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quinta-feira, 23 de março de 2023

Sandra Sá - "Vale Tudo" (1983)


"Alô, Sandra Sá! Aqui é o Tim Maia. Eu fiz essa música pra você. Já tenho a ideia do arranjo, que eu vou falar com o Lincoln (Olivetti). E tem mais: eu vou gravar ela contigo no teu LP!" 
Tim Maia, em ligação telefônica para Sandra Sá, sobre a música “Vale Tudo”

O chamado Black Rio foi o grande movimento cultural próprio do Rio de Janeiro depois da bossa nova. Se não teve a mesma influência ou projeção internacional que as notas dissonantes ou que a Garota de Ipanema, a cena, movida à música soul importada dos states mas com tempero bem tupiniquim, cumpria uma função social corajosa ao exaltar algo inédito naquele Brasil ditatorial dos anos 60 e 70: a cultura negra. Influenciado pelo Black is Beautiful dos Estados Unidos, o movimento Black Rio conseguia levar a pistas brasileiras aquilo que o perseguido samba, o mais brasileiro dos ritmos, nunca havia alcançado, que era a valorização uma raça preponderante em população, mas marginalizada, violentada e desumanizada pelo histórico e estrutural racismo.

As danças, as roupas, os pisantes, os cabelos, a pele, os gestos. Tudo compunha o cenário de deslumbramento e descoberta dos bailes black, que tomavam a Zona Norte carioca. Equipes de som como Furacão 2000, Soul Grand Prix, Modelo, Sua Mente numa Boa, Rick e Revolução na Mente garantiam a festa, frequentada por milhares de pretos e pretas. E claro: a música exercia um papel fundamental nesta inédita onda de autovalorização e resistência. E se a Banda Black Rio tinha a autoridade sonora e onomática de grande grupo da cena, Gerson King Combo o de astro central e Carlos Café o de principal cantor, havia a necessidade de responder também ao público feminino. Sandra Sá, então, naturalmente veio tomar este espaço.

Nascida em Pilares, na Zona Norte carioca, a neta de africanos Sandra Cristina Frederico de Sá levou sua voz rouca e cheia de groove das festas black direto para as rádios, um salto inédito na indústria musical brasileira até então para uma artista negra de música pop. Depois de um celebrado álbum de estreia, em 1980, com direito a música inédita de Gilberto Gil ("É"), Sandra é adotada de vez pela turma da soul brasileira. O sucesso comercial de "Lábios Coloridos", do segundo disco, de 1982, já contava com Lincoln Olivetti nos teclados e arranjos, Robson Jorge nas guitarras, o Azimuth Ivan Conti "Mamão" na bateria e a cozinha da própria Banda Black Rio, a se ver pelas participações ativas de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes e Cláudio Stevenson. Em "Vale Tudo", terceiro e último trabalho pela gravadora RGE, Sandra repetia as parcerias e já estava pronta para sua grande obra, a qual completa 40 anos de lançamento em 2023.

O precioso repertório de "Vale Tudo" une músicas de autores consagrados e da nova geração, que passava a se firmar. A começar pela faixa-título: o sucesso instantâneo de Tim Maia dado de presente por ele a Sandra. Não é difícil entender o porquê: em duo com o próprio Síndico, Sandra solta a voz numa animada disco engendrada pelo próprio autor em parceria com Lincoln e executada pela banda Vitória Régia. Ouvir os dois maiores cantores da soul brasileira juntos foi tão estrondoso, que a faixa ganhou videoclipe do Fantástico e virou hit em todo o Brasil, figurando na 28ª de posição entre as 100 músicas mais tocadas do ano de 1983.

videoclipe de "Vale Tudo", com Sandra Sá e Tim Maia

Mas se tinha Tim, tinha Cassiano também. É dele a autoria do funk suingado "Candura", em preciosa parceria com Denny King, das melhores do disco. E se havia Tim e Cassiano, também aparecia Guilherme Arantes, na romântica "Só as Estrelas", que encerra o álbum. Com o samba-funk brasilianista "Terra Azul", a dupla veterana Júnior Mendes e Gastão Lamounier eram outros que não resistiram ao talento da cantora, sendo fisgados por seu carisma e seu timbre, que não deixava nada a desejar a grandes cantoras internacionais da época. Se os norte-americanos tinham Donna Summer, Roberta Flack e Chaka Khan, o Brasil tinha Sandra Sá.

De fato, ninguém queria ficar de fora do bonde de Sandra. Tanto é que músicos de primeira linha como Serginho Trombone e Reinaldo Árias também tocam e assinam arranjos. Igualmente presente, seja na caprichada produção quanto em arranjos, é o tarimbado violonista Durval Ferreira, cujo currículo inclui trabalhos com Leny Andrade, Sérgio Mendes e o lendário saxofonista de jazz norte-americano Cannonball Adderley. Ferreira também assina duas composições: o tema de abertura, a excelente "Trem da Central", ao lado de Sandra e Macau (este, o autor de “Lábios Coloridos”), e o funk dançante “Pela Cidade”. Ambas as músicas trazem um olhar diferente da Rio de Janeiro idílica da Zona Sul, evidenciando uma cidade preta e periférica que começava a pedir passagem.

