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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" (1985)

 


"Só quem não amar os filhos/ Vai querer dinamitar os trilhos da estrada/ Onde passou passarada/ Passa agora a garotada, destino ao futuro".
Da letra de "Roque Santeiro, O Rock"

Os anos 80 foram de instabilidade na carreira de Gilberto Gil. Assim como com seus companheiros de Tropicalismo Caetano Veloso e, ainda mais, Tom Zé – este, relegado a um ostracismo graças a Deus interrompido tempo depois – a década com a pecha de "perdida" parece ter influenciado com seu mau agouro os consagrados músicos da MPB. O BRock de Legião Urbana, Barão Vermelho, Blitz, Titãs, Lobão, RPM e outras bandas da época ocupavam as rádios, o que, somado com o que vinha de fora, quase não deixava espaço para o "produto nacional". 

Gil, exímio compositor que é, até emplacou sucessos no começo da década de 80. "Andar com Fé" e "Vamos Fugir" tocaram bastante, é bem verdade. Em compensação, seus álbuns passavam longe de terem a mesma regularidade e reconhecimento de crítica e público frente a seus clássicos dos anos 60 e 70, como o disco de 1968, "Expresso 2222", de 1972, ou a revolucionária trilogia "Re" ("Refazenda"/"Refavela"/"Realce", 1975, 1977 e 1979 respectivamente). Também, o baiano tentara, por duas vezes quase sequentes, entrar no mercado norte-americano. Ao contrário de alguns de seus pares, como Djavan, Ivan Lins, Tânia Maria e Milton Nascimento, ele não obteve o êxito esperado e se recolheu ao nicho já conquistado: o Brasil. O destino, no entanto, reservaria mais um abalo ainda maior a Gil naquele final de década de 80: o filho Pedro, baterista de sua banda desde 1984, se acidentaria de carro no Rio de Janeiro e morreria em janeiro de 1990. Aos 19 anos.

Mas os tropicalistas têm uma vantagem sobre outros artistas da música brasileira, mesmo para com os da mesma estirpe: eles ditam tendência. E se nos anos 80 a tendência estava posta pela indústria, então o negócio era passar a ratificá-la. Como já vinha ocorrendo desde os Mutantes, Gil e Caetano tornaram-se totens de certificação a toda a geração mais jovem, de A Cor do Som a Chico Science & Nação Zumbi. "Dia Dorim Noite Neon", lançado por Gil em 1985 para comemorar os 20 anos de carreira e que completa 40 em 2025, além de trazer excelentes composições, estabelece essa consciência quase benta do velho artista para com os súditos. Porque, sim: o rock brasileiro deve muito a MPB, ao contrário do que já se tentou negar ou esconder. Um privilégio que só o Brasil tem, mas algo desqualificado pela imprensa por muito tempo.

A bela vinheta de abertura e encerramento, "Minha Ideologia, Minha Religião", traz o violão dedilhado de Gil e seu vocal acompanhando as vozes infantis em coro, que cantam uma prece universal de pureza aos deuses para iniciar a jornada – e, lá na última faixa, agradecer pela mesma. Logo na sequência, vem o hit do disco, o reggae "Nos Barracos da Cidade", um canto de contestação social de um Brasil recém saído da ditadura. “Barracos”, seu subtítulo, abriria também portas a outra música com características parecidas e de ainda maior sucesso, que é "Alagados", marco do pop rock brasileiro, gravada pelos Paralamas do Sucesso com Gil um ano depois no mesmo estúdio, Nas Nuvens.

Sem muito respiro, Gil emenda o rockasso "Roque Santeiro, o Rock", um hard rock enfezado de dar inveja a muita bandinha poser que esteve no Rock in Rio naquele ano. Gil que, aliás, havia feito uma apresentação histórica no festival meses antes com a mesma banda mas ainda com o repertório do disco anterior, "Raça Humana". Na música em questão, a excelente produção do mutante Liminha dá protagonismo à bateria potente de Pedro Gil e à guitarra de outro e original mutante, Sérgio Dias, sintonizado com a sonoridade que o vanguardista produtor norte-americano Bill Laswell estava se apropriando e que cristalizaria no referencial "Album", da Public Image Ltd., de um ano depois. Ou seja: era o auge do rock'n’roll na mídia dos anos 80.

Gil e o filhão Pedro, falecido anos depois, mas 
fundamental para a atmosfera rocker de "Dia Dorim..."
Captando todas essas pulsões, inclusive o sucesso popular da novela de Dias Gomes de mesmo nome que rodava à época na Globo, Gil se vale de sua experiência e visão tropicalista para escrever uma música altamente simbólica para aquele período. Ele sintoniza, com olhar sábio, generoso e até paternal aquilo que a juventude ansiava, do esporte radical a uma nova compreensão da religiosidade. ”Deixa ele tocar o rock/ Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro/ Do barro do motocross/ Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro", diz a letra. Tudo isso, claro, simbolizado na potência do rock. O filho Pedro, aliás, é fundamental neste processo. Rapaz cheio de vitalidade, foi ele quem motivou o pai a entrar na onda roqueira. Gil identificava nele um representante daquela geração a qual faz referência na música, como os Paralamas, Ultraje a Rigor, Titãs e Lobão. Era como se dissesse: "Meus filhos musicais, eu abri caminho pra vocês lá atrás. Agora, é com vocês, mas eu estarei aqui, sempre perto".

