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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

John Lennon - "Plastic Ono Band" (1970)


 

por Roberto Sulzbach 

“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”
da letra de "God", de John Lennon

Em 11 de dezembro de 1970, John Lennon lançava sua primeira investida pós Beatles: o "Plastic Ono Band". Vinte e nove anos depois, em 11 de dezembro de 1999, este, que vos escreve, nascia, em um hospital da zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Comemorar meu aniversário junto dessa obra chega a ser um motivo de orgulho. Um marco na música pop e um último prego no caixão do movimento hippie, o qual tinha o próprio Lennon como símbolo. O disco contou com Klaus Voormann, amigo desde a época que viveu em Hamburgo com o restante do Fab Four; Phil Spector, produtor e pianista; Billy Preston, também no piano; Yoko Ono, creditada como “ar” (Lennon depois explicou que ela montou a "atmosfera’ das músicas"); Ringo Starr, na bateria (por óbvio) e Mal Evans, creditado como “chá e simpatia”.  

Meu primeiro contato com a obra foi em uma das milhares de vezes que assisti Os Simpsons com o meu pai, em uma época que a série ainda era criticamente aclamada como uma grande paródia da sociedade americana do fim do século XX/início do XXI. O segundo capítulo da décima quinta temporada da série, traz o retorno de Mona, mãe ausente do personagem Homer (por ser uma hippie ativista contra grandes corporações em fuga desde o final dos anos 60) em um episódio comovente. Ao final, Homer é “abandonado” novamente por sua mãe e após ela o deixar, não haveria música melhor para sintetizar o momento que “Mother”.  

Julia Stanley, mãe de John, cedeu a guarda do filho, quando ainda era pequeno para sua irmã, por conta de denúncias de negligência com o próprio filho. O pai de Lennon, Alfred, era um marinheiro, que raramente se encontrava em Liverpool e não viu o filho crescer. Julia morreu quando John tinha apenas 16 anos de idade, vítima de um atropelamento, justo em um momento em que o garoto se reaproximava da mãe. “Mother” é a sintetização da raiva, tristeza e desabafo, em forma de berros, que estavam guardados no artista. A letra inicia com “Mãe, você me teve, mas nunca tive você; eu queria você, mas você não me queria.” “Pai, você me deixou, mas nunca te deixei; Eu precisava de você, mas você não precisava de mim”. Em seguida, John esboça uma despedida, como se quisesse abandonar esse passado com “agora, eu só preciso lhes dizer; adeus”, para que então, Lennon se contrarie na estrofe seguinte dizendo “mamãe, não vá! Papai, volte para casa”. De forma alguma é necessário ter passado por situação semelhante para entender o que John sentia em relação a sua família. 

“Hold On” segue o disco com um riff de guitarra tranquilo, em que John começa a se acalmar e reafirmar que vai dar tudo certo. A música é doce e oferece um certo refúgio à pedrada que o ouvinte escutou, como um choro triste, e provavelmente emula o que Lennon passou ao longo das gravações do álbum (que era interrompido constantemente por crises de choro e gritos por parte dele). “I Found Out” trata sobre falsas religiões, cultos e até mesmo, a idolatria que ele exercia sobre uma massa gigantesca de ouvintes “eles não me queriam, então me fizeram uma estrela”, cantou. 

Em “Working Class Hero”, em estilo Dylanesco (em "Masters of War", principalmente), Lennon escreve uma de suas maiores músicas. Apenas portando o violão, O "Herói da Classe Trabalhadora" se rebela contra o sistema imposto, e questiona toda a máquina capitalista e a eterna luta incentivada à população por subir na escada corporativa e econômica. A música causou impacto tão grande, que um tal de Roger Waters passou a questionar a produção de suas letras psicodélicas e começou a expor maiores críticas à sociedade, que resultou, inicialmente, em "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd

“Isolation” finaliza o lado A, abordando a solidão que o autor enfrentava, tanto por ter se separado de seus amigos, e banda, quanto pelas críticas que ele e Yoko sofriam constantemente por parte da mídia. “Remember” nos traz uma realidade paralela, em que Guy Fawks (membro da “Conspiração da Pólvora”, que planejava bombardear, em 1605, a Câmara dos Lordes) conseguiu colocar em prática seu plano. Uma anedota de aquecer o coração é que a canção foi gravada no dia do aniversário de Lennon, e felizmente, foi registrado em vídeo, os amigos John e Ringo recebendo a visita do outro ex-companheiro de banda, George Harrison, que entregou de presente, uma demo de “It’s Johnny’s Birthday” (de "All Things Must Pass", de Harrison). 

Talvez a canção mais ingênua e doce de Lennon seja “Love”. Simples e direta: “O amor é real, real é o amor”. Não há muito o que dizer de uma música que, em poucas palavras, e um piano "silencioso", consegue transcorrer uma imensidão de significados que não podem ser quantificados. “Well Well Well” descreve pequenos casos da vida à dois de John e Yoko, como caminhar em um parque, dividir uma refeição e falar sobre temas como ‘revolução’ e ‘libertação das mulheres’. “Look at Me” nos traz um Lennon direto do “White Album”, perguntando ao ouvinte “quem que devo ser?”.

“God” é filosófica, existencial, e acima de tudo, impactante. Uma canção que começa com “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, não tem como não chamar a atenção. Com um piano espaçado e dramático, Lennon subverte todas as crenças que possuía, e não possuía, dizendo que não acredita na Bíblia, tarot, Jesus, Hitler, Kennedy, Budha, Yoga, Elvis, Zimmerman (Bob Dylan), e mais importante, não acredita nos Beatles. Após citar sua antiga banda, uma pausa dramática precede a frase “eu só acredito em mim. Em Yoko e em mim”. Ele segue com “o sonho acabou” e “Eu era a Morsa (referência a I Am The Walrus), agora sou o John”. Ou seja, estamos diante do verdadeiro John Lennon, e que é necessário deixar o passado Beatle para trás. O álbum finaliza com “My Mummy’s Dead”, uma balada curta e poderosa, que faz o contraponto com “Mother”, pois ao invés dos berros, Lennon canta calmamente que ainda não superou a morte de sua mãe, mesmo que ela tenha morrido há tanto tempo. 

Acima de tudo, "Plastic Ono Band" nos apresenta quem era o ser humano John Lennon, mesmo que ele tenha representado ¼ de um dos maiores fenômenos da música mundial. Da minha parte, acho uma coincidência barbara a pequena conexão de nascer no mesmo dia em que o disco foi lançado, anos antes. Mesmo com a perda do meu parceiro de Simpsons há muitos anos (e de música, inclusive era fã do Lennon), fico feliz de ter, tanto Homer, quanto John, para me acompanhar na sequência da minha caminhada sem ele. 