Fotos das gravações no encarte
original de "Vale Tudo"
Outras duas delícias emitidas pelo aveludado vocal de Sandra: “Gamação”, soul de muito suingue e romantismo, e a brilhante "Guarde Minha Voz", do craque Ton Saga, tranquilamente uma das mais belas canções pop-soul já gravadas no Brasil. Uma joia equiparável a outros “clássicos B” do AOR brasileiro, como “Débora”, de Altay Veloso, “Joia Rara”, da Banda Brylho, ou “Lábios de Mel”, de Tim. Como diz a letra: para se guardar no coração.

Embora a maioria das músicas seja de compositores masculinos, o disco de Sandra traz uma outra pequena revolução, que é o papel de mulheres como autoras. Além dela própria, que assina a balada “Musa” e coassina “Trem...”, a carioca abre espaço para compositoras no seu repertório já tão disputado. Rose Marinho divide a autoria da já citada “Pela Cidade” com Durval e outro veterano, Paulo César Pinheiro, enquanto Irineia Maria revela outro destaque do disco: a apaixonada “Onda Negra”. Balada soul deliciosa, com a arranjo de Oberdan, contém em sua letra vários elementos representativos da figura de Sandra para o movimento Black Rio, que é um filtro de olhar feminino para aquela “onda negra de amor” que se presenciava: “Nessa forma de beleza/ Vou seguindo a te levitar/ E o som me envolve me fascina/ Não consigo mais parar/ Mas é sempre uma dose certa/ De alegria, paz de luz e cor/ E a certeza de poder criar/ Uma onda negra de amor”. Mais visto na MPB de então por conta da geração de compositoras como Joice Moreno, Leila Pinheiro e Sueli Costa, no meio pop Sandra prenunciava aquilo que se tornaria comum anos depois para Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Vange Leonel e outras, bem como, especialmente, para as cantoras pretas brasileiras da atualidade, tal Xênia França, Larissa Luz, Luedji Luna, Iza e outras.

Depois de “Vale Tudo”, Sandra - que adicionaria definitivamente dali a alguns anos a preposição “de” original de batismo ao nome artístico - ainda alcançou sucessos esporadicamente, principalmente com “Bye Bye, Tristeza”, de 1988. Numa viragem mais pop e comercial para a carreira, hits como este, embora a tenham ajudado a se consolidar no cenário musical brasileiro, denotavam, por outro lado, que a fase áurea havia terminado. Porém, ninguém tira de Sandra o nome gravado na história da música brasileira, haja vista que sua credibilidade como artista e seu legado permanecem inalterados. Mais do que isso: renovados. Um disco como este, mesmo ouvido quatro décadas depois de seu lançamento, soa como um agradável compêndio do que de melhor havia na soul music brasileira àquela época e, porque não dizer, na história da música preta no Brasil. Está tudo lá: intacto. Assim como a voz de Sandra, que o público a atendeu e guardou no coração.

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FAIXAS:
1. “Trem Da Central” (Durval Ferreira, Macau, Sandra Sá) - 4:03
2. “Candura” (Cassiano, Denny King) - 3:03
3. “Pela Cidade” (Durval Ferreira, Paulo César Pinheiro, Rose Marinho) - 3:21
4. “Onda Negra” (Irinéia Maria) - 3:40
5. “Gamação” (Pi, Ronaldo) - 3:14
6. “Vale Tudo” (Tim Maia) - 4:07
7. “Guarde Minha Voz” (Ton Saga) - 3:11
8. “Terra Azul” (Gastão Lamounier, Junior Mendes) - 3:33
9. “Musa” (Sandra Sá) - 2:46
10. “Só As Estrelas” (Guilherme Arantes) - 3:26

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

The Blue Mitchell Quintet - “Down With It!” (1965)

 


"Hoje quero dizer à cidade de Selma, hoje quero dizer ao estado do Alabama, hoje quero dizer ao povo da América e às nações do mundo, que não estamos prestes a dar a volta por cima. Já estamos em movimento. A verdade Dele está a marchar."
Martin Luther King, no discurso de 25 de junho de 1965 ao final da Marcha de Selma a Montgomery

Alguns seres humanos pisam sobre a Terra de tempos em tempos para que o mundo, em permanente crise, cure-se ao menos um pouco de suas chagas. Jesus, Da Vinci, São Francisco, Buda, Madre Teresa e Gandhi são desses iluminados que parecem descer de outro plano para virem fazer a diferença em meio aos mortais. Porque, claro, eles não morrem nunca. É o caso de Martin Luther King Jr., o pastor batista e ativista político norte-americano que viveu menos de 40 anos para deixar não só o justo legado de reivindicação pelos Direitos Civis de seu país, pelo qual se tornou um ícone, como, mais do que isso, um exemplo de resistência negra e de igualdade para todo o mundo, o qual nunca mais foi igual depois de sua passagem pelas bandas terrenas. De 1955 a 1968, quando foi covardemente assassinado, Dr. King transformou todos os lugares no qual pisou através da palavra e do exemplo.

