum. Variações de ritmo entre um compasso cadenciado e um samba marcado são coloridos pelo lindo sax de Guati, que pinta um solo elegante. A guitarra solo, igualmente, com leve distorção, não deixa por menos, dando um ar rock como o do Clube da Esquina. Aliás, percebe-se a própria introspecção de canções de Milton, como “Nada Será como Antes” e “Cadê”.
Já "Serra do Curral", um dos maiores e belos símbolos da capital mineira, é narrada com muita delicadeza em uma fusão de jazz moderno, folk e MPB. Sem percussão, é levada apenas nos criativos acordes de guitarra, linhas de baixo em alto nível e um solo de violão clássico de muito bom gosto. Impossível não remeter a Pat Metheny e Jaco Pastorius, jazzistas bastante afeitos com os sons da latinoamerica. Novamente, ecos do Milton e do Clube da Esquina, como as latinas “Paixão e Fé”, de “Clube da Esquina 2” (1978), e “Menino”, de “Geraes” (1975).
Numa pegada mais progressiva, a própria “Belorizonte”, a mais longa de todo o disco, com quase 10 min, traz um ritmo mais acelerado puxado pelas guitarras de Frango e Taquinho, seja no riff quanto no improviso. Betinho também dá as suas investidas nos teclados, mas quem tem vez consistentemente são Zé Paulo, no baixo, e Leo, na bateria. Ambos executam solos como em nenhum outro momento do álbum – e, consequentemente, da carreira. Ouve-se, tranquilamente, “Maria Maria”, de Milton, “Feira Moderna”, de Guedes, e “Canção Postal”, de Lô Borges. Outro rock pulsante, “Nas Nuvens”, chega a lembrar "Belo Horror", de "Beto Guedes/Danilo Caymmi/Novelli/Toninho Horta", e principalmente “Trem de Doido”, do repertório de “Clube da Esquina”, principalmente pela guitarra solo de Guedes com efeito. Destaque também para os teclados de Betinho, traz uma banda em tons alegres e em perfeita sintonia, algo dos lances mais instrumentais d’A Cor do Som, espécie de Aum carioca e de sucesso.
O chorus de "4:15", conduzido pelo sax, pode-se dizer das coisas mais airosas da música brasileira dos anos 80. Bossa nova eletrificada e com influência do jazz de Chick Corea, Herbie Hancock e Weather Report, funciona como uma fotografia poética da Belo Horizonte urbana às 16 horas 15 minutos da tarde com seu trânsito, suas vias e suas gentes emoldurados pela arquitetura, pela luz e pela paisagem da cidade. “Tice” encerra com um ar de blues psicodélico. Primeiro, ouve-se algo inédito até então: uma voz humana. Chamada especialmente para este desfecho, a cantora Roberta Navarro emite melismas melancólicos. Em seguida, a sonoridade de piano protagoniza um toque onírico para, por fim, a guitarra de Taquinho emitir seu grito-choro de despedida.
“Belorizonte” se tornou um dos discos nacionais mais procurados entre os colecionadores, visto que restam algumas raras cópias do vinil original, disponíveis em sebos a altos preços. Sua aura de ineditismo e de assombro paira até os dias de hoje. Brasileiros e estrangeiros ainda descobrem a Aum e, além de se encantarem, perguntam-se: “por que apenas este registro?”. Afora raros reencontros para shows especiais, permanece inexplicável que nunca tenha voltado à ativa – até porque todos os integrantes ainda estão vivos. Seja por milagre ou não, ou mais importante é que, mesmo que não se explique, o som da Aum, único e irrepetível, independe de qualquer enigma ou lógica. Basta por para se escutar, que o sobrevoo sobre os campos e cerrados de BH está garantido.
Não é por acaso que a palavra "música" é feminina. Na semana que se comemora com beleza e consciência o Dia Internacional da Mulher, o MDC traz algumas delas para formar o programa 257. Vai ter Juçara Marçal (Metá Metá), Ana Terra (com Danilo Caymmi) e uma homenagem aos 80 anos de uma das lendas vivas do jazz mundial, a carioca Flora Purim. Além disso, os quadros fixos e móvel. Não perde: 21h, na feminíssima Rádio Elétrica. Produção e apresentação dela: Daniel Rodrigues
As duas versões da capa do disco lançado pela CID em 1975
“Emílio Santiago, como o Rio de Janeiro, começou pronto. Pronto e total. O que é muito importante. Você não conta nos dedos cantores totais nascidos nesse hemisfério. Total, vocês já estão sabendo, é o que na gíria esportiva a gente diz ‘bate com todas’. Emílio Santiago canta qualquer gênero com um mesmo e espantoso desembaraço. Em Emílio Santiago cabem pontes equilibradas no espaço, como lhe fica muito bem as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Tudo se coloca em torno de Santiago, ele absorve e vira ele.”