*********
FAIXAS:
1. "Mother" - 5:34
2. "Hold On" - 1:52
3. "I Found Out" - 3:37
4. "Working Class Hero" - 3:48
5. "Isolation" - 2:51
6. "Remember" - 4:33
7. "Love" - 3:21
8. "Well Well Well" - 5:59
9. "Look at Me"  - 2:53
10. "God" - 4:09
11. "My Mummy's Dead" - 0:49
Todas as composições de autoria de John Lennon

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OUÇA O DISCO:
John Lennon - "Plastic Ono Band"

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

"O Mistério de Candyman", de Bernard Rose (1989) vs. "A Lenda de Candyman, de Nia Da Costa (2019)

 



Bom jogo.

Dois bons times!

"O Mistério de Candyman", de 1989 já ocupa seu lugar entre os clássicos do terror, mas "A Lenda de Candyman", de 2019, não veio pra brincadeira e quer desbancar o favorito.

É o caso de remake que não é exatamente uma refilmagem, estaria mais para uma sequência, um reboot, uma vez que tem ligação com os fatos já acontecidos, faz referência a personagens da trama original, mas cria de tal forma um novo conceito que o termo re-fazer torna-se totalmente mais adequado.

No original, de 1989, uma pesquisadora acadêmica, Helen, em busca de um bom assunto para sua tese universitária, investiga uma suposta lenda urbana de um homem negro, com um gancho no lugar de uma das mãos, que, segundo dizem, aparece sempre que invocado, cada vez que seu nome é repetido cinco vezes diante de um espelho. Ela mergulha na pesquisa e descobre que, há mais de um século atrás, o homem em questão, um negro filho de escravos, dotado de grande talento artístico, contratado para pintar um retrato da filha de um importante aristocrata, teria sido morto cruelmente por um poderoso aristocrata,  depois de se apaixonar e engravidar a moça. O negro, conta a lenda, teria sido torturado, sua mão decepada e colocado um gancho em seu lugar, além de lambuzado em favos de mel, exposto a abelhas dentro de um antigo apiário, sendo picado até a morte e depois ainda, como se não bastasse jogado em uma fogueira. Ela visita um conjunto habitacional de baixo padrão na periferia de Chicago, o Cabrini-Green, construído no local onde há tempos atrás teria ocorrido a barbaridade com o artista, e onde moradores alegam ver a entidade, atribuindo a essa assombração a autoria de vários crimes ocorridos lá.

Ainda cética e incrédula quanto à lenda, ela invoca a entidade e a partir de então sua vida torna-se um inferno. Visões, apagões, pesadelos passam a fazer parte de seus dias, e assassinatos nos quais ela estivera presente nas cenas dos crimes, a tornam a principal suspeita das mortes, sendo que, sem memórias claras, nem ela mesmo tem certeza de não tê-los cometido.

É que Candyman, depois de invocado por Helen, passa a ter com ela uma estranha ligação e a exige em sacrifício em troca da vida de um bebê que sequestrara no Cabrini-Green. E, vingativo e ressentido, não pretende parar de matar até que Helen se entregue a ele e compense, de certa forma, a mulher por quem foi sacrificado.


"O Mistério de Candyman" - trailer


No novo, essa questão da injustiça social, do julgamento racial, de um negro pobre ser morto simplesmente por ser negro e pobre, ganha muito mais força e significação. Em "A Lenda de Candyman", todos aqueles fatos já teriam acontecido e agora ecoam como um boato, um mito distante, uma lenda, que quase ninguém leva a sério. No entanto, Anthony, um artista plástico em crise criativa, em busca de uma maior expressão em sua arte, que pretende recorrer às raízes do povo negro, suas mazelas, suas dores como inspiração para sua arte e nesta busca, numa conversa casual, esbarra na tal da lenda de Candyman. Descobre que o bairro onde vive localiza-se numa área hoje revitalizada mas que outrora abrigava um bairro de classe baixa tido como "barra pesada", onde um homem negro que costumava dar doces para as crianças, fora morto injustamente, linchado pela polícia. Resolve desenterrar a história e ver até onde aquilo tudo tem algum fundo de verdade. O próprio interesse dele na história, no personagem e sua verificação dos fatos e contestação dos acontecimentos desperta a força sobrenatural adormecida. Curioso, cada vez mais intrigado e envolvido com a história, meio que na brincadeira, ele resolve invocar a entidade, só que aquilo era tudo que Candyman precisava: um homem negro, angustiado, em busca de respostas, em busca de si mesmo... Quando esse negro se olha no espelho ele vê todos os negros injustiçados, subestimados, subvalorizados, pré-julgados, espancados, linchados, mortos, e todos esses negros estão simbolizados na figura de Candyman.

Inspirado pelo personagem que pesquisara e descobrira, Anthony cria uma instalação artística, uma espécie de espelho de banheiro, repleto de símbolos, imagens e recados em seu interior, que, exposta numa galeria causa alvoroço e incita alguns brancos desavisados, céticos, descrentes, ignorantes, a ousarem dizer seu nome na frente do espelho. "Candyman, Candyman,  Candyman, Candyman, Candyman...".  Branco, você não devia ter feito isso...

Se para um negro que o chama ele surge com essa força ancestral poderosa (assustadora, é verdade, difícil de incorporar com naturalidade), para um branco que o faz, por galhofa ou curiosidade, Candyman revela toda sua fúria justiceira deixando um rastro de sangue vingativo.

Aos poucos Candyman vai se apossando de Anthony. O que vemos é desagradável, não é bonito mas... é isso: nunca foi bonito. É a vez do artista encarnar toda a injustiça e a violência sofrida pelos negros ao longo dos tempos. Mas ele aceitará essa tarefa?


"A Lenda de Candyman" - trailer


Jogo duríssimo, hein...

Propostas de jogo parecidas mas com alternativas táticas diferentes.

Se o primeiro é um filme de serial-killer sobrenatural que toca em pontos sensíveis, como machismo, desigualdade social, violência policial, gentrificação e, sobretudo, racismo; o segundo coloca essas discussões no centro da trama e, ao contrário, faz do terror um acessório importante.

É o duelo dos técnicos! De um lado o britânico Bernard Rose que não brilhou muito em trabalhos posteriores mas que aqui mostra muita competência, e do outro a jovem treinadora Nia da Costa, cheia de novas ideias e já mostrando um ótimo trabalho em seu segundo longa. Mas com tramas tão bem desenvolvidas, mais do que um duelo de treinadores, a batalha dos Candyman revela-se uma guerra dos roteiristas. De um lado, nada menos que o mestre do terror Clive Barker, idealizador e roteirista do filme de 1989, e do outro um dos grandes nomes do gênero na atualidade, o excelente Jordan Peele.  Como dá pra notar, comissões técnicas de peso. 

