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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Ivan Lins - "Chama Acesa" (1975)


 

“Por baixo essa terra marcada/ Do lado direito essa tristeza/ Do outro, me dói, não há nada/ Mas em cima essa chama acesa”. 
Da letra de "Chama Acesa"


Um perigoso autoengano pairava no ar no Brasil de 1974. Após os anos de linha-dura de Médici, o governo militar passava para as mãos do General Ernesto Geisel aventando começar uma abertura política. Uma esperança. Desde o AI-5, em 1968, intensificavam-se a violência de Estado, a repressão, a censura prévia, os desaparecimentos, as prisões e o silenciamento das vozes oponentes. Havia de se ter um alento com a troca do comando. Afinal, lutar cansa. Infelizmente, não foi o que se sucedeu. Tanto que, depois se viu, precisaram-se de mais 11 anos para que a democracia voltasse efetivamente e a mão pesada da ditadura se manteve ainda muito ativa e sangrenta naquela metade dos anos 70. Estava claro: eles não iriam entregar o país de bandeja após o terem tomado pela força 10 anos antes com todos os custos que isso carrega. E se se nutria alguma ilusão de arrefecimento, o assassinato brutal do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, não deixou dúvidas de que os milicos estavam, sim, longe de baixar as armas.

Um dos que não se iludiu com a promessa de melhora no contexto político brasileiro de então foi Ivan Lins, um dos deuses da MPB, que chega hoje a 80 anos de vida. Já consagrado na voz de Elis Regina em 1970, com "Madalena", e um dos reconhecidos novos talentos do Movimento Artístico Universitário (MAU), Ivan levou, no entanto, alguns anos para se desfazer da imagem conformista - a qual talvez até hoje persista para alguns em certa medida. Muito por conta da música “Esse É o meu País”, que fez um inconveniente sucesso naquele mesmo ano, o que soava para a esquerda como uma piada sem graça do pior período de ditadura que o país vivia. Resultado? “Cancelamento”. Mas o filho musical de Tom Jobim e Milton Nascimento, melodista e harmonista sofisticado e de raro talento, àquela altura já havia entendido o lugar que devia ocupar. Sem medo da vigília seja do poder ou da oposição, em 1974 ele aciona o "Modo Livre", ao mesmo tempo nome de sua banda e de seu LP daquele ano, o que se torna, igualmente, o começo de uma nova fase na carreira: crítica, denunciativa, combativa – mas não menos poética e musical.

Esse espírito liberto deu a Ivan a certeza de que era momento de seguir com as armas em punho diante daquele cenário opressivo. Era necessário manter, como dizem, a “Chama Acesa”, justamente o nome do efervescente álbum que lançava em dezembro de 1975 pela gravadora RCA e o qual, assim como Ivan, faz também aniversário de data fechada em 2025, completando 50 anos. Valendo-se de sua maravilhosa musicalidade e de sensíveis letras, ele retoma o caminho aberto em “Modo Livre”, porém com importantes acréscimos, que vêm para intensificar a potência de seu corajoso discurso, agora ainda mais ardente. O principal deles é o estabelecimento definitivo da maior parceria de sua carreira, a com Vitor Martins. O letrista, que havia assinado com ele no trabalho anterior a simbolicamente intitulada “Abre Alas”, iniciando a parceria, agora responde por quase a metade das faixas do disco, dando não apenas unidade poética à obra como, principalmente, revelando o nascimento de uma das mais afinadas duplas da música popular brasileira contemporânea criadora de clássicos como “Um Novo Tempo”, “Cartomante”, “Começar de Novo”, “Vitoriosa”, "Iluminados" e “Lembra de Mim”, estas três últimas, temas de novelas da Rede Globo.

Em “Chama...” já era possível ver cristalizada a afinidade musical Ivan/Martins numa sequência vertiginosa: "Lenda do Carmo", totalmente referenciada na sonoridade de Milton Nascimento/Clube da Esquina; "Joana dos Barcos", bossa nova onírica e contística; e "Ventos de Junho'", que fecha essa sequência “mineira” com versos preocupados: “E hoje, horizontes farpados, soleiras/ Trancas, tramelas, porteiras/ Que nos caminhos de Minas/ Não abrem mais”. Nem uma vírgula era desaproveitada para se dar o recado.

A contundência maior, porém, vem no espetacular afoxé “Demônio de Guarda” ("Você vigia meus sonhos/ Me dá cachaça e as noites de orgia/ Você me dá a preguiça/ Me dá a conversa vadia de esquina/ Pra depois me jogar a polícia em cima") e, principalmente, em "Corpos", que encerra o disco dando o tom de gravidade que aqueles tempos exigiam. Dois títulos que, afora suas letras e a forma expressiva da interpretação, já dizem por si. Quanta audácia titular “Corpos” uma música para finalizar uma obra lançada menos de 2 meses depois da escandalosa morte por tortura de Herzog cuja foto do corpo falsamente enforcado tornou-se um símbolo da luta pela democracia! A letra, aparentemente amorosa, na verdade, não deixa por menos em denunciar o barbarismo e o calamento: "Existem mais corpos/ Ou vivos, ou mortos/ Entre eu e você/ Procure saber, procure em mim/ Procure em você/ Procure em todos/ Na lama, no lodo/ Na febre, no fogo".

Contudo, Ivan sabiamente mantém também outros valiosos parceiros de antes, como com o craque Paulo César Pinheiro e o primeiro deles, Ronaldo Monteiro. Ambos, igualmente indignados com o terror da ditadura e o cerceamento das liberdades, usam suas fervorosas poéticas para o mesmo fim: denunciar. Mas, claro, fazem com erudição e inteligência. Com Pinheiro, que assinara com Ivan um ano antes "Rei do Carnaval", tema de abertura de “Modo Livre”, agora retoma com nada menos que a devastada (e devastadora) faixa-título: "Você está parado na estrada/ Contemplando toda a redondeza/ Atrás a cidade assustada/ Na frente a cruel fortaleza". É deles também a etílica "Poeira, Cinza e Fumaça", balada desesperançada com “versos comuns de desgraça”. Quanto exercício literário para fazer poesia de resistência sem que a censura percebesse!

Com Ronaldo, igual sintonia. Parceiros desde o início da carreira de Ivan, agora eles vêm com “Palhaços e Reis”, que traz a metáfora circense e/ou carnavalesca para criticar o circo político da ditadura a qual Ivan aproveitaria novamente em trabalhos seguintes, como na faixa-título de “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, do disco deste mesmo nome, de 1977, e subtitulada “É O Circo de Novo”, ou “Cantoria”, de “Nos Dias de Hoje”, de 1978. Os versos não deixam entender outro sentido, que não este mesmo: "Olha, morena/ Me dói, me dá pena/ Saber o que a vida nos faz/ Destrói, desacata/ Maldiz e maltrata/ O ano inteiro".