Atentando também à cena pop do momento de nomes como Marina, Zizi Possi e Vinícius Cantuária, Gil diminui a rotação e traz a bela 'Seu Olhar", que conta com a guitarra do "Paralama" Herbert Vianna antes deste se tornar seu parceiro em "A Novidade", o que ocorreria meses depois no celebrado "Selvagem?", terceiro disco da banda. A faixa antecede a bossa-nova introspectiva "Febril", das melhores e mais desconhecidas canções do repertório gilbertiano. Espécie de reverso de 'Palco", que exorciza os males do mundo no instante sagrado do encontro do músico com o público, "Febril", ao contrário, revela o lado solitário da existência do artista, a qual pode imperar mesmo diante de uma vasta plateia. "Tanta gente, e estava tudo vazio/Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho". Gil e sua profundidade capaz de revelar o avesso das coisas.

A próxima faixa vem noutra sintonia, mas sem perder coerência com a atmosfera pop do álbum: o french-afoxé "Touches Pas A Mon Pote". Noutra excelente produção de Liminha, Gil, dono de um francês impecável, ressignifica, nos ritmos essencialmente afro-brasileiros, a África francófona, ou seja, Senegal, Benin, Costa do Marfim, de onde parte dos escravos vieram para o Brasil e a sua Bahia séculos antes. Esta primeira aproximação simbólico-sonora Brasil-França de Gil, vista em uma série de canções dele a partir de então, o próprio redimensionaria 23 anos depois em outra música igualmente cantada na língua de Hugo (mas também de Mbougar Sarr): "La Renaissance Africaine", originalmente do disco “Banda Larga Cordel”.

O lado B do vinil começa com mais uma agitada, mas desta vez sob a batida do funk: "Logos Versus Logo". Sob inspiração da sonoridade típica do pop soul da época de Prince, Marcus Miller, Patti LaBelle e outros artistas – bateria eletrônica, baixo em slaps, guitarra suingada e ritmo soul –, Gil aborda o papel de resistência do poeta no mundo capitalista, problematizando a questão com poesia e lucidez. Outra música que, assim como “Febril”, é de suas melhores mas também das mais esquecidas. E que bela letra: "E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo". Só que Gil não se presta a simplesmente copiar o som da moda tocado nos Estados Unidos: ele o enriquece. Como poucos ousavam fazer naqueles idos de embate "rock x MPB", o baiano, do meio para o fim da faixa, adiciona-lhe percussões de samba, fundindo de forma empolgante o ritmo mais brasileiro de todos ao groove do funk. Pouco tempo depois, Lobão, Os Engenheiros do Hawaii e The Ambitious Lovers fariam semelhante. 

Com a autoridade de um dos pioneiros do reggae no Brasil, Gil traz um outro ainda mais raiz do que “Barracos”: “Oração Pela Libertação da África Do Sul”. Mais uma de teor espiritualista mas que, desta vez, clama por outro problema social que o mundo vivia naquele então, que era o Apartheid na África do Sul, o regime de segregação que retirou os direitos da população negra do país. Valendo-se da força de resistência e denúncia que o ritmo do ídolo Bob Marley carrega, Gil torna a atuar politicamente através da música, unindo-se, neste caso, ao movimento global de solidariedade com a luta anti-Apartheid, que aumentou a conscientização sobre a injustiça dessa política e ajudou a impulsionar a mudança 5 anos depois com a queda do regime.

Voltando ao pop, na sofisticada “Clichê Do Clichê” Gil conta com a parceria do já mencionado amazonense Vinícius Cantuária, à época estourado nas rádios com o hit “Só Você”. Ligações com “Touches...” nas diversas referências à cultura francesa, como Brigitte Bardot, Jean-Paul Belmondo e o cinema francês. Quase fechando o disco, a música que justifica a referência à personagem Diadorim do título: “Casinha Feliz”. Esse doce xote sertanejo (visivelmente uma inspiração para “Madalena”, gravada com sucesso por Gil em “Parabolicamará”, de 1992) contém os versos motivados pelo universo de Guimarães Rosa: “Onde resiste o sertão/ Toda casinha feliz/ Ainda é vizinha de um riacho/ Ainda tem seu pé de caramanchão”. E completa: “De dia, Diadorim/ De noite, estrela sem fim”.