O jovem Blue Mitchell viveu isso. Como milhares de norte-americanos negros, o trompetista e compositor de jazz e R&B nascido em Miami via na figura de Luther King um sopro de esperança e mudança social tão necessária a um país marcadamente desumano e desigual para com pessoas como ele. Mitchell, no entanto, ao contrário de muitos de seus pares soterrados pelo preconceito, tinha um canal para exprimir seu assombro e admiração: a música. Em “Down With It!”, de 1965, seu 11º da carreira e segundo pela Blue Note, pela a qual havia trocado sua então gravadora Riverside recentemente, não apenas avisa já no significativo título (algo como "abaixo tudo isso!", referindo-se ao racismo, à violência, à segregação) como tematiza um dos mais célebres momentos da trajetória de Luther King: a marcha sobre a cidade de Selma até Montgomery, no abertamente segregador estado do Alabama, pelo direito dos negros norte-americanos ao voto. 

O disco, lançado em julho daquele ano, é claramente tocado por este acontecimento, ocorrido menos de três meses antes e que significou, depois do revoltante Domingo Sangrento, no dia 7, a primeira grande vitória pelos direitos civis da população negra nos EUA duas semanas depois da repressão policial que comoveu o país e o mundo. Tamanho é o impacto positivo sobre Mitchell do feito de Luther King e suas centenas de corajosos correligionários, que o fato lhe inspira um blues alegre, composto em notas altas na escala. Nada estranho a quem traz o estilo musical de raiz no nome. “March on Selma” não só contraria a compreensível seriedade geralmente dada a um tema tão pesado e triste como este como, principalmente, demostra como pessoas como Mitchell se sentiram diante daquele momento histórico e tão simbólico para suas vidas. Era uma conquista pela cidadania, pelo direito de ser quem se é. Por isso, merecia mesmo que se comemorasse – até porque, talvez pressentindo que naquele mesmo ano o presidente Johnson acataria a reivindicação, mas também que, três anos dali, a celebração poderia acabar a qualquer instante com um tiro.

Bastaria, mas “Down...” não se resume somente a “March...”. Há ainda outras maravilhas do quinteto de Mitchell. "Hi-Heel Sneakers" abre o álbum num jazz-funk inspiradíssimo. Todos se esmeram e mostram de pronto a que vieram: Gene Taylor, ao baixo; Aloysius Foster, na bateria; Junior Cook, no sax tenor; e um talentoso jovem pianista que se tornaria um dos maiores nomes do jazz contemporâneo de todos os tempos: Chick Corea, com apenas 24 anos à época. Na linha do Lee Morgan e Herbie Hancock vinham realizando naquele meado de anos 60 ao introjetarem o groove pop de James Brown às linhas melódicas do hard bop, Mitchell ousa em “Hi-Heel...” para, também desta forma, valorizar as raízes negras da música.

Dr. King liderando a famosa Marcha sobre Selma, que tocou profundamente Mitchell

Já “Perception” muda todo o clima, tornado a ambiência mais contemplativa e lírica. O dedilhado do piano, claramente inspirados na bossa nova, denota um Corea já totalmente familiarizado com as harmonias jobinianas as quais aprofundaria como band leader junto a sua mezzo brazuca banda Return to Forever alguns anos depois. A bateria de Foster, cujo ritmo puxado na borda da caixa é igualmente brasileiríssimo, faz uma tabelinha afinada com o gingado do piano e do baixo de Taylor. Os sopros não ficam para trás, contudo. Perfeitos na fluidez do chorus e na elegância dos solos, primeiro Mitchell e depois Cook.

Não podia faltar ao menos uma balada no repertório, especialidade dos be-bopers da linhagem de Cannonball Adderley, Earl Bostic e Horace Silver e como foi Mitchell. "Alone, Alone, and Alone", com seus solfejos lânguidos e suplicante de trompete, faz-se a melhor e única companhia para quem quer ficar na sua sofrendo por um amor. “One Shirt”, por sua vez, exercita com maestria a linguagem do hard bop sobre um antigo tema do ragtime. Já em “Samba de Stacy” Corea e Foster retomam a química para um tema ainda mais gingado e tipicamente brasileiro. De sonoridade mais aberta e vibrante que “Perception”, no entanto, a música encerra o disco no clima de positividade que Mitchell fez questão de imprimir desde a capa de Reid Miles, a qual traz uma foto em p&b estourada de uma mulher de feições afro-americanas sorrindo. Dr. King havia triunfado.

Na semana em que os Estados Unidos celebram o Dia de Martin Luther King, um dos poucos feriados nacionais do país, este dia 17, “Down...” é mais do que um dos melhores discos de Blue Mitchell e uma trilha sonora de uma época áurea do gênero musical mais norte-americano de todos, mas também um registro socioantropológico de quem vivenciou e elaborou um acontecimento social transformador. Os feitos e a existência de figuras como Luther King são tão intensas que perduram eternamente, e a música certamente um dos mais poderosos veículos para esta perpetuação. O mundo nunca esquecerá de Martin Luther King Jr., e Blue Mitchell, testemunha ocular da história, colabora lindamente com este legado universal.

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FAIXAS:
1. "Hi-Heel Sneakers" (Robert Higginbotham) – 8:23
2. "Perception" (Chick Corea, Blue Mitchell) – 5:41
3. "Alone, Alone, and Alone" (Terumasa Hino) – 7:45
4. "March on Selma" (Mitchell) – 6:16
5. "One Shirt" (William Boone) – 7:30
6. "Samba de Stacy" (Boone) – 5:59

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sábado, 8 de janeiro de 2022

83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos

Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown, Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou 83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.