E dentro de campo a coisa não é diferente. O antigo aposta nas individualidades com Virginia Madsen, do primeiro "Duna", numa ótima atuação, no papel da pesquisadora Helen, e o lendário Tony Todd, do remake de "Noite dos Mortos-Vivos", espetacular como o personagem que dá nome ao filme. O novo, sem nenhuma grande estrela, aposta no conjunto e como ponto a seu favor traz um  um elenco predominantemente preto num filme sobre questões negras.

Partida equilibradíssima!!!

Quem leva?

Tony Todd é um Candyman muito melhor, mais assustador, mais impressionante com aquele rosto crivado de abelhas, do que o inexpressivo Michael Hargorve que é o Candyman que aparece na maior parte das vezes na nova versão. Embora sejam utilizados outros atores também no papel ao longo do filme em diferentes situações, Hargrove é quase aquele jogador que joga 'no nome'. Impressiona porque é O CANDYMAN, pois qualquer ator podia estar ali que faria o mesmo efeito, tanto que, grande parte das vezes, sequer vemos seu rosto com nitidez. Candyman 89 abre o placar.

Nia da Costa mostra-se mais diretora que Bernard Rose com um produto final mais bem acabado. Cor, iluminação, direção de arte, opções estéticas... tudo depõe a favor da norte-americana que conduz seu time com fluidez para o gol. Candyman 2019 empata o jogo. Jogada com o dedo da treinadora.

Mas o time de 1989 tinha uma arma secreta. A trilha sonora ficara a cargo de ninguém menos que o gênio Philip Glass. E ele não decepciona, entregando uma atmosfera tensa mas ainda assim extremamente elegante e sofisticada. É Candyman 89, novamente à frente no placar. 2x1.

Num time sem grandes estrelas, a diferença está na casamata. A treinadora Nia da Costa desequilibra de novo, com três momentos incríveis: o flashback recontando a origem do Candyman e os acontecimentos em Cabrini-Green, contado com muita sensibilidade estética num teatro de sombras; a morte da crítica de arte, Rebecca, sendo erguida e arrastada por uma força invisível, no interior de seu apartamento, filmada numa tomada afastada, quase como um vizinho observando; e a evocação final de Brianna, a namorada de Anthony, dentro da viatura entendendo o verdadeiro significado do Candyman. Cena fantástica, linda mas brutal, violenta mas emocionante. Golaço! Candyman 2019 deixa tudo igual novamente, 2x2.

Michael Brown, Jesse Washington, Sarah Bland, Geroge Floyd...
Todos eles são Candyman.
Diga o nome deles.

Difícil dar a vitória para algum dos dois aqui mas... a denúncia social, o recado anti-racista, a incisividade do discurso, a reinvenção de um clássico, dão a vitória para "A Lenda de Candyman". 

A evocação de Candyman na frente do espelho é um convite a que cada negro olhe seu reflexo e entenda que a imagem que vê guarda consigo cada um dos outros tantos que foram escravizados, espancados, pendurados em árvores, injustiçados, vistos com desconfiança só por serem negros, presos só por serem negros, mortos por serem negros. Quando Nia da Costa propõe que seus personagens falem o nome de Candyman, remete ao "Say Her Name", movimento que defende mulheres vítimas de agressão policial. Uma provocação inteligente colocada de forma brilhante. Chamar o Candyman é um desafio para que evoquemos nomes como Jesse Washington, Michael Brown, George Floyd e outros tantos. Você, irmão, negro, não esqueça dos nomes deles e delas. Você, branco, você tem coragem de dizer o nome deles? É golaço! Sabe de quem? Candyman é o nome da emoção! 

Vitória da Lenda de Candyman. Mas não foi fácil. Dois times de respeito num jogo, daqueles, para não esquecer.


No alto, à esquerda, Helen, e à direita, Anthony, ambos em busca de respostas sobre Candyman.
Abaixo, os dois Candyman, à esquerda, o da primeira versão e, à direita, o (ou um dos) da refilmagem.



Parafraseando a letra daquela música que a galera canta no estádio:
"Porque esse time bota pra ferver
E o nome dele são vocês que vão dizer"

(Digam vocês porque eu tô fora!
Vai que ele apareça mesmo...)








por Cly Reis


sábado, 15 de julho de 2023

“Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele (2022)


Sim, nós olhamos*

Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.

Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória. 

São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.

“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.

Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam
a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero

A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.

Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.

O chimpanzé Gordy: metáfora
central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.

Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.

Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali. 

O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. 

Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples. 

O emblemático King Kong em versões ao longo da história

A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras. 

Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo. 

Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário. 

É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.

* Texto originalmente publicado na edição de nº 32 da revista Teorema

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trailer oficial de "Não, Não Olhe!"


Daniel Rodrigues

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Black Pantera - Bar Ocidente - Porto Alegre/RS (14/11/2022)

 

Por Lucio Agacê

Afro-punk - História

O termo se originou no documentário “Afro-Punk”, de 2003, dirigido por James Spooner. No início do século XXI, os afro-punks compunham uma minoria na cena punk norte-americana. Notáveis bandas que podem ser ligadas à comunidade afropunk, como Death, Pure Hell, Bad Brains, Suicidal Tendencies, Dead Kennedys, Wesley Willis Fiasco, Suffrajett, The Templars, Unlocking the Truth, Fishbone e Rough Francis. No Reino Unido, foram músicos negros influentes associados à cena punk do final da década de 1970 tal Poly Styrene da X-Ray Spex, Don Letts e Basement 5. O afro-punk se tornou um movimento comparável ao início do movimento hip hop dos anos 80. O Afropunk Music Festival foi fundado em 2005 por James Spooner e Matthew Morgan e recentemente teve sua segunda edição no Brasil realizada em Salvador, na Bahia.


Então: abri com esse texto para poder introduzir o tema a uma banda que pra mim é o grande destaque do momento e que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente e fiz questão de dizer a eles que essa era a oportunidade, porque depois disso eles alçariam voos ainda maiores.

No Brasil, assim como no mundo, houve nos últimos anos uma certa ascensão da extrema direita racista e supremacista causando uma divisão popular jamais vista na história da humanidade. Diante de toda essa situação atípica, faz-se natural alguns seguimentos da sociedade se juntarem para combater um inimigo em comum. Após o fatídico caso George Floyd nos Estados Unidos essa luta antirracista se tornou mais do que nunca necessária. Um combate à extrema direita ultraconservadora e os seus claros flertes com o fascismo fez com que cada vez mais jovens negros encontrassem na arte e na cultura, mais uma vez, seu refúgio.

Mês passado, no bar Ocidente, em Porto Alegre, rolou o espetáculo. Sim, senhores: um espetáculo!!! Era a Black Pantera, banda mineira composta por negros de atitude e com uma sonoridade monstruosa! 