Encerrando, outra belíssima composição, esta, do amigo Jorge Mautner. “Duas Luas” fecha com a poesia lírica e estelar própria do “maldito” num ijexá moderno, a se ver pelo elegante sax solo de Zé Luis. ”Estou adorando andar pelas ruas/ Como quem não quer nada/ Debaixo do sol/ Debaixo das luas/ Que são mais de duas”, numa referência às luzes de neon que também compõe o título deste disco precioso.

Num período em que vinha um tanto inconstante, “Dia Dorim Noite Neon” ajustou a rota e elevou novamente a régua de Gil diante da própria obra. E muito se deve ao vigor contagiante de Pedro Gil, que deixou este plano bem cedo, mas não antes de reenergizar seu próprio pai com o espírito do rock. Vieram, na sequência, “O Eterno Deus Mu Dança”, de 1989, álbum de estúdio em que aproveita algumas receitas do antecessor, a trilha do filme “Um Trem para as Estrelas”, em inédita parceria com Cazuza, e dois ótimos discos ao vivo: “Live in Tokyo” e “Gilberto Gil em Concerto”, todos os três de 1987. Mas “Dia Dorim...” pode tranquilamente ser considerado seu melhor trabalho em toda aquela década. Antenado com seu momento histórico em letras, melodias, atmosfera e sonoridade, mas sem soar datado como muita coisa dos anos 80 – a começar pelo próprio álbum anterior, “Raça Humana” –, o disco serviu, inclusive, para ajudar a quebrar preconceitos entre música popular e o então fortalecido rock, como se o primeiro fosse coisa de velho e o segundo de jovens. Sem divisar. O Rappa, Planet Hemp e Skank são fruto dessa mentalidade arejada nos anos 90. 

Gil provou que, como diz na vinheta do disco, sua forma de pensar/ser é aceitar a impermanência das coisas e conectar-se à espiritualidade. No caso, a igreja do rock. "Outrora, o reino do Pai/ Agora, o tempo do Filho com seu novo canto." Esse tal de rock'n'roll pode até ser coisa do diabo, mas também sabe muito bem ser divino.

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FAIXAS:
1. “Abertura: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:26
2. “Nos Barracos Da Cidade (Barracos)” (Gilberto Gil, Liminha) - 4:11
3. “Roque Santeiro, O Rock” - 4:25
4. “Seu Olhar” - 4:02
5. “Febril” - 3:41
6. “Touches Pas A Mon Pote” - 3:45
7. “Logos Versus Logo” - 3:05
8. “Oração Pela Libertação Da África Do Sul” - 3:28
9. “Clichê Do Clichê” (Gil, Vinicius Cantuária) - 4:20
10. “Casinha Feliz” - 3:14
11. “Duas Luas” (Jorge Mautner) - 3:32
12. “Final: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:25
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" 


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Djavan - Tim Music Rio - Praia de Copacabana - Rio de Janeiro / RJ (02/06/2024)

 


Djavan e sua enorme presença de palco
foto: Karine Reis
Teve Tim Music no Rio neste final de semana e a grande atração do final de semana de encerramento foi Djavan. O cara foi espetacular desfilando toda sua elegância, simpatia e energia, mesmo aos 75 anos, muita energia.

Ao longo de aproximadamente uma hora e meia, Djavan desfilou sucessos de sua carreira como "Se", "Oceano", "Amor Puro", "Samurai", "Flor de Lis", "Eu Te Devoro", entre outras, até encerrar festivamente com as animadas "Sina" e "Lilás" que empolgaram o grande público à beira do mar de Copacabana.

Visivelmente emocionado, o artista manifestou sua satisfação e seu desejo de que aquele show, um dos momentos mais felizes do ano para ele, como afirmou, estivesse sendo tão bom e importante para nós  espectadores também.

Sim, Djavan. Pode ficar tranquilo. Pode ter certeza que foi.


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Fiquei um pouco longe mas aqui vão alguns registros visuais dos evento.

Com hits e muita simpatia, Djavan hipnotizou
a público na areia de Copacabana


Djavan - "Eu te devoro"
Pequeno trecho de "Eu te devoro"



Cly Reis 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Festival Zumbi dos Palmares - Parque Marinha do Brasil - Porto Alegre/RS (26/11/2023)

 

Uma despretensiosa saída de casa para um solzinho no fim de tarde levou Leocádia e a mim a uma agradável programação, que ocorria no Parque Marinha do Brasil, praticamente ao final de nossa rua. O dia bonito garantiu que muita gente aproveitasse o parque e a Orla, sempre lotada de pessoas fazendo esporte, caminhando, correndo, passeando e... assistindo apresentações! Foi o nosso caso, que, após uma visita à pista de skate, que sempre gostamos de ver a galera fazendo manobras e aproveitando o espaço público, deparamo-nos com um pequeno festival, o Zumbi dos Palmares, que ocorria do outro lado da av. Edivaldo Pereira Paiva, a antiga Av. Beira-Rio, ao lado da Orla. Celebrando a cultura afro, o festival ornou o ambiente com flores e ganhou de presente um lindo pôr-do-sol do Guaíba no final de tarde.

