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quinta-feira, 16 de março de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial 15 anos do ClyBlog - Jards Macalé - "Real Grandeza - Parcerias com Waly Salomão" (2005)



Para lembrar: Jards Macalé - 80 anos
Vale a pena ser poeta?

por Márcio Pinheiro

Em parceria com Waly Salomão, ele subverteu a dor de cotovelo e a cornitude, dando uma nova dimensão à fossa e lançando as bases para a morbeza romântica

Nascido no terceiro dia do Carnaval de 1943, Macalé – filho de um militar com uma dona de casa, atravessou um amplo aprendizado teórico, iniciado no violão clássico e consolidado nos conjuntos de bossa nova e no nascimento do tropicalismo. Em 1969, assustou público e júri de um Festival da Canção com seu berro que anunciava haver um morcego na porta principal. Os tempos não eram de piadas e de sustos forçados. Macalé recebeu uma vaia estrondosa. Recuperou-se, mas nunca mais conseguiu se livrar do rótulo de maldito.

As bases da morbeza romântica se estruturavam na dor de cotovelo, na cornitude – como explicou Augusto de Campos –, e nas composições de Nelson Cavaquinho e de Lupicínio Rodrigues – ou “Lupicínico” como era definido por Macalé e Waly. Era uma espécie de fossa traduzida pelo tropicalismo. Um estilo que não perdia a ironia, a capacidade de rir de si mesmo, como comprova o título do disco – Real Grandeza é uma rua no bairro de Botafogo onde se localiza um dos mais conhecidos cemitérios do Rio.

Há duas maravilhas inéditas no CD. "Berceuse Criolle", com Maria Bethânia acompanhada por um trio violão-piano-cello. A outra é "Olho de Lince", em que a voz gravada de Waly entoa versos que servem como uma continuação de "Anjo Exterminado". Se na música dos anos 70, vigiado pela ditadura, Waly falava em“Fecho janelas sobre a Guanabara/Já não penso mais em nada/Meu olhar vara vasculha a madrugada”, anos depois, em tempos de abertura, o poeta grita: “Quando quero saber o que ocorre à minha volta/Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta/Experimento tudo nunca me iludo”.

Outro hino daqueles tempos de sufoco, "Vapor Barato", gravado pela primeira vez por Gal Costa, ganha uma versão renovada com um arranjo eletrônico pesado do Vulgue Tostoi com Marcelo H (voz e programações), Junior Tostoi (craviola elétrica, craviola elétrica com arco, baixo, programações e edições) e Rodrigo Campello (cordas virtuais, programações, edições). Só com seu violão, Macalé interpreta "Rua Real Grandeza", e, acompanhado pelo piano de Cristóvão Bastos, recupera o bolero "Senhor dos Sábados".

Como a parceria era prolífica também em amizades, "Real Grandeza" serve ainda como encontro musical. Estão lá Luiz Melodia em "Negra Melodia", reggae com pitadas de samba que tem ainda a participação de Kassin, Pedro Sá e Domenico e do veterano conjunto vocal As Gatas, Adriana Calcanhotto na já citada "Anjo Exterminado" e Frejat em "Mal Secreto", aquela que fala em um dos lemas da dupla: “Não preciso de gente que me oriente”.

vídeo de "Mal Secreto", com Jards Macalé e Frejat


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FAIXAS

1 - "Olho de Lince" - Participação: Waly Salomão - 4:22
2 - "Rua Real Grandeza" - 3:09
3 - "Senhor dos Sábados" - 3:06
4 - "Anjo Exterminado" Participação: Adriana Calcanhotto - 3:15
5 - "Dona de Castelo" - 3: 27
6 - "Vapor Barato" - Participação: Marcelo H - 4:32
7 - "Mal Secreto" - Participação: Frejat - 3:47
8 - "Negra Melodia" - Participação: Luiz Melodia - 4:19
9 - "Revendo Amigos" - 4:51
10 - "Berceuse Crioulle" - Participação: Maria Bethânia - 3:19
11 - "Pontos de Luz - Participação: As Gatas - 2:34

Todas as composições de autoria de Jards Macalé e Waly Salomão

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OUÇA O DISCO:

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Nelson Cavaquinho: Palhaço

 



"Palhaço" - REIS, Cly
fan-art inspirada na obra de Nelson Cavaquinho
(ilustração digital - GIMP)



"Nelson Cavaquinho: Palhaço"
Cly Reis

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Paulinho da Viola - “Prisma Luminoso” (1983)



 

“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.” 
Zuenir Ventura


Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.