Fiquei sabendo do show através de um amigo e começamos uma verdadeira saga para conseguir ingressos ou por sorteio ou pelos solidários. Até que, pasmem: a banda, com seu engajamento social, libera 50 ingressos para cidadãos negros de baixa renda. Bastava enviar um e-mail e confirmar presença.

trecho do show da Black Pantera 
no Ocidente, em Porto Alegre

Pronto: ingressos na mão. Fomos ao show, que começou às 21 horas em ponto, mas não antes daquela boa tietagem, troca de ideias, fotos e tudo mais, com direito a autógrafos no cartaz. Isso tudo numa segunda-feira, dia 14 de novembro...

O show da Black Pantera (formada por Charles Gama, guitarra e vocal; Chaene da Gama, baixo; e Rodrigo "Pancho" Augusto, bateria) começou com uma patada chamada “Abre a Roda e Senta o Pé”, seguida de mais alguns petardos, que até então eram novidades pra mim. Teve direito a cover do ídolo pop Michael Jackson, “A Carne”, de Elza Soares, e um belo momento onde a banda chama as garotas pra um samba-de-roda punk. Inacreditável!!

Eu quero exaltar aqui não apenas um, mas três discos da Black Pantera: “Project Black Pantera”, de 2015, “Agressão”, de 2018, e “Ascensão”, de 2022. Ouçam!

Senhores: o movimento Afropunk existe e está vivo. Vários artistas brasileiros estão nessa barca e merecem atenção!

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Confira mais fotos do show e dos bastidores:

BP no palco do Ocidente detonando


Lucio com a galera da BP após o show


Batendo aquele papo...


... sobre afropunk 


Mais câmbios entre Porto Alegre e BH


Foto afudê com a galera no camarim


No camarim trocando altas idieas com o pessoal da BP


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Living Colour - "Vivid" (1988)

 

"'Dougie, eu gostei dessa banda. O que você acha que devo fazer?' Eu disse a ele: 'Você é Mick Jagger, cara! Leve-os ao estúdio e faça algo com eles.'"
Doug Wimbish, atual baixista da Living Colour

Chuck Berry e Little Richards nunca esconderam a frustração de, mesmo sendo músicos negros como eles os inventores do rock ‘n’ roll, os louros tenham ido para artistas brancos. Não que Elvis Presley, Jerry Lee Lewis ou Bill Halley não tenham grande valor, mas é fato que a indústria fez abafar por uma imposição mercadológica racista a importância de autores negros como eles ou os irmãos Fats Domino, Bo Diddley e Sister Rosetta Tharpe. Com o passar dos anos, o estilo se desenvolveu e vieram os Beatles, os Rolling Stones, a Pink Floyd, a Led Zeppelin, a Black Sabbath... todos majoritariamente brancos. A Love, rara banda de rock composta somente por membros negros, era uma exceção onde deveria ser regra. Jimi Hendrix, como Pelé, virou um mito sem cor. Os punks Bad Brains e Death nunca tiveram a mesma vitrine que Ramones ou Sex Pistols. A "solução" da indústria? O mesmo mercado que desapropriou a criação do rock dos negros lhes deu o “direito” de serem pais de ritmos inquestionavelmente pretos, como a soul music e o jazz. Ou seja: sistematizou o apartheid musical. 

Claro que Berry e Richards garantiram, por aclamação, seu lugar no panteão da música universal. Porém, por muito tempo pairou aquela sensação de que os negros, os verdadeiros inventores do gênero mais popular do século XX, tinham uma dívida a cobrar. As décadas se passaram desde que o rock veio ao mundo cultural, e a indignação só fazia aumentar. Foi quando uma turma resolveu cobrar com juros e correção monetária esse débito e reclamar para si a verdadeira gênese do rock ‘n’ roll. “É pra gente mostrar que negro faz rock melhor que qualquer um? Então, aqui está!” Com esta vividez corajosa e empoderada surgiu a Living Colour, formada somente por músicos de fina estampa: o vocalista Corey Glover, o baixista Muzz Skillings, o baterista William Calhoun e o guitar hero Vernon Reid, principal compositor do grupo. Negros.

Produzidos pelo tarimbado Ed Stasium e por ninguém menos que Mick Jagger, que apadrinhou a banda após descobri-los tocando no underground de Nova York, “Vivid” é a extensão da própria ideia de uma banda cujo nome ressalta a vivacidade da cor da pele preta. Afinal, como disse o poeta: "Negro é a soma de todas as cores." Nas suas linhas melódicas, na sua potência, na sua sonoridade, nas letras de crítica social, no seu visual, o primeiro disco da banda resgata todos os tons da tradição do rock em um dos mais bem elaborados sons produzidos na música pop em todas as épocas. O rock pesado da Living Colour soa como se fosse inevitável valer-se dos altos decibéis para manifestar com autenticidade tudo aquilo que esteve guardado anos e anos. Tem hard rock, heavy metal e punk pincelados de funk, blues e jazz, aquilo que os negros fazem como ninguém. Ou seja: a Living Colour, com o perdão da redundância, dá cores muito próprias à sua música. O hit "Cult of Personality", faixa de abertura, é como um traço original num quadro que condensa todas essas tintas. Riff arrebatador, daqueles de dar inveja a Metallica e Anthrax. E a letra, na voz potente e afinadíssima de Glover, referencia Malcom X e critica a superficialidade da sociedade: “Olhe nos meus olhos/ O que você vê/ O culto da personalidade/ Eu conheço sua raiva, conheço seus sonhos/ Eu tenho sido tudo o que você quer ser”.

Hard rock de primeira, "I Want to Know" antecipa "Middle Man", outra de sucesso do álbum que também ganhou videoclipe na época de ouro da MTV. Reid, excepcional tanto na criação do riff quanto na condução da melodia e no solo, mostra porque é um dos maiores guitarristas de todos os tempos, capaz de variar de um suingue a la Jimmy Nolen ou fazer a guitarra urrar como uma das big four do trash metal. Já a pesada "Desperate People" destaca o talento de Calhoun nas baquetas, seja no ritmo, que vai do funk ao hardcore, quanto na habilidade e potência, ainda mais quando martela os dois bumbos. Mais um sucesso, e das melhores do repertório da banda, visto que uma tradução do seu estilo: "Open Letter (To a Landlord)". A letra fala da realidade da periferia (“Essa é minha vizinhança/ Aqui é de onde vim/ Eu chamo este lugar de meu lar/ Você chama este lugar de favela/ Você quer expulsar todas essas pessoas/ É assim que você é/ Trata pessoas pobres como lixo/ Vira as costas e ganha dinheiro sujo”) e traz um dos refrãos mais emblemáticos e tristes daquele final de anos 80, o qual, inteligentemente, repete os primeiros versos da letra, só que cantados agora numa melodia vocal especial: “Now you can tear a building down/ But you can't erase a memory/ These houses may look all run down/ But they have a value you can't see” (“Agora você pode derrubar um prédio/ Mas você não pode apagar uma lembrança/ Essas casas podem parecer estar em mau estado/ Mas elas tem um valor que você não pode ver.”).