Tão cáustica quanto é a bossa nova "Não Há Porque", igualmente com Ronaldo, cujo abrasivo solo de flauta acompanha o sufocante encadeamento, que amontoa progressivamente rimas num crescendo a cada verso: “Do estado desse mundo Deus está ciente/ Na espreita sobrevivo até comicamente/ Os efeitos vêm a público amargamente/ Um estranho ao me ver, percebe claramente.” Se um estranho percebia tamanha inconformidade, imagine-se os milicos! Que afronta! E o jeito fervoroso, quase furioso de Ivan cantar, faz a música ficar ainda mais ardente.

Ivan, ao fundo com Vitor Martins e Gilson Paranzetta,
essenciais para manter acesa a chama do inconformismo
Mas Ivan, músico completo que é, não precisa valer-se sempre de parceiros. Afinal, são duas só dele que abrem o disco. E põe para ferver: “Não me afague o rosto/ com essa mão farpada/ Não me afogue em poço/ que eu não beba água”. Esses versos, claramente referindo-se às torturas praticadas pelos militares, é da fantástica “Sorriso da Mágoa”. A abertura da música traz a atmosfera tensa de um tema de série policial para, depois, cair num samba-jazz conduzido pelo piano elétrico de Gilson Peranzzetta, este o outro novo ator determinante para o resultado de “Chama...”. É o pianista e arranjador, o qual se tornaria, assim como Martins, também um constante contribuidor de Ivan, que dá o tom jazzístico de todo o álbum, avançando em concepção sonora em relação aos discos anteriores. Os solos de sax e/ou flauta de Ricardo Ribeiro, bem como as do próprio Peranzzetta nos teclados, bem como a liberdade nas execuções de uma banda intitulada exatamente de Modo Livre, fazem deste disco o mais potente em termos de arranjo entre todos da discografia de Ivan.

Impressiona o quanto Ivan estava imbuído de aproveitar cada verso, cada palavra, cada pronúncia, para manifestar inconformismo, seja em forma de afronta, indignação, medo, ameaça, revolta ou melancolia. "Nesse Botequim", samba-canção na linha de outros que comporia mais adiante (“Esses Garotos”, “Saindo de Mim”, “Qualquer Dia”), é de uma tristeza corrosiva. Aliás, como muitos compositores manifestavam através de suas músicas à época, a se ver pelas penosas “Chegadas e Partidas”, de Milton/Fernando Brant, “Samba de Orly”, de Chico Buarque, ou "Café", de Egberto Gismonti. Doloridas. "Nesse Botequim" se vale da imagem do espaço popular onde as pessoas deveriam ser felizes, mas que, naquele estado de coisas, não ocorria bem assim. “Nas portas desse botequim/ Passaram tempos antigos/ Passaram sonhos, amigos/ Passaram crimes, castigos”. Ou seja: o “botequim” era, metaforicamente, o Brasil onde passavam “barbas, batinas” e, pior, “mãos assassinas”. E no final Ivan ainda evoca Tom Jobim, porém ressignificando a brejeira “Águas de Março” ao destacar-lhe apenas os versos iniciais: "É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho". É: era pau, era pedra, era solidão. 

Se “Modo Livre”, que abriu caminho para o Ivan engajado e inconformado, “Chama...” deu-lhe prosseguimento – até porque o cenário, infelizmente, não aliviara. As capas de ambos os discos dão essa ideia de inevitabilidade: em “Modo...”, Ivan aparece em uma foto azulada em que parece assustado, pois prestes a "se afogar" na "água", em “Chama...”, ao contrário, seu rosto quase em êxtase está sob cores quentes de fogo. Tanto um estado físico quanto outro simbolizando a tortura física, psicológica e emocional dos porões da ditadura. Seja num extremo ou noutro, água ou fogo, o mesmo grito. Assim, “Deixa eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”, da clássica "Deixa eu Dizer", do trabalho anterior, conecta-se diretamente com os então novos versos de “Não Há Porque”: “A espécie dessa vida é morte que se sente/ A espera se renova em todo poente/ Qual espuma vivo fraco, mas eu vou em frente”.

Neste duplo aniversário, de 80 de Ivan e de 50 de “Chama...”, muito se tem por comemorar, mas também por alertar. Um dos mais celebrados autores da música brasileira, admirado por gente como Quincy Jones, Sarah Vaughn, George Duke, Ella Fitzgerald e George Benson, merece todos os aplausos. O disco, o segundo de uma série de cinco trabalhos essenciais de Ivan dos anos 70, embora reflexo doloroso de uma época, guarda em si justamente esta qualidade: a de expressar-se corajosamente e num alto nível musical e poético. Porém, não há como olhar para trás e deixar de lembrar que, há cinco décadas, atrocidades estavam sendo cometidas pelo próprio Estado contra seus cidadãos. Isso jamais deve ser esquecido, e para que nunca mais se permita repetir é necessário manter a chama, ainda hoje, acesa. E “quem quiser discordar eu vou desconfiar”. Pra valer.


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FAIXAS:
1. "Sorriso da Mágoa" (Ivan Lins) - 4:41
2. "Nesse Botequim" (Lins) - 2:43
3. "Chama Acesa" (Lins, Paulo César Pinheiro) - 1:59
4. "Lenda do Carmo" (Lins, Vítor Martins) - 5:40
5. "Joana dos Barcos (Beira-Mar)" (Lins, Martins) - 2:37
6. "Ventos de Junho" (Lins, Martins) - 2:54
7. "Não Há Porque" (Lins, Ronaldo Monteiro) - 4:11
8. "Demônio de Guarda" (Lins, Martins) - 3:49
9. "Poeira, Cinza e Fumaça" (Lins, Pinheiro) - 3:20
10. "Palhaços e Reis" (Lins, Monteiro) - 4:33
11. "Corpos" (Lins, Martins) - 3:57

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Daniel Rodrigues

domingo, 1 de junho de 2025

cotidianas #865 - Os anjinhos

 



Pareciam um bando de abelhinhas aquelas crianças desembarcando do ônibus, pela agitação e pelo zunzunzum que faziam. Cada uma mais tagarela e serelepe que a outra, ainda excitadas pela novidade do passeio. Não que o museu de mineração da cidade vizinha fosse lá  grande coisa, mas como o mais longe que tinham ido até então tinha sido o parque municipal, na frente da igreja, a pequena excursão era algo quase de outro mundo.

- Estão agitados, hein. - comentei com o professor Paulo que coordenava a reentrada na escola.

- Ô!!! E como! - respondeu simulando uma fadiga e sorrindo.

- E como foi lá? - perguntei.

- Lá, tudo bem. O problema foi na estrada, já aqui perto, na entradinha da cidade. Um caminhão perdeu a direção, acho que os freios, não sei, e quase bateu no nosso ônibus.

- Nossa!!!

- Pois é. Se não fosse o Nestor ter feito lá uma manobra, um jeito que ele deu, estaríamos todos espalhados lá na estrada.

- E as crianças? - indaguei ainda impressionado.

- Nem perceberam! Estavam numa algazarra e quando o Nestor fez a manobra, disfarcei que tínhamos desviado de um animal ou algo do tipo.

- Que sorte, hein! Graças a Deus está todo mundo bem. - falei.