Ali pudemos parar para dar uma descansada da caminhada e assistir a agradável Tereza, A Banda, uma turma cheia de suingue e brasilidade inspirada, claro, em Jorge Ben e seu clássico samba-rock “Cadê, Tereza”. Com um repertório que ia de Djavan a Rita Lee, passando, obviamente, pelo Babulina, tivemos uma agradável surpresa, principalmente pela qualidade vocal de sua cantora, Vitória Viegas, de voz potente e muito musical. Toda a banda, aliás, de bons músicos, talvez ainda um pouco crus em relação a suas próprias musicalidades, que creio que devem seguir percebendo que têm cada um como crescer ainda mais na liberdade de tocar. Mas isso passa longe de ser uma crítica, afinal, o que vimos, gostamos. Tomara nos deparemos de novo com a Tereza, A Banda por aí.

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O agradável ambiente de fim de tarde no Marina


Um pouquinho de Tereza, a Banda no palco


Este casal que vos fala curtindo o festival



texto;
Daniel Rodrigues
fotos e vídeo: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Música da Cabeça - Programa #342

 

Essa abóbora de Halloween tá meio diferente, hein... Isso porque no MDC a gente não escolhe por doces ou por travessuras: aqui, a gente opta pelos dois! Afinal, quanta doçura vem embalada na melodia de Isaac Hayes ou de Djavan! Mas também aquela atravimento maroto que só os bons roqueiros como New Order e Erasmo Carlos ou o sambista Bezerra da Silva têm. No quadro móvel, outra surpresa tirada do caldeirão. Mas não tenha medo: basta abrir a porta para o programa às 21h, na horripilante Rádio Elétrica, que só coisas boas vão lhe acontecer. Produção, apresentação e bruxaria musical: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

domingo, 25 de junho de 2023

Liniker - Tim Music Rio - Praia de Copacabana - Rio de Janeiro /RJ (28/05/2023)

 



Liniker, poderosa, imponente, inteiramente dona do palco.
Ano passado, quando estive no Tim Music, lembro de ouvir de Criolo, ao receber Liniker no palco, como convidada de sua apresentação, que aquela mulher merecia um show só dela. O carisma, a simpatia, a competência, a qualidade atestaram isso com a verdadeira comoção que a cantora causou no palco em apenas quatro ou cinco músicas dividindo o palco com, Criolo, que era a principal atração daquele dia.

Eis que em 2023 a justiça foi feita! Liniker, um dos maiores nomes da nova geração da música braseira, ganhou seu papel de destaque. Um show todinho dela. E nada mais merecido pois ela está cada vez melhor. Cantando ainda melhor, mais fluidez, espontaneidade, mais presença de palco, um repertório afiado e maduro, ou seja, um baita show.

Tenho que admitir que sou, na verdade, ainda, muito mais um admirador do que um fã e, desta forma, embora a ouça e me impressione com seu talento a cada audição, não conheço todo o repertório, não  sei exatamente o nome da maioria das canções, ainda que já as tenha escutado mais de uma vez e até cante junto o refrão, lá no meio da galera. Mas dentre os pontos altos do show, com todos os méritos e elogios a seu maravilhoso repertório próprio, cujas letras impressionam pela poesia cotidiana carregada emotividade e de uma sensualidade urgente e selvagem, não  há como não destacar a interpretação, a homenagem da artista a Djavan, segundo ela mesmo, uma de suas principais influências, cantando "Oceano". Meus Deus! Aquilo foi fenomenal. De arrepiar. Me arrepio, de novo, agora mesmo, escrevendo. Uma versão poderosa, emocionante, quase uma recriação de uma canção que, por si só, já é uma joia da música brasileira, e com uma interpretação dessa, então, fica ainda mais gigantesca.

Só esse momento já teria válido o show mas ele foi ainda mais que isso é Liniker cada vez confirma mais sua condição de uma das artistas mais significativas dos novos tempos da nossa música. Ave, Liniker!

trecho da música "Baby 95"

Outro dos pontos altos do show: "Baby 95", um dos grandes sucessos da cantora, 
entoado pelo público. Consagração!



Cly Reis 

quarta-feira, 8 de março de 2023

Música da Cabeça - Programa #309

O poeta disse que, se a gente abre uma clareza dendela, encontra uma escureza ainda muito mais bela. No Dia da Mulher, o MDC, que é feito de muitas clarezas e escurezas, é dedicado a elas. Mais que representante, Sueli Costa, a quem perdemos esta semana, é homenageada no nosso "Cabeção". E ainda tem Pato Fu, Wayne Shorter, Little Richard, Djavan  e mais. Se música e cabeça são feminino, então casa com a gente às 21h na Rádio Elétrica - que também se escreve no feminino. Produção e apresentação dela: Daniel Rodrigues
(poesia de Ricardo Aleixo e arte de Cly Reis)
#diainternacionaldamulher
#diadamulherétododia


www.radioeletrica.com 

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Paulinho da Viola - “Prisma Luminoso” (1983)



 

“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.” 
Zuenir Ventura


Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.

