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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os 25 melhores filmes dos primeiros 25 anos do séc. 21

 

Sofia Coppola, uma das 5 diretoras da lista
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim, vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria seguro. Nem a razão mais está a salvo.

Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a “ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até de pensar.

Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o cinema segue fortalecido com produções que pululam de diversos lugares do mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina, Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.

A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.

Em compensação, o cinema soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”, definitivamente, não representam mais o que representavam antes.

Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele, Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody AllenClint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem lançados e descobertos.

Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui, cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas realizadoras ainda vêm por aí com esses planeta em constante ebulição.

A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso, independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar NoéYorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e competência para isso.

🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬


01. “Parasita”, Bong Joon-ho (2019)

Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.




02.
“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)

Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.




03.
“Corra!”, Jordan Peele (2017)

Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150 prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis, monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.



04.
“Retrato de uma Jovem em Chamas”Céline Sciamma (2019)

Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.



05. “Menina de Ouro”Clint Eastwood (2004)

O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.

Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século


06.
“O Pianista”, Roman Polanski (2002)

Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.



07.
“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)

A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.



08.
“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)

Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes, Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos. Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne Trêmula”.



09.
“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)

Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.



10. “Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)

Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.


11. “Bastardos Inglórios”, Quentin Tarantino (2009)

A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios".  um bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"? 



12.
“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)

É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.



13.
“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)

Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.



14.
“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)

O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.



15. “A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)

Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.

Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou,
que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda


16.
“O Regresso”, Alejandro González Iñárritu (2015)

Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.



17.
“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)

Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.



18.
“Match Point”, Woody Allen (2024)

Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.



19.
“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)

Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.



20. “O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)

O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


21.
“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)

Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta, Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã, "Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16 prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade. 



22.
“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)

Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Truffaut, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!



23.
“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)

Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.



24.
“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)

O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.



25. “Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)

Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema. Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.

E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano)
neste final de primeiro quarto de século 21

PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali: 

“Pina” (Win Wenders, 2011)
“Senhores do Crime” (David Cronenberg, 2007)
“Assunto de Família” (Hirokazu Koreeda, 2018)
“Edifício Master” (Eduardo Coutinho, 2002)
“Três Anúncios para um Crime” (Martin McDonagh, 2017)
“Moonlight” (Barry Jenkins, 2016)
“Sangue Negro” (Paul Thomas Anderson, 2007)
“Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018)
“Interestelar” (Christopher Nolan, 2017)
“Film Socialisme” (Jean-Luc Godard, 2009)
“Visages, Villages” (Agnès Varda e JR, 2018)
“O Clã” (Pablo Trapero, 2015)
“A Separação” (Asghar Farhadi, 2011)
“Gran Torino” (Clint Eastwood, 2008)
“Assassinos da Lua das Flores” (Martin Scorsese, 2023)
“O Lobo de Wall Street” (Scorsese, 2013)
“Cópia Fiel” (Abbas Kiarostami, 2010)
“Elefante” (Gus Van Sant, 2003)
“Ela” (Spike Jonze, 2013)
“Eu, Daniel Blake” (Ken Loach, 2016)
“As Invasões Bárbaras” (Denys Arcand, 2003)
“Irreversível” (Gaspar Noé, 2002)
“Nomadland” (Chloé Zhao, 2020)
“Anatomia de uma Queda” (Justine Triet, 2023)
“Triângulo da Tristeza” (Ruben Östlund, 2022)


Daniel Rodrigues


sexta-feira, 7 de outubro de 2022

"Medéia, A Feiticeira do Amor", de Pier Paolo Pasolini (1969) vs. "Medéia", de Lars Von Trier (1988)




Jogaço!!!
A tetracampeã mundial, a Itália, não estará na copa do Mundo de futebol, mas aqui no nosso embate cinefutebolístico encara a Dinamarca que, no Catar, com a bola nos pés vai tentar, mais uma vez, escrever seu nome entre as grandes.
Mas aqui no Clássico é Clássico temos dois grandes times, dois grandes treinadores. Ousados, agressivos, polêmicos. Um com um futebol mais plástico, outro com um jogo mais cru, mas ambos extremamente competentes e destacados entre os grandes em sua atividade. O italiano Pier Paolo Pasolini, vencedor, entre outras premiações, do Urso de Ouro em Berlim, por seu "Contos de Canterbury", em 1972; e Lars Von Trier, também multipremiado, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2000, por "Dançando no Escuro".
Os dois, às suas épocas, adaptaram a peça do grego Eurípides, "Medéia", na qual a protagonista, depois de levada de seu reino e desposada por Jasão, algum tempo depois, é preterida pelo marido em favor da filha do rei de Corinto. Abandonada, humilhada, Medeia dotada de faculdades místicas, antes de ser banida pelo Rei Creonte, usa de seus feitiços para se vingar do esposo, matando sua nova noiva e até os próprios filhos que tivera com Jasão.
Pasolini parte de um pouco antes e conta a história desde a tomada do Velocino de Ouro, artefato supostamente mágico, reivindicado pelo rei de Lolcos como condição para restituir a Jasão o trono que lhe seria de direito. Já Trier começa pelo momento do exílio de Medéia, quando seu amado cai de encantos por Creusa, a princesa de Corinto.