A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.

Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.

Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor. 

Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.

A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.

Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.

Irokô definitivamente sabe das coisas.

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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #239

 

Halloween? Que nada! Aqui a gente vai é de Saci! É ele quem dá as caras no programa de hoje em um "Sete-List" especial. Além disso, tem também Beastie Boys, Cassiano, U2, Cocteau Twins, BANDA Black Rio, Carlinhos Brown e mais. Ainda, a reunião do G20 e letra de Nelson Cavaquinho, que faria 110 anos. Pulando numa perna só, o MDC surge da mata às 21h na lendária Rádio Elétrica. Produção, apresentação e carapuça vermelha: Daniel Rodrigues


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Emílio Santiago - "Emílio Santiago" (1975)

 

As duas versões da capa do disco
lançado pela CID em 1975

“Emílio Santiago, como o Rio de Janeiro, começou pronto. Pronto e total. O que é muito importante. Você não conta nos dedos cantores totais nascidos nesse hemisfério. Total, vocês já estão sabendo, é o que na gíria esportiva a gente diz ‘bate com todas’. Emílio Santiago canta qualquer gênero com um mesmo e espantoso desembaraço. Em Emílio Santiago cabem pontes equilibradas no espaço, como lhe fica muito bem as palmeiras imperiais do Jardim Botânico. Tudo se coloca em torno de Santiago, ele absorve e vira ele.”
Ronaldo Bôscoli, no texto original da contracapa

Em meados dos anos 70, todo mundo sabia que a chegada de Emílio Santiago ao cenário musical significava o ápice da arte do canto na música brasileira. Menos o próprio Emílio Santiago. Havia décadas que os tronos restavam devidamente ocupados: Roberto Carlos reinando para as massas; Orlando Silva, uma lenda vida; Cauby Peixoto emocionando plateias; Nelson Gonçalves mantendo a tradição da Rádio Nacional; Agnaldo Timóteo caprichando no “dó de peito”. Até que surgiu um cantor que não só reunia todas as qualidades de seus colegas quanto, ainda, era capaz de superá-los. Dono de uma voz de barítono que conectava num tempo potência, leveza e perfeição técnica, além de um timbre aveludado inconfundível, Emílio há muito impressionava. Embora sua fama já corresse havia um tempo, aquilo que todos desconfiavam aconteceu de fato somente em 1975, quando lança, pela Companhia Industrial de Discos (CID), seu álbum de estreia e se confirma como o mais completo talento masculino da arte de interpretar canções no Brasil.

Precisou, no entanto, que muita água passeasse debaixo da ponte para que o próprio Emílio se convencesse disso. Desde os anos 60, quando ainda estudante de Direito na Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, sua cidade-natal, ele ansiava pela emancipação que seus antepassados não tiveram. Sabia que pertencia à primeira leva de negros brasileiros de uma recente classe média que chegava à universidade após séculos de escravidão e poucas décadas de liberdade. Não queria perder, portanto, a oportunidade de se tornar alguém reconhecido e, por isso, pensava em formar-se advogado ou até, quem sabe, diplomata. Porém, nem desconfiava que seria por outro caminho que este reconhecimento viria. Na faculdade, quando não estava em sala de aula estudando as leis, Emílio cantava nos bares em roda de amigos. Mas como o seu talento era evidente para os outros, mas não para o próprio Emílio, que relutava em se tornar um cantor profissional, por obra divina, quando as inscrições do festival de música da faculdade foram abertas, os amigos o inscreveram sem que ele soubesse. Resultado? Emílio participou e venceu o concurso, chamando a atenção dos jurados, entre eles, Beth Carvalho. 

A partir daí, a música já falava mais alto na vida de Emílio. Sua presença em festivais estudantis passou a ser frequente, ganhando todos os concursos dos quais participava. Formou-se em Direito, mas abandonou a toga para dedicar-se àquilo que agora ficava-lhe claro que havia ganho de sobra dos céus: a voz. Participou do programa de auditório de Flávio Cavalcanti, trabalhou como crooner da orquestra de Ed Lincoln e substituiu Tony Tornado quando este saiu para disputar o V Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Já famoso no meio musical foi, então, que Emílio gravou, enfim, seu primeiro e aguardado disco. O prestígio era tamanho que ninguém quis ficar de fora daquele projeto, o qual reuniu músicos do mais alto gabarito como João Donato, Azymuth, Ivan Lins, Tita e Dori Caymmi, que fizeram questão de montar a cama para que sua voz de ouro brilhasse soberana.