A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.

Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.

Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor. 

Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.

A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.

Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.

Irokô definitivamente sabe das coisas.

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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Som Imaginário - Blues Jazz Brasil Festival - Parque da Redenção - Porto Alegre/RS (30/07/2022)

 

Tudo que é programação cultural neste pós-pandemia tem tido um gosto especial, seja uma ida a um museu, um passeio no parque ou assistir um filme no cinema. Outro tipo de programa que Leocádia e eu vínhamos evitando – embora muita gente por aí já viesse se permitindo – eram os shows. Em maio, vimos Djavan no teatro numa oportunidade única, mas show em local aberto, com multidão e tudo, fazia mais do que o tempo de pandemia que não curtíamos. 

Mas o avanço do controle da Covid somado a uma linda (embora fria) tarde de sol em Porto Alegre nos fez comparecer ao Blues Jazz Brasil Festival, ocorrido no Parque da Redenção no último dia 30. Nos moldes do antigo Festival BB Seguridade, o qual ocorreu com este nome até ano passado e que estivemos em 2016 no mesmo lugar, este evento traz sempre uma programação musical bem interessante, intercalando artistas brasileiros e estrangeiros e em um horário, das 11h às 20h30, bom tanto para quem passeia pelo parque quanto para quem vai conferir os shows ou apenas algo específico. Foi o nosso caso. Embora tenhamos dado uma passeada no famoso Brick da Redenção, feira de rua que ocorre tradicionalmente numa das avenidas que ladeiam o parque, nossa intenção maior no festival era mesmo assistir à lendária Som Imaginário, a banda mineira que, além de ser a mais célebre de apoio de Milton Nascimento mas também de Gal CostaErasmo Carlos e outros, tem um trabalho autoral digno dos maiores da discografia instrumental brasileira. Banda que tem como cabeça o mestre Wagner Tiso e que teve ninguém menos que Zé Rodrix, Tavito, Naná Vasconcelos e Laudir de Oliveira na formação! 

Com Tiso ao piano; Luiz Alves, no baixo; Nivaldo Ornelas, nos saxofones; Robertinho Silva, na bateria; e o inglês radicado no Brasil David Chew, no violoncelo, a Som Imaginário trouxe uma hora de apresentação à altura de sua lenda. A inequívoca química de música clássica, com jazz, rock progressivo e música brasileira, uma das mais originais de toda a MPB. Eles começaram o show com a música que dá título ao seu memorável álbum de 1973, “Matança do Porco”, um jazz psicodélico e melancólico que, na ausência da guitarra original de Frederiko, ganhou no cello de Chew e no sax barítono os elementos solistas perfeitos. Até o final da música, depois de vários minutos de um crescendo, originalmente executada por uma grande orquestra, encontro no som coeso dos cinco músicos no palco força suficiente. 

A lendária Som Imaginário no palco: Tiso, Robertinho, Chew, Nivaldo e Luiz

Na sequência, outra clássica: “Armina”. Também do repertório de “Matança...”, é talvez o mais célebre tema da Som Imaginário, que traz aquela emocionante melodia valseada de piano de Tiso, que a toca ao piano com uma graça imensurável. Aliás, não apenas ele mas toda a banda, visto que a música está longe de se reduzir a estes acordes. Teve também outras clássicas do repertório da banda; o jazz fusion “A3”, a prog-jazz “Banda da Capital” e o baião-rock “Os Cafezais sem Fim”, do repertório solo de Tiso.

Teve, no entanto, para além do repertório da banda, outras quatro justamente do autor que lhes motivou a formação: ninguém menos que Milton. Tiso & cia. tocaram “Maria Maria”, “Travessia”, “Vera Cruz” e uma arrasadora versão de "Cravo e Canela” como bis para desfechar. 

Afora isso, algumas considerações pertinentes sobre o show e sobre o festival:

1) Embora a folclore em torno do nome de Zé Rodrix ter sido integrante da banda na primeira formação, a Som Imaginário foi, sim, melhor sem ele. Seus naturais carisma e liderança prevaleceram nos dois primeiros discos da banda, que definiu de fato seu som depois de sua saída, quando deixou de lado a marcante psicodelia e irreverência de Rodrix para assumir a sonoridade instrumental jazzística e erudita sobre as influências roqueiras e folclóricas que marcaria a Som Imaginário. Isso se percebe em “Matança do Porco”, disco ao qual, não à tona, o repertório do show foi baseado.

2) Uma semana antes, a programação do festival havia anunciado o show da “Som Imaginário & Fredera”, ou seja, o guitarrista original da banda, Frederiko. Sem a vinda dele, pelo visto de última hora chamou-se para substituir Chew, cabeça da Rio Cello Ensemble que toca há muitos com Tiso. Seria legal ver Fredera, claro, mas ficou bonita a formação com o instrumento tipicamente clássico.