O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e, por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos 50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.

Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.

Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.

Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records. Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel, em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte: não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis vão entrar em sua cabeça.


Márcio Pinheiro
Jornalista

2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)



Paulo Moreira
Jornalista

1 - Thelonious Monk - "Genius Of Modern Music Vols. 1 e 2" (1951/52) 
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus: 
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)


Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro

1. Cannonball Aderley - "Sonethin' Else"
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage" 


Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro

1 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" (foto)
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)


Charles Waring
Jornalista da JazzFuel

1 - Bud Powell – "The Amazing Bud Powell (Vol 1)" (1949)
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’" 
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father" 
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder" 
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" 

 Daniel Rodrigues

quinta-feira, 17 de junho de 2021

“Sergio Mendes no Tom da Alegria”, de John Scheinfield

 

E dizer que eu virava a cara para Sergio Mendes... Visão totalmente equivocada a minha, como se, para ser músico, precisasse necessariamente ser um prolífico compositor. De fato, esso não é o caso de Mendes, pianista que erigiu sua carreira em grande parte sobre o repertório de outros autores elaborando engenhosos arranjos que unem sofisticação harmônica à satisfação pop. Foi isso que ele fez com maestria em temas como “Mais Que Nada”, do Jorge Ben, “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e "Fool on the Hill", dos Beatles, por exemplo, para citar três clássicos de seu cancioneiro. Mas parecia-me insuficiente, pois dava-me a impressão de que tanto sua obra era menor por causa disso quanto seu êxito se dava justamente pelo critério muitas vezes simplista do público norte-americano. Superados meus preconceitos e já admirador da obra de Mendes há algum tempo, assisti com muito prazer a “Sergio Mendes no Tom da Alegria”, documentário dirigido e roteirizado por John Scheinfield, premiado documentarista norte-americano afeito aos registros audiovisuais de músicos como John Coltrane, Herb Albert, John Lennon e Bing Crosby.

A produção gringa, no caso de Mendes, se justifica plenamente. Desde que o Regime Militar o afugentou do Brasil dias após o Golpe de 1964, o músico, que já tinha contatos e nutria certo respeito na terra de Charlie Parker já da época em que a bossa nova estourara por lá no início dos anos 60 (havia gravado, em 1963, por exemplo, um disco em parceria com Cannonball Adderley), decide fazer as malas e seguir carreira por lá. E dá muito certo. Depois de alguma batalha inicial na nova terra, sua inteligência musical o condicionou a criar a Brasil 66, banda que contava com músicos brazucas e ianques e com a qual gravou nove discos entre 1966 e 1971 de estrondoso sucesso. Com o grupo, Mendes juntava a brasilidade do samba e a levada do jazz e da soul, criando um híbrido até então inédito que virou cult. Os gringos, desde então, o reverenciam - até mais do que os brasileiros. Nessa lista de admiradores, estão Quincy Jones, Herb Albert, Lani Hall, John Legend e Black Eyed Peas.

Mendes e sua Brasil 66:a música
brasileira ganha os EUA
A abordagem do documentário se dá pelo olhar estrangeiro, mas mantém o tempo todo ligação com o Brasil. Isso porque, mesmo tendo se integrado tão bem ao mercado norte-americano, sua música e referências sempre foram essencialmente brasileiras e latinas. Aliás, isso é o que lhe diferenciou num momento pós-bossa nova em meados dos anos 60, quando mundo ansiava por uma continuidade ao caminho aberto por Tom, João Gilberto e outros. Como dizem Nelson Motta e Boni em depoimento, o sentimento com relação à Mendes à época em que ele começara a fazer sucesso nos Estados Unidos era o de que ele havia “vencido”, ou seja: um brasileiro que conseguira achar a química certa para levar a cultura do Brasil mundo afora sem deturpá-la, e sim, adaptando-a. Entre os feitos de Mendes está o de praticamente ter sido o primeiro artista do mítico selo A&M Records, então iniciante e pelo qual o próprio Tom gravaria anos mais tarde discos históricos da segunda fase da bossa nova.

No que toca ao filme, essa visão de fora tem suas vantagens e desfavorecimentos. O que não é tão bom é o tom meio didático, principalmente do início da fita, quando é necessário explicar “o que é bossa nova” ou “o que foi o Golpe Militar”, o que, ao invés de ampliar o entendimento, resultam numa generalização um tanto superficial. Não que um documentário não deva explicar, mas é possível partir de um ponto menos simplório. Porém, nada que comprometa, até porque as virtudes do longa compensam, como a disponibilidade de um rico material audiovisual e fotográfico – o apreço documental que norte-americanos têm muito mais em relação a várias outras nações, a começar pela brasileira – e, principalmente, o acesso a entrevistados. Não que seja impossível a uma equipe brasileira chegar a fontes estrangeiras – vejam-se os docs “Milton Nascimento: Intimidade e Poesia” e "O Dia que durou 21 Anos", exitosos nesta ponte EUA-Brasil – mas, convenhamos: quem mais conseguiria com facilidade que alguém como o ator Harrison Ford (responsável, no início da carreira, pela construção do estúdio de Mendes em Los Angeles) desse depoimento que não fosse conterrâneo seu? Fora isso, é mais fácil agregar à obra fontes do Brasil estando nos Estados Unidos do que o contrário.

