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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

“Inverno da Alma”, de Debra Granik (2010)

 

O calor do frio

Há um profundo amor quase impenetrável nos meandros de determinadas obras. Como na peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, no conto “Chacais e Árabes”, de Franz Kafka, ou num filme como “O Rito”, de Ingmar Bergman. Obras duras que ainda hoje digiro. Tão intrincados de perscrutar que a própria manifestação afetiva, vencida por motivos indignos, parece nem existir. Mas ela está lá, mais viva que se possa sugerir à primeira vista. É o caso do bom “Inverno da Alma” (EUA – Winter’s Bone, 2010), da diretora norte-americana Debra Granik, cujo enredo evoca sentimentos motivadores genuínos, mesmo que encobertos de rancores, medos e inseguranças próprios do ser humano.

Premiado em Sundance e Berlim, o filme, indicado ao Oscar de Melhor Filme, conta a história de Ree Dolly (Jennifer Lawrence), uma jovem de 17 anos cuja imensa responsabilidade de gerenciar com parcos recursos uma casa com dois irmãos pequenos e uma mãe mentalmente doente é ainda mais dificultada quando se vê necessitada a encontrar seu desaparecido pai, Jessup Dolly, depois que ele põe a mesma casa como garantia de sua liberdade condicional. Diante da possibilidade de perder o teto, Ree desafia os códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo onde moram arriscando a vida para salvar sua família. O medo dos que, de alguma forma, estiveram envolvidos com seu criminoso pai, então, começa a se manifestar na forma de mentiras, defesas e agressividade.

Ree aborda várias pessoas na tentativa de encontrar Jessup. Mesmo assim, o fato de seu pai ter dívidas com muita gente parece tornar as barreiras para a verdade intransponíveis. Mas só parece. Um dos elementos utilizados pela diretora para narrar a história com sua lente segura e rigorosa são as diversas portas daquelas simples casas, ao mesmo tempo protetoras dos frios do inverno e da alma. A cada abordagem atrás de ajuda, a protagonista lança-se numa busca onde é preciso transpor as “portas” daquele “íntimo coletivo” magoado e culpado – e, por isso, instintivamente hostil.

Na primeira metade da fita, por mais que pudesse adentrar em algum lar, a tentativa é sempre nula, como se a esperança de chegar a seu único objetivo (encontrar o pai vivo ou morto) fosse imediatamente negada. Passagens que se fechavam. No entanto, o elemento simbólico dessa busca mantém-se na persistência da personagem, e é então que as atitudes passam a gerar consequências, e as soluções, de forma amarga e realista, aparecem. Seu próprio tio, Teardrop (o ótimo John Hawkes), irmão de Jessup (e tão “durão” quanto o consanguíneo), que de início lhe negara apoio, tentando com brutalidade demovê-la da empreitada, é quem, depois, convencido a ajudar a sobrinha, resgata-lhe dos inimigos com a verdadeira intenção de, a partir dali, protegê-la.

Sobre a questão da busca é impossível não referenciar o cinema iraniano, como o dos cineastas Abbas Kiarostami ou Mohsen Makhmalbaf, cujas obras são marcadas por esta representação simbólica. Eles direcionam o olhar do espectador de modo a se encontrar, junto com os protagonistas, aquele algo que existencialmente lhes faz falta. É o caso dos road movies “Vida e Nada Mais” (1992) e “Gosto de Cereja” (1999), de Kiarostami, e “Um Instante de Inocência” (1996), de Makhmalbaf, para ficar em três bons exemplos que vão exatamente nesta linha.

Provinda do cinema alternativo norte-americano, Debra tem, de certa forma, ligação com cinemas de fora do circuito comercial. Quando, no final dos anos 80, o cinema do Irã e de outras nacionalidades “exóticas”, como Japão (Kitano, Miike), Hong Kong (Kar-wai, Wang, Woo) e Dinamarca (von Trier, Vinterberg e a turma do Dogma 95), principalmente, ganharam mercado e trouxeram novas abordagens ao cinema mundial, a antenada produção alternativa dos Estados Unidos soube se aproveitar disso. O resultado foi que, com mais uma das tantas crises do cinemão americano, em meados dos anos 90, o consistente cinema alternativo, autoral por natureza, saiu somente das marginais projeções em Sundance para ganhar da situacionista Academia um espaço, agora, difícil de desocupar. Esse processo ainda em curso motiva, hoje, por exemplo, a conquista do Oscar de Melhor Filme de “Crash – No Limite” (Haggis, 2004) e a indicação ao mesmo prêmio de “Inverno da Alma”.