3) No intervalo do show anterior, antes da Som Imaginário subir ao palco, teve apresentação da deliciosa Orleans Street Jazz Band, que sempre toca no meio da plateia. Gravamos um pedacinho do gracioso número que eles fizeram com sua sonoridade típica do sul norte-americano.

A Orleans Street Jazz Band tocando o clássico "Hello, Dolly"

4) A programação do festival terminaria com o show do célebre Stanley Jordan com Dudu Maia. Embora sejamos fãs do guitarrista norte-americano, este era, além de previsto para algumas horas mais tarde, exatamente o mesmo show que assistimos em 2016. Desta vez, então, deixamos para outra ocasião os "magic touchs" de Jordan.

5) Ainda sobre a Som Imaginário, o público em geral recebeu com a frieza de quem nem tinha noção de quem estava assistindo – se é que estavam assistindo, pois conversando e de costas pro palco a meu ver não se faz possível. Ainda mais considerando a raridade de uma apresentação como aquelas, com a banda praticamente original e reunida apenas esporadicamente. Quiçá reconheciam Tiso, mas parava por aí para a maioria. Isso explica a reação apenas mediana da maioria, que tinha a expressão de: “esses caras devem ser importantes, mas como não quero passar vergonha por não saber, vou vibrar um pouquinho”. 

6) Depois do show, apenas em casa que fomos ver pelas redes sociais que tinha um monte de amigos que também foram ao festival mas que poucos encontramos por lá. Estamos desacostumados com eventos assim. Da próxima vez, vamos estar mais ligados para promover os encontros.

7) Contudo e afora o resto, valeu muito a pena! Maravilhoso voltar aos espetáculos ao vivo.

O clima de alegria da Redenção numa ensolarada e convidativa tarde


Mais da Som Imaginário com sua formação quase original


Telões dos dois lados do palco também ajudavam a ver o show


À nossa frente, os mais atentos ao show como nós


Quanto sol! Nós curtindo o Blues Jazz Festival: de volta aos show, finalmente!


Daniel Rodrigues

sábado, 21 de maio de 2022

Djavan - Turnê "Vesúvio" - Teatro Bourbon Country - Porto Alegre/RS (07/05/2022)

 


Que maneira de voltar aos shows! Depois de quase 3 anos sem sair para ir a uma casa de espetáculos e ver um artista presentemente, seja pela pandemia ou pelo período que a antecedeu sem nada que nos mobilizasse fortemente (ah, se soubéssemos o que viria pela frente...), o retorno foi triunfal para conferir um dos monstros sagrados da música brasileira ao qual nunca havíamos assistido ao vivo: Djavan. E não foi qualquer arranjo que fez com que Leocádia e eu tivéssemos essa oportunidade! Minha irmã, Karine, produtora cultural lá no Rio de Janeiro, fez a ponte com um colega seu em Porto Alegre, que nos disponibilizou generosamente duas cortesias para irmos ao Teatro Bourbon Country "djavanear o que é de bom". Uma programação, aliás, que nem sabíamos que ocorreria, visto que os ingressos restavam esgotados desde 2020, quando o show havia sido anunciado, mas precisou ser adiado em razão da pandemia, vindo a ocorrer somente agora. 

Competente do início ao fim, o show foi mais do que somente isso: foi emocionante. Cenário, luz, repertório, qualidade do som, tudo perfeitamente funcionando para que o divino alagoano despejasse seus quase 40 anos de carreira e experiência no palco – recinto o qual, aliás, ele domina como poucos. E que performer! Djavan canta com afinação invejável, dança com graciosidade e suingue, comunica-se com a plateia, toca violão e guitarra (como poucos na MPB), cumprimenta o público do “gargarejo”. Domina o palco. As luzes todas se concentram nele, embora a irretocável banda (Felipe Alves, bateria; Arthur de Palla, baixo; Torcuato Mariano, violão e guitarra; e Renato Fonseca e Paulo Calasans, piano e teclados) acompanhe o altíssimo nível de seu front man.

Ainda um pouco desaquecido no começo, na bela “Viver é Dever” – do repertório do disco “Vesúvio”, seu último e motivo da turnê – e na clássica “Eu te Devoro”, entretanto, mal Djavan sentiu o retorno do público, já se soltou. Os sugestivos versos (“Teus sinais/ Me confundem da cabeça aos pés/ Mas por dentro eu te devoro...”) foram cantados de cabo a rabo por toda a plateia na primeira em que fez o teatro vir abaixo. Isso por que depois desta vieram muitos hits. Muito bem montado, o set list não deixou de apresentar consistentemente o trabalho novo, reservando-lhe 8 faixas, como a intrincada “Solitude”, a graciosa bossa-nova djavanesca “Orquídea”, a hispânica “Madressilva” e o estupendo tema-título. Mas, essencialmente, o músico privilegiou aquelas que a galera mais se identifica.