O punk rock vem com a alta habilidade de músicos de ouvidos acostumados com o jazz fusion em “Funny Vibe”. Isso, no começo, porque depois a música vira um funk ao estilo James Brown com pegadas de rap, principalmente no jeito de cantar em coro – lembrando o hip-hop raiz de Run DMC e Afrika Bambaata – e na participação de Chuck D e Flavor Flav, MC’s da Public Enemy, a banda de rap mais politizada de todos os tempos. Aí, vem outra das grandes da banda: sua versão para a escondida proto-metal “Memories Can’t Wait”, da Talking Heads. Pode ser que, para uma banda estreante como a Living Colour, tenha pesado a indicação de Stasium, que havia trabalhado com o grupo de David Byrne nos anos 70. Porém, a influência do produtor vai até este ponto, visto que a leitura da música é totalmente mérito de Reid e de seus companheiros. O arranjo é perfeito: intensifica os aspectos certos da harmonia, faz emergir o peso subentendido da original e aplica-lhe pequenas diferenças, como leves mudanças na melodia de voz, que personalizam esta que é, certamente, uma das melhores versões feitas no rock dos anos 80.

Já na melodiosa "Broken Hearts", Reid exercita sua técnica deixando de lado o pedal de distorção para usar um efeito slide bastante elegante, assim como o vozeirão aveludado de Glover. Nesta, Jagger solta sua gaita de boca abrilhantando a faixa. Numa linha também menos hard e ainda mais suingada, “Glamour Boys”, que também tocou bastante à época e que tem participação de Jagger aos vocais, precede outra de vital importância para o discurso de reivindicação levantado pela banda: “What's Your Favorite Color?”. Seus versos dizem: "Qual é a sua cor favorita, baby?/ É branco?/ Fora de moda". 

E quando se pensa que se ouvirá mais um heavy metal furioso, com a mesma naturalidade eles enveredam para um funk psicodélico de fazer orgulhar-se dr. P-Funk George Clinton pelos filhos musicais que criou. Noutro hard rock pintado de groove, "Which Way to America?", com destaque para o baixo em slap de Skillings, solta o verbo contra a sociedade de consumo e a ideologia racista da televisão, veículo concentrador das amálgamas no mundo pré-internet, alinhando-se novamente ao discurso dos parceiros Public Enemy, ferozes denunciadores do branconcentrismo da mídia norte-americana.

Com outros bons discos posteriores, como “Times Up”, de 1990, o qual traz o maior hit da banda, “Love Rears It's Ugly Head”, a Living Colour abriu em turnê para os Rolling Stones e foi atração de festivais como Hollywood Rock de 1992, tornando-se, por incrível que pareça, o primeiro grande grupo do rock integralmente formado por negros, mais de 40 anos depois dos precursores mostrarem o caminho para as pedras rolarem. Além disso, mais do que seus contemporâneos Faith no More, eles expandiram as falsas fronteiras do rock pesado, injetando-lhe uma propriedade que somente os “de cor” poderiam realizar. Depois deles vieram a Infectious Grooves, a Body Count, a Fishbone, todos com bastante influência daquilo que ouviram em “Vivid”. Todos que não deixaram esquecer jamais que o rock é, sim, essencialmente preto. E vamos parar com essa palhaçada! As memórias de Berry e Richards agradecem.

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FAIXAS:
1. "Cult of Personality" - 4:54 (Glover/ Skillings/ Reid/ Calhoun)
2. "I Want to Know" - 4:24
3. "Middle Man" - 3:47 (Reid/ Glover)
4. "Desperate People" - 5:36 (Glover/ Skilling/ Reid/ Calhoun)
5. "Open Letter (To a Landlord)" - 5:32 (Tracie Morris/ Reid)
6. "Funny Vibe" - 4:20
7. "Memories Can't Wait" - 4:30 (David Byrne/ Jerry Harrison)
8. "Broken Hearts" - 4:50 
9. "Glamour Boys" - 3:39
10. "What's Your Favorite Color? (Theme Song)" - 3:56 (Reid/ Glover)
11. "Which Way to America?" - 3:41
Todas as composições de autoria de Vernon Reid, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #243

 

Se é o Aristides ou não, não se sabe, o que importa é que você vai ficar com esse olhar para o MDC hoje depois de ouvi-lo. Também, só tem coisas apaixonantes! Björk, Pink Floyd, James Brown, Paulinho da Viola e mais. Ainda rola um "Sete-List" lembrando os 20 anos da perda de George Harrison e uma homenagem a Stephen Sondheim. Piscando os olhinhos, o programa hoje vai ao ar às 21h na nubente Rádio Elétrica. Produção e apresentação in love: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica
www.radioeletrica.com

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

"Doutor Gama", de Jeferson De (2020)

 

O Dia da Consciência Negra, embora não adotado em todo o Brasil (nem mesmo pela cidade na qual surgiu, Porto Alegre), tem ganhado a cada ano mais reverberação. Oxalá! Se acontecimentos recentes como a morte de repercussões mundiais de George Floyd ou o alarmante assassinato de Júlio César acabam por nos fazer lembrar da necessária e constante vigília contra o apagamento histórico – não raro, caracterizado pelo aniquilamento –, por outro lado, mais e mais a sociedade passa a enxergar esta data e não o 13 de Maio como aquela que, de fato, representa a valorização da cultura afro-brasileira e um avanço do maior espaço do negro em todas as esferas sociais.

Um dos aspectos positivos que esta conscientização gera é o do resgate da ancestralidade. E quando se fala em direito ao povo negro, é impossível não se lembrar no Brasil de uma personalidade tão histórica quanto admirável: Luiz Gama, figura central do filme "Doutor Gama", do diretor paulista Jeferson De. Nascido de ventre livre, o baiano Gama foi, mesmo assim, vendido como escravo aos 10 anos para pagar dívidas de jogo de seu pai, um homem branco. Mesmo escravizado, ele conseguiu se alfabetizar e, assim, conquistou sua liberdade, tornando-se um dos mais respeitados juristas de sua época. Vivido por Cesar Mello na vida adulta e por Angelo Fernandes na adolescência (além do competente Pedro Guilherme, que faz o personagem quando criança), o filme mostra a vida de Gama desde a infância até a conquista de seu primeiro grande caso jurídico, uma verdadeira quebra de paradigmas na mentalidade vigente da época cujo preconceito era ainda protegido por lei. 