O repertório, inteligentemente bem montado, trazia canções de compositores consagrados e de várias épocas e vertentes, mas não óbvias escolhas. Começava ali a se configurar um estilo de repertório que marcaria sua carreira. De Gilberto Gil, nada de consagradas como “Aquele Abraço” ou “Procissão”, e, sim, “Bananeira”, coautoria com Donato que, inclusive, conta com este ao piano elétrico e na assinatura do arranjo, de ares jazzísticos e certamente um dos mais brilhantes de toda a música brasileira. Emílio, depois de muito relutar, agora tinha plena noção de que seu debut devia ser à altura do tamanho que já alcançara. Por isso, “Bananeira” é mais do que somente a faixa de abertura do álbum, e, sim, um “cartão de visitas”. Samba-funk com cores da soul como é típico dos sopros em tons médios de Donato, tem, no entanto, na voz elástica de Emílio uma prova de que estava ali o cantor mais versátil que a MPB via até então. E que “cozinha”: Ariovaldo e Orlandivo na percussão; Vitor Assis Brasil, Zé Bodega e Aurino Ferreira no sax; Carlos Roberto Rocha e Durval Ferreira na guitarra; Edson Maciel, no trombone; e Marcio Montarroyos no trompete!

Muita classe para interpretar o samba-dark de Nelson Cavaquinho “Quero alegria”, dando ao partido-alto um tom de bossa-jazz, o qual conta novamente com Donato no arranjo e electric piano, mais o arranjo de cordas de Dori. Ainda, o baixo magistral do “Clube da Esquina” Novelli e a bateria igualmente classuda de Wilson das Neves marcando o ritmo. A melodiosa “Porque Somos Iguais”, com a participação de outros craques – a guitarra de Helio Delmiro, a bateria de Ivan Conti "Mamão" e a flauta de Danilo Caymmi, além do arranjo do irmão Dori – é mais uma prova da capacidade interpretativa de Emílio, bem como ”Batendo a porta”, outro samba que vem na sequência. De autoria da certeira dupla Paulo César Pinheiro e João Nogueira, aqui, é à malandragem que o ex-office boy morador do subúrbio recorre para cantar com a malemolência que o carioca tem. O célebre refrão (“Pode tentar, pode me olhar, pode odiar/ E pode até sair batendo a porta/ Que a Inês já é morta do lado de cá”), conhecido na voz potente de Nogueira, ganha na versão de Emílio uma elegância insuperável. Novamente, que arranjo de Donato! E ainda conta com os serviços de Copinha, lenda da flauta.

O primeiro lado do LP ainda traz Emílio cantando uma das duas de Ivan Lins no disco, “Depois”, com arranjo e piano do próprio e o acompanhamento do grupo Modo Livre. Fortemente combativo à Ditadura Militar em suas canções à época, Ivan não amolecia nesta. O que os milicos achavam tratar-se de uma lamúria romântica, era, na verdade, um recado de resistência: “Não vou no teu segredo eu já sei/ Vou aumentar teu medo eu bem sei/ Não me arrependo e fico na lei/ A culpa só se pune uma vez”.

Depois de virar o vinil num samba-canção “barra pesada”, mais uma surpresa, que demonstrava toda a versatilidade e inteligência de repertório de Emílio. Assim como iniciou o disco, com uma autoria de Gil e Donato menos óbvia, na segunda metade ele faz o mesmo, porém com outro consagrado compositor da música brasileira: Jorge Ben. “Taj Majal”? “Fio Maravilha”? “Chove Chuva”? Como diria o próprio Ben, “mas que nada”! Emílio simplesmente regrava a improvável “Brother”, do cultuado disco “A Tábua de Esmeraldas”, gravado por Ben um ano antes mas que, até então, ninguém havia sondado em explorá-la. E o faz resgatando a tarimba de crooner ao desenvolver num belo inglês a letra original deste gospel transformado em samba-rock. As ajudas, também, são à altura: a lendária Azymuth na base, Assis Brasil no sax alto; Delmiro na guitarra; Zé Bodega no sax barítono; percussão de Orlandivo e Ariovaldo mais Chacal; e um coro que conta, entre as vozes, com as de Lucinha Lins e as irmãs Jurema e Nair. Pouco mais de 2 min de puro suingue e maestria.