“Sergio Mendes no Tom da Alegria” - trailer

Essa fronteira entre EUA e Brasil que o filme se põe ao documentar um artista com um pé em cada extremo da América também traz coisas curiosas. A visão dos norte-americanos é a principal delas. Muito bonito de ver, por exemplo, a reverência de Quince e Will.I.Am ao colega brasileiro. Este último, inclusive, faz um comentário interessante próximo ao fim do longa, quando, falando da longevidade do trabalho de seu ídolo, diz que, durante sua trajetória, vários presidentes entraram e saíram e ele continua ativo. Will.I.Am´, porém, está referindo-se a presidentes dos Estados Unidos e não do Brasil, raciocínio que, obviamente, só poderia vir de um norte-americano.

Numa narrativa um tanto comum, mas eficiente, “Sergio Mendes no Tom da Alegria” faz uma louvação aos então 80 anos que o artista completara em 2020, pontuando momentos em que este, um apaixonado pela música, reinventou-se. Invariavelmente com um sorriso cativante no rosto, é o próprio Mendes que conta sobre a adaptação inicial a outro país e mercado, a composição do megassucesso AOR “Never Gonna Let You Go”, cantada por Joe Pizzulo e Leza Miller nos anos 80 (sim, é de Mendes!), o renascimento com o disco “Brasileiro”, nos anos 90, a sua redescoberta pela nova geração dos últimos 20 anos para cá e a indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora por "Rio". Tudo feito com um homenageado em vida, participativo e lúcido, outro bom exemplo que podíamos copiar mais dos norte-americanos.

Sergio Mendes e seu sorriso contagiante: 80 anos de amor pela música


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Protagonistas coadjuvantes

Michael dando um confere bem de perto no que seu
mestre Stevie Wonder faz em estúdio, nos anos 70
Não é incomum artistas da música que, mesmo sendo astros, têm por hábito participarem de projetos de outros, seja tocando em gravações, shows ou como convidados. George Harrison, por exemplo, muito tocou sua slide guitar em discos dos amigos John Lennon e Ringo Starr. Eric Clapton, igualmente, além da carreira solo e de bandas próprias como Cream e Yardbirds, também emprestou sua guitarra para Beatles, Yoko Ono, Tina Turner, Phil Collins e vários outros. Como eles, diversos: Brian Eno, Robert Wyatt, Flea, Eddie Van Halen ou brasileiros como Herbert Vianna, Gilberto Gil, Frejat e João Donato. Todos comumente contribuem com seus instrumentos e/ou voz na música que não somente a deles próprios.

Há também aqueles que dificilmente se supõe que fariam algo fora de seus trabalhos pelos quais são mais conhecidos. Mas vasculhando com atenção as fichas técnicas dos discos, acha-se. Vez ou outra se encontra um artista que geralmente é visto apenas como protagonista atuando, deliberadamente, como um coadjuvante. E não estamos nos referindo àqueles principiantes que, posteriormente, tornar-se-iam ilustres, caso de Buddy Guy em “Folk Singer”, de Muddy Waters, de 1959, na primeira gravação do jovem Guy, então com 18 anos, com o veterano bluesman, ou Jimi Hendrix nas gravações de 1964 com a Isley Brothers anos antes de transformar-se num ícone do rock.

Aqui, referimo-nos àqueles que, já consagrados, abriram mão de seu status em nome de algo que acreditavam seja para um disco, um projeto, uma música ou um show. São momentos em que se vê verdadeiros mitos descerem de seus altares para, humildemente, colaborarem com a música alheia, seja por admiração, amizade, sentimento de dívida ou o que quer que explique. O fato é que esses “protagonistas coadjuvantes”, mesmo que estejam escondidos ou somente encontráveis nas miúdas letras da ficha técnica, abrilhantam com seus talentos peculiares a obra de outros.


Robert Smith para Siouxsie & The Banshees

Os anos 80 foram de inquietude para Robert Smith, líder da The Cure. Sua banda já era uma das mais celebradas do pós-punk britânico em 1983 quando ele, que havia lançado um ano anos o disco único “Blue Sunshine”, da The Glove, projeto em parceria com Steven Severin, decide dar um tempo com o grupo. Mas para quem estava a pleno naquela época, Bob “descansou carregando pedra”, como diz o ditado. Ele decide fazer parte da Siouxsie & The Banshees, banda coirmã da The Cure, mas estritamente como integrante. Com os vocais e o palco já devidamente preenchidos por Siouxsie, Robert assume as guitarras e une-se a Severin (baixo) e Budgie (bateria) para compor a melhor formação que a Siouxsie & The Banshees já teve. Não deu outra: dois discos, duas pérolas, para muitos os melhores da banda: “Hyenna” e o ao vivo “Nocturne”




Miles Davis
para Cannonball Adderley
Mais do que na música pop, é comum no jazz grandes astros e band leaders tocarem na banda de colegas. Isso não funciona, entretanto, para Miles Davis. O talvez mais exclusivo músico do jazz havia tocado no início da carreira para Sarah Vaughan, mas depois jamais fez nada que não fosse tão-somente seu. Até que, com jeitinho, em 1958, o amigo Cannonball Adderley convida-o para participar das gravações de um disco que ele estava por lançar e no qual teria ainda Art Blakey, na bateria, Hank Jones, no piano, e Sam Jones, no baixo. Uma sessão de gravação apenas, só cinco números, algumas horinhas de estúdio com Rudy Van Gelder na mesa, engenheiro com quem Miles tanto estava acostumado a trabalhar. "Não vai custar nada. Diz, que sim, diz que sim!" Tanto foi, que Miles topou, e saiu "Somethin' Else", aquele que é o disco que antecipa a obra-prima “Kind of Blue”, em que, reassumido o posto de front man, aí é Miles que conta com o parceiro saxofonista na banda. Tudo de volta ao normal.