Ree com a família: desafio aos códigos e a lei do silêncio
do inóspito e gélido vilarejo

Essa abordagem que o filme de Debra propõe dá-lhe, portanto, contornos diferenciados do modelo hollwoodiano. A fotografia entre o azulado e o acinzentado de “Inverno da Alma”, ressaltando a seca floresta de altos e opressores pinheiros, imprime uma sensação de solidão e mistério, contrastando com a tonalidade alaranjada dos enquadramentos de rostos, tudo pontuado por uma câmera quase que invariavelmente estática. Um pouco como “Fargo”, dos irmãos Coen (1996), inocência e subversão convivem num microuniverso à parte de tudo, escancarando um ser norte-americano interiorano longe dos belos tipos de Nova York ou Los Angeles comercialmente vendáveis ao mundo. Aqui, não: são gentes pobres e feias, enrugadas, de peles e cabelos maltratados, vestidas de jeans surrados e sem nenhum sinal de sensualidade (chega a ser estranho ver um filme americano onde nada é erotizado…).

A considerar os dois longas da diretora – seu outro, “Down to the Bone”, de 2004, retrata uma mulher presa em um casamento e que luta para criar seus filhos e controlar o hábito secreto de se drogar –, percebe-se um olhar bastante humanístico e sensível sobre questões muitas vezes obscuras da vida social norte-americana, como os vícios, as desarticulações familiares e as pressões psicológicas impostas por aquela sociedade. Longe da exuberância fotográfica e mais próxima das composições visuais precisas, o estilo de Debra vale-se de um enxergar amplo das coisas, direcionando suas lentes a questões sociais e operando do externo para o interno, o que gera reações íntimas e profundas nos personagens.

Hawkes, muito bem, concorreu ao Oscar
de ator coadjuvante naquele ano
É neste pequeno mundo que, impulsionada por um desejo convicto, Ree enfrenta com coragem suas manifestas limitações: a solidão da liderança, a angústia da vida pobre, os medos, a fragilidade física de menina num recinto bruto. Isso, motivada pela autoproteção e pelo amor sincero – mesmo sem sorrisos – aos que lhe dependem. Ela transforma, assim, aquela realidade aparentemente congelada pelo frio dos corações. Jessup, segundo o irmão, não tivera essa força interna para conseguir desviar-se da contravenção e viver em paz com os filhos que tanto amava. A ternura descomplicada de Ree se estende não só aos irmãos e a mãe, mas a esta sombria figura do pai, cuja investigação acaba por lhe abrir espaço a um novo e inesperado motivo, identificando-o tanto na figura do tio, quanto no significado que a busca em si passa a representar: um encontro consigo mesma. Tal pai, tal filha.

Há uma cena em que Ree folheia com os irmãos um álbum de fotografias onde reveem fotos da família. Numa delas, está o pai, jovem e feliz ao sol. Segundo Ree, quando tinha sua idade. Essa identificação parece, aos poucos, funcionar como libertadora da jovem quanto às preconcepções de sua origem nefasta, tão alardeadas e imputadas por todos como sendo inatas dos Dolly.

Curiosamente, a forma como a Ree prova a morte do pai para, enfim, poder ficar com a casa, é levando ao delegado as mãos do morto, cortadas por uma motosserra. E por serem justamente as mãos, o aspecto do inatismo reaparece como metáfora, lembrando a dicotomia levantada por um dos clássicos do cinema expressionista alemão, “As Mãos de Orlac – O Calvário de Um Artista”, de Robert Wiene (1924) – mesmo diretor do essencial “O Gabinete do dr. Caligari”. No filme, o pianista Paul Orlac sofre um acidente de trem onde perde as mãos. Na cirurgia de emergência, transplantam-lhe as mãos do assassino Vasseur, que acabara de ser executado. Ao saber disso, o sensível músico entra em um grande conflito interno que o leva à loucura: passa a, igualmente ao “dono” das mãos, matar com elas. As mãos de Orlac assumem o caráter de um símbolo: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem revela sua humanidade ou desumanidade, elas são um signo material do sujeito, tanto como objeto da expressão dos sentimentos quanto demonstração objetiva da personalidade.