"Medéia" (1969) - trailer

O trailer original era demasiadamente recortado, alegórico e desconexo, 
deste modo, optei por um trailer alemão que,
mesmo em uma língua mais estranha para nós brasileiros, dá uma ideia melhor de
alguns elementos do filme, como os cenários, figurinos, fotografia, além de alguma noção das atuações.


"Medéia" (1988) - cenas

Não consegui um trailer completo de "Médeia", de Lars Von Trier, provavelmente por ter sido um projeto originalmente feito para TV.
No entanto essa compilação de cenas dá uma ideia das escolhas cinematográficas e da estética proposta pelo diretor.


A vingança no filme de Pasolini se dá pelos trajes enviados por Medéia à princesa, sob pretexto de presentes de casamento, mas que, vestidos pela jovem noiva, entram em combustão e obrigam Creusa, em desespero a se jogar do alto do castelo, seguida pelo pai Creonte. Já na do diretor dinamarquês, igualmente fingindo de conformada com a situação do ex-marido, Medéia envia para a rival uma espécie de tiara, uma guirlanda, à qual, usando de suas artes mágicas, envenenara as partes agudas às quais espetando o dedo da nova noiva de Jasão, a leva à morte, bem como ao pai, que em desespero pela morte da filha, crava uma ponta da tiara em si propositalmente.
O interessante é que na peça de Eurípedes constam os dois itens, as vestes e a coroa, mas, curiosamente, cada um decidiu usar de um dos artifícios. E ambos o fizeram de maneira brilhante. A cena da jovem em chamas pelo jardim do castelo é espetacular! Bem como a tensão quase silenciosa do preparo da substância, a aplicação no denteado da peça, o arranhão no cavalo, a entrega do presente à amada de Jasão, a corrida desenfreada do cavalo concomitante ao espetar no dedo... Tudo incrível!!!
A seguir, outra diferença (aqui tem spoiler, caso alguém não conheça a história): no filme italiano, depois de usar os filhos para levar os "presentes" à inimiga, assim que eles retornam para casa, Medéia, calmamente os atende, lhes dá banho carinhosamente e mata a ambos com um punhal, ateando fogo à casa logo em seguida. Lars Von Trier ousa mais: depois do retorno dos meninos do castelo real, onde entregaram o regalo envenenado, ela foge com os filhos para um lugar bem afastado do reino e, numa sequência ao mesmo tempo chocante e belíssima esteticamente, enforca os dois filhos em uma árvore. 
No primeiro filme Jasão, sem poder alcançá-la, por conta das chamas (e na lenda, pelo fato da feiticeira estar elevada e protegida por Helios, o deus sol), clama para que Medéia, ao menos lhe entregue os corpos dos filhos para que os sepulte; na refilmagem, depois de encontrar os filhos pendurados na árvore, Jasão, sob efeito de uma de suas feitiçarias, corre em círculos infinitamente procurando Medéia enquanto ela foge numa nau para Atenas.  
Duas obras de arte!
Pasolini tem cenários impressionantes, locações exóticas da Capadócia, enquanto Trier traz ambientes opressivos e sombrios; a fotografia de Pasolini é arenosa, acre, árida, ao passo que a de Trier é nebulosa, cinzenta; os figurinos do italiano são extravagantes, pesados, trajes típicos das regiões da antiga Pérsia; os do dinamarquês são discretos, minimalistas, sóbrios. Se a Medéia de Pasolini é, ninguém menos que Maria Callas, o Jasão de Trier é o lendário Udo Kier. Ninguém leva vantagem!
Um dos maiores jogos do nosso certame cinefutebolístico.