Paul McCartney para Foo Fighters
É conhecida a versatilidade de Paul McCartney. Multi-instrumentista, ele é capaz de tocar, em apenas um show, vários instrumentos ou gravar um disco inteirinho sozinho sem precisar de mais ninguém no estúdio. Quem também fez isso foi Dave Grohl, líder da Foo Fighters, que, no álbum de estreia da banda, em 1995, toca não apenas a bateria, que era seu instrumento na Nirvana, como todos os outros. A amizade e talvez essa semelhança tenham feito com que chamasse o eterno beatle para uma empreitada 12 anos depois. Fã de Macca, ele convidou o veterano músico para gravar para ele não a guitarra, o piano ou a voz. Isso, muita gente já havia feito. Ele pediu para Paul tocar justamente bateria. A “brincadeira” deu super certo, como se vê na canção "Sunday Rain" presente no disco "Concrete And Gold".


Michael Jackson para Stevie Wonder
É uma música apenas, mas considerando o tamanho deste “coadjuvante”, vale por um disco inteiro. A linda e melodiosa “All I Do”, que Stevie Wonder gravaria em seu “Hotter than July”, de 1980, conta com ninguém menos que Michael Jackson nos vocais. E não se trata da voz principal, e sim do backing vocals! Surpreende ainda mais que o Rei do Pop já havia lançado à época o megassucesso “Off the Wall”, de um ano antes, com o qual revolucionaria a música pop e que quebrara os paradigmas de vendas da música negra no mundo. Mas a devoção de Michael para com Stevie era tamanha, que ele nem se importou em fazer um papel secundário. Para quem era conhecido pela habilidade de canto e arranjos de voz, no entanto, o que seria uma mera participação contribui sobremaneira para a beleza melódica da canção.



David Bowie
 para Iggy Pop
Em meados dos anos 70, Iggy Pop e David Bowie estavam bastante próximos. Bowie havia chamado o amigo para uma temporada em Berlim, na Alemanha, onde desfrutariam do moderno estúdio Hansa para erigir alguns projetos, dentre estes, “The Idiot”, no qual dividem todas as autorias e gravações. O período foi tão fértil, que rendeu também uma turnê, registrada no álbum ao vivo “TV Eye Live 1977". Acontece que, no palco, não dá para apenas os dois se resolverem com os instrumentos. Foi então que chamaram os Sales Brothers para o baixo e bateria, Ricky Gardiner, para a guitarra, e... quem assumiria os teclados? Ah, chama aquele cara ali que tá de bobeira. O próprio David Bowie. Quando se escuta as versões ao vivo de “Lust for Life”, “I Wanna Be Your Dog” e “Funtime”, acreditem: os teclados que se ouvem são do Camaleão do Rock. 



Phlip Glass
 para Polyrock
O cara já tinha composto de um tudo: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata, estudos. Faltava uma coisa: música pop. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, o gênio da vanguarda californiana Philip Glass “apadrinhou” junto com este a new wave art rock Polyrock. Dizem nos bastidores, que o cérebro da banda é Glass e não só os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação com a música minimalista do autor de "Einsten on the Beach". Seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. O que consta, sim, é a participação do maestro tocando piano e teclados nos dois discos do grupo, “Polyrock”, de 1980, e “Changing Hearts”, de um ano depois, no qual, inclusive, assina oficialmente o arranjo de cordas da faixa-título. Daqueles raros momentos em que a música de vanguarda se encontra com o rock.





João Gilberto para Rita Lee
Se hoje a participação de João Gilberto tocando violão para Elizeth Cardoso em duas faixas de “Canção do Amor Demais”, de 1958, é considerado o pontapé inicial para o movimento da bossa nova, àquela época o gênio baiano era apenas um músico iniciante ao qual não se havia ouvido ainda toda sua arquitetura sonora de instrumento, voz e harmonia. 24 anos depois, já um mito, João dificilmente repetia uma ação como aquela do passado. Quisessem tocar com ele, ele que convidava. Exceção feita nos anos 80 para sua então esposa, Miúcha (e somente o violão), mas especialmente para Rita Lee. Admirador confesso da Rainha do Rock Brasileiro, João topou o convite de gravar ele, seu violão e sua atmosfera única a faixa “Brasil com S”, do disco “Rita Lee & Roberto de Carvalho”, autoria dos dois. Pode-se dizer que, como todo o cancioneiro de João, é mais uma obra-prima, porém a única em que põe sua voz à serviço de um outro artista fora da sua discografia. Privilégio.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de março de 2021

Wynton Marsalis - "J Mood" (1986)

 


”Wynton Marsalis é o líder entre os jovens instrumentistas que evitam os excessos expressionistas em favor do comando técnico e do respeito pela história."
Robert Christgau, crítico musical