A rumba “La Mulata”, dos irmãos Valle, quebra mais uma vez a linearidade e transporta o ouvinte para um novo universo. E quando se fala em ritmo latino, claro que Donato estaria presente. É ele quem, novamente, assina o arranjo e ataca nos teclados, enquanto os sopros conversam entre si e a sessão rítmica, composta pelo trio da percussão Wilson, Ariovaldo e Orlandivo, garante o sacolejar dos quadris. Noutro samba de morro, a clássica “Nega Dina”, de Zé Keti, repete-se o primor de Emílio para este tipo de tema. Aqui, no entanto, Donato com ginga nos teclados (mais a graciosa flauta de Copinha) garante um arranjo orgânico, com breques insuspeitos e compasso propício para Emílio desfilar seu barítono invejável.

Ivan Lins, que havia concluído o lado A, volta agora a ser interpretado noutro samba ainda mais mordaz: “Doa a quem doer”. “Eu não sei ganhar/ Que eu só sei perder/ Que eu não sei matar Eu só sei morrer (...)/ Nessa escuridão/ Quero me acender/ Quero me atiçar/ Doa a quem doer”. Precisa dizer mais? Arranjo magistral de Gilson Peranzzetta, que trabalhava à época com Ivan em seus discos, e a Modo Livre de Joãozinho, Luiz Carlos, Wagner Santos e cia. se despede do disco, que já vai chegando ao final. E que final! O que começa como uma balada somente ao violão, “Sessão das Dez”, vai aos poucos evoluindo para um blues pra lá de sensual. O vozeirão de Emílio, quase sussurrado na primeira parte, faz arrepiar. Arrepia também o sax intenso do genial Assis Brasil, o violão da autora Tita e o electric piano de Laércio de Freitas, que assume somente para esta faixa o arranjo, inclusive das cordas, comandadas pelo germânico-brasileiro Peter Dauelsberg. Cazuza certamente se inspiraria muito neste tema anos mais tarde.

A admiração da crítica e do meio artístico Emílio já tinha antes de lançar sua marcante estreia fonográfica. Outros belos discos vieram na sequência, porém, o sucesso comercial demorou. Voz e qualidade musical tinha de sobra; precisava era acertar o conceito. Foi, então, somente na segunda metade dos anos 80, que Emílio obteve o verdadeiro reconhecimento das massas com a série “Aquarela Brasileira”, lançada pela Som Livre e produzida por Roberto Menescau. Os pout-pourri de sambas-enredo e o repertório pop com músicas como “Você é Linda”, “Bem que se Quis” e os megahits “Saigon” e “Verdade Chinesa” caíram nas graças do público e Emílio vendeu como jamais havia conseguido. No entanto, os admiradores de antes torceram o nariz para a “plastificação” da sua sonoridade, bastante pobre na comparação com trabalhos antigos. 

Independentemente dessa discussão, Emílio forçou que se providenciasse um novo trono no panteão dos grandes cantores da MPB. Gay, preferiu em toda a carreira a discrição como fizeram Johnny Alf e Assis Valente, artistas negros como ele igualmente sabedores do preconceito que sofreriam. Ainda ganharia um Grammy Latino como melhor álbum de Samba-Pagode por “Só Danço Samba Ao Vivo”, de 2011, até sofrer um AVC dois anos mais tarde, que tirou sua vida prematuramente aos 66 anos. Como se vê, não fosse o abreviamento do destino, Emílio Santiago estaria produzindo e logrando reconhecimentos como fez desde que entendeu que o mundo inteiro cabia em sua voz.

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FAIXAS:
1. Bananeira (Gilberto Gil, João Donato)
2. Quero Alegria (Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho)
3. Porque Somos Iguais (Pedro Camargo, Durval Ferreira)
4. Batendo a Porta (Paulo César Pinheiro, João Nogueira)
5. Depois (Otávio Daher, Ivan Lins)
6. Brother (Jorge Ben)
7. La Mulata (Paulo Sergio Valle, Marcos Valle)
8. Nega Dina (Zé Keti)
9. Doa a Quem Doer (Ivan Lins)
10. Sessão Das Dez (Édson Lobo, Tita, Renato Rocha)

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Música da Cabeça - Programa #128