Aqui, algumas imagens comparativas:
(sempre o filme de 1969 à esquerda, e o de 1988 à direita)
Na primeira imagem, a fotografia árida e as belas locações da Turquia, do primeiro filme,
e a atmosfera soturna do remake.
Na segunda linha, o interior de um castelo e os figurinos exóticos,
comparados à fotografia diáfana e indefinida do outro.
No centro, Medéia, em ambos os casos em uma cena externa:
a profundidade e a perspectiva do segundo filme são impressionantes.
Depois, os intérpretes de Jasão: o primeiro Giuseppe Gentile, ex-atleta,
mais belo, como Pasolini gostava, é claro,
mas do outro lado Udo Kier dava um show de talento.
E por último, as duas protagonistas:
A competente Kirsten Olesen, discreta, correta, dá conta do recado
mas Maria Callas, além de lindíssima, encarna a personagem de forma muito intensa e convincente
Craque de bola!



"Medéia", de Pier Paolo Pasolini é um clássico, mas o mesmo vale para a "Medéia", de Lars Von Trier. 
Dessa vez, sim, pode-se dizer que clássico é clássico e vice-versa.




por Cly Reis

terça-feira, 8 de março de 2022

"Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar (2021)

 

Já houve a quem surpreendi com essa afirmação: Pedro Almodóvar não me é uma unanimidade. Pelo menos, por certo tempo em sua filmografia, seu cinema, mesmo inequivocamente admirável, desagradava-me em algum grau, como se algo oculto, mas grave, estivesse fora do lugar. Desde sempre sei claramente de sua excelência nos vários aspectos fílmicos: roteiro, enquadramento, fotografia, direção cênica, arte, sensibilidade musical. Sei de tudo isso, mas era como se algo me incomodasse que eu não soubesse exatamente como explicar. Recapitulando melhor: minha relação com os filmes do cineasta espanhol vem desde praticamente o início de sua carreira, mais precisamente a partir de “Matador”, de 1986. Claro que me assombrei com aquele cinema potente, repleto de erotismo, crítica social e política, sarcasmo e lirismo, o que se confirmou nos seguintes “A Lei do Desejo” (1987) e “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988). Porém, já a partir de “Ata-me!” (1989), seguindo de “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1994) e “Carne Trêmula” (1997) esse desconforto passou a aparecer. O que seria?

Assistindo a seu novo filme, no entanto, o candidato a Oscar de Melhor Filme Internacional “Mães Paralelas”, foi que finalmente compreendi o que me perturbava em Almodóvar. Mas vamos ao filme primeiro: na história, duas mulheres, Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), dão a luz no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis, de meia idade, teve a gravidez planejada e já se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana, adolescente, engravidou por acidente e sente medo do que está por vir, além de estar assustada, arrependida e traumatizada. As duas enfrentam essa jornada como mães solos e estreitam o vínculo entre si. Porém, o destino lhes guarda acontecimentos inesperados, que vão mudar profundamente suas vidas e remexer em questões originárias de ambas.

A abordagem realista de “Mães…” trouxe-me à luz que minha antiga questão com Almodóvar era nada estética e totalmente filosófica. Já nos primeiros minutos do filme o cineasta deixa claro que a trama encadeia com a mesma força os espectros existencial e sociopolítico ao evidenciar a situação das duas mães e da sua desafiadora condição feminina e, paralelamente, do resgate da memória de perseguidos políticos pela ditadura de Franco e cujos laços familiares são essenciais ao autorreconhecimento das personagens. Essa visão bastante autobiográfica, seja íntima ou coletivamente, não poderia ser abordada de outra forma que não a realista, contrariamente ao que por muito tempo prevaleceu como discurso nos filmes de Almodóvar, que era uma visagem reiteradamente excêntrica, quando não bizarra ou surreal. Essa linha de raciocínio transmitiu a mim por muito tempo que não havia outra visão de mundo para o diretor que não o decadentismo. Não que um autor, assim como muitos o fazem desde que a arte pensa o mundo, não possa – ou deva – expressar seu pessimismo. Não fosse assim, desconsideraria, por exemplo, o cinema de Angelopolus, Von Trier ou Bergman, quase sempre amargos. Mas a impressão que dava na filmografia de Almodóvar, mais precisamente até “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), marco desta quebra para uma incursão mais realista e biográfica, resultava em algo um tanto simplista, como se tudo se resolvesse pelo bizarro. Desde pequenos detalhes do roteiro até “soluções” ou comportamentos inesperados dos personagens, havia como que uma inquietação que não permitia que as verdades se despissem: careciam sempre estarem vestidas de ironia, choque, de arroubos. 