Djavan - trecho de "Eu te Devoro"
Teatro Bourbon Country - Porto Alegre (07/05/2022)

Aí, foi só emoção, com sequências de saltar o coração da boca, seja pela poesia rica em figuras de suas letras e fraseado, seja pela sonoridade única que tem, seja pela presença de palco ou pela produção técnica impecável. No que se refere à música, a gente fica com o mesmo embasbacamento que o midas da black music Quincy Jones teve ao ouvir desavisadamente Djavan pela primeira vez. É assombrosa a natural mistura que suas harmonias e ritmos, que carregam de samba, jazz, soul, bossa nova, blues, reggae e sonoridades caribenhas. E tudo com muito, mas muito suingue. De construção harmônico-melódica complexa, sua música, no entanto, é trazida, por conta de seu talento absurdo, para uma superfície pop que se comunica com todo mundo. Tudo se hibridiza de tal forma que, numa oportunidade como a que estivemos, de ver Djavan cantando e dançando e se entregando no palco, é possível entender que a música está integralmente dentro dele.

Bonito de perceber também a poética do artista. Os amores arrebatados (“Mesmo por toda riqueza dos sheiks árabes; Não te esquecerei um dia/ Nem um dia” ou “De tudo que há na terra/ Não há nada em lugar nenhum/ Que vá crescer sem você chegar”), as referências a símbolos da feminilidade (“Mal-me-quer.../ A vida segue seu lamento/ um tanto flor” ou “De estrelas perdidas no mar/ Pra chover de emoção/ Trovejar”) e a sensualidade (“um leito de rio/ no cio/ um cheiro de amor” ou “Insiste em zero a zero, e eu quero um a um”) fazem com que Djavan tenha uma forte identificação com o público feminino. Mas não de uma maneira forçada, e, sim, muito orgânica.

Foram quase 3 horas de um desfile da mais alta classe da música brasileira e mundial, que percorre a extensa e assertiva carreira do artista. Cantamos juntos e nos emocionamos juntos com clássicos como “Topázio” (“Kremlin, Berlim/ Só pra te ver/ E poder rir”), “Acelerou” (“Quando te vi/ Aquilo era quase o amor/ Você me acelerou, acelerou/ Me deixou desigual”), “Linha do Equador” (“Luz das estrelas/ Laço do infinito/Gosto tanto dela assim”), “Samurai” ("Ai.../ Quanto querer/ Cabe em meu coração”), “Sina” (“O luar, estrela do mar/ O sol e o dom”)... Caramba! É interminável a sucessão de sucessos deste hitmaker, que correm pelas últimas quatro décadas no Brasil, seja pelas rádios, novelas, na tevê ou no cinema. São canções que estão no imaginário do brasileiro, aquelas que pode por pra rodar em qualquer lugar que dificilmente não se sairá cantando junto. 

Já falei aqui num antigo texto que escrevi sobre Djavan: se ele tivesse nascido em qualquer país tipo escandinavo ou germânico ele teria um trono, seria um intocável. Estender-se-iam tapetes vermelhos onde quer fosse. Naquela noite porto-alegrense, estávamos entre os milhares que minimamente fizemos isso: estendemos-lhe o tapete. Que presente: os ingressos, a volta aos shows e poder ver a olhos nus um artista do calibre de Djavan em vida. A se ver por este show, sabe-se lá quanta vida ele ainda tem pra dar!






Daniel Rodrigues


sexta-feira, 14 de maio de 2021

Aquisições porto-alegrenses

Quem me acompanha nas redes sociais vê que vira e mexe estou escutando alguma coisa “na vitrola”. Embora tenha uma boa coleção, sabe como é, né? Colecionador de discos está sempre de olho em outros para comprar. Não é comum eu ir aos sebos de Porto Alegre (ainda mais agora na pandemia), até por causa dos horários comerciais, durante os quais geralmente estou ocupado, e porque, afinal, acaba sendo mais um gasto. Mas quando surgem boas oportunidades, é impossível resistir. Pois dias atrás, vi uma postagem do antenado e generoso amigo Juarez Fonseca sobre um amigo seu que estaria, em suas palavras, “se desfazendo de sua coleção de discos de vinil. Tem Chico, Caetano, Gil, Milton, Elis, Mercedes Sosa, Jaime Roos, Jimi Hendrix, muita coisa de jazz e raridades da música gaúcha. Uma mina de ouro.” E Juarez arremata o post alertando: “todas as capas estão reproduzidas no Facebook.”