Ronaldo Bôscoli, no texto original da contracapa
Em meados dos anos 70, todo mundo sabia que a chegada de Emílio Santiago ao cenário musical significava o ápice da arte do canto na música brasileira. Menos o próprio Emílio Santiago. Havia décadas que os tronos restavam devidamente ocupados: Roberto Carlos reinando para as massas; Orlando Silva, uma lenda vida; Cauby Peixoto emocionando plateias; Nelson Gonçalves mantendo a tradição da Rádio Nacional; Agnaldo Timóteo caprichando no “dó de peito”. Até que surgiu um cantor que não só reunia todas as qualidades de seus colegas quanto, ainda, era capaz de superá-los. Dono de uma voz de barítono que conectava num tempo potência, leveza e perfeição técnica, além de um timbre aveludado inconfundível, Emílio há muito impressionava. Embora sua fama já corresse havia um tempo, aquilo que todos desconfiavam aconteceu de fato somente em 1975, quando lança, pela Companhia Industrial de Discos (CID), seu álbum de estreia e se confirma como o mais completo talento masculino da arte de interpretar canções no Brasil.
Precisou, no entanto, que muita água passeasse debaixo da ponte para que o próprio Emílio se convencesse disso. Desde os anos 60, quando ainda estudante de Direito na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, sua cidade-natal, ele ansiava pela emancipação que seus antepassados não tiveram. Sabia que pertencia à primeira leva de negros brasileiros de uma recente classe média que chegava à universidade após séculos de escravidão e poucas décadas de liberdade. Não queria perder, portanto, a oportunidade de se tornar alguém reconhecido e, por isso, pensava em formar-se advogado ou até, quem sabe, diplomata. Porém, nem desconfiava que seria por outro caminho que este reconhecimento viria. Na faculdade, quando não estava em sala de aula estudando as leis, Emílio cantava nos bares em roda de amigos. Mas como o seu talento era evidente para os outros, mas não para o próprio Emílio, que relutava em se tornar um cantor profissional, por obra divina, quando as inscrições do festival de música da faculdade foram abertas, os amigos o inscreveram sem que ele soubesse. Resultado? Emílio participou e venceu o concurso, chamando a atenção dos jurados, entre eles, Beth Carvalho.
A partir daí, a música já falava mais alto na vida de Emílio. Sua presença em festivais estudantis passou a ser frequente, ganhando todos os concursos dos quais participava. Formou-se em Direito, mas abandonou a toga para dedicar-se àquilo que agora ficava-lhe claro que havia ganho de sobra dos céus: a voz. Participou do programa de auditório de Flávio Cavalcanti, trabalhou como crooner da orquestra de Ed Lincoln e substituiu Tony Tornado quando este saiu para disputar o V Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Já famoso no meio musical foi, então, que Emílio gravou, enfim, seu primeiro e aguardado disco. O prestígio era tamanho que ninguém quis ficar de fora daquele projeto, o qual reuniu músicos do mais alto gabarito como João Donato, Azymuth, Ivan Lins, Tita e Dori Caymmi, que fizeram questão de montar a cama para que sua voz de ouro brilhasse soberana.
O repertório, inteligentemente bem montado, trazia canções de compositores consagrados e de várias épocas e vertentes, mas não óbvias escolhas. Começava ali a se configurar um estilo de repertório que marcaria sua carreira. De Gilberto Gil, nada de consagradas como “Aquele Abraço” ou “Procissão”, e, sim, “Bananeira”, coautoria com Donato que, inclusive, conta com este ao piano elétrico e na assinatura do arranjo, de ares jazzísticos e certamente um dos mais brilhantes de toda a música brasileira. Emílio, depois de muito relutar, agora tinha plena noção de que seu debut devia ser à altura do tamanho que já alcançara. Por isso, “Bananeira” é mais do que somente a faixa de abertura do álbum, e, sim, um “cartão de visitas”. Samba-funk com cores da soul como é típico dos sopros em tons médios de Donato, tem, no entanto, na voz elástica de Emílio uma prova de que estava ali o cantor mais versátil que a MPB via até então. E que “cozinha”: Ariovaldo e Orlandivo na percussão; Vitor Assis Brasil, Zé Bodega e Aurino Ferreira no sax; Carlos Roberto Rocha e Durval Ferreira na guitarra; Edson Maciel, no trombone; e Marcio Montarroyos no trompete!