- Sorte, mesmo. - confirmou o professor afagando a cabeça da última criança que passava descendo do ônibus, conduzindo-a ao portão da escola - Bom, agora deixa eu entrar com eles que daqui a pouco os pais vem buscar.

- Ah, claro. Pode ir, professor. Eu já  vou indo. Já limpei o corredor como a diretora mandou, recolhi os brinquedos que estavam espalhados no pátio e guardei aquelas caixas no depósito.

- Tá bom, Zé. Vai lá. Nos vemos amanhã.

- Até, professor.

Botei minha bolsa sobre um dos ombros e peguei meu caminho. Era uns três quilômetros até em casa mas sempre fizera aquele caminho a pé. Gostava de ver as coisas, a prefeitura, a praça, a pontezxinha de madeira, as casas, cumprimentar o pessoal da cidade... Da escola pra minha casa dava uma meia hora. Passava a igreja, saía do centro velho, passava o riachinho, atravessava a estrada na entrada da cidade e já tava lá. Era perto de onde o professor contou que... Nem é bom pensar... Ai, Deus nos livre! Tanta criança.

Já estava perto. Passei a ponte do riacho, segui a trilhazinha, saí na estrada.

Vem um ônibus escolar. Bem parecido com o que tinha deixado as crianças lá há pouco tempo... No mesmo instante, lá de cima, emergindo de trás das árvores na curva, vem uma carreta, dessas de carga, longa. Ele vem muito rápido, muito rápido. Não vai conseguir parar. Parece que não consegue, não tem freios ou algo assim. Ela é preta como a morte.

Meu Deus!

O ônibus, o caminhão, as crianças... Não pode ser. Não pode ser.



Cly Reis 


quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os 25 melhores filmes dos primeiros 25 anos do séc. 21

 

Sofia Coppola, uma das 5 diretoras da lista
Transcorrido um quarto do século 21, já é possível, enfim, vislumbrar o que de melhor aconteceu no cinema neste período. E ao que se pode extrair de amostra desses 25 anos, o século da informação ou da pós-verdade ainda tem muito o que apresentar de bom. Afinal, foram 25 anos que o cinema viu o mundo se transformar. O 11 de setembro de 2001 foi o estopim para uma série de reconfigurações e a certeza de que não apenas o terrorismo se tornaria uma ameaça constante às nações como trazia a mensagem de que ninguém mais estaria seguro. Nem a razão mais está a salvo.

Reconfigurações, inclusive, econômicas. A China, então a “ameaça comunista”, enfim pôs em prática seu modelo de Capitalismo Socialista e se tornou a segunda potência do mundo. Além do enfraquecimento dos Estados Unidos (que Trump quer agora reverter a qualquer custo), a Rússia também adere de vez ao capitalismo, fortalecendo-se, porém com um ditador moderno à frente. Afora isso, guerras na Europa e no Oriente Médio, aquecimento global, polarização ideológica, avanço da extrema-direita, ecos do fascismo, crescimento dos movimentos migratórios, pandemia... Ufa! O que mais deve vir por aí? Angustia até de pensar.

Refletindo de forma direta ou não essas transformações, o cinema segue firme com produções que pululam de diversos lugares do mundo, seja nas Américas, África, Ásia ou na velha Europa. Mas com mudanças de cenário. Alguns polos se fortaleceram, como a América Latina de Argentina e Brasil. No Oriente Médio, o Irã, cada vez mais reprimido, continua mesmo assim a resistir e fazer um cinema de alta qualidade expressiva. Mas também Líbano, Palestina, Iraque, Israel, Arábia Saudita e outros.

A África é outro continente que despontou nestas duas décadas e meia. Embora não superem os aqui listados, é inegável que os países africanos, cujas descolonizações são ainda muito recentes, chegaram ao século 21 produzindo bastante, bem e em vários países, como Senegal, África do Sul, Mauritânia, Quênia, Uganda, Nigéria e outros. Títulos como "Black Tea" (2024), "Heremakono – Esperando a Felicidade" (2020), "Timbuktu" (2014) e "Atlantique" (2019), se não pareiam, deixam viva a esperança de ser ver na tela um cinema africano consolidado internacionalmente.

Em compensação, o cinema soviético, tão abundante e diverso em todo o século 20, fragmentou-se assim como o seu antigo território. E mesmo os Estados Unidos viram grandes alterações de rota. Os estúdios enfrentem novos desafios, como o streaming, a serialização e a “marvelização”. A dianteira da indústria cinematográfica estadunidense, até então sem precisar olhar para o retrovisor, passa a preocupar-se com o desgaste do imperialismo. Megaproduções como “Megalópolis” e “O Brutalista”, definitivamente, não representam mais o que representavam antes.

Além da afirmação de alguns realizadores, como Jordan Peele, Bong Joon-ho e o brasileiro Kléber Mendonça Filho, este começo de era confirma a excelência daqueles que já vinham contribuindo com suas obras para a construção dessa arte ao longo das últimas décadas – casos de Woody AllenClint Eastwood e Pedro Almodóvar. Assim, listamos 25 filmes representativos desses 25 primeiros anos, de 2001 até o ano atual. Não necessariamente um por ano, mas numericamente um símbolo que antecede os próximos 75 ainda a serem lançados e descobertos.

Alguns perguntarão, com justiça: “e as mulheres?” Sim, elas cada vez mais se tornam protagonistas. Justine Triet, Greta Gerwig, Sofia Coppola, Chloé Zhao, Samira Makhmalbaf, bem como as veteranas Jane Campion, Kathryn Bigelow e as que se foram recentemente Chantal Akerman e Claire Denis. Aqui, cinco delas figuram, mas tranquilamente poderia haver mais. Imagine-se quantas realizadoras ainda vêm por aí neste louco planeta em constante ebulição.

A relativa facilidade de se montar essa lista traz consigo certa irresponsabilidade e aquela velha questão: a incompletude. É possível abarcar tanta produção em apenas pouco mais de duas dezenas de títulos? Não deveria haver (e possivelmente caiba) muito mais pesquisa e aprofundamento? Estes são DE FATO os mais representativos, simbólicos ou melhores em qualidade fílmica? Perguntas sem respostas. Talvez, precise-se de mais um quarto de século ou mais para entender o que condiz ou não. Porém, num primeiro momento, estes foram os filmes que saltaram à memória, e isso, independente de um revisionismo ou limitantes, quer dizer, sim, alguma coisa. Se poderiam ser outros? Poderiam, mas tais obras certamente brigariam para estarem nesse rol. Quem sabe, os celebrados Gaspar NoéYorgos Lanthimos, Mati Diop ou Darren Aronofsky não pintem com aquele filmaço inquestionável ainda? Há tempo e competência para isso.