Olha: definitivamente, os hermanos uruguaios estão mais antenados que nós. Enquanto eles brigam por exibir "Chico - Artista Brasileiro" no cinema deles, cabe a nós, aqui, entrar nessa corrente vigilante e empoderada com o Música da Cabeça. E fazemos isso contando com a ajuda de gente de alto nível como Chico Buarque: Frank Zappa, Chico Science e Nação Zumbi, Floyd Council, PJ Harvey, Nelson Cavaquinho e outros. Não tem Itamaraty que consiga proibir quando o galo insistir em cantar! E nem de escutar o programa de hoje, às 21h, na resistente sala de exibição da Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

cotidianas #644 - Notícia



Já sei a notícia que vens me trazer
Os seus olhos só faltam dizer
O melhor é eu me convencer
Guardei até onde eu pude guardar
O cigarro deixado em meu quarto
É da marca que fumas
Confessa a verdade, não deves negar


Amigo como eu jamais encontrarás
Só desejo que vivas em paz
Com aquela que manchou meu nome
Vingança, meu amigo, eu não quero vingança
Os meus cabelos brancos
Me obrigam a perdoar uma criança

Vingança, meu amigo, eu não quero vingança
Os meus cabelos brancos
Me obrigam a perdoar uma criança.


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"Notícia"
(Nelson Cavaquinho)

Ouça: "Notícia"

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Música da Cabeça - Programa #64


A histórica capa da Time diz: “Welcome to America”. Sem a mesma ironia, nós também damos as boas-vindas no Música da Cabeça desta semana. No programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica, vamos falar sobre a desumana ação do Governo Trump contra os imigrantes ilegais. E como nem tudo é tristeza, teremos também a beleza da música de Moacir Santos, The Smiths, Nelson Cavaquinho, Ramones, Tom Waits e outros. Eles vêm nos salvar das trevas dessa política sem escrúpulos! O “Sete-List” e o “Palavra, Lê”, igualmente, cumprem o mesmo papel. Estão bem recebidos? Então, agora é só começar. A produção e a apresentação são de Daniel Rodrigues.




Rádio Elétrica:

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #35


Em semana em que sir. George Harrison é pauta por mais de um motivo, fica impossível não se elevar o espírito. Assim estará nosso programa hoje: elevado. Isso porque teremos ainda no nosso quadro de entrevistas ‘Uma Palavra’ um papo-cabeça-astrológico-musical com o carioca Waldemar Falcão. O “som dos anjos” dos Cocteau Twins também vão dar o ar da graça, assim como Caetano Veloso e Jorge Mautner, Cartola e Nelson Cavaquinho e outras maravilhas igualmente elevadas. Afinal, estamos falando do Música da Cabeça, que vai ao ar às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e mapa astral, Daniel Rodrigues.


terça-feira, 15 de novembro de 2016

Mimo Festival 2016 - Jards Macalé/Otto e João Bosco/Hamilton de Holanda - Praça Paris- Rio de Janeiro (12/11/2016)