“Naquela noite um jovem tocou trompete. Foi surpreendente. Suas ideias eram diferentes, novas, muito concisas, claras. Perguntei a Art Blakey: 'quem é esse garoto?’, e Art disse; ‘É o filho de Ellis Marsalis’."
Michael Cuscuna, produtor e escritor de jazz

Assim como para com os saxofonistas, existe uma mítica no jazz em torno de outros instrumentistas do sopro: os trompetistas. Certamente a tradição de grandes solistas e band leaders desde que o gênero se formou no início do século XX colabora para essa percepção. Buddy Bolden, Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Chet Baker, Miles Davis e Lee Morgan dão dimensão da responsabilidade que é ser um trompetista no mundo jazzístico. Pode-se até dizer que exige uma certa dose de milagre tal aparição, haja vista a raridade de tamanhas habilidade e inspiração que exige. 

Mas, igualmente ao que acontece com o sax, quando parece que essa ação divina vai falhar, surge, como que por milagre, um novo talento do trompete totalmente absorvido pelo mistério que envolve o instrumento. Caso de Wynton Marsalis, que, no final dos anos 70, apareceu para a cena musical como promessa de continuidade dessa linhagem de músicos do sopro, a qual ele não apenas confirmou como acabou por se tornar ele uma nova lenda, o primeiro artista de jazz a vencer um Prémio Pulitzer, em 1997.

Da extensa discografia de Wynton, um profundo conhecedor de música, além de um homem de posicionamentos fortes em defesa das questões raciais e da cultura afro-americana, “J Mood”, de 1986, é um exemplar modelo. Cores perfeitamente pinceladas do hard bop, no melhor estilo daqueles a quem ele reverencia, Thelonious Monk, Lester Young, Herbie Hancock, Charles Mingus, Charlie Parker, Miles, Morgan e toda uma história galgada em técnica e alma. Numa época em que o jazz em essência perdia força ou para a música pop ou para a vanguarda, Wynton apresentava um deleite para os ouvidos já mal acostumados com a tradição.

A história de Wynton com a música e o ativismo vem de berço e de sangue. Nascido na terra-mão da música negra norte-americana, New Orleans, é o segundo de seis filhos do pianista Ellis Marsalis Jr., influente professor de música que, nos anos 50/60, trabalhara com gente como Ed Blackwell, Cannonball Adderley e Nat Adderley. Mal havia chegado ao mundo e Ellis e a esposa deram um jeito de lhe eternizar a ligação com a música lhe registrando com o primeiro nome do pianista de jazz Wynton Kelly. Ellis, aliás, que por sua vez era filho de Ellis Marsalis Sr., um dos primeiros empresários negros dos Estados Unidos e atuante ativista pelos Direitos Civis em seu país. A casa dos Marsalis respirava música e orgulho racial, tanto que, dos irmãos, também seguiram por este caminho Delfeayo, trompetista como Wynton, Jason, que virou baterista, e o igualmente famoso saxofonista Brandford. 

Não é de se estranhar que, desde muito cedo, Wynton tenha mostrado aptidão com a arte musical, com domínio de melodia e harmonia tanto no jazz quanto na música clássica. Estudante da Jillard School, em Nova York, seus primeiros discos trazem, por isso, acordes não dos deuses do gênero mais norte-americano de todos, mas versões de Heydn, Handel, Purcel e música barroca. Porém, com tamanha proximidade e genética não havia como Wynton fugir de suas raízes. Não tinha como fugir do jazz. Primeiramente recrutado para integrar a banda do já sexagenário Gillespie, um privilégio de poucos, foi outro velho band leader do jazz que o fez enveredar de vez para aquilo que mais lhe pertencia. Em 1980, o baterista Art Blakey, convicto de que convenceria aquele jovem trompetista de apenas 20 anos a abandonar a carreira de recitais pomposos, convida-o para excursionar com sua clássica e formativa The Jazz Massangers pela Europa. A partir dali, Wynton foi definitivamente fisgado pelo jazz. 

O primeiro disco solo somente jazzístico veio dois anos depois deste batismo de Art. Quando chega em “J Mood”, seu quinto neste estilo, o herdeiro das lendas do trompete já estava totalmente confortável e pronto para ocupar seu lugar no olimpo. Foi o início de uma segunda e definitiva fase na carreira de Wynton, com a formação de uma nova banda, o quarteto J Master, formado por Marcus Roberts, ao piano; Robert Hurst III, do duplo baixo; e Jeff "Tain" Watts, na bateria. Ali, Wynton passava a internalizar o entendimento de algo que lhe seria um grande diferencial: o de que não precisava abandonar a veia erudita para realizar jazz.

Como disse o crítico musical Robert Christgau para a Playboy, em 1986, “J Mood” é puro “comando técnico” e “respeito pela história”. Habilidade, sim, mas nada de excessos: expressão certa na medida certa. Miles e Monk não legaram justamente isso? Assim é a faixa-título, que abre o álbum: um blues cadenciado em que o norte é totalmente dado pelo trompete de Wynton. Os praticamente 5 primeiros minutos dos pouco mais de 8 da faixa são desenhados por suas frases inspiradas, “claras” e “concisas” como bem observou o produtor de jazz e escritor Michael Cuscuna ao ouvi-lo pela primeira vez no início dos anos 80. Roberts, outro talento daquela geração de jovens jazzistas, aproveita a deixa e finaliza o número com um magistral solo.

