“Lá vem os jovens gigantes de mármore/
Trazendo anzóis na palma da mão.”
Renato Russo,
da música “L’Age D’Or”,
da Legião Urbana, de 1992
A história do rock é escrita por linhas tortas. Aliás, não poderia ser diferente em se tratando do gênero mais subversivo da história da arte musical. Seria superficial traçar um caminho direto que fosse de
Berry-
Elvis nos anos 50,
Beatles-
Stones-
Velvet-
Floyd nos 60,
Led-
Sabbath-
Bowie-
Pistols nos 70 e
U2-
Prince-
Madonna-
Metallica nos 80, chegando aos 90 da
Nirvana-
Beck-
Radiohead. Às vezes, trabalhos distintos surgem para riscar um traço transversal no mapa do rock, demarcando algo novo e que se incluirá nessa linha evolutiva, influenciando artistas que virão dali para frente. Ou o que mais seria a Can, intersecção entre a psicodelia dos anos 60 e o
krautcock alemão, que alimentaria as cabeças da galera da
britpop dos 90? Ou
Grace Jones, que, no início dos 80, se pôs entre o
reggae jamaicano e a
new wave para apontar rumos ao pop que viria logo em seguida?
Um desses acidentes altamente influentes na trajetória rock é a
Young Marble Giants, trio
indie galês que, com um único disco,
“Colossal Youth”, lançado pelo icônico selo Rough Trade, em 1980, foi capaz de abrir caminho para toda uma geração influenciada pelos acordes básicos do punk mas, naquele início de década, já desejosa de uma maior leveza pop – a qual os
punks, definitivamente, não entregavam em seu grito de protesto. Era o chamado pós-punk, subgênero a que a YMG é considerada precursora. Motivos para esse apontamento existem, haja vista as marcas que a música da banda deixou em ícones como
R.E.M., 10.000 Maniacs, Everything But the Girl, Nirvana,
Massive Attack,
Air e
MGMT.
E o mais legal: a YMG fez tudo isso se valendo do mínimo. O som é calcado em um
riff de guitarra, base de baixo, teclados econômicos, leve percussão eletrônica e voz. Dito assim parece simplório. Mas aí é que começam as particularidades da banda. Não se trata de apenas uma voz, mas sim o belo canto de Alison Statton em inspiradíssimas melodias vocais. Os
riffs, geralmente tirados da guitarra ou dos teclados de Stuart Moxham, cabeça do grupo, são bastante inventivos. Curtos, mas inteligentes, certeiros. As bases de baixo do irmão de Stuart, Phillip, seguem a linha minimalista assim como as programações rítmicas, as quais cumprem sempre um papel essencial em termos de harmonia e texturas.
"Searching for Mr. Right", que abre “Colossal...”, de cara apresenta isso: um
reggae estilizado em que baixo e guitarra funcionam em complemento fazendo a cama para um vocal doce e cantarolável. Já o
country rock "Include Me Out" lembra o som que outra banda britânica da Rough Trade faria alguns anos deli e se tornaria famosa: uma tal de
The Smiths.
O estilo sóbrio e produzido com exatidão dá ao som da YMG uma aura de
art rock, lembrando o minimalismo da The Residents mas sem o tom sombrio ou da Throbbing Gristle sem a dureza do
industrial rock. Pelo contrário: a sonoridade é delicada e lírica. Até mesmo quando namoram com a dissonância, como em “The Man Amplifier” e na ótima “Wurlitzer Jukebox”, a intenção soa melodiosa.
A lista de fãs da YMG impressiona pela quantidade de ilustres.
Kurt Cobain e Courtney Love, especialmente, teceram os maiores elogios aos galeses, revelando o quanto os influenciaram. ”Music for Evenings" e “Constantly Changing” deixam isso bem claro no estilo de compor, tanto no
riff da guitarra, na função contrapositiva do baixo e na melodia de voz. Mas a que deixa a reverência do casal Cobain/Love mais evidente é "Credit in the Straight World", das melhores do disco e que traz todas as características do que tanto Nirvana quanto Hole produziriam anos mais tarde. Tanto é que a Hole fez-lhe uma versão em 1994, no seu exitoso disco de estreia “Live Through This”. Se o
Pixies é
“a banda que inventou o Nirvana”, "Credit...”, da YMG, pode ser considerada a música que cumpriu esse papel gerativo da principal banda do
grunge.
A influência da YMG, no entanto, não termina aí. Percebem-se em outras faixas de “Colossal...” o quanto previram tendências do rock, que se revelariam somente mais adiante. As instrumentais “The Tax” e “Wind in the Rigging” lembram o
gothic punk minimalista que Steve Severin e Robert Smith fariam no icônico
“Blue Sunshine”, de três anos depois (assim como “Colossal...”, o único disco da
The Glove); “Choci loni” e “N.I.T.A.” antecipam ideias da
Cocteau Twins de “
Treasure”, de 1984, e da Air de “
Moon Safari”, de 1998; "Eating Noddemix" é tudo que a Frente!, banda dos anos 90, queria ter feito; “Violet”, maior sucesso da Hole, poderia ser denunciada como plágio de "Brand - New - Life"; e até mesmo no Brasil a bossa nova pós-punk da
Fellini traz muito da construção melódica da YMG.
A considerar o hermetismo de
P.I.L,
Joy Division e The Pop Group, a pegada
avant-garde de
Polyrock e
Gang of Four, a guinada para o
reggae/ska da segunda fase
The Clash ou a preferência
synth de
Suicide e
New Order, a YMG pode ser considerada, sim, a precursora do pós-punk tal como este gênero ficou conhecido. Eles conseguiram unir todas essas forças sonoras advindas com o punk e a
new wave e sintetizá-las de forma concisa e pop. Como que com
“anzóis na palma da mão” muito bem arremessados, os
“Jovens Gigantes de Mármore” lançaram ao longe as linhas que fariam içar uma série de outros organismos vivos do rock nas décadas subsequentes, marcando, com sua simplicidade e criatividade, o pop-rock até hoje. Linhas estas, aliás, tortas, evidentemente.
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FAIXAS:
1.
"Searching for Mr.
Right" – 3:03
2.
"Include Me
Out" – 2:01
3.
"The Taxi" –
2:07
4.
"Eating Noddemix" (Phillip Moxham/ Alison
Statton) – 2:04
5.
"Constantly
Changing" – 2:04
6.
"N.I.T.A." –
3:31
7.
"Colossal
Youth" – 1:54
8.
"Music for
Evenings" – 3:02
9.
"The Man
Amplifier" – 3:15
10. "Choci
Loni" (Moxham/ Moxham) – 2:37
11. "Wurlitzer
Jukebox" – 2:45
12.
"Salad
Days" (Moxham/ Statton) – 2:01
13.
"Credit
in the Straight World" – 2:29
14. "Brand
- New - Life" – 2:55
15. "Wind
in the Rigging" – 2:25
Todas as músicas de autoria de Stuart Moxham, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:
Daniel Rodrigues