Jards Macalé no palco Seligaê 
Belíssimo local mas não é pra isso.
A Praça Paris, no Centro do Rio, é uma charmoso parque ao estilo francês com belos jardins bem cuidados, canteiros bem delineados e arbustos bem aparados. Um espaço belo e extremamente aprazível. Por todas estas características fiquei um pouco intrigado quando vi que a praça abrigaria eventos do Festival Mimo na cidade, curioso para saber como é que funcionaria na prática colocar um evento assim num espaço que me parecia tão pouco apropriado para a proposta. Assim que cheguei lá, no final da tarde do sábado, só tive a comprovação da minha desconfiança. O lugar passava longe de ser apropriado para um evento de música ao vivo, ainda mais de nomes tão significativos da música brasileira e encontros musicais interessantíssimos que inevitavelmente teriam bom apelo. Pra começar, o palco Seligaê que era o que me interessava por conta dos encontros de Jards Macalé com Otto e de João Bosco com Hamilton de Holanda, ficava disposto atravessado sobre um dos espelhos d'água como se fosse uma ponte, impossibilitando o posicionamento frontal do público, assim, as pessoas colocadas lateralmente tinham que driblar visualmente os belos arbustos quase esculturalmente podados, dispostos regularmente a aproximadamente 5 a 8 metros um dos outro, para conseguirem ver o palco. Pequenas arquibancadas baixas que pouco adiantavam atrás das pessoas em pé serviam como apoio e um barranquinho, um pouco mais alto ajudava um pouco quem estivesse mais atrás mas mesmo assim sem maior vantagem. Mas tudo bem, não concordei com o que encontrei mas pensei que de certo fazia parte da proposta do festival, uma revalorização, repensamento e reuso de determinados espaços públicos e blablablá, coisa e tal, então vamos lá.
João e Hamilton duelando nas cordas.
Já que a situação era aquela mesmo era encarar e assistir ao show de Jards Macalé em diagonal atrás de uma arvorezinha. No palco, o irreverente músico carioca de 73 anos mostrou que está em plena forma num show de talento, ritmo e vibração. Transitando confortavelmente por diversos ritmos e sonoridades, o cantor, num primeiro momento apenas com uma jovem e competente banda e  ainda sem o convidado, abriu o show com uma elétrica "Let's Play That", trouxe à baila a irreverente "Farinha do Desprezo", empolgou com a clássica "Pano Pra Manga" e arrebatou com a fantástica "Vapor Barato". Da metade para o final, aí sim, o músico pernambucano Otto entrou para participar da festa  fazer algumas canções em dueto com Jards mas sem dar nenhuma grande contribuição, é bom que se diga. Assim que entrou, agradecido pela oportunidade de tocar com um dos grandes nomes da MPB, Otto declarou, "Olha só o que a MPB me proporciona: tocar com esse cara! Jards, você é uma peça. Você é uma peça dessa engrenagem da música brasileira.", ao que Jards respondeu, "E você é a gasolina". A resposta de Jards não poderia ter sido mais verdadeira, pois como "gasolina", Otto, como uma espécie de MC, incendiou a galera chamando-a para cantar em "Corcovado" e de uma maneira mais efetiva e entusiástica no clássico "Juízo Final" de Nelson Cavaquinho. Mas dele foi só isso! Após estes dois números em parceria, o cantor carioca saiu do palco e Otto mostrou que é muito mais suor do que inspiração, até trazendo à tona um "Da Lama ao Caos" de Chico Science e encerrando com uma versão verdadeiramente furiosa de "Canalha" de Walter Franco, mas não conseguindo empolgar em momento algum.
Parte do público tomando o espelho d'água.
Já no show de fundo do palco Seligaê, de João Bosco e Hamilton de Holanda, apesar do enorme atraso de mais de uma hora do início previsto, as duas atrações brilharam em igual intensidade. Conhecia pouco de Hamilton de Holanda, havia visto uma vez que outra na TV mas não havia ficado tão impressionado quanto fiquei lá. Meu Deus, o cara é um monstro!!! Se já era impressionado com a qualidade do violão de João Bosco, a técnica e a capacidade de improvisação do jovem instrumentista é assustadora e para quem esteve lá pode presenciar alguns empolgantes"duelos", olho no olho de Hamilton com João. Sob um leve chuvisqueiro, daquela chuvinha tipo vai-não-vai, a dupla apresentou sucessos de João Bosco como "Odilê, Odilá", "O Ronco da Cuíca", "Incompatibilidade de Gênios" e "Linha de Passe", e clássicos da música brasileira como "Fotografia" de Tom Jobim, "Milagre" de Dorival Caymmi, "Lília" de Milton Nascimento com uma interpretação marcante de João Bosco bem no seu estilo vocal característico, e o provável segundo hino nacional brasileiro, a grande "Aquarela do Brasil" de Ary Barroso.
A música hipnotizava tanto o público que ele, em determinado momento, viu-se, talvez, naturalmente atraído e conduzido para dentro das águas do pequena piscina que defrontava o palco e dividia a a platéia. Devo admitir que foi uma manifestação bonita num primeiro momento. A naturalidade e a espontaneidade do ato conduzido pela música pareceu algo como se o público tivesse sido atraídos por uma espécie de irresistível canto de sereia. Mas assim que o espelho d'água começo a encher e tirar a visão das pessoas que haviam chegado cedo e se posicionado privilegiadamente há muito tempo e assim que a organização começou a solicitar que as pessoas saíssem pois haviam se comprometido com a prefeitura que não haveria pessoas na água a brincadeira perdeu a graça. Os espontâneos dançarinos das águas recusavam-se a sair mesmo diante dos apelos da organização e das ameaças de paralisação do espetáculo até que a situação fosse normalizada. Alguns saíram, outros não, outros saíram e voltaram, os músicos entraram levar numa boa mas fiquei com a impressão que teríamos um bis ou um show um pouco mais longo não fosse a criancice e o "beicinho" dos teimosos mimadinhos que insistiam em, com sua atitude de "resistência", comprometer a diversão dos outros. Mas felizmente não conseguiram estragar o evento e entre uma leve garoa e "crianças" no laguinho quem deu um banho foi a dupla João Bosco e Hamilton de Holanda. Pra lavar a alma!