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01. “Parasita”, Bong Joon-ho (2019)

Definitivamente, o melhor filme dos últimos anos – e do século. O thriller do talentoso Bong Joon-ho arrebatou em 2019, por puro mérito, não apenas a Palma de Ouro em Cannes como, mais ainda, os Oscar de Filme e de Filme Estrangeiro! Um feito jamais igualado. “Parasita”, afinal, tem tudo o que um grande filme moderno pode: drama social, crítica ao capitalismo, humor ácido, suspense e, por vezes, toques de terror gore. Tudo numa direção absolutamente criativa, fotografia precisa, roteiro cheio de reviravoltas e atuações brilhantes. Tem mais da metade de século 21 para acontecer, mas não vai ser fácil equiparar com esta obra-prima sul-coreana que redirecionou o olhar do mundo no cinema.




02.
“A Cidade dos Sonhos”, David Lynch (2001)

Lynch nos deixou no último ano, mas legou uma obra tão marcante quanto explorável. Afinal, é dele o cinema mais misterioso já realizado em mais de 100 anos de arte cinematográfica. “A Cidade dos Sonhos” é, além de seu melhor neste século, possivelmente sua melhor realização, e olha que estamos falando de filmes como “Veludo Azul”, “Eraserhead” e “Coração Selvagem” neste páreo. Mas definitivamente a onírica e assustadora obra sobre a atriz que se muda para Los Angeles e tem sua memória e sonhos entrelaçados com a matéria da própria cidade é insuperável. Tanto que ocupa a 8ª posição no ranking de 250 filmes "The Greatest Films of All Time" da tradicional revista Sight & Sound e é considerado o melhor filme entre os 100 da BBC neste século, o qual mal começava e Lynch já dava as cartas.




03.
“Corra!”, Jordan Peele (2017)

Quando Jordan Peele estreou no cinema com “Corra!” já se sabia que ali nascia um ícone do cinema moderno. Negro, talentoso e com muita coisa a dizer, Peele surpreendeu o mundo do cinema – e o gênero de terror – com um filme que imediatamente foi elevado à categoria de obra-prima. Também pudera: a história do jovem fotógrafo Chris, que descobre uma sinistra rede de tráfico de negros para perturbadores finalidades rendeu ao diretor mais de 150 prêmios, incluindo o Oscar de Melhor Roteiro Original. “Corra!” redefine o terror no cinema. Em tempos de George Floyd, o terror não vem de fantasmas, zumbis, monstros ou extraterrestres. Vem de gente branca racista e supremacista.



04.
“Retrato de uma Jovem em Chamas”Céline Sciamma (2019)

Quanta delicadeza e força expressiva para contar uma história de algo que passou a ser um dos temas mais recorrentes dos tempos atuais, que é o LGBTQIAPN+, quando nem se pensava em classificar assim esses grupos. Céline Sciamma se esmera em contar a história de Marianne, uma jovem pintora francesa, no século 18, com a tarefa de pintar um retrato de Héloïse, com quem se vê cada vez mais próxima e atraída. As mesmas travas, os mesmos preconceitos, as mesmas opressões dos tempos atuais. Mas, otimistamente falando, a mesma possível liberdade de amar a quem se quiser mesmo que isso, necessariamente, gere consequências – ontem e hoje. Entre os diversos prêmios que "Retrato de Uma Jovem em Chamas" recebeu, o merecidíssimo César de Melhor Fotografia.



05. “Menina de Ouro”Clint Eastwood (2004)

O velho Eastwood, hein? À época, com seus 74 (hoje, quase centenário), depois de produzir sempre bem e bastante e de já ter posto seu nome na história do cinema norte-americano com filmes como “Bird” e o oscarizado “Os Imperdoáveis”, vem com essa obra-prima ao mesmo tempo delicada e pesada, triste e tocante. Tanto é que arrebatou a Academia em 2004, levando 4 dos 7 Oscar que concorreu: Melhor Filme, Diretor, Atriz e Ator Coadjuvante. A habilidade do experiente Eastwood em lidar com a luz e o mergulho nas sombras, seja no sentido estético quanto figurado, é de abismar. Impossível sair de uma sessão de “Menina de Ouro” sendo a mesma pessoa que entrou.

Clintão com a oscarizada Hillary Swank em um dos melhores filmes do século


06.
“O Pianista”, Roman Polanski (2002)

Daqueles filmes talhados a obra-prima. O tarimbado Polanski, cujo nome está gravado na história do cinema por filmes como “O Bebê de Rosemary”, “Chinatown” e “Cul-de-Sac”, acerta em tudo em “O Pianista”, uma obra pungente e necessária, inclusive para o próprio Polanski, judeu que perdera os pais no Holocausto. O filme venceu Palma de Ouro, Bafta e Cesar, mas o Academia do Oscar dos Estados Unidos, país onde Polanski é considerado fugitivo por um crime de estupro nos anos 70, não cedeu. Deu ao filme as estatuetas de Melhor Ator, Roteiro Adaptado e de Diretor, o qual o diretor recebeu e agradeceu via vídeo bem longe, na Europa. A de Filme, no entanto, não. A aclamação veio naturalmente.



07.
“O Segredo dos Seus Olhos”, Juan José Campanella (2010)

A Argentina já vinha preparando o terreno para que o mundo a reconhecesse como uma das principais produtoras do cinema da atualidade desde os anos 80. O Oscar de Filme Estrangeiro para “A História Oficial”, sobre a ditadura no país, já anunciava isso. Porém, o amadurecimento do cinema local e a formação de cineastas e profissionais do audiovisual colocaram o cinema a América Latina em real evidência no século 21 pela primeira vez. Ah! tem mais um fator a favor de "O Segredo dos seus Olhos", que se chama Ricardo Darín. O grande ator do novo cinema argentino é a cara dessa geração não poderia estar de fora daquele que é, mesmo com outros grandes concorrentes, o melhor filme da Argentina do século até aqui. Tanto que o Oscar de Filme Estrangeiro veio de novo, inevitavelmente. Naquele 2009, não teve pra ninguém com esse thriller que junta suspense, policial, romance, comédia e o velho dedo na ferida dos argentinos com a ditadura.



08.
“A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar (2011)

Almodóvar é aquele diretor que é tão talentoso, que pode se dar ao luxo de fazer filmes menos expressivos dentro daquele seu universo kitsch e absurdo para, do nada, criar uma obra-prima surpreendente. “A Pele que Habito”, além de contar com velhos parceiros (Antonio Banderas, Marisa Paredes, Jean-Paul Gaultier, Alberto Iglesias) é, sem dúvida, uma revitalização do cinema do próprio cineasta espanhol, o filme que o reinventou (como se não bastasse já haver se reinventado outras várias vezes anterior e posteriormente). Espécie de “O Médico e o Monstro” com ares da bizarrice que marca os roteiros de Almodóvar: sexo, culpa, vingança, problemas psicológicos. Uma ressignificação de obras anteriores como “Matador”, “Ata-me” e “Carne Trêmula”.