Não à toa, é com um sutil toque no ombro do seu tio que Ree, mesmo temerosa, demonstra-lhe empatia, firmando ali o elo emocional entre os dois. Ao tomar consciência da própria personalidade, as coisas começam a tomar rumos que, de uma forma ou outra, acabam se encaixando. Pela iniciativa de alguém para mudar o cenário, os corações, agora timidamente sorridentes, parecem motivar-se a se aquecer. “Vida e nada mais”.

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Cena de "Inverno da Alma", de Debra Granik


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Daniel Rodrigues

terça-feira, 8 de julho de 2025

Claquete Especial Mês da Luta Antirracista - "A regra é o respeito"*

 

O competente e precursor De e seu Dogma Feijoada
Em 2000, o cineasta paulista Jeferson De, em colaboração com outros realizadores negros, lançava, durante o 11º Festival Internacional de Curtas de São Paulo, o chamado Dogma Feijoada, marco daquilo que se pode chamar de cinema negro brasileiro moderno. Embora a prática do audiovisual entre realizadores negros no Brasil se dê de muito antes, o movimento em si ainda parece bastante válido 25 anos após seu lançamento. De – que posteriormente prosseguiria contribuindo com a própria ideia de um cinema feito por negros com filmes como “Bróder”, de 2011, e “Doutor Gama”, de 2021 – apresentava um programa composto, além de outras atividades, pelo manifesto Gênese do Cinema Negro Brasileiro. Em referência ao Dogma 95, criado pelos cineastas europeus Thomas Vinterberg e Lars Von Trier cinco anos antes e que defendia a necessidade de produções mais realistas e menos comerciais, o Dogma Feijoada interrogava uma urgência histórica bem mais doméstica: “o que entendemos como cinema negro brasileiro?”

Dentre as diretrizes e exigências do manifesto, havia sete “regras” para a produção de um cinema negro: (1) o filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro; (2) o protagonista deve ser negro; (3) a temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira; (4) o filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; (5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; (6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; e (7) super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.

Tal como devem ser os manifestos políticos, o Dogma Feijoada trouxe o tema à tona de forma abertamente impositiva. Não haveria de ser de outro jeito. Afinal, estava-se, naquele momento, virada do século 20 para o 21, resgatando não apenas uma fatia econômico-produtiva dentro de uma indústria há muito existente no Brasil. Mas, sim, estava-se, ao menos no setor audiovisual, recuperando séculos de total desumanização de um povo pela prática da escravidão e outros quase 120 anos de sequestro intencional e deliberado da mão de obra negra após a Lei Áurea, de 1888, e o projeto estatal de embranquecimento e substituição dos “ex-escravos” por imigrantes europeus brancos.

"Kasa Branca!, dos exemplos da nova safra do
cinema preto brasileiro
Passadas mais de duas décadas desde a provocação de De e sua turma, a boa notícia é que, sim: avançou-se de lá para cá em termos de produção negra no cinema nacional. Senão em todos, pelo menos em vários dos requisitos elencados. Quando a Dogma Feijoada foi parar no estômago do cinema brasileiro, algumas ações na direção de uma maior equidade de oportunidades e compensação histórica estavam sendo preparadas. No Senado Federal, consolidava-se, também em 2000, o Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça. Naquele mesmo ano, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovava uma lei que reservava metade das vagas das universidades estaduais para estudantes de escolas públicas, semente do que resultaria na exitosa Lei de Cotas, conhecida também como Lei 12.711, aprovada em 2012. 

A realidade do audiovisual brasileiro mudou bastante, principalmente a partir de então. Mas é fato que ainda insuficiente para dar conta da demanda reprimida da comunidade negra. Em 2024, a Cinemateca Negra realizou um levantamento inédito, que mapeou 1.104 filmes dirigidos por pessoas negras no Brasil desde a década de 1940. O estudo revelou que 83% dessa produção surgiu, justamente, entre 2010 e 2020. Contudo, essa parcela representa somente 10% dos filmes brasileiros lançados no mesmo período.

Hoje é possível se verem filmes como “O Dia que te Conheci”, de 2024, dirigido pelo cineasta negro André Novais Oliveira e realizado pela produtora mineira Filmes de Plástico, que privilegia em suas produções personagens negros da vida real, ou seja, longe de se passarem por “super-heróis ou bandidos”. A “urgência” se evidencia ao abordar o tema da depressão e das pressões da vida social, enquanto o item da “cultura negra”, outra exigência posta em manifesto, está inserido de forma naturalizada em seus protagonistas, que tentam existir na cidade com suas ancestralidades e bagagens pessoais.