Jards Macalé - "Vapor Barato"


Cly Reis

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Nelson Cavaquinho - "Nelson Cavaquinho - Série Documento" (1972)


"Poucos artistas mostram sua alma e seu coração
com tanta beleza quanto Nelson Cavaquinho
mostra a sua nos seus sambas"
Sérgio Cabral, pai
jornalista e pesquisador musical
(trecho do texto da contracapa original de 1972)


Ele foi o sambista dark, o compositor das trevas, o seresteiro soturno. Seria ele uma espécie de Robert Smith do samba, um Allan Poe do morro, um Augusto dos Anjos da música? Exageros à parte, mesmo em um universo tão comumente marcado por dores, desgostos, abandonos, tristezas como é o da música brasileira, o carioca Nelson Cavaquinho conseguiu se sobressair no que diz respeito ao pessimismo. Não só pela temática, constantemente abordando assuntos como morte, fim, sombras, medo, mas muito também ajudado pela sua voz cadavérica, macabra, parecendo moribunda, arrancada do último suspiro do peito.
Embora já conhecido nos meios de samba desde os anos 30, tendo sido gravado por diversos artistas da música popular brasileira, Nelson Cavaquinho foi um daqueles casos de artistas que, como intérprete, foi aparecer bastante tarde, lá pelos final dos anos 60, tendo gravado, então, somente em 1970 seu primeiro álbum.
Destaco aqui, no entanto, seu segundo trabalho, que provavelmente reúne suas maiores preciosidades, a compilação "Nelson Cavaquinho - Série Documento", que na verdade é uma variação de disco de estreia, só que lançado por outra gravadora. O álbum traz a mórbida "Quando Eu Me Chamar Saudade"; "Palhaço", com sua quase angustiante dicotomia alegria-tristeza sendo, logicamente vencida pelo último sentimento; o clássico "A Flor e o Espinho" com seu misto de beleza e melancolia ; e a minha favorita, "Tatuagem", ressentida, magoada, machucada ao extremo. Tudo triste, arrasado sombrio. Nem a exaltação, "Sempre Mangueira", mais animada, bem raiz, bem fundo-de-quintal, consegue deixar de mencionar a tão aguardada morte. Se tem um  clássico que falta nessa verdadeira galeria de pérolas é a excelente "Juízo Final", que já havia sido escrita mas que só apareceria no seu disco seguinte, "Nelson Cavaquinho" (1973), mas a ausência não desvaloriza em nada este álbum que é verdadeiramente um documento da discografia nacional.
Um dos artistas fundamentais da música brasileira, ímpar no jeito de tocar o violão (curiosamente, não o cavaquinho), singular por sua voz peculiar e ainda hoje insuperável na capacidade de expressar a dor de uma maneira tão intensa.
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FAIXAS:
01 – Quando Eu Me Chamar Saudade (Nelson Cavaquinho / Guilherme de Brito)
02 – Tatuagem (Nelson Cavaquinho / Guilherme de Brito)
03 – Eu e as Flores (Nelson Cavaquinho / Jair do Cavaquinho)
04 – Palhaço (Nelson Cavaquinho / Osvaldo Martins / Washington)
05 – Sempre Mangueira (Nelson Cavaquinho / Geraldo Queiroz)
06 – Deus Não Me Esqueceu (Nelson Cavaquinho / Ananias Silva / Armando Bispo)
07 – A Flor e o Espinho (Nelson Cavaquinho / Alcides Caminha / Guilherme de Brito)
08 – Degraus da Vida (Nelson Cavaquinho / César Brasil / Antônio Braga)
09 – Noticia (Nelson Cavaquinho / Nourival Bahia / Alcides Caminha)
10 – Lágrima Sem Juri (Nelson Cavaquinho / Fernando Mauro)
11 – Luto (Nelson Cavaquinho / Sebastião Nunes / Guilherme de Brito)
12 – Luz Negra (Nelson Cavaquinho / Amâncio Cardoso)


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Ouça:
Nelson Cavaquinho Série Documento





por Cly Reis