Muita classe para interpretar o samba-dark de Nelson Cavaquinho “Quero alegria”, dando ao partido-alto um tom de bossa-jazz, o qual conta novamente com Donato no arranjo e electric piano, mais o arranjo de cordas de Dori. Ainda, o baixo magistral do “Clube da Esquina” Novelli e a bateria igualmente classuda de Wilson das Neves marcando o ritmo. A melodiosa “Porque Somos Iguais”, com a participação de outros craques – a guitarra de Helio Delmiro, a bateria de Ivan Conti "Mamão" e a flauta de Danilo Caymmi, além do arranjo do irmão Dori – é mais uma prova da capacidade interpretativa de Emílio, bem como ”Batendo a porta”, outro samba que vem na sequência. De autoria da certeira dupla Paulo César Pinheiro e João Nogueira, aqui, é à malandragem que o ex-office boy morador do subúrbio recorre para cantar com a malemolência que o carioca tem. O célebre refrão (“Pode tentar, pode me olhar, pode odiar/ E pode até sair batendo a porta/ Que a Inês já é morta do lado de cá”), conhecido na voz potente de Nogueira, ganha na versão de Emílio uma elegância insuperável. Novamente, que arranjo de Donato! E ainda conta com os serviços de Copinha, lenda da flauta.
O primeiro lado do LP ainda traz Emílio cantando uma das duas de Ivan Lins no disco, “Depois”, com arranjo e piano do próprio e o acompanhamento do grupo Modo Livre. Fortemente combativo à Ditadura Militar em suas canções à época, Ivan não amolecia nesta. O que os milicos achavam tratar-se de uma lamúria romântica, era, na verdade, um recado de resistência: “Não vou no teu segredo eu já sei/ Vou aumentar teu medo eu bem sei/ Não me arrependo e fico na lei/ A culpa só se pune uma vez”.
Depois de virar o vinil num samba-canção “barra pesada”, mais uma surpresa, que demonstrava toda a versatilidade e inteligência de repertório de Emílio. Assim como iniciou o disco, com uma autoria de Gil e Donato menos óbvia, na segunda metade ele faz o mesmo, porém com outro consagrado compositor da música brasileira: Jorge Ben. “Taj Majal”? “Fio Maravilha”? “Chove Chuva”? Como diria o próprio Ben, “mas que nada”! Emílio simplesmente regrava a improvável “Brother”, do cultuado disco “A Tábua de Esmeraldas”, gravado por Ben um ano antes mas que, até então, ninguém havia sondado em explorá-la. E o faz resgatando a tarimba de crooner ao desenvolver num belo inglês a letra original deste gospel transformado em samba-rock. As ajudas, também, são à altura: a lendária Azymuth na base, Assis Brasil no sax alto; Delmiro na guitarra; Zé Bodega no sax barítono; percussão de Orlandivo e Ariovaldo mais Chacal; e um coro que conta, entre as vozes, com as de Lucinha Lins e as irmãs Jurema e Nair. Pouco mais de 2 min de puro suingue e maestria.
A rumba “La Mulata”, dos irmãos Valle, quebra mais uma vez a linearidade e transporta o ouvinte para um novo universo. E quando se fala em ritmo latino, claro que Donato estaria presente. É ele quem, novamente, assina o arranjo e ataca nos teclados, enquanto os sopros conversam entre si e a sessão rítmica, composta pelo trio da percussão Wilson, Ariovaldo e Orlandivo, garante o sacolejar dos quadris. Noutro samba de morro, a clássica “Nega Dina”, de Zé Keti, repete-se o primor de Emílio para este tipo de tema. Aqui, no entanto, Donato com ginga nos teclados (mais a graciosa flauta de Copinha) garante um arranjo orgânico, com breques insuspeitos e compasso propício para Emílio desfilar seu barítono invejável.