09.
“Onde os Fracos não têm Vez”, Joel e Ethan Coen (2007)

Se nos anos 90, os Coen já haviam realizado sua obra-prima, “Fargo”, nos 2000 o seu grande filme é “Onde os Fracos não têm Vez”. Quase um aperfeiçoamento de “Fargo” em alguns aspectos, seja na trama errática, na câmera observante, na presença de personagens amorais ou na estética inospitaleira, o filme troca o branco da neve do primeiro pela aridez dos tons terrosos do deserto. E também volta a explorar a fragilidade do humanismo diante da brutalidade da sociedade. E ainda tem aquele que é um dos mais assustadores e marcantes psicopatas da história do cinema, o assassino de aluguel Anton Chigurh, vivido brilhantemente por Javier Barden. Arrebatou 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante, além de ganhar três BAFTA, dois Globos de Ouro, American Film Institute e o National Board of Review of Motion Pictures.



10. “Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Katia Lund (2007)

Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e, agora, "Ainda Estou Aqui", se equiparem em importância a “Cidade de Deus” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria sem antes ter existido "Cidade..."? Fernando Meirelles, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso por conta do extraordinário filme, autoral, pop e inovador em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Internacional, mas como Filme e Diretor, outra porta que abriu para “Ainda Estou Aqui”.


11. “Bastardos Inglórios”, Quentin Tarantino (2009)

A última frase dita no filme, na voz do célebre personagem Aldo, o Apache (Brad Pitt) é: "acho que eu fiz minha obra-prima". Está certo que Aldo se referia ao ferimento a faca que marcou na testa do igualmente histórico personagem Cel. Hans Landa (Christopher Waltz), mas é inegável que a frase é propositalmente ali posta por Quentin Tarantino por este reconhecer, sem falsa modéstia, que havia chegado, sim, à sua melhor realização. Ao menos, a mais madura e a mais bem produzida entre todos os seus nove longas. Se “Pulp Fiction” marcou uma nova era do cinema de autor nos anos 90, nos 2000 não tem igual a "Bastardos Inglórios".  um bingo!"... é assim que se diz na América: "um bingo"? 



12.
“A Fita Branca”, Michael Haneke (2009)

É difícil escolher um Haneke, esse cineasta peculiar que desde os anos 80 produz um cinema marcado pelo olhar crítico dos padrões da sociedade ocidental e o consequente declínio da moral hegeliana. Porém, “A Fita Branca”, além de seu congelante p&b e as assustadoramente reais atuações dos atores mirins, tem a incisividade de identificar o "ovo da serpente", ou seja: os impulsos que levaram às Grandes Guerras, tão definidoras de caminhos do mundo no século 20, principalmente da Europa, Cannes, que não é boba, identificou a essencialidade do filme para a cinematografia moderna dando-lhe a inconteste Palma de Ouro de 2009.



13.
“Roma”, Alfonso Cuarón (2019)

Há quem o considere "Roma" o filme mais injustiçado do Oscar dos últimos tempos, visto que merecedor do de Melhor Filme Estrangeiro, que venceu, como também de Melhor Filme, dado naquele 2019 ao contestado "Green Book". A triste história da empregada Cleo na Cidade do México nos anos 70 é contada com um misto de poesia, realismo e fatalismo pelo diretor Alfonso Cuarón, que também roteiriza, produz, edita, fotografa e conduz a própria câmera num p&b capaz de reinventar memórias. E quão potente é a sutil alusão à antiga cidade italiana, berço da civilização moderna. Seria mesmo uma sociedade "civilizada"? Além do Oscar, levou Leão de Ouro em Veneza, Globo de Ouro, Bafta e Chritcs Choice.



14.
“Bacurau”, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)

O pernambucano Kléber Mendonça Filho realiza, sem sombra de dúvida, o cinema mais completo do Brasil nos últimos anos. Sua filmografia de longas é só acerto. Primeiro, “O Som ao Redor”. Depois, “Aquarius”, passando por este e o documentário “Retratos Fantasmas”. “Bacurau”, no entanto, é daqueles filmes sui generis, um faroeste sertanejo sobre limpeza cultural, resistência ao imperialismo e o império da violência. Um retrato do Brasil ameaçado pelo fascismo e pela consequente americanização das mentes. Com a edição característica e as marcas da maneira de filmar de Kléber (fusões, zoons, closes x planos abertos), tem na trilha e nas atuações naturais outras de suas forças. Por imperícia da Academia Brasileira de Cinema, não foi o escolhido para concorrer pelo Brasil ao Oscar de Filme Estrangeiro, feito que somente agora “Ainda Estou Aqui” atingiu. Se tivesse ido, tinha boas chances. O próprio Bong Joon-ho, vencedor dessa categoria com “Parasita”, disse que ‘Bacurau” “tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva.” É.



15. “A Vida dos Outros”, Florian Henckel von Donnersmarck (2006)

Retratos da Alemanha Oriental ainda hoje não são muito comuns no cinema. Talvez por vergonha do que acontecia de ruim do lado vermelho do Muro, talvez porque a vida fosse, de fato, muito monótona que não inspirasse filmes sobre aquela realidade. Este brilhante filme de Florian Henckel von Donnersmarck é, de certa forma, um pouco dessas duas coisas: uma mostra de que não era uma maravilha a vida sob o regime socialista alemão e que, sim, os dias não tinham muito sabor. Ao vigiar 24 horas a vida do escritor Georg Dreyman e de sua namorada a mando do governo, o militar Gerd Wiesler começa aos poucos a se dar conta da existência do amor, do companheirismo e da dor existencial de viver num país coercitivo e punidor que ele mesmo ajudava a manter. "Abaixo às ditaduras", sejam elas do lado que for. Oscar, César, British Academy e Donatello de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros, "A Vida dos Outros" foi apontado pela revista National Review como o "O Melhor Filme dos Últimos 25 anos". Não podemos estar tão errados em elencá-lo também.

Memorável filme de von Donnersmarck reflexiona aquilo que o séc. 20 não ousou,
que é a crítica à ditadura - inclusive, as de esquerda


16.
“O Regresso”, Alejandro González Iñárritu (2015)

Iñarritu apareceu para o mundo do cinema no seu México natal, mas em seguida foi absorvido pela indústria dos Estados Unidos. Entre erros e acertos, completou sua trilogia iniciada em “Amores Perros” com “21 Gramas” e “Babel”, derrapou no confuso “Biutiful” e conquistou o Oscar com o ousado “Birdman”. Mas foi na narrativa tradicional de "O Regresso", ao contar a história real de vingança do personagem Hugh Glass, num inóspito Oeste norte-americano do século 19, que o cineasta foi só acerto. Teve como aliados, bem verdade, Leonardo DiCaprio atuando e Ryuichi Sakamoto na trilha. E a cena do ataque do urso?! O que é aquilo?! Só ela, já valia.



17.
“Zona de Interesse”, Jonathan Glazer (2024)

Somente a abertura do filme, com quase 1 minuto de tela preta sobre um som tenso, insistente e inconclusivo, já demostra a personalidade deste impactante filme. Difícil, aliás, encontrar alguém que não guarde o impacto que o filme lhe causou ao mostrar com crueza a comparação entre desumanidade e a normalidade da vida de uma abastada família alemã vizinha do campo de concentração de Auschwitz. “Zona de Interesse” não tem, inclusive, muito enredo. E um roteiro de poucos acontecimentos, que se presta a evidenciar sem filtros a perversidade humana. Filme que encerra a linha de títulos pós-Segunda Guerra inaugurado simbolicamente em 1947 com “Alemanha Ano Zero”, de Roberto Rosselini. O Oscar de Melhor Filme Internacional era-lhe certo, como de fato foi.