Num desses apegamentos que a cultura colonialista tenta nos imputar, Gama por muito tempo foi classificado como “rábula”, ou seja, tanto "advogado pouco culto, incompetente, pilantra" quanto aquele que "exerce a advocacia sem ser qualificado". Errado. O historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, mostra que esta imagem, propositadamente construída para diminuir a importância de Gama, está totalmente equivocada. E sempre esteve. Lima encontrou diversos (repito: não poucos, mas diversos!) documentos que provam que, já à sua época, Gama – que foi também escritor, jornalista e abolicionista – era creditado, sim, como “advogado”. Isso porque o exercício da advocacia não era restrito apenas aos bacharéis em Direito, mas também àqueles que tivessem alguma provisão, temporária ou definitiva, que reconhecesse a função por notório saber. 

O herói Luiz Gama: que rábula, que nada! Advogado

Não precisa de um profundo entendimento para se constatar que, num país forjado sobre a mentira da democracia racial, os ventos deste apagamento continuem sendo soprados. Recentemente, a tão conceituada editora Companhia das Letras foi motivadora de um episódio lamentável envolvendo a figura do próprio Luiz Gama. A editora decidiu retirar de circulação o livro infantil “Abecê da Liberdade: A História de Luiz Gama, o Menino que Quebrou Correntes com Palavras” depois de uma série de polêmicas na qual a empresa se colocou, deslavadamente, como "desavisada". Isso porque os autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta – brancos, claro –, tiveram a absurda irresponsabilidade (pra não dizer coisa pior) de escrever cenas do pequeno Gama quando criança brincando de “escravos de Jó” em pleno navio negreiro e pulando corda com as correntes... Ora, tenha dó! O próprio filme retrata esta passagem com a devida tristeza e crueldade como de fato ocorreu com Gama e milhares de negros escravizados. Mais uma mostra cabal do racismo estrutural, visto que mascarado de desentendimento, tanto por parte dos autores quanto da editora.

O que dizer, então, dessa sociedade preconceituosa que pretensamente grita aos quatro cantos que é antirracista mas que, justamente por isso – por não sê-lo, por não acreditar no que mesmo diz – acaba por ser exatamente aquilo que era desde o princípio: racista? Diretamente ligado a isso, note-se que "Doutor Gama" avança discursivamente num aspecto de profunda violência e desumanidade da escravocracia, que é a possibilidade de se subjugar, apenas pela cor da pele, alguém que nem mais escravo era - reforçando, pois, que a ideia de escravidão era e é social e não somente política. Este aspecto é o mote do oscarizado "Doze Anos de Escravidão" (de Steve McQueen, 2013) e é impressionante ver que somente agora obras comecem a relembrar tais práticas repugnantes. Porém, enquanto no filme norte-americano o protagonista passa uma vida lutado para sair da condição a qual foi injustamente colocado, em "Doutor Gama" vê-se um passo além: não só trata de um negro que conquistou a liberdade como ajudou outras centenas a também exercerem seus direitos à vida.

O longa brasileiro, por sinal, é muito bem realizado tanto técnica quanto narrativamente. Roteiro na medida certa entre o recorte histórico e a abordagem biográfica; fotografia impecável de Cristiano Conceição constituída sobre o conceito de luz natural de um Brasil de fins de século XIX; trilha deslumbrante do músico baiano Tiganá Santana (que em vários momentos lembra os memoráveis arranjos e composições de Dori Caymmi para televisão e cinema) e, principalmente, as interpretações. Neste aspecto – além da aparição sempre iluminada de Zezé Motta e de um igualmente luminoso Romeu Evaristo – é Cesar Mello quem mais desponta. O papel de Gama é difícil, visto que requer uma construção histórico-fisiológica longínqua e pouco documentada. Mas é ainda mais elogiável quando se considera o tamanho da responsabilidade para atores negros como Mello e Fernandes representá-lo. Aliás, sempre foi assim: tudo o que cabe a um negro fazer que não seja o seu comum papel subalterno carrega o dobro de obrigação para que não se perca a oportunidade nunca tida.

Cineasta negro, De é uma referência para a negritude de alguém capaz de ascender no meio audiovisual ainda tão desigual e racista. Sua produção, desde o longa de estreia "Bróder” (2005), aborda a questão negra em diversos aspectos. Recentemente, De lançou a comédia a la Globo Filmes "Correndo Atrás", com Aílton Graça no papel principal, que embora guarde suas validades, difere drasticamente da qualidade e essencialidade de “Doutor Gama”. Neste ponto, o longa de De acerta em cheio, preservando na força dos diálogos a dificuldade de negros e abolicionistas e, em contrapartida, o desafio dos primeiros impulsos contrários a este tão perverso status quo. As sequências de tribunal são exemplares, uma vez que visivelmente se baseiam nos autos jurídicos para sustentar a dramaticidade proposta.

Juntamente com o sucesso de bilheteria “Marighella”, com Seu Jorge como protagonista, e “Pixinguinha”, também estrelado pelo músico e ator carioca, Gama, com o filme, também passa a ser mais publicitado proximamente como de fato foi. O cinema nacional, assim, começa a recuperar seus personagens negros de uma forma como nunca foram realmente considerados. Afinal, suas importâncias vão muito além de uma obra de cinema, haja vista que têm dimensões sócio-políticas que repercutem até hoje. Ao passo de que Marighella não era um assassino perigoso e que Pixinguinha não foi somente mais um músico de antigamente, Gama merece ser lido nos livros de história pela sua gigantesca contribuição para a sociedade brasileira. Como Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, dos poucos cinebiografados até então, são eles verdadeiros heróis nacionais que começam a se salvar das forças do apagamento/aniquilamento. Caso de Doutor Gama. Não o rábula, mas o advogado Gama, Vossa Excelência.

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trailer de "Doutor Gama"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Meu Babaca Favorito


Em tempos de idolatrias tão efêmeras, edificadas sobre méritos mínimos, e cancelamentos quase automáticos motivados pelo primeiro deslize, posicionamento ou frase mal colocada de um ídolo que, não muito tempo atrás, era elevado à condição de semideus, pessoas com um pouco mais de critério, de apego a suas influências e referências, têm uma certa resistência em, simplesmente, adotar o tão usual procedimento vigente de CANCELAR uma personalidade que, de alguma forma sempre admirou e que fora seu referencial, por mais que este faça por merecer um belo "block" por conta de procedimentos, atitudes, declarações, que revelam uma pessoa diferente daquela que se imaginava ou que demonstrava ser.
Os caras se esforçam pra fazer merda, cagar pela boca, demonstrar o quanto são desprezíveis, pessoas que a gente não aceitaria no nosso meio social, mas aí a gente pensa no que já fizeram de fantástico na sua arte, o quanto foram (e são) importantes pr'a gente, o quanto os admiramos, e não conseguimos, meramente, virar as costas e dizer que não os admiramos mais. E aí que com muito esforço, colocamos seu trabalho, sua figura, suas músicas, suas letras, acima de tudo e, separamos o ser-humano de sua obra. Só assim mesmo pra aguentar uns, ó, que, vou te contar...
Muitos desses, os mais recentes, já tinham seu espaço para dizer o que pensavam, tiveram microfone, seus próprios álbuns, palco, livros, espaço na imprensa, mas com a ascensão das mídias sociais, uma verdadeira terra-de-ninguém, onde todo mundo tem opinião formada sobre tudo mesmo, muitas vezes, sem qualquer embasamento ou informação, pareceram encorajados a assumir posições, que não são decepcionantes por serem divergentes da minha ou de determinado segmento, mas sim por serem lamentáveis do ponto de vista humano.
Listamos, aqui, alguns dessas criaturas que a gente só não "cancela" porque não dá pra deixar de lado o que já fizeram e, cá entre nós, porque a gente adora esses caras mesmo. Mas que estão pedindo, estão...
Uns são de hoje, outros tem histórias que vem de muito tempo, uns se revelaram por conta da pandemia, outros revelaram preferências políticas bem preocupantes, enfim, tem um monte nessa barca, mas aqui vamos pegar apenas alguns desses "caraterzinhos" duvidosos, que a gente sabe que são uns idiotas, uns babacas, mas que odiamos amar.