O tocante "O Dia que te Conheci": cinema negro 
em essência e na prática

Outro título emblemático para o novo cinema brasileiro é “Marte Um”, de 2022, também da Filmes de Plástico, este, dirigido pelo igualmente cineasta negro Gabriel Martins. Ao natural, também atende a todos os predicados ditados pelo Dogma Feijoada: protagonismo negro atrás e na frente da tela, representação da vida de pessoas comuns, questões sociais imperiosas, quebra dos modelos preconcebidos, projeto exequível. E o mais importante: ambos são histórias bem contadas, humanas, tocantes, que aproximam tanto o público negro da tela quanto demonstra a realizadores afrodescendentes que, sim, “nós podemos” realizar um cinema honesto e de qualidade sobre as nossas coisas.

Bulbul, figura essencial para o
cinema negro no Brasil
Se “O Dia que te Conheci”, “Marte Um” e outros filmes da atualidade (como “Kasa Branca”, “Mussum - O Films” e “Othelo, O Grande”) representam o objetivo traçado anos atrás, é evidente que, para se chegar a tal estágio, muito se precisou caminhar. Precursores do cinema negro brasileiro, como Cajado Filho e Haroldo Costa, tiveram em Zózimo Bulbul, Adélia Sampaio, Odilon Lopes e Joel Zito Araújo, principalmente, a consolidação de um cinema preto no Brasil. 

No entanto, o que pareceu escapar à ambição momentânea do grupo do Dogma Feijoada é um dos gargalos do cinema nacional atualmente: como distribuir e onde exibir tais produções? Como fazer esse cinema tão importante para a autoidentificação de um país chegar ao público de interesse? Numa busca na internet por alguns títulos nacionais que tratam das questões do negro, como “Todos Somos Irmãos” (1949) ou “Quilombo” (1984), é possível encontrá-los disponíveis no Youtube. Porém, vários outros, principalmente os mais recentes, somente nos streamings – e de forma paga. 

Com salas de cinema cada vez mais escassas, iniciativas como a 1ª Mostra de Cinema Negro na Escola, que ocorre até dia 11 na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, são louváveis. Com sessões gratuitas e uma seleção de filmes negros brasileiros, a iniciativa irá exibir filmes com temática afro-brasileira para estudantes e professores de 50 escolas estaduais e municipais da capital e da região metropolitana, atingindo cerca de cinco mil alunos e docentes.

Em um mês marcado por várias datas de combate ao racismo (Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, 3, Dia Internacional Nelson Mandela, 18, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, 25), é fundamental que iniciativas e programas públicos como este fomentem a exibição de produções pretas como forma de ampliar o acesso ao que realizadores negros têm a dizer e ao que os olhares (sejam pretos ou não) têm a enxergar. Aproximar o público daquilo que lhe interessa e pertence. A visibilidade das histórias e contribuições da comunidade negra deve proporcionar um espaço de reflexão e diálogo, tão fundamental a uma sociedade democrática que se pretende igualitária. E sem que se precise enumerar regras para isso, como a bem pouco tempo. Oxalá a única regra seja ditada por apenas uma sentença: respeito. 

*artigo originalmente publicado no Segundo Caderno do jornal Correio do Povo em 27 de junho de 2025


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Daniel Rodrigues


quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os 25 melhores filmes dos primeiros 25 anos do séc. 21

 

Sofia Coppola, uma das 5 diretoras da lista
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim, vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria seguro. Nem a razão mais está a salvo.

Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a “ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até de pensar.

Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o cinema segue firme com produções que pululam de diversos lugares do mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina, Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.

A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.

Em compensação, o cinema soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”, definitivamente, não representam mais o que representavam antes.

Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele, Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody AllenClint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem lançados e descobertos.

Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui, cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas realizadoras ainda vêm por aí neste louco planeta em constante ebulição.

A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso, independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar NoéYorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e competência para isso.

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01. “Parasita”, Bong Joon-ho (2019)

Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.




02.
“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)

Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.




03.
“Corra!”, Jordan Peele (2017)

Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150 prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis, monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.



04.
“Retrato de uma Jovem em Chamas”Céline Sciamma (2019)

Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.



05. “Menina de Ouro”Clint Eastwood (2004)

O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.

Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século


06.
“O Pianista”, Roman Polanski (2002)

Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.



07.
“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)

A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.



08.
“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)

Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes, Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos. Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne Trêmula”.



