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terça-feira, 28 de novembro de 2023

“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)


Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*

“Nunca vamos nos transformar 
em bobocas como os adultos.” 

Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.

Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.

"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho

”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.

Peanuts e Ozu

Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro. 

A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças

Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo.. 

A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.

Rua Paulo

Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente. 

"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho

É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento –  tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal. 

Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.

Zero de conduta

Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?

Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?

Mark, Lebrac, Nemecsek

Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças. 

Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização

Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.

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trailer de "A Guerra dos Botões"


Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Exposição "Entre Nós - A Figura Humana no Acervo do MASP" - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro/RJ









A impressionante "A arlesiana" de Van Gogh.
Encerrou-se na última segunda-feira, dia 10 de abril, e eu corri para ver antes que não tivesse mais tempo, a exposição "Entre Nós - A Figura Humana no Acervo do MASP", que estava em cartaz no CCBB aqui do Rio. Não podia deixar passar uma oportunidade como essa de ver mais uma vez de perto obras de Van Gogh, Picasso, Malfatti, Renoir, Portinari, Goya e outros mestres, numa exposição rara como esta em que o MASP empresta parte de seu acervo  para exibição em outro estado.
Absolutamente impressionantes as obras dos mestres. É interessante mas para mim é sempre emocionante estar diante de trabalhos destes gênios, por mais que já tenha visto suas obras em outras oportunidades. A exposição traça um interessante percurso cronológico, com algumas exceções, dividida em cinco núcleos que apresentam a evolução não apenas técnica mas também conceitual dessa representação do homem enquanto arte, seja enquanto pintura, desenho, escultura ou fotografia. Em "Presenças", a primeira parte, o foco está na religiosidade e na espiritualidade; na segunda, "Retratos", a ênfase é a inserção do humano nos contextos que o rodeiam, dotando-o de características que identifiquem isso como postura, vestimenta, comportamento, etc.; "Corpos" abre mais as possibilidades da anterior fazendo com que figura humana, numa expressão mais intensa, manifeste intenções, anseios, desejos, inquietações; "Ações" tenta mostrar a atividade do homem em diversas situações e contextos como guerra, trabalho, lar, demonstrando, naquele momento, um interesse da arte pela relação do homem com seu espaço representando-o então de uma forma mais crítica; já "Simultaneidades", o espaço contemporâneo da exposição aponta para a multiplicidade de formas de expressão artística de representação do homem, com uma certa ênfase na fotografia e a captura de cenas cotidianas.
O trecho mais impressionante, a meu ver, foi a seção corpos, onde puderam ser admirados o incrível "Busto de Homem (O Atleta)" de Pablo Picasso, a impressionante "A arlesiana" de Vincent Van Gogh e esculturas de Degas relativas ao quadro "As Bailarinas"; já o núcleo "Simultaneidades", para mim, ficou devendo, para não dizer que, apresentado como foi, tornou-se quase desnecessário. Salvo a instalação que retratava Roberto Carlos como uma espécie de santo, de ídolo religioso, diria que a maior parte dos demais trabalhos eram bastante pouco expressivos, não somente em relação à proposta, mas principalmente em relação às quatro alas que a precederam.


Abaixo, algumas imagens da exposição.

Começando a exposição, no setor "Presenças",
o retrato do Cardeal Cristóforo Madruzzo, de Ticiano (1552)

Sant'Ana e a Virgem criança, escultura do século XVIII

São Sebastião por Pietro Peruggino
(século XVI)

Escultura de ídolo Yorubá de autor desconhecido

Desconhecido pintado por Anton Van Dyk
abrindo a parte de "Retratos"

"A educação faz tudo" de Fragonard

Detalhe do sensual "Angélica Acorrentada",
de Jean-Auguste Dominique Ingres

Toda a riqueza de expressão do Menino
de Arthur Timótheo da Costa

O belíssimo "A amazona", de Édouard Monet 

"Iracema", de Antonio Parreiras (1909)
no segmento "Corpos" da exposição

O elegante Leopold Zborovsi no retrato de Modigliani

O notável "Busto de Homem" de Picasso

"Banhista enxugando a perna direita"
de Pierre-Auguste Renoir, de 1910

Esculturas das bailarinas de Degas

A sugestão de uma criança brincando
no início da sala "Ações"

"A Taça da Dúvida" de Victor Brauner

O expressivíssimo São Francisco de Portinari, de 1941

Victor Brecheret e seu autorretrato esculpido

A chocante imagem da guerra de Lasar Segall

A  fotografia tem destaque no núcleo "Simultaneidades"

Carlos Andujar fotografou os Yanomamis

Série de desenhos de Albino Braz

"O Herói", de Anna Maria Maiolinno


A "Capoeira", retratada por Maria Auxiliadora da Silva




Cly Reis

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

20 filmes essenciais do cinema francês



Resnais, cineasta com
mais de um título na lista.
Uma das missões de minha profissão, a de jornalista, é a de, a partir de meu filtro capacitado e abalizado, informar as pessoas daquilo que não lhes está evidente, ajudando-as a se elucidar e formar opinião. Quando se trata de assuntos envolvendo cultura e arte, não é diferente. Levar-lhes o “não óbvio”, aquilo que não conhecem, pois o que já conhecem não precisa, certo? Não exatamente. Há tanta confusão de informação no ar (e nas redes) que o “óbvio”, por desconhecimento ou falta de critério, mistura-se com o irrelevante ou passa até a ser relegado. Os melhores filmes franceses de todos os tempos, por exemplo: numa recente lista, vi apontados títulos queridinhos como “O Fabuloso Destino de Amélie Poulin” e “Intocáveis” como sendo indispensáveis, enquanto que não figuraram nada de Jean Vigo ou Michel Carné. Ora, convenhamos! E olha que não estou nem falando de obras de cineastas menos conhecidos, mas igualmente merecedores, como Sacha Guitry ou Julien Duvivier – mas aí, seria exigir demais.