Tá certo é esse cachorro!
Eric Clapton - "Clapton é Deus". A inscrição frequentemente vista em muros de Londres nos anos 60, quando o guitarrista inglês hipnotizava os fãs com sua técnica e habilidade, está longe de ser verdade. Ao contrário, hoje, muitos fãs preferem ver o diabo do que o gênio da guitarra.
Recentes declarações de Eric Clapton, acerca da situação da Covid-19 e do isolamento, comparando os protocolos de segurança à escravidão, reforçadas pela gravação de uma canção anti-lockdown, "Stand and Deliver", de Van Morrison, por sinal, outro que tem se revelado um grandíssimo feladaputa, provocaram indignação entre seus admiradores e de quebra ainda tiraram alguns velhos esqueletos do armário. Os atuais posicionamentos de Clapton fizeram com que pessoas lembrassem de um episódio em 1976 em que ele, durante um show em Birmingham, "convocou" os estrangeiros e imigrantes a se retirarem do país. Na ocasião, Clapton disse, se dirigindo ao público, “Vamos impedir o Reino Unido de virar uma colônia negra. Expulsem os estrangeiros, mantenham a Inglaterra branca. Os negros, árabes e jamaicanos não pertencem a este país e nós não os queremos aqui (...) “Precisamos deixar claro que eles não são bem-vindos. A Inglaterra é um país para brancos, o que está acontecendo conosco?” . Pois é... Clapton pode até ser um deus na guitarra, mas passa longe de ser um santo.
Ao que parece, até seus amigos músicos perderam a paciência e não aguentam mais tanta baboseira, uma vez que o lendário guitarrista tem reclamado de se sentir abandonado pelos colegas do meio musical.
Toma!
Mas não adianta: tem como odiar o cara que fez "Layla", "Cocaine", "Crossroads" e outras tantas maravilhas? Não, né?


Roberto sendo homenageado
pelos militares, nos anos 70
.
Roberto Carlos - Sabe aquele cara que sempre que se fala dele tem aquele asterisco ao lado do nome? Sim, esse cara é ele. As coisas que depõe contra o Rei não são de hoje e não são relacionadas com pandemia, isolamento, redes sociais nem nada tão atual, mas acompanham sua figura pública já de bastante tempo e, de certa forma, embora seja inegável sua contribuição para a música brasileira e seu talento para composições, nunca conseguimos perdoá-lo totalmente.
O problema de Roberto Carlos, na verdade, foi mais seu silêncio do que o que teria dito. Enquanto seus colegas do meio cultural, musical, das artes bradavam contra a ditadura militar no Brasil, sofrendo suas consequências de censura, prisões e exílios, Roberto, confortável e convenientemente não só não se manifestava em relação ao regime e as reprimendas sofridas pelos colegas e continuava, simplesmente, gravando suas canções alienadas com temas românticos ou de "curtição", como ainda não se esforçava em esconder uma proximidade com os generais e até mesmo era agraciado com comendas e homenagens pelos tiranos governantes brasileiros daquele nefasto período da nossa história.
Como se não bastasse, Roberto é conhecido no meio artístico por seu comportamento egoísta, mesquinho e antiético, sabotando outros artistas, reivindicando vantagens e benefícios junto a produtoras, gravadores, emissoras, etc., e, como se diz popularmente, "puxando o tapete" de colegas de profissão. Tim Maia foi um exemplo de um que, depois de ter sido parceiro de banda, ter convivido junto, foi ignorado e menosprezado por Roberto, assim que o Rei começou a estourar nas paradas de sucesso e tornar-se o fenômeno que veio a ser. O anglo-brasileiro Ritchie, sucesso nos anos 80, é outro que teria sofrido pelas mãos de Roberto que, segundo se sabe, e é confirmado por outros artistas, teria "mandado" a gravadora boicotar o sucesso de Ritchie, dificultando a distribuição do material do músico, sua participação em eventos e programas e negligenciando a divulgação em rádios do material do próprio contratado.
Mas não dá pra ignorar o tamanho desse cara na música brasileira, a qualidade de suas composições e a quantidade de grandes e inesquecíveis canções com que ele nos brindou. Se sua atividade no microfone, no estúdio, nos palcos é incontestável e proporcionou a todos nós momentos mágicos em músicas como "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", "Emoções", os DETALHES das suas atuações nos bastidores, de alguma forma sempre mancharão um pouco seu nome, pois, como diz aquela canção, são coisas muito grandes pra esquecer.