09.
“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)

Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.



10. “Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)

Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.


11. “Bastardos Inglórios”, Quentin Tarantino (2009)

A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios".  um bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"? 



12.
“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)

É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.



13.
“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)

Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.



14.
“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)

O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.



15. “A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)

Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.

Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou,
que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda


16.
“O Regresso”, Alejandro González Iñárritu (2015)

Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.



17.
“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)

Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.



18.
“Match Point”, Woody Allen (2024)

Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.



19.
“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)

Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.



20. “O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)

O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


21.
“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)

Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta, Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã, "Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16 prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade. 



22.
“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)

Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Renoir, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!



23.
“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)

Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.



24.
“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)

O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.



25. “Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)

Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema. Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.

E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano)
neste final de primeiro quarto de século 21

PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali: 

“Pina” (Win Wenders, 2011)
“Senhores do Crime” (David Cronenberg, 2007)
“Assunto de Família” (Hirokazu Koreeda, 2018)
“Edifício Master” (Eduardo Coutinho, 2002)
“Três Anúncios para um Crime” (Martin McDonagh, 2017)
“Moonlight” (Barry Jenkins, 2016)
“Sangue Negro” (Paul Thomas Anderson, 2007)
“Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018)
“Interestelar” (Christopher Nolan, 2017)
“Film Socialisme” (Jean-Luc Godard, 2009)
“Visages, Villages” (Agnès Varda e JR, 2018)
“O Clã” (Pablo Trapero, 2015)
“A Separação” (Asghar Farhadi, 2011)
“Gran Torino” (Clint Eastwood, 2008)
“Assassinos da Lua das Flores” (Martin Scorsese, 2023)
“O Lobo de Wall Street” (Scorsese, 2013)
“Cópia Fiel” (Abbas Kiarostami, 2010)
“Elefante” (Gus Van Sant, 2003)
“Ela” (Spike Jonze, 2013)
“Eu, Daniel Blake” (Ken Loach, 2016)
"Kill Bill - vol. 1” (Quentin Tarantino, 2003)
“Irreversível” (Gaspar Noé, 2002)
“Nomadland” (Chloé Zhao, 2020)
“Anatomia de uma Queda” (Justine Triet, 2023)
“Triângulo da Tristeza” (Ruben Östlund, 2022)


Daniel Rodrigues


sexta-feira, 7 de outubro de 2022

"Medéia, A Feiticeira do Amor", de Pier Paolo Pasolini (1969) vs. "Medéia", de Lars Von Trier (1988)




Jogaço!!!
A tetracampeã mundial, a Itália, não estará na copa do Mundo de futebol, mas aqui no nosso embate cinefutebolístico encara a Dinamarca que, no Catar, com a bola nos pés vai tentar, mais uma vez, escrever seu nome entre as grandes.
Mas aqui no Clássico é Clássico temos dois grandes times, dois grandes treinadores. Ousados, agressivos, polêmicos. Um com um futebol mais plástico, outro com um jogo mais cru, mas ambos extremamente competentes e destacados entre os grandes em sua atividade. O italiano Pier Paolo Pasolini, vencedor, entre outras premiações, do Urso de Ouro em Berlim, por seu "Contos de Canterbury", em 1972; e Lars Von Trier, também multipremiado, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2000, por "Dançando no Escuro".
Os dois, às suas épocas, adaptaram a peça do grego Eurípides, "Medéia", na qual a protagonista, depois de levada de seu reino e desposada por Jasão, algum tempo depois, é preterida pelo marido em favor da filha do rei de Corinto. Abandonada, humilhada, Medeia dotada de faculdades místicas, antes de ser banida pelo Rei Creonte, usa de seus feitiços para se vingar do esposo, matando sua nova noiva e até os próprios filhos que tivera com Jasão.
Pasolini parte de um pouco antes e conta a história desde a tomada do Velocino de Ouro, artefato supostamente mágico, reivindicado pelo rei de Lolcos como condição para restituir a Jasão o trono que lhe seria de direito. Já Trier começa pelo momento do exílio de Medéia, quando seu amado cai de encantos por Creusa, a princesa de Corinto.


"Medéia" (1969) - trailer

O trailer original era demasiadamente recortado, alegórico e desconexo, 
deste modo, optei por um trailer alemão que,
mesmo em uma língua mais estranha para nós brasileiros, dá uma ideia melhor de
alguns elementos do filme, como os cenários, figurinos, fotografia, além de alguma noção das atuações.