18.
“Match Point”, Woody Allen (2024)

Woody Allen é como Paul McCartney ou Caetano Veloso na música: não precisa provar nada depois do que já realizou. O cineasta dos geniais “Manhattan”, “Hannah e suas Irmãs”, “Crimes e Pecados” e outros já deixou sua contribuição para a história do cinema há muito tempo. Mas ele entrou os anos 2000 produzindo. E bastante. Após um período um tanto oscilante em termos de qualidade, Allen vem com este filme surpreendente, que começa parecendo uma comédia romântica, vira um drama, passa a ser um policial, até tornar-se um suspense eletrizante. Há outros de Allen de até mais sucesso deste período, como “Vicky Cristina Barcelona”, “Para Roma com Amor” e o queridinho “Meia-Noite em Paris”, mas nenhum bate “Match Point”, um filme único em sua extensa filmografia.



19.
“Melancolia”, Lars Von Trier (2011)

Lars Von Trier surgiu na Dinamarca dos anos 80 com um cinema autoral, criou e passou pelo Dogma 95 nos anos 90, chegou a Hollywood nos anos 2000 e tornou-se uma lenda viva do cinema mundial. “Melancolia”, seu 22º longa, parece arrecadar todas essas experiências, mas de uma maneira ainda assim particular. Estão nele o cinema de arte dos primeiros filmes, a câmera na mão e a montagem naturalista do Dogma e a convocação de grandes astros (Kirsten Dunst, Kiefer Sutherland, Charlotte Gainsbourg). Mas mais do que isso: "Melancolia" tem uma narrativa absolutamente instigante em uma ficção científica que faz uma metáfora da insustentabilidade dos cansados padrões sociais. O que isso resulta? Em catástrofe. Questionamentos urgentes que os novos tempos de pós-verdade exigem.



20. “O Pântano”, Lucrecia Martel (2001)

O cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como o de Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Exímio em expressar esse universo, “O Pântano” fala sobre duas famílias que, em meio a um verão infernal na cidade de La Cienaga, entram em conflito. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeinizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


21.
“Holy Spider”, Ali Abbasi (2022)

Asghar Farhadi, Jafar Panahi, Mohammad Rasoulof, Nafiseh Zare e Peivand Eghtesadi são todos realizadores iranianos com grandes obras e que mantêm o alto nível do cinema deste complicado país islâmico. Outro cineasta, Ali Abbasi, no entanto, foi quem produziu aquele que pode ser considerado o mais impressionante filme desta safra do século 21 no Irã. "Holy Spider" acompanha a aterrorizante história real do serial killer mais temido do Irã, "Spider Killer", que atuou entre os anos de 2000 e 2001, vitimando 16 prostitutas em nome de uma jornada "espiritual" de limpar a cidade da corrupção e imoralidade. Este thriller policial desvela uma série de padrões sociais muito arraigados na sociedade islâmica com os quais a jornalista Arezoo Rahimi precisa se deparar. O anseio pela mudança da condição da mulher vem novamente à tona como em diversos outros filmes iranianos. Porém, parece que algo está evoluindo – mesmo que ainda seja mais vontade que realidade. 



22.
“Encontros e Desencontros”, Sofia Coppola (2003)

Pode-se contar nos dedos os cineastas que, de largada, fizeram seu melhor filme. Nem Renoir, nem Pasolini, nem Ophuls, nem Wilder, nem Kubrick. Nem mesmo Francis Ford Coppola, pai de Sofia que, esta sim, conseguiu tal feito. “Encontros e Desencontros”, o apaixonante e originalíssimo romance passado numa Tóquio tão populosa quanto inóspita, é um marco do cinema feminino neste século. Referências a Ozu, a Tati, a Tarkowsky, a Wenders. Mas, principalmente, a própria Sofia, que formula um cinema com a sua cara: profundo, plástico e autoral. Um dos grandes vencedores do Globo de Ouro daquele ano, ganhou como Melhor Filme em Comédia ou Musical, Ator em Comédia ou Musical (Bill Murray) e Roteiro, categoria na qual foi também premiado no Oscar. Que debut!



23.
“Drive my Car”, Ryūsuke Hamaguchi (2021)

Contar bem uma história é a essência do cinema. Agora, contar bem uma história longa e cheia de detalhes e encadeamentos sem perder a fruição é digno de aplauso. É o que o cineasta Ryūsuke Hamaguchi fez ao adaptar para a tela o conto do renomado escritor japonês Haruki Murakami. Em suma, embora todos os minutos das praticamente 3 horas de duração de "Drive my Car" sejam totalmente aproveitáveis, o filme nada mais é do que a narração da história de duas pessoas solitárias que encontram coragem para enfrentar o seu passado. Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, não teve pra outros em 2022. O Japão, aliás, sempre tão essencial para o cinema, segue rendendo bons frutos. Filmes como “Assunto de Família”, “Pais e Filhos” e “Monster” bem podiam estar aqui também.



24.
“O Cavalo de Turim”, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (2011)

O velho fazendeiro Ohlsdorfer e sua filha dividem um cotidiano dominado pela monotonia. A realidade dos dois é observada pela vista da janela e as mudanças são raras. Enquanto isso, o cavalo da família se recusa a comer e a andar. O filme é uma recriação do que teria ocorrido com o animal após ter sido salvo da tortura pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche durante uma viagem a Turim, na Itália. Este "épico do nada" foi o canto-do-cisne do aclamado diretor húngaro Béla Tarr, que disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Takes longos, poucos diálogos, trilha econômica e plasticidade carregada e altamente poética, marcas que Tarr dividiu a direção em sua última obra com a esposa e constate colaboradora Ágnes Hranitzky. Prêmio FIPRESCI e do Grande Júri em Berlim.



25. “Ainda Estou Aqui”, Walter Salles Jr. (2024)

Muito se falou nos últimos meses do filme que, enfim, conquistou o tão almejado Oscar para o Brasil. Somente por isso, o longa de Walter Salles já garantiria seu posto entre os mais importantes deste quarto de século 21 ao recolocar a América do Sul no mapa mundial da indústria do cinema. Porém, "Ainda Estou Aqui" é mais do que somente sua simbologia. De um roteiro cirúrgico e atuações marcantes, principalmente da oscarizável Fernanda Torres, tem o poder de tocar o espectador e de saber contar com sensibilidade uma história real e tão universal, que trata, antes de tudo, sobre liberdade. Além do Oscar e do Globo de Ouro para Fernandinha, vários prêmios de fina estirpe assinalam isso, como Veneza, Goya e Miami.