Não deu outra: com tamanha propaganda, fui conferir. O amigo era Raul Boeira, músico, compositor e violonista de Porto Alegre com mais de 50 anos de estrada. E realmente: centenas de ótimos títulos em LPs e todos visivelmente bem cuidados por Raul, que me confessou posteriormente em troca de mensagens fazer cerca de 10 anos que não mais tinha toca-discos e que não havia “razão para esse som todo ficar aprisionado aqui no armário”. Não demorou muito para eu saber que outros dois colecionadores como eu, os também amigos Marcello Campos e Lucio Brancato, já estavam empenhados em alforriar tamanha qualidade musical. Diante do desprendimento e simpatia de Raul – e, claro, do meu desejo – adquiri sete unidades da encarcerada discoteca, os quais descrevo aqui brevemente um a um. Alguns já foram parar direto na vitrola:


“Do Romance ao Galope Nordestino”,
 Quinteto Armorial (1974)

Um dos fenômenos mais originais da história da moderna música brasileira, o Quinteto Armorial representa mais do que música, mas um conceito de brasilidade. Com a benção de Ariano Suassuna, líder intelectual do movimento Armorial, que buscava criar bases brasileiras para todas as formas de arte - entra as quais, a música - a banda que lançou o hoje famoso Antonio Nóbrega, em seu primeiro disco, traz sua sonoridade sui generis que alia clássico medieval e barroco aos sons formativos do Nordeste. E o que é essa capa de Gilvan Samico?! Uma obra-prima por dentro e por fora.



“Nice Guys”,
Art Ensemble of Chicago (1979)
A banda de Lester Bowie, Malachi Favors Maghostut, Joseph Jarman, Roscoe Mitchell e Don Moye num de seus mais celebrados discos. Os inventores do pós-jazz passeiam pelo bop, avant garde, blues, fusion, reggae e art music em sua musicalidade intergaláctica. “É possivelmente o mais representativo álbum da banda, uma vitrine variada que ilustra muito do que eles fazem de melhor”. Isso não sou eu quem digo, mas a Down Beat. Destaque para “Já”, "Folkus" e "Dreaming of the Master" . E a arte caprichada da capa e contra! Impecável como qualquer produto ECM. 



“Lilás”,
Djavan (1984)
Já totalmente inserido no mercado norte-americano, Djavan lançava em grande estilo, com produção gringa caprichada, um de seus discos de maior sucesso lá e aqui no Brasil. Embora tenha recebido certas críticas pelo excesso de elementos eletrônicos à época, o disco, sexto do artista, praticamente repete o antecessor “Luz”, pois é daqueles álbuns de carreira que parecem coletânea: a faixa-título, “Íris”, “Esquinas” e “Infinito” integram o repertório, por exemplo. Suingue, complexidade harmônica, arranjos ricos, vocais grandiosos. Um luxo.




“Jogos de Dança”,
Edu Lobo (1983)
Imagino que quando convidaram Edu Lobo - que já havia coescrito com Chico Buarque para o Balé Guaíra o clássico "O Grande Circo Místico" dois anos antes - uma nova trilha para dança somente instrumental ele, afeito muito mais à música do que ao canto, vibrou com a oportunidade. O resultado é um dos melhores discos da discografia do autor de "Disparada", que antecipa em pelo menos 10 anos o conceito de trilhas que o Grupo Corpo adotaria: artistas nobres da MPB compondo para balé trabalhos especiais e que vão além dos palcos: são música para se ouvir dançando ou parado.




“Tempo Presente”,
 Edu Lobo (1880)
Outro lindo disco de Edu Lobo que consagra sua década mais produtiva, os anos 70. Junto com “Missa Breve”, “Limite das Águas” e “Camaleão”, forma a quadra de álbuns em que o legítimo filho musical de Tom Jobim passeia pelos variados estilos, da bossa nova ao baião, do jazz ao clássico. Parcerias principalmente com Cacaso e Joyce, primor de arranjos, produção caprichada de Sérgio de Carvalho. Edu, assim, em plena fase criativa é ouro em pó.





“Bandalhismo”,
João Bosco (1980)
Dos discos de Boscão da fase com Aldir Blanc que não tinha. Além da arte sempre magistral de Elifas Andreato, que aproveita cortes e dobraduras diferentes, “Bandalhismo” é mais um documento da resistência à ditadura militar e a opressão social que o Brasil vivia como os vários que a dupla compôs nessa época. Abre com a sarcástica “Profissionalismo é Isso Aí”, mas também guarda joias como “Siri Recheado e o Cacete” e “Sai Azar”, que também são deste repertório.





“Atlantis”,
Wayne Shorter (1985)
Único da leva de compras que não tenho conhecimento de como é. Disco dos anos 80 de um dos imortais do jazz, que nunca decepciona. O que se sabe de antemão é que traz ritmos brasileiros e funk em várias faixas em arranjos muito bem elaborados. São 11 músicos em estúdio contando com Shorter revezando numa instrumentação entre o elétrico e o acústico. Boas expectativas.







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+ 2

Além dos LPs que adquiri, generosamente ganhei do próprio Raul Boeira em CD dois de seus discos: “Raul Boeira: Volume 1”, de 2009, e “Cada Qual com Seu Espanto”, dele e de Márcia Barbosa, de 2016. Assim como o Shorter, ainda não tive tempo de soltá-los na vitrola, mas não demorará.



Daniel Rodrigues