Não se orgulhar mais de ter usado
camiseta do MST, tudo bem, mas Bolsonaro?
Lobão - O cara foi, simplesmente, uma espécie de símbolo da democracia da geração rock dos anos 80. Tinha a Plebe Rude que era contundente, tinha a Legião que se posicionava com ênfase e inteligência, o Capital Inicial correndo por fora mas ainda assim engajado, mas o Lobão era o cara que gritava. Ele participava de comício, ele fazia música que avacalhava o Sarney, chamava a galera pra votar consciente, tocava o hino nacional na guitarra, ao melhor estilo Hendrix, em pleno Globo de Ouro, na maior emissora de TV do país... e tudo isso pra quê? Pra acabar apoiando o Bolsonaro. Putaquiuparil
Ele alega ter se decepcionado com a esquerda, se arrependido de ter votado no PT, ter perdido a confiança em quem governou o país e acabou em tribunais respondendo por corrupção... Ok, Lobão. Mas daí a apoiar a eleição de uma criatura, visivelmente, incapaz, limitada e mal-intencionada como o atual presidente brasileiro, é muita ignorância, ingenuidade ou burrice. Um cara que tinha tudo pra dar errado, não apresentou nenhuma proposta durante a campanha se apoiando somente em um montão de bravatas e, por isso mesmo fugiu dos debates como o diabo da cruz; baseou sua campanha em notícias falsas; destilou ódio e preconceitos contra negros, indígenas, homossexuais, além de manifestar contumaz desprezo pela classe artística, da qual, exatamente o senhor João Luiz Woerdenbag, mais conhecido como Lobão, faz parte, não podia dar outra coisa senão o que deu.
Faz parte do meio artístico mas, a bem da verdade, por outro lado, também faz parte de uma classe-média alta elitista, mimada que, nos anos 80, recém saída da ditadura, via seus filhos, rebeldes sem causa, lutarem sem saber bem pelo quê, por causas como diretas, igualdade social, contra a fome, muito mais pelo embalo e pela modinha, do que por qualquer convicção. Tudo uns filhinho de papai que, na hora que perceberam que estavam perdendo privilégios, deixaram cair a máscara.
Lobão até se arrependeu - pelo menos é o que ele diz. Mas agora, depois de ajudar a eleger aquele ser ignóbil que ocupa a cadeira da presidência, aí já é tarde e já condenou o país a um retrocesso vai ser duro de reverter. Quando criaturas como Lobão, Roger, do Ultraje, Paula Toller, Rodolpho do Raimundos, mostram esse tipo de atitude, de posicionamento de caráter, eu tenho que dar razão para a aquela música que um cara muito legal do rock nacional dos anos '80 compôs: O rock errou.


O cara que bradava contra o sistema...  
John Lydon - O Rei dos Punks, o cara que gritava por anarquia, que bradava contra o poder, contra a caquética monarquia britânica, quem diria..., apoia Donald Trump. Pois é. Preferências políticas à parte, de direita, esquerda, democratas, republicanos, liberais, socialistas, já estar cansado das "bobagens intelectuais" da esquerda, como o próprio Lydon afirma, tudo bem, a gente entende, mas, agora, um cara que já simbolizou a atitude contra o poder, contra o opressor, daí a se manifestar, veementemente, a favor de uma pessoa elitista, odiosa, arrogante, egoísta, megalomaníaca, racista, xenófoba, um negacionista que, por conta de sua ignorância, falta de humanismo e empatia, ignorou a presente pandemia e, por conta de seu discurso, sua falta de ações efetivas, condenou milhares de seus compatriotas (e, por tabela, outros tantos milhões, indiretamente, pelo mundo afora) à morte, é inaceitável.
Como se não bastasse apoiar abertamente um maluco egocêntrico e considerá-lo a "última esperança e o verdadeiro representante da classe operária (???), o ex-líder dos Sex Pistols, vêm dando indesculpáveis demonstrações de intolerância e racismo. Além de "passar pano" no episódio de George Floyd, dizendo que existem policiais brancos ruins mas que aquilo teria sido apenas um episódio isolado, e ter ofendido com injúrias racistas o integrante da banda Block Party, Kele Okereke, durante um festival, diante de pessoas que confirmam o incidente, Joãozinho Podre ainda vem afirmando e reafirmando que os jovens ingleses que participam de manifestações contra o racismo são uns "mimadinhos" que, segundo ele, "têm merda na cabeça". Tá certo que a simpatia nunca foi mesmo uma marca forte na vida de John Lydon, mas agora com essas ele não se ajuda a que continuemos tendo algum respeito por ele ou pelo que já representou.
"Eu posso estar certo, eu posso estar errado", era o que ele mesmo cantava, já nos tempos de PIL, e creio que, diante das últimas atitudes não é muito difícil constatar qual das alternativas prevaleceu.


Morrissey exibindo, sem pudor,
 seu apoio à direita britânica.
Morrissey - O que mais me dói ver o lixo humano que se tornou. Morrissey era uma espécie de amigo, o cara que a gente ouvia porque parecia que sentia como a gente e exprimia suas dores, seus problemas, suas angústias, da maneira como gostaríamos de manifestar, com sinceridade, sem medo de se expôr, como um ser humano que só quer ser amado. Pois bem..., como é que essa pessoa se tornou esse ser deplorável que temos acompanhado ultimamente é algo misterioso para mim. Talvez nem tanto. Se formos prestar atenção alguns sinais já vinham sendo dados mas, nós fãs, nem levávamos em consideração, tipo, "Morrissey não é assim", ou passávamos um pano, bem bonito, justificando por alguma descontextualização ou má interpretação. Achávamos graça das declarações mal-educadas do ídolo, classificando como uma acidez típica dos gênios, quando efetivamente, deveríamos estar preocupados com o que aquilo representava.
Na verdade, aquele "England is mine...", de "Still Ill", ainda da época do The Smiths, já era um indicativo e eu é que não entendia totalmente... As coisas começaram a ficar mais claras em "National Front of Disco", canção de 1998, uma evidente alusão à Frente Nacional, partido de extrema direita inglês, contestada por alguns mas que, naquele momento, muita gente (inclusive eu) preferiu interpretar como uma "figura" compositiva dentro do contexto poético da música. Só que de uns tempos pra cá, Moz resolveu confirmar publicamente o que insistíamos em negar: tornara-se (se é que em algum momento não fora) um fascista de direita, racista, xenófobo e desprezível. Depois de usar, durante a turnê de seu álbum "Low in the High School", um broche do partido For Britain (foto), de perfil excludente e xenófobo, o cantor reafirmou em um programa de TV norte americano seu apoio às plataformas do partido e ainda, durante a entrevista, minimizou, e até ridicularizou o racismo, afirmando que, atualmente, a expressão é sem sentido e que uma pessoa será acusada de racista, nos dias de hoje, simplesmente, por discordar da opinião dos outros. No balaio de disparates, Morrissey ainda comparou a suposta perseguição que a imprensa impõe a ele, e o boicote que alega sofrer de gravadoras e da mídia ao nazismo e, a propósito de Terceiro Reich, de quebra, afirmou que Hitler seria de esquerda. 
Ah, e tem a que chineses são uma "subespécie", que fronteiras são coisas maravilhosas e foram feitas para serem respeitadas" (sobre imigrantes), que Obama, na verdade, era "branco por dentro", tem a de expulsar fãs do próprio show acusando-os de terem sido mandados pela imprensa, a de sugerir que a criança assediada por Kevin Spacey sabia o que estava fazendo ao ir para o quarto com um homem adulto... Olha..., eu não sei como eu ainda ouço as músicas dê-se cara! Pra falar a verdade, hoje, sempre que eu tenho vontade de ouvir alguma coisa dos Smiths ou de sua carreira solo, eu penso, "Eu vou ouvir esse merda?". Aí eu, a muito custo, separo o homem do artista e lembro do que ele mesmo falou em uma de suas letras: "Não se esqueça das canções que lhe fizeram chorar/ e das canções que salvaram sua vida"
Aí ele me convence e eu o ouço mais uma vez.
(Por enquanto...).


Cly Reis