E fechamos com Fernandinha, que fez história no cinema brasileiro (e latino-americano)
neste final de primeiro quarto de século 21

PS: Mesmo não incluídos na lista acima, merecem “menção honrosa” estes outros 25, pois são todos excelentes filmes, que bem podiam estar ali: 

“Pina” (Win Wenders, 2011)
“Senhores do Crime” (David Cronenberg, 2007)
“Assunto de Família” (Hirokazu Koreeda, 2018)
“Edifício Master” (Eduardo Coutinho, 2002)
“Três Anúncios para um Crime” (Martin McDonagh, 2017)
“Moonlight” (Barry Jenkins, 2016)
“Sangue Negro” (Paul Thomas Anderson, 2007)
“Infiltrado na Klan” (Spike Lee, 2018)
“Interestelar” (Christopher Nolan, 2017)
“Film Socialisme” (Jean-Luc Godard, 2009)
“Visages, Villages” (Agnès Varda e JR, 2018)
“O Clã” (Pablo Trapero, 2015)
“A Separação” (Asghar Farhadi, 2011)
“Gran Torino” (Clint Eastwood, 2008)
“Assassinos da Lua das Flores” (Martin Scorsese, 2023)
“O Lobo de Wall Street” (Scorsese, 2013)
“Cópia Fiel” (Abbas Kiarostami, 2010)
“Elefante” (Gus Van Sant, 2003)
“Ela” (Spike Jonze, 2013)
“Eu, Daniel Blake” (Ken Loach, 2016)
"Kill Bill - vol. 1” (Quentin Tarantino, 2003)
“Irreversível” (Gaspar Noé, 2002)
“Nomadland” (Chloé Zhao, 2020)
“Anatomia de uma Queda” (Justine Triet, 2023)
“Triângulo da Tristeza” (Ruben Östlund, 2022)


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" (1985)

 


"Só quem não amar os filhos/ Vai querer dinamitar os trilhos da estrada/ Onde passou passarada/ Passa agora a garotada, destino ao futuro".
Da letra de "Roque Santeiro, O Rock"

Os anos 80 foram de instabilidade na carreira de Gilberto Gil. Assim como com seus companheiros de Tropicalismo Caetano Veloso e, ainda mais, Tom Zé – este, relegado a um ostracismo graças a Deus interrompido tempo depois – a década com a pecha de "perdida" parece ter influenciado com seu mau agouro os consagrados músicos da MPB. O BRock de Legião Urbana, Barão Vermelho, Blitz, Titãs, Lobão, RPM e outras bandas da época ocupavam as rádios, o que, somado com o que vinha de fora, quase não deixava espaço para o "produto nacional". 

Gil, exímio compositor que é, até emplacou sucessos no começo da década de 80. "Andar com Fé" e "Vamos Fugir" tocaram bastante, é bem verdade. Em compensação, seus álbuns passavam longe de terem a mesma regularidade e reconhecimento de crítica e público frente a seus clássicos dos anos 60 e 70, como o disco de 1968, "Expresso 2222", de 1972, ou a revolucionária trilogia "Re" ("Refazenda"/"Refavela"/"Realce", 1975, 1977 e 1979 respectivamente). Também, o baiano tentara, por duas vezes quase sequentes, entrar no mercado norte-americano. Ao contrário de alguns de seus pares, como Djavan, Ivan Lins, Tânia Maria e Milton Nascimento, ele não obteve o êxito esperado e se recolheu ao nicho já conquistado: o Brasil. O destino, no entanto, reservaria mais um abalo ainda maior a Gil naquele final de década de 80: o filho Pedro, baterista de sua banda desde 1984, se acidentaria de carro no Rio de Janeiro e morreria em janeiro de 1990. Aos 19 anos.

Mas os tropicalistas têm uma vantagem sobre outros artistas da música brasileira, mesmo para com os da mesma estirpe: eles ditam tendência. E se nos anos 80 a tendência estava posta pela indústria, então o negócio era passar a ratificá-la. Como já vinha ocorrendo desde os Mutantes, Gil e Caetano tornaram-se totens de certificação a toda a geração mais jovem, de A Cor do Som a Chico Science & Nação Zumbi. "Dia Dorim Noite Neon", lançado por Gil em 1985 para comemorar os 20 anos de carreira e que completa 40 em 2025, além de trazer excelentes composições, estabelece essa consciência quase benta do velho artista para com os súditos. Porque, sim: o rock brasileiro deve muito a MPB, ao contrário do que já se tentou negar ou esconder. Um privilégio que só o Brasil tem, mas algo desqualificado pela imprensa por muito tempo.

A bela vinheta de abertura e encerramento, "Minha Ideologia, Minha Religião", traz o violão dedilhado de Gil e seu vocal acompanhando as vozes infantis em coro, que cantam uma prece universal de pureza aos deuses para iniciar a jornada – e, lá na última faixa, agradecer pela mesma. Logo na sequência, vem o hit do disco, o reggae "Nos Barracos da Cidade", um canto de contestação social de um Brasil recém saído da ditadura. “Barracos”, seu subtítulo, abriria também portas a outra música com características parecidas e de ainda maior sucesso, que é "Alagados", marco do pop rock brasileiro, gravada pelos Paralamas do Sucesso com Gil um ano depois no mesmo estúdio, Nas Nuvens.

Sem muito respiro, Gil emenda o rockasso "Roque Santeiro, o Rock", um hard rock enfezado de dar inveja a muita bandinha poser que esteve no Rock in Rio naquele ano. Gil que, aliás, havia feito uma apresentação histórica no festival meses antes com a mesma banda mas ainda com o repertório do disco anterior, "Raça Humana". Na música em questão, a excelente produção do mutante Liminha dá protagonismo à bateria potente de Pedro Gil e à guitarra de outro e original mutante, Sérgio Dias, sintonizado com a sonoridade que o vanguardista produtor norte-americano Bill Laswell estava se apropriando e que cristalizaria no referencial "Album", da Public Image Ltd., de um ano depois. Ou seja: era o auge do rock'n’roll na mídia dos anos 80.

Gil e o filhão Pedro, falecido anos depois, mas 
fundamental para a atmosfera rocker de "Dia Dorim..."
Captando todas essas pulsões, inclusive o sucesso popular da novela de Dias Gomes de mesmo nome que rodava à época na Globo, Gil se vale de sua experiência e visão tropicalista para escrever uma música altamente simbólica para aquele período. Ele sintoniza, com olhar sábio, generoso e até paternal aquilo que a juventude ansiava, do esporte radical a uma nova compreensão da religiosidade. ”Deixa ele tocar o rock/ Deixa o choque da guitarra tocar o santeiro/ Do barro do motocross/ Quem sabe ele molde um novo santo padroeiro", diz a letra. Tudo isso, claro, simbolizado na potência do rock. O filho Pedro, aliás, é fundamental neste processo. Rapaz cheio de vitalidade, foi ele quem motivou o pai a entrar na onda roqueira. Gil identificava nele um representante daquela geração a qual faz referência na música, como os Paralamas, Ultraje a Rigor, Titãs e Lobão. Era como se dissesse: "Meus filhos musicais, eu abri caminho pra vocês lá atrás. Agora, é com vocês, mas eu estarei aqui, sempre perto".