Ivan Lins, que havia concluído o lado A, volta agora a ser interpretado noutro samba ainda mais mordaz: “Doa a quem doer”. “Eu não sei ganhar/ Que eu só sei perder/ Que eu não sei matar Eu só sei morrer (...)/ Nessa escuridão/ Quero me acender/ Quero me atiçar/ Doa a quem doer”. Precisa dizer mais? Arranjo magistral de Gilson Peranzzetta, que trabalhava à época com Ivan em seus discos, e a Modo Livre de Joãozinho, Luiz Carlos, Wagner Santos e cia. se despede do disco, que já vai chegando ao final. E que final! O que começa como uma balada somente ao violão, “Sessão das Dez”, vai aos poucos evoluindo para um blues pra lá de sensual. O vozeirão de Emílio, quase sussurrado na primeira parte, faz arrepiar. Arrepia também o sax intenso do genial Assis Brasil, o violão da autora Tita e o electric piano de Laércio de Freitas, que assume somente para esta faixa o arranjo, inclusive das cordas, comandadas pelo germânico-brasileiro Peter Dauelsberg. Cazuza certamente se inspiraria muito neste tema anos mais tarde.
A admiração da crítica e do meio artístico Emílio já tinha antes de lançar sua marcante estreia fonográfica. Outros belos discos vieram na sequência, porém, o sucesso comercial demorou. Voz e qualidade musical tinha de sobra; precisava era acertar o conceito. Foi, então, somente na segunda metade dos anos 80, que Emílio obteve o verdadeiro reconhecimento das massas com a série “Aquarela Brasileira”, lançada pela Som Livre e produzida por Roberto Menescau. Os pout-pourri de sambas-enredo e o repertório pop com músicas como “Você é Linda”, “Bem que se Quis” e os megahits “Saigon” e “Verdade Chinesa” caíram nas graças do público e Emílio vendeu como jamais havia conseguido. No entanto, os admiradores de antes torceram o nariz para a “plastificação” da sua sonoridade, bastante pobre na comparação com trabalhos antigos.
Independentemente dessa discussão, Emílio forçou que se providenciasse um novo trono no panteão dos grandes cantores da MPB. Gay, preferiu em toda a carreira a discrição como fizeram Johnny Alf e Assis Valente, artistas negros como ele igualmente sabedores do preconceito que sofreriam. Ainda ganharia um Grammy Latino como melhor álbum de Samba-Pagode por “Só Danço Samba Ao Vivo”, de 2011, até sofrer um AVC dois anos mais tarde, que tirou sua vida prematuramente aos 66 anos. Como se vê, não fosse o abreviamento do destino, Emílio Santiago estaria produzindo e logrando reconhecimentos como fez desde que entendeu que o mundo inteiro cabia em sua voz.
********** FAIXAS:
1. Bananeira (Gilberto Gil, João Donato)
2. Quero Alegria (Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho)
3. Porque Somos Iguais (Pedro Camargo, Durval Ferreira)
4. Batendo a Porta (Paulo César Pinheiro, João Nogueira)
5. Depois (Otávio Daher, Ivan Lins)
6. Brother (Jorge Ben)
7. La Mulata (Paulo Sergio Valle, Marcos Valle)
8. Nega Dina (Zé Keti)
9. Doa a Quem Doer (Ivan Lins)
10. Sessão Das Dez (Édson Lobo, Tita, Renato Rocha)
“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989
No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor.
Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.
O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.
Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.
Detalhe da contracapa do disco: a identidade das digitais e da 3x4 de quando foi preso na adolescência, que lembra as fotos de presos políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta.
O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos).
Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco.
O artista em 1980, fotografado por Thereza Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.
Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?
Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier.
De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.
A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.
"Bye Bye, Brasil": marco do cinema brasileiro genialmente traduzido em música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos,masque dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.
Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.
"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.
Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?
O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.
A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há 4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.
Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar
Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:
“Limite das Águas”– Edu Lobo (1976) Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.
“Libertango”– Astor Piazzola (1974) Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.
“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento”ou“Love and Passion”– Sarah Vaughn (1987) A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.
“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”–Ryuichi Sakamoto (1983) Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.
“Stories to Tell” – Flora Purim (1974) Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?!
“Amor de Índio”– Beto Guedes (1978) Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.
texto:Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costae fanpageGira Brazil - Gira Música