trailer de "Mães Paralelas"

Seria simplista, aí sim, de minha parte, no entanto, atribuir isso à homossexualidade, sempre tão presente em suas temáticas, embora propositadamente geradora de perturbação, um possível indicativo. Mas não era só isso. Havia no ar – assim como a sensação de suspensão obtida pela câmera de Resnais ou a de sonho que Buñuel magicamente atribuía a seus filmes surrealistas – um sentimento de deslocamento constante, uma revolta inquietante.  Tudo, claro, com o invólucro extremamente bem acabado, que lhe é marca registrada, o que me confundia até certo ponto – além, claro, da própria qualidade de filmes como “Ata-me!” e “Kika”, por exemplo. Porém, tudo formava, por fim, algo inevitavelmente um tanto repetitivo, para mim insuficiente a um autor tão capaz de vislumbrar um paradigma mais amplo. O bastantemente autobiográfico “Dor e Glória” (2019), seu longa imediatamente anterior a “Mães…”, parece com este último mostrar um Almodóvar maduro, por mais estranho que essa afirmação possa parecer quando se refere a um dos mais talentosos cineastas da atualidade. Nada de rompantes dos personagens, falas chocantes, ações excêntricas como se a alma do ser ibérico fosse necessariamente sempre assim. Até mesmo o thriller “A Pele que Habito” (2011), filme que marcou uma recente virada de prestígio na carreira de Almodóvar, o elemento bizarro funciona a favor da narrativa fantástica por natureza.

Penélope noutra ótima atuação
com Almodóvar, concorre ao
Oscar de Melhor Atriz 
Este pisar no chão de Almodóvar em “Dor...” e agora em “Mães...” acaba por repercutir principalmente no roteiro, precioso no entendimento das complexidades humanas e, consequentemente, na direção de atores – o que põe Penélope, vencedora do Oscar de Atriz Coadjuvante em 2009 por "Vicky, Cristina, Barcelona" a concorrer pela segunda vez na carreira ao de Melhor Atriz (a outra, também com Almodóvar, por "Volver", em 2007). Afinal, quer algo mais inesperado do que as reações do ser humano diante do medo? Não precisa de exagero para expressar isso com contundência.

O resultado é um filme preciso, em que Almodóvar deixa aquela sensação que somente os grandes conseguem, que é a de ter se superado. E isso é ainda mais louvável considerando que, assim como Allen, o espanhol é daqueles cineastas que sempre produziram muito e há muito tempo, o que, naturalmente, leva a maior probabilidade de erros e acertos. Decerto, o Oscar de Filme Internacional fique com o acachapante “Drive My Car”, o qual, assim como “Roma” em 2018, e “Parasita”, em 2020, concorre também ao de Melhor Filme, mas que dificilmente repetirá o feito deste último ao arrebatar as duas estatuetas. Independentemente de premiação ou não, como obra “Mães...” vem com pertinência discutir questões femininas com tamanha sensibilidade, ineditismo, beleza e verdade. Um filme que diz, a rigor, tudo sobre todas as mães do mundo.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Histórias Reais", de David Byrne (1988)

 

O Olho de Fora

Não é de hoje que, às vezes, a visão do estrangeiro me diz mais do que a do nativo. Ofuscado pela cotidianidade, o vivente local comumente não se apercebe de elementos básicos daquilo que ele mesmo é. “Cego de tanto vê-la”, como disse o poeta. O forasteiro, como uma folha em branco, está livre para ser escrito, rabiscado, rasurado, e sem que se trace por cima de escritas já grafadas. Tal como as tatuagens de Nagiko, de “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway (1996), seu corpo serve, agora, de página para algo novo que se inscreva, em letras de novíssimos significados. Essa visão de fora, no cinema, é, igualmente, a ferramenta para que algumas obras incomuns sejam criadas. É o caso de “Histórias Reais” (True Stories, EUA-1988), a bem sucedida experiência audiovisual do músico – e estrangeiro – David Byrne.

O escritor e viajante francês François Chateaubrinad, em seu “Voyage en Italie”, disse que “cada homem traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou, e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo estrangeiro”.  Tão peregrino quanto, o escocês David Byrne escreveu e conduziu “Histórias Reais”, um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas, na verdade, carregado de perspicácia. E essa visão própria está diretamente ligada à relação emocional do autor com o seu lugar, daquilo “tudo o que viu e amou.”