Atentando também à cena pop do momento de nomes como Marina, Zizi Possi e Vinícius Cantuária, Gil diminui a rotação e traz a bela 'Seu Olhar", que conta com a guitarra do "Paralama" Herbert Vianna antes deste se tornar seu parceiro em "A Novidade", o que ocorreria meses depois no celebrado "Selvagem?", terceiro disco da banda. A faixa antecede a bossa-nova introspectiva "Febril", das melhores e mais desconhecidas canções do repertório gilbertiano. Espécie de reverso de 'Palco", que exorciza os males do mundo no instante sagrado do encontro do músico com o público, "Febril", ao contrário, revela o lado solitário da existência do artista, a qual pode imperar mesmo diante de uma vasta plateia. "Tanta gente, e estava tudo vazio/Tanta gente, e o meu cantar tão sozinho". Gil e sua profundidade capaz de revelar o avesso das coisas.

A próxima faixa vem noutra sintonia, mas sem perder coerência com a atmosfera pop do álbum: o french-afoxé "Touches Pas A Mon Pote". Noutra excelente produção de Liminha, Gil, dono de um francês impecável, ressignifica, nos ritmos essencialmente afro-brasileiros, a África francófona, ou seja, Senegal, Benin, Costa do Marfim, de onde parte dos escravos vieram para o Brasil e a sua Bahia séculos antes. Esta primeira aproximação simbólico-sonora Brasil-França de Gil, vista em uma série de canções dele a partir de então, o próprio redimensionaria 23 anos depois em outra música igualmente cantada na língua de Hugo (mas também de Mbougar Sarr): "La Renaissance Africaine", originalmente do disco “Banda Larga Cordel”.

O lado B do vinil começa com mais uma agitada, mas desta vez sob a batida do funk: "Logos Versus Logo". Sob inspiração da sonoridade típica do pop soul da época de Prince, Marcus Miller, Patti LaBelle e outros artistas – bateria eletrônica, baixo em slaps, guitarra suingada e ritmo soul –, Gil aborda o papel de resistência do poeta no mundo capitalista, problematizando a questão com poesia e lucidez. Outra música que, assim como “Febril”, é de suas melhores mas também das mais esquecidas. E que bela letra: "E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo". Só que Gil não se presta a simplesmente copiar o som da moda tocado nos Estados Unidos: ele o enriquece. Como poucos ousavam fazer naqueles idos de embate "rock x MPB", o baiano, do meio para o fim da faixa, adiciona-lhe percussões de samba, fundindo de forma empolgante o ritmo mais brasileiro de todos ao groove do funk. Pouco tempo depois, Lobão, Os Engenheiros do Hawaii e The Ambitious Lovers fariam semelhante. 

Com a autoridade de um dos pioneiros do reggae no Brasil, Gil traz um outro ainda mais raiz do que “Barracos”: “Oração Pela Libertação da África Do Sul”. Mais uma de teor espiritualista mas que, desta vez, clama por outro problema social que o mundo vivia naquele então, que era o Apartheid na África do Sul, o regime de segregação que retirou os direitos da população negra do país. Valendo-se da força de resistência e denúncia que o ritmo do ídolo Bob Marley carrega, Gil torna a atuar politicamente através da música, unindo-se, neste caso, ao movimento global de solidariedade com a luta anti-Apartheid, que aumentou a conscientização sobre a injustiça dessa política e ajudou a impulsionar a mudança 5 anos depois com a queda do regime.

Voltando ao pop, na sofisticada “Clichê Do Clichê” Gil conta com a parceria do já mencionado amazonense Vinícius Cantuária, à época estourado nas rádios com o hit “Só Você”. Ligações com “Touches...” nas diversas referências à cultura francesa, como Brigitte Bardot, Jean-Paul Belmondo e o cinema francês. Quase fechando o disco, a música que justifica a referência à personagem Diadorim do título: “Casinha Feliz”. Esse doce xote sertanejo (visivelmente uma inspiração para “Madalena”, gravada com sucesso por Gil em “Parabolicamará”, de 1992) contém os versos motivados pelo universo de Guimarães Rosa: “Onde resiste o sertão/ Toda casinha feliz/ Ainda é vizinha de um riacho/ Ainda tem seu pé de caramanchão”. E completa: “De dia, Diadorim/ De noite, estrela sem fim”.

Encerrando, outra belíssima composição, esta, do amigo Jorge Mautner. “Duas Luas” fecha com a poesia lírica e estelar própria do “maldito” num ijexá moderno, a se ver pelo elegante sax solo de Zé Luis. ”Estou adorando andar pelas ruas/ Como quem não quer nada/ Debaixo do sol/ Debaixo das luas/ Que são mais de duas”, numa referência às luzes de neon que também compõe o título deste disco precioso.

Num período em que vinha um tanto inconstante, “Dia Dorim Noite Neon” ajustou a rota e elevou novamente a régua de Gil diante da própria obra. E muito se deve ao vigor contagiante de Pedro Gil, que deixou este plano bem cedo, mas não antes de reenergizar seu próprio pai com o espírito do rock. Vieram, na sequência, “O Eterno Deus Mu Dança”, de 1989, álbum de estúdio em que aproveita algumas receitas do antecessor, a trilha do filme “Um Trem para as Estrelas”, em inédita parceria com Cazuza, e dois ótimos discos ao vivo: “Live in Tokyo” e “Gilberto Gil em Concerto”, todos os três de 1987. Mas “Dia Dorim...” pode tranquilamente ser considerado seu melhor trabalho em toda aquela década. Antenado com seu momento histórico em letras, melodias, atmosfera e sonoridade, mas sem soar datado como muita coisa dos anos 80 – a começar pelo próprio álbum anterior, “Raça Humana” –, o disco serviu, inclusive, para ajudar a quebrar preconceitos entre música popular e o então fortalecido rock, como se o primeiro fosse coisa de velho e o segundo de jovens. Sem divisar. O Rappa, Planet Hemp e Skank são fruto dessa mentalidade arejada nos anos 90. 

Gil provou que, como diz na vinheta do disco, sua forma de pensar/ser é aceitar a impermanência das coisas e conectar-se à espiritualidade. No caso, a igreja do rock. "Outrora, o reino do Pai/ Agora, o tempo do Filho com seu novo canto." Esse tal de rock'n'roll pode até ser coisa do diabo, mas também sabe muito bem ser divino.

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FAIXAS:
1. “Abertura: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:26
2. “Nos Barracos Da Cidade (Barracos)” (Gilberto Gil, Liminha) - 4:11
3. “Roque Santeiro, O Rock” - 4:25
4. “Seu Olhar” - 4:02
5. “Febril” - 3:41
6. “Touches Pas A Mon Pote” - 3:45
7. “Logos Versus Logo” - 3:05
8. “Oração Pela Libertação Da África Do Sul” - 3:28
9. “Clichê Do Clichê” (Gil, Vinicius Cantuária) - 4:20
10. “Casinha Feliz” - 3:14
11. “Duas Luas” (Jorge Mautner) - 3:32
12. “Final: Minha Ideologia, Minha Religião” – 0:25
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
Gilberto Gil - "Dia Dorim Noite Neon" 


Daniel Rodrigues