"Medéia" (1988) - cenas

Não consegui um trailer completo de "Médeia", de Lars Von Trier, provavelmente por ter sido um projeto originalmente feito para TV.
No entanto essa compilação de cenas dá uma ideia das escolhas cinematográficas e da estética proposta pelo diretor.


A vingança no filme de Pasolini se dá pelos trajes enviados por Medéia à princesa, sob pretexto de presentes de casamento, mas que, vestidos pela jovem noiva, entram em combustão e obrigam Creusa, em desespero a se jogar do alto do castelo, seguida pelo pai Creonte. Já na do diretor dinamarquês, igualmente fingindo de conformada com a situação do ex-marido, Medéia envia para a rival uma espécie de tiara, uma guirlanda, à qual, usando de suas artes mágicas, envenenara as partes agudas às quais espetando o dedo da nova noiva de Jasão, a leva à morte, bem como ao pai, que em desespero pela morte da filha, crava uma ponta da tiara em si propositalmente.
O interessante é que na peça de Eurípedes constam os dois itens, as vestes e a coroa, mas, curiosamente, cada um decidiu usar de um dos artifícios. E ambos o fizeram de maneira brilhante. A cena da jovem em chamas pelo jardim do castelo é espetacular! Bem como a tensão quase silenciosa do preparo da substância, a aplicação no denteado da peça, o arranhão no cavalo, a entrega do presente à amada de Jasão, a corrida desenfreada do cavalo concomitante ao espetar no dedo... Tudo incrível!!!
A seguir, outra diferença (aqui tem spoiler, caso alguém não conheça a história): no filme italiano, depois de usar os filhos para levar os "presentes" à inimiga, assim que eles retornam para casa, Medéia, calmamente os atende, lhes dá banho carinhosamente e mata a ambos com um punhal, ateando fogo à casa logo em seguida. Lars Von Trier ousa mais: depois do retorno dos meninos do castelo real, onde entregaram o regalo envenenado, ela foge com os filhos para um lugar bem afastado do reino e, numa sequência ao mesmo tempo chocante e belíssima esteticamente, enforca os dois filhos em uma árvore. 
No primeiro filme Jasão, sem poder alcançá-la, por conta das chamas (e na lenda, pelo fato da feiticeira estar elevada e protegida por Helios, o deus sol), clama para que Medéia, ao menos lhe entregue os corpos dos filhos para que os sepulte; na refilmagem, depois de encontrar os filhos pendurados na árvore, Jasão, sob efeito de uma de suas feitiçarias, corre em círculos infinitamente procurando Medéia enquanto ela foge numa nau para Atenas.  
Duas obras de arte!
Pasolini tem cenários impressionantes, locações exóticas da Capadócia, enquanto Trier traz ambientes opressivos e sombrios; a fotografia de Pasolini é arenosa, acre, árida, ao passo que a de Trier é nebulosa, cinzenta; os figurinos do italiano são extravagantes, pesados, trajes típicos das regiões da antiga Pérsia; os do dinamarquês são discretos, minimalistas, sóbrios. Se a Medéia de Pasolini é, ninguém menos que Maria Callas, o Jasão de Trier é o lendário Udo Kier. Ninguém leva vantagem!
Um dos maiores jogos do nosso certame cinefutebolístico.




Aqui, algumas imagens comparativas:
(sempre o filme de 1969 à esquerda, e o de 1988 à direita)
Na primeira imagem, a fotografia árida e as belas locações da Turquia, do primeiro filme,
e a atmosfera soturna do remake.
Na segunda linha, o interior de um castelo e os figurinos exóticos,
comparados à fotografia diáfana e indefinida do outro.
No centro, Medéia, em ambos os casos em uma cena externa:
a profundidade e a perspectiva do segundo filme são impressionantes.
Depois, os intérpretes de Jasão: o primeiro Giuseppe Gentile, ex-atleta,
mais belo, como Pasolini gostava, é claro,
mas do outro lado Udo Kier dava um show de talento.
E por último, as duas protagonistas:
A competente Kirsten Olesen, discreta, correta, dá conta do recado
mas Maria Callas, além de lindíssima, encarna a personagem de forma muito intensa e convincente
Craque de bola!



"Medéia", de Pier Paolo Pasolini é um clássico, mas o mesmo vale para a "Medéia", de Lars Von Trier. 
Dessa vez, sim, pode-se dizer que clássico é clássico e vice-versa.




por Cly Reis