A dobradinha entre Wynton e Roberts se repete na romântica “Presence That Lament Brings”, de autoria deste último. Lamentosa como o título sugere, mas profundamente sentimental, tem solfejos longos e elegantes de Wynton e a pontuação lírica dada pelo pianista. Isso, adensado pela bateria conduzida nas escovinhas sobre a caixa da bateria e o duplo baixo de Hurst III cumprindo com excelência o escalamento. 

Os ânimos se reacendem no bop intenso “Insane Asylum”, em que a improvisação de Wynton é quase que puramente melódica, beneficiando-se da sensibilidade dele e do grupo em contrastes de volumes e ataques. Mais dissonante é "Skain's Domain", que começa com Watts chamando nas variações de caixa, bumbo e pratos para, em seguida, a banda inteira entrar e formar um blues suingado, mas sem perder sua personalidade harmônica. Hora de baixar a rotação novamente, e nisso Wynton é, como todos os grandes trompetistas que o antecederam, um “ás”. Em “Melodique”, na qual se ouve um baixo cristalino e um piano mais ainda, o trompetista puxa uma surdina para diferenciar sua pronúncia e desfilar uma melodia elegante, que faz jus à referência francesa. Quão apaixonadas soam suas notas!

Acordes eruditos das teclas de Roberts abrem “After”. Claro, visto que de autoria de outro pianista. Mas não qualquer um, pois quem a escreveu é, justamente, o pai de Wynton, Ellis. Um verdadeiro resgate da ancestralidade dos Marsalis. Balada sensível, vaporosa, quase adormecendo. Como disse o próprio Wynton ao referir-se à ideia do disco, temas como este são como o repouso que se segue ao diálogo íntimo do romance real, o doce silêncio e a respiração suave após o ato de amor. Para terminar essa joia temporã do jazz que é “J Mood”, o baixo dobrado de Hurst III e a agilidade mental do front man conduzem "Much Later", cujo ritmo acelerado e o título (“muito tarde”) mostram a urgência do resgate do jazz tal como os mestres o conceberam. Wynton e seu quarteto provam que sempre há tempo, contudo.

“J Mood”, juntamente com outro importante disco – não coincidentemente, de autoria do seu irmão Brandford, “Scenes In The City”, de dois anos antes –, salvou o jazz nos anos 80 de dois extremos: o fascínio palatável da música pop, como ocorrera com Hancock e Miles, por exemplo, ou o cerebralismo do pós-bop, que desviava perigosamente o jazz de novo para fora de suas raízes negras. Wynton, ao encontrar a si próprio, encontrou também o caminho do jazz que jamais deve ser perdido. O feito ganhou reconhecimento: Grammy de Melhor Performance Instrumental de Jazz e menção entre as gravações essenciais do gênero do Penguin Guide to Jazz Recordings. Afinal, Wynton Marsalis entendeu que quando ele sopra uma nota em seu trompete, não é somente seus pulmões que agem, mas os de Bolden, Armstrong, Dizzy, Chet, Miles, Morgan. A mística se manifesta e, pelo menos durante os 42 min 35 seg entre a primeira e a última faixas do disco, o jazz está eternamente salvo.

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FAIXAS:
1. "J Mood" - 8:35
2. "Presence That Lament Brings" (Marcus Roberts) - 5:53
3. "Insane Asylum" (Donald Brown) - 6:34
4. "Skain's Domain"- 6:30
5. "Melodique" - 4:32
6. "After" (Ellis Marsalis Jr.) - 6:10
7. "Much Later" - 4:36
Todas as músicas de autoria de Wynton Marsalis, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Música da Cabeça - Programa #94


Fenômenos naturais estão acontecendo. Não, não é eclipse, lua de sangue, terremoto, furacão e nem tsunami. É o Música da Cabeça dessa semana, gente! Quer fenômeno maior que Cannonball Adderley, Vitor Ramil, João Donato e The Cure juntos? E ainda tem mais! Além dos nossos quadros “Música de Fato” e “Palavra, Lê”, o “Sete List” dessa semana faz uma homenagem aos 60 anos de Nei Lisboa. Tudo isso no programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Cannonball Adderley - “Somethin’ Else” (1958)



“Eu praticamente já podia ouvi-lo [a Cannonball Adderley] na minha banda desde a primeira vez que o escutei”. 
Miles Davis


“Ouvindo Miles – que é mais um grande solista do que um grande trompetista –, de repente todos os fundamentos deixam de ter significado para mim, por ele ser tão brilhante de outra forma”. 
Cannonball Adderley

Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.

Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.

Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.

Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.

A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.

Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.

A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.

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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.

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FAIXAS
1. "Autumn Leaves" (Joseph Kosma/Johnny Mercer/Jacques Prévert) – 11:01
2. "Love for Sale" (Cole Porter) – 7:06
3. "Somethin' Else" (Miles Davis) – 8:15
4. "One for Daddy-O" (Nat Adderley/Samuel Jones) – 8:26
5. "Dancing in the Dark" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) – 4:07
6. "Bangoon" ("Alison's Uncle") (Hank Jones) – 5:05*
*Presente na edição em CD

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues