Um perigoso autoengano pairava no ar no Brasil de 1974. Após os anos de linha-dura de Médici, o governo militar passava para as mãos do General Ernesto Geisel aventando começar uma abertura política. Uma esperança. Desde o AI-5, em 1968, intensificavam-se a violência de Estado, a repressão, a censura prévia, os desaparecimentos, as prisões e o silenciamento das vozes oponentes. Havia de se ter um alento com a troca do comando. Afinal, lutar cansa. Infelizmente, não foi o que se sucedeu. Tanto que, depois se viu, precisaram-se de mais 11 anos para que a democracia voltasse efetivamente e a mão pesada da ditadura se manteve ainda muito ativa e sangrenta naquela metade dos anos 70. Estava claro: eles não iriam entregar o país de bandeja após o terem tomado pela força 10 anos antes com todos os custos que isso carrega. E se se nutria alguma ilusão de arrefecimento, o assassinato brutal do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, não deixou dúvidas de que os milicos estavam, sim, longe de baixar as armas.
Um dos que não se iludiu com a promessa de melhora no contexto político brasileiro de então foi Ivan Lins, um dos deuses da MPB, que chega hoje a 80 anos de vida. Já consagrado na voz de Elis Regina em 1970, com "Madalena", e um dos reconhecidos novos talentos do Movimento Artístico Universitário (MAU), Ivan levou, no entanto, alguns anos para se desfazer da imagem conformista - a qual talvez até hoje persista para alguns em certa medida. Muito por conta da música “Esse É o meu País”, que fez um inconveniente sucesso naquele mesmo ano, o que soava para a esquerda como uma piada sem graça do pior período de ditadura que o país vivia. Resultado? “Cancelamento”. Mas o filho musical de Tom Jobim e Milton Nascimento, melodista e harmonista sofisticado e de raro talento, àquela altura já havia entendido o lugar que devia ocupar. Sem medo da vigília seja do poder ou da oposição, em 1974 ele aciona o "Modo Livre", ao mesmo tempo nome de sua banda e de seu LP daquele ano, o que se torna, igualmente, o começo de uma nova fase na carreira: crítica, denunciativa, combativa – mas não menos poética e musical.
Esse espírito liberto deu a Ivan a certeza de que era momento de seguir com as armas em punho diante daquele cenário opressivo. Era necessário manter, como dizem, a “Chama Acesa”, justamente o nome do efervescente álbum que lançava em dezembro de 1975 pela gravadora RCA e o qual, assim como Ivan, faz também aniversário de data fechada em 2025, completando 50 anos. Valendo-se de sua maravilhosa musicalidade e de sensíveis letras, ele retoma o caminho aberto em “Modo Livre”, porém com importantes acréscimos, que vêm para intensificar a potência de seu corajoso discurso, agora ainda mais ardente. O principal deles é o estabelecimento definitivo da maior parceria de sua carreira, a com Vitor Martins. O letrista, que havia assinado com ele no trabalho anterior a simbolicamente intitulada “Abre Alas”, iniciando a parceria, agora responde por quase a metade das faixas do disco, dando não apenas unidade poética à obra como, principalmente, revelando o nascimento de uma das mais afinadas duplas da música popular brasileira contemporânea criadora de clássicos como “Um Novo Tempo”, “Cartomante”, “Começar de Novo”, “Vitoriosa”, "Iluminados" e “Lembra de Mim”, estas três últimas, temas de novelas da Rede Globo.
Em “Chama...” já era possível ver cristalizada a afinidade musical Ivan/Martins numa sequência vertiginosa: "Lenda do Carmo", totalmente referenciada na sonoridade de Milton Nascimento/Clube da Esquina; "Joana dos Barcos", bossa nova onírica e contística; e "Ventos de Junho'", que fecha essa sequência “mineira” com versos preocupados: “E hoje, horizontes farpados, soleiras/ Trancas, tramelas, porteiras/ Que nos caminhos de Minas/ Não abrem mais”. Nem uma vírgula era desaproveitada para se dar o recado.
A contundência maior, porém, vem no espetacular afoxé “Demônio de Guarda” ("Você vigia meus sonhos/ Me dá cachaça e as noites de orgia/ Você me dá a preguiça/ Me dá a conversa vadia de esquina/ Pra depois me jogar a polícia em cima") e, principalmente, em "Corpos", que encerra o disco dando o tom de gravidade que aqueles tempos exigiam. Dois títulos que, afora suas letras e a forma expressiva da interpretação, já dizem por si. Quanta audácia titular “Corpos” uma música para finalizar uma obra lançada menos de 2 meses depois da escandalosa morte por tortura de Herzog cuja foto do corpo falsamente enforcado tornou-se um símbolo da luta pela democracia! A letra, aparentemente amorosa, na verdade, não deixa por menos em denunciar o barbarismo e o calamento: "Existem mais corpos/ Ou vivos, ou mortos/ Entre eu e você/ Procure saber, procure em mim/ Procure em você/ Procure em todos/ Na lama, no lodo/ Na febre, no fogo".