Byrne: narrador e personagem quebrando a "4ª parede"

Na obra de Byrne, o cenário ideológico representa mais do que uma cidade, mas os Estados Unidos como um todo, país que lhe acolheu e com o qual é tão identificado desde os tempos da geração punk nova-iorquina dos anos 70, da qual ele foi um dos principais atores à frente da lendária banda Talking Heads.  A solução encontrada por ele para representar a amplitude de uma nação toda em um único espaço físico foi a de inventar uma cidade fictícia, a extravagante Virgil, onde a história transcorre. Nela, o diretor-viajante (Narrador, como é chamado), encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter esta localidade do Texas em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários, entre eles a Mulher Mais Preguiçosa do Mundo e o solteirão Louis Fyne (o sempre excelente John Goodman) à procura de casamento e da realização como artista.

Figurinos e cenários kitsch:
o americano médio no centro
No filme, há dois enfoques que se complementam. O primeiro deles é um simpático mundo de fantasia, o que ironiza o próprio título. Byrne lança um olhar generoso sobre atitudes e pensares do povo daquele país que, talvez, para outro mais enfezado, seriam abertamente criticáveis, como o excesso de imagens publicitárias, o deslumbramento com os avanços tecnológicos ou a intenção de serem, eles, os “americanos”, espelho para o planeta. Cenas lúdicas, como as atrações de palco, o ventríloquo e os grupos de dança reforçam essa percepção. O figurino, de maquiagens carregadas, cabelos volumosos de laquê e as roupas e os cenários kitsch, explorando formas e cores berrantes, mostram o quanto a arte cenográfica, assinada por Lucinda Cowell, foi trabalhada para realçar esses aspectos.

Por outro lado, o filme revela belezas escondidas. E o faz muito bem. Com um olho atilado e sensível, Byrne enxerga, por exemplo, as tradicionais casas ao estilo norte-americano (tão comumente filmadas em centenas de outros filmes) nos planos gerais em travelling, aqui enquadrados não só com a câmera, mas também com a alma. A cena final na estrada de terra que se perde ao infinito, igualmente, é de pura poesia, visual e conceitualmente.

A emocionante cena das casas sob o olhar do estrangeiro Byrne

A fotografia do competente Ed Lachman (que se tornaria diretor mais tarde, fazendo, entre outros títulos, o ótimo “Ken Park”, de 2002) se encaixa na medida certa para as intenções do filme, tanto nas composições propositadamente artificiais, nas cenas em que Byrne aparece dirigindo pela estrada ou no vídeo de “Love For Sale” (que funcionou perfeitamente como clipe na MTV), como nas imagens naturais, a ver os lindos enquadramentos em grande plano da paisagem horizontalizada do deserto norte-americano, lembrando, sem medo da comparação, “Paris, Texas” (Win Wenders, ALE-EUA, 1984). Lachman também acerta no tom da exacerbação cenográfica proposta por Byrne, quando capta, dentro daquele emaranhado de imagens publicitárias, diversos formatos e tipos de telas de vídeo, provocando uma interessante profusão de superenquadramentos. Ideia esta, assim como as tonalidades cromáticas fortes, visivelmente aprendida por Byrne com o cinema novo alemão (movimento do qual Wenders  originou-se) e do cineasta americano Jonatham Demme, diretor de vários clipes do Talking Heads.

Superrnquadramento de "Histórias...", à esq., e de "Paris, Texas" ao lado: Byrne se inspira em Wenders

Filme de músico, “Histórias Reais” tem ótimas músicas, é costurado por música, mas não é, a rigor, um musical. Conceitual, “Histórias Reais” é um dos produtos de um projeto multimídia – pouco comum à indústria de entretenimento naqueles anos 80 – lançado simultaneamente em outros dois formatos: livro, um book de trabalhos fotográficos com imagens captadas para o filme, e LP, um dos melhores do Talking Heads.  Aliás, na minha percepção de fã da banda, “True Stories”, o disco, de princípio, mesmo com os grandes hits “Love for Sale” e “Wild Wild Life”, não me impressionava tanto quanto outros do grupo. Porém, sua audição passou a me fazer mais sentido e, consequentemente, a gostá-lo mais, depois de assistir a sua “versão” audiovisual.

Pelo viés da música, Byrne – já premiado anteriormente como diretor de videoclipes de sua banda – mostra domínio ao explorar todos os níveis narrativos de um filme musical. Ele se utiliza da trilha diegética, como na divertida cena de “Wild Wild Life”, expediente bastante usado nos musicais em que a música e a dança provocam um distanciamento da realidade para criar um universo próprio dentro daquele instante em que ocorre a performance. Em outro momento, usa também a não-diegese, como na apresentação na igreja em que há uma banda inteira executando a peça como se fosse ao vivo, integrando totalmente a música ao ato narrativo. Byrne também se vale da mistura dos dois extremos, como na sequência das crianças percutindo latas e cantando na rua a caribenha “Hey Now”.