O cinema francês é um dos mais ricos e referenciais da cinematografia mundial, desde os irmãos Lumière até as escolas e movimentos que este promoveu ao longo do tempo, como o Realismo Poético, o Cinema Vérité e a revolucionária Nouvelle Vague. Nada contra os bons “Intocáveis” ou “Amélie Poulin” – este último, aliás, se tivesse que escolher um de Jeunet, preferiria “Delicatessen” ou “Ladrão de Sonhos”. Porém, basta conhecer um pouco da história do cinema do país de Victor Hugo para enxergar o rico e numeroso universo de produções relevantes para além desses sucessos recentes. O pioneirismo, as inovações estilísticas, as contribuições técnicas e teóricas se deram em vários momentos da história da sétima arte. Definitivamente, o cinema francês não deve ser reduzido a uma amostra que nem de longe reproduza seu tamanho e importância.

Por conta disso, elaborei uma lista de 20 títulos realmente essenciais para se compreender e admirar o cinema francês. Óbvios para mim, mas a quem não conhece ou se enreda em avaliações mal ajuizadas, talvez não. Afora a criteriosa tarefa de selecionar os mais relevantes entre tantos títulos ótimos, elencá-los foi delicioso. Estão aqui mencionados, sem ordem de preferência, clássicos que determinaram épocas, obras-primas consagradas do cinema mundial e filmes que cumpriram papéis além do próprio cinema: tornaram-se ícones da arte e da cultura do século XX, como “Acossado”, “A Regra do Jogo” ou “A Nós a Liberdade. A ideia foi a de constar um de cada grande realizador, embora alguns (Truffaut e Resnais, por exemplo) inevitavelmente haja mais tendo em vista a indispensabilidade das realizações citadas. Também, dentro da lógica de informar a partir de meu filtro pessoal, se perceberão toques de meu entendimento próprio. De Carné, optei por incluir “Os Visitantes da Noite” e não o consagrado “O Boulevard do Crime”; De Buñuel, “O Discreto Charme da Burguesia” a “Bela da Tarde”; De Godard, “Je Vous Salue, Marie” a algum dos cult-movies dos anos 60, como “Pierre Le Fou” ou “Alphaville”. Crítica pessoal pura, mas que em nada prejudica a representatividade da seleção como um todo.

Claro, ficou de fora uma enormidade de coisas, como “Lacombe Lucien”, de Malle, “Orfeu Negro”, de Camus, “Eu, um Negro”, de Rouch, “A Bele e a Fera”, de Cocteau, ou “Napoleon”, de Gance. Privilegiou-se os essencialmente franceses, por isso não aparecem co-produções como “O Último Tango em Paris” ou “A Comilança”. Também não entraram nada de Maurice Pialat, Eric Rohmer, Costa-Gavras, Jacques Demy, Jacques Rivette... Paciência. Além da impossível unanimidade de listas, uma como esta, que represente algo tão relevante e robusto, incorreria em incompletude. Uma coisa é certa: não perdemos tempo com irrelevâncias. Ah, isso não. Voilà!



- “Viagem à Lua”, de Georges Méliès (“Le Voyage dans la lune”, 1902)


- “A Nós a Liberdade”, de René Clair (“À Nous la Liberté”, 1931)

- “Zero de Conduta”, de Jean Vigo (“Zéro de conduite”, 1933)
Poster original de
"Zero de Conduta"

















- “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir (“La Regle Du Jeu”, 1939)

- “Os Visitantes da Noite”, de Michael Carné (“Les Visiteurs du Soir“, 1942)

- “Orfeu”, de Jean Cocteau (“Orphée”, 1950)
A visão de Cocteau para a
saga de Orfeu













- “As Diabólicas” (“Les Diaboliques”), de Henri-Georges Cluzot (1955)

- “Meu Tio”, Jacques Tati (“Mon Oncle”, 1958)

- “Os Incompreendidos”, de François Truffaut (“Les 400 Coups”, 1959)
Cena do revolucionário
"Os Incompreendidos"













- “Os Primos”, de Claude Chabrol (“Les Cousins”, 1959)

- “Hiroshima, Moun Amour”, de Alain Resnais (1959)

- “Acossado”, de Jean-Luc Godard (“À bout de souffle”, 1960)


- “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais (“L'Année dernière à Marienbad”, 1961)

- ‘Jules et Jim”, de François Truffaut (1962)

- “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (“Cléo de 5 à 7”, 1962)

- “La Jetée”, de Chris Marker (1962)
As impressionantes foos de Marker
que compõe a narrativa de "La Jetée"














- “Trinta Anos Esta Noite”, de Louis Malle (“Le feu follet”, 1963)

- “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel (“Le charme discret de la bourgeoisie”, 1972)

- “Je Vous Salue, Marie”, de Jean Luc Godard (1985)
"Je Vous Salue, Marie", a produção
mais recente da lista
junto com Betty Blue












- “Betty Blue”, de Jean-Jacques Beineix (“37° le Matin”, 1986)