Contudo, Ivan sabiamente mantém também outros valiosos parceiros de antes, como com o craque Paulo César Pinheiro e o primeiro deles, Ronaldo Monteiro. Ambos, igualmente indignados com o terror da ditadura e o cerceamento das liberdades, usam suas fervorosas poéticas para o mesmo fim: denunciar. Mas, claro, fazem com erudição e inteligência. Com Pinheiro, que assinara com Ivan um ano antes "Rei do Carnaval", tema de abertura de “Modo Livre”, agora retoma com nada menos que a devastada (e devastadora) faixa-título: "Você está parado na estrada/ Contemplando toda a redondeza/ Atrás a cidade assustada/ Na frente a cruel fortaleza". É deles também a etílica "Poeira, Cinza e Fumaça", balada desesperançada com “versos comuns de desgraça”. Quanto exercício literário para fazer poesia de resistência sem que a censura percebesse!
Com Ronaldo, igual sintonia. Parceiros desde o início da carreira de Ivan, agora eles vêm com “Palhaços e Reis”, que traz a metáfora circense e/ou carnavalesca para criticar o circo político da ditadura a qual Ivan aproveitaria novamente em trabalhos seguintes, como na faixa-título de “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, do disco deste mesmo nome, de 1977, e subtitulada “É O Circo de Novo”, ou “Cantoria”, de “Nos Dias de Hoje”, de 1978. Os versos não deixam entender outro sentido, que não este mesmo: "Olha, morena/ Me dói, me dá pena/ Saber o que a vida nos faz/ Destrói, desacata/ Maldiz e maltrata/ O ano inteiro".
Tão cáustica quanto é a bossa nova "Não Há Porque", igualmente com Ronaldo, cujo abrasivo solo de flauta acompanha o sufocante encadeamento, que amontoa progressivamente rimas num crescendo a cada verso: “Do estado desse mundo Deus está ciente/ Na espreita sobrevivo até comicamente/ Os efeitos vêm a público amargamente/ Um estranho ao me ver, percebe claramente.” Se um estranho percebia tamanha inconformidade, imagine-se os milicos! Que afronta! E o jeito fervoroso, quase furioso de Ivan cantar, faz a música ficar ainda mais ardente.
![]() |
| Ivan, ao fundo com Vitor Martins e Gilson Paranzetta, essenciais para manter acesa a chama do inconformismo |
Impressiona o quanto Ivan estava imbuído de aproveitar cada verso, cada palavra, cada pronúncia, para manifestar inconformismo, seja em forma de afronta, indignação, medo, ameaça, revolta ou melancolia. "Nesse Botequim", samba-canção na linha de outros que comporia mais adiante (“Esses Garotos”, “Saindo de Mim”, “Qualquer Dia”), é de uma tristeza corrosiva. Aliás, como muitos compositores manifestavam através de suas músicas à época, a se ver pelas penosas “Chegadas e Partidas”, de Milton/Fernando Brant, “Samba de Orly”, de Chico Buarque, ou "Café", de Egberto Gismonti. Doloridas. "Nesse Botequim" se vale da imagem do espaço popular onde as pessoas deveriam ser felizes, mas que, naquele estado de coisas, não ocorria bem assim. “Nas portas desse botequim/ Passaram tempos antigos/ Passaram sonhos, amigos/ Passaram crimes, castigos”. Ou seja: o “botequim” era, metaforicamente, o Brasil onde passavam “barbas, batinas” e, pior, “mãos assassinas”. E no final Ivan ainda evoca Tom Jobim, porém ressignificando a brejeira “Águas de Março” ao destacar-lhe apenas os versos iniciais: "É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho". É: era pau, era pedra, era solidão.
Se “Modo Livre”, que abriu caminho para o Ivan engajado e inconformado, “Chama...” deu-lhe prosseguimento – até porque o cenário, infelizmente, não aliviara. As capas de ambos os discos dão essa ideia de inevitabilidade: em “Modo...”, Ivan aparece em uma foto azulada em que parece assustado, pois prestes a "se afogar" na "água", em “Chama...”, ao contrário, seu rosto quase em êxtase está sob cores quentes de fogo. Tanto um estado físico quanto outro simbolizando a tortura física, psicológica e emocional dos porões da ditadura. Seja num extremo ou noutro, água ou fogo, o mesmo grito. Assim, “Deixa eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”, da clássica "Deixa eu Dizer", do trabalho anterior, conecta-se diretamente com os então novos versos de “Não Há Porque”: “A espécie dessa vida é morte que se sente/ A espera se renova em todo poente/ Qual espuma vivo fraco, mas eu vou em frente”.
Neste duplo aniversário, de 80 de Ivan e de 50 de “Chama...”, muito se tem por comemorar, mas também por alertar. Um dos mais celebrados autores da música brasileira, admirado por gente como Quincy Jones, Sarah Vaughn, George Duke, Ella Fitzgerald e George Benson, merece todos os aplausos. O disco, o segundo de uma série de cinco trabalhos essenciais de Ivan dos anos 70, embora reflexo doloroso de uma época, guarda em si justamente esta qualidade: a de expressar-se corajosamente e num alto nível musical e poético. Porém, não há como olhar para trás e deixar de lembrar que, há cinco décadas, atrocidades estavam sendo cometidas pelo próprio Estado contra seus cidadãos. Isso jamais deve ser esquecido, e para que nunca mais se permita repetir é necessário manter a chama, ainda hoje, acesa. E “quem quiser discordar eu vou desconfiar”. Pra valer.






