O clássico clipe de "Wild Wild Life": cinema, a TV e a vídeo-arte

“Histórias Reais”, contudo, intenta ir além do musical. E vai. A constatação é um tanto preconceituosa, confesso, mas resisto um pouco a este gênero. Claro que existem grandes realizações nesse estilo ao longo da história do cinema; estão aí para provar “O Mágico de Oz” (Victor Fleming, EUA-1939) e o balé “Sapatinhos Vermelhos” (Michael Powell e Emeric Pressburger, ING-1948). Mas em geral incomoda-me aquela artificialidade da transição diálogo-performance, nem sempre justificável, nem sempre coerente. E até me irrita, em alguns casos, a forçada conversão do texto em canto quando a mesma poderia funcionar muito bem em uma simples fala coloquial. Pergunto-me: para que todo aquele contorcionismo para dizer um corriqueiro “bom dia”? “Hair” (Milos Forman, EUA-1979), por exemplo, me enjoa. Os que mais me agradam nesta linha são, justamente, aqueles que, de alguma forma, burlam o padrão do musical de Aistaire ou Kelly. De atmosfera onírica, cada um a seu modo, “Dançando no Escuro” (Lars von Trier, DIN/FRA/EUA -2000) e "Brasil Ano 2000" (Walter Lima Jr., BRA-1969) são exemplos felizes de reapropriação do elemento música dentro do contexto fílmico.

Não tão radical, “Histórias Reais” se situa entre um estilo – o clássico hollywoodiano – e outro – o do cinema moderno –, visto que é bastante palatável como o cinema comercial, porém, agregando aspectos de outras linguagens, como a publicidade e a vídeo-arte. 

Fotografia valorizando o esverdeado
luminoso, típico dos filmes de Demme
e do cinema novo alemão
Entretanto, o que se destaca mesmo é o seu caráter documental. Byrne faz as vezes de um antropólogo, de um Chateaubriand, sendo objeto e observador ao mesmo tempo. Sua narração, com sentenças didáticas e engraçadas de tão óbvias, parece pretender relatar o que todo mundo sabe: que os Estados Unidos têm uma gente feliz; que são altamente tecnológicos; que o capitalismo triunfou; que vivemos imersos na era da informação e da imagem. Parece um roteiro extraído de um livro que se chamaria “United States for Dummies”. Porém, é na aparente obviedade que está a sacada: nunca ninguém (pelo menos, não um americano) se atreveu a (ou pensou em) mostrar os Estados Unidos tão cruamente, o que faz o espectador, pelo choque provocado, refletir dada a simplicidade (até simploriedade!) de como as coisas são mostradas. Leva-nos a questionar a veracidade desses mitos difundidos mundo afora, principalmente após a II Guerra. Não fosse o lado estrangeiro de Byrne, esse distanciamento crítico não seria possível. Às vezes, só a visão de fora consegue captar o que está dentro. Tanto que, no início do filme, há uma cena em que, antes de começar a história em si, ele, Narrador, entra na tela, reforçando essa ideia.

A era pós-11 de Setembro evidenciou ao mundo a crise moral e política a qual os Estados Unidos vinham alimentando há décadas, a começar pelo período de governo Reagan, da época em que "Histórias Reais" foi rodado. Mas e os dentes brancos da propaganda do creme dental? E as admiráveis engenhocas da tecnologia moderna? Ainda nos dizem alguma coisa? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi no alvo quando escreveu: “esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida”. A ilusão que o filme de Byrne quase carinhosamente identificava sem apontar o dedo, a geração de cineastas como Michael Moore e Charles Ferguson cresceu para poder, hoje, com propriedade e direito, arregaçar as próprias feridas. De fato, parte da sociedade descobriu, um tanto tarde, que o Super-Homem jamais existiu a não ser nos quadrinhos, e que todos são de carne e osso, eles e os outros. “People Like Us”, sintetiza uma das músicas da trilha. Como diz naquele texto de Caetano Veloso: “Americanos não são americanos. São os velhos homens humanos chegando, passando, atravessando. São tipicamente americanos.”

"People Like Us", da Talking Heads: uma tradução do filme


Daniel Rodrigues