"Abrindo todas as pennas/ Das suas azas serenas/ Sobre o negro soffredor,/A Liberdade esperada/ Foi assim como uma fada/ Que allivio lhe deu á dôr" É com a poesia negra de Lino Guedes, de 1936, que, resistindo a açoites e chibatadas, o MDC de hoje celebra o Dia da Consciência Negra. Poetas tanto quanto, Arthur Verocai, Jim Morrison, Azymuth, The Ambitious Lovers, Chico Science, Ronaldo Bôscoli também clamam por Palmares. O grito na mata se ouvirá às 21h, na quilomba Rádio Elétrica. Produção, apresentação e senhor das demandas: Daniel Rodrigues
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
domingo, 7 de agosto de 2022
Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)
Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem.
Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo.
“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil.
A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito.
Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso
Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).
Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”.
Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.
Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”.
Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova.
Caetano acompanhado de Brown e Moreno na turnê de "Estrangeiro", em 1989 |
Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.
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sexta-feira, 6 de agosto de 2021
Ryuichi Sakamoto – "Neo Geo" (1987)
Quando se fala na contribuição que países deram à indústria fonográfica, é normal se associar o Japão muito mais à aptidão científica do que pela produção artística em si. Afinal, quem não tem ou teve ao menos um aparelho Sony, Hitachi, Mitsubishi, JVC, Toshiba, Panasonic ou de alguma outra marca? A alta competência e a disciplina do povo japonês, capaz de erguer um país destroçado pela bomba atômica ao final da Segunda Guerra e levá-lo a uma potência tecnológica mundial, faz tender-se facilmente a esta percepção. Porém, ao contrário do que possa se pensar, foi justamente esse desenvolvimento científico que promoveu o surgimento nas artes dos filhos desse fenômeno social. Na música, o principal nome dessa geração certamente é Ryuichi Sakamoto.
Compositor, maestro, tecladista, produtor, arranjador, professor – e às vezes cantor e até ator –, Sakamoto surgiu para o mundo da música nos anos 70 ao compor o revolucionário mas pouco creditado pelos ocidentais Yellow Magic Orchestra, grupo synthpop que deu os primeiros ensinamentos a toda a turma britânica e norte-americana do gênero – que entrariam anos 80 adentro fazendo sucesso muito por conta do que a banda japonesa inventou. Ali, Sakamoto já trazia parte da essência de sua música, que une sofisticação à alta modernidade e a uma visão globalizada da arte, bem como a música clássica e a tradição da cultura milenar da Terra do Sol Nascente.
Precisaram alguns anos, no entanto, para que o exigente Sakamoto calibrasse essa difícil química, cuja fórmula somente o cadinho de alguém muito talentoso como ele poderia misturar sem que resultasse desastroso. Gravou discos solo, compôs trilhas sonoras brilhantes, venceu Oscar, Bafta e Globo de Ouro de Trilha Sonora e, como ator, foi dirigido por cineastas do calibre de Bernardo Bertolucci e Nagisa Oshima, além de colaborar com projetos de diversos outros artistas, como P.I.L. David Sylvian, Bill Laswell e Thomas Dolby. Mas ainda era pouco. Como bom oriental, Sakamoto mantinha uma incessante busca pelo “kodawari”, o “caminho da perfeição”. Passada uma década após sua estreia na YMO, só então o músico pode dizer-se, enfim, minimamente maduro. A materialização desta caminhada perseverante está em “Neo Geo”, nono disco de carreira em que tanto Sakamoto definiu o seu estilo quanto, além disso, ajudou a estabelecer padrões de toda a música pop a partir de então.
Afora a obstinação nipônica, outra característica de Sakamoto é a de, chegado ao ponto que almejava, saber valorizar o que construiu. Os anos de lapidação de sua obra trouxeram, como um ideograma, o poder de síntese. A começar pelo título do álbum em questão, que propositalmente faz referência a uma nova arquitetura geográfica mundial visto que já se percebiam os últimos suspiros da Guerra Fria. Através dos sons, ele recupera a world music, a new age, o pop, a soul, o rap e o jazz fusion e posiciona sua música num ponto certeiro deste mapa. Os sons da África e das Américas (com uma boa dose de harmonias bossa novistas, aliás) convivem em perfeita composição com elementos eruditos e étnicos. Sakamoto adiciona a isso também sempre um ingrediente muito bem preparado de cultura da sua terra, seja num riff, num acorde de teclado, num sample, num canto ou num detalhe em meio a arranjos invariavelmente preciosos. Uma fórmula tão improvável cuja melhor classificação é, justamente, “Neo Geo”.
Os primeiros acordes vêm com toda essa carga de síntese e musicalidade. “Before Long”, como é de praxe nos discos de Sakamoto, ele abre com um tema instrumental. Emotiva e de ares clássicos, é baseada no piano, seu instrumento-base, usando com maestria notas agudas típicas da sonoridade oriental. Ele repete o expediente climático que já havia usado na abertura de “Marry Christimas Mr. Lawrence”, de 1984, na faixa-título, ou "Calling from Tokyo", do álbum exatamente posterior a “Neo...”, “Beauty”, de 1989. Uma pequena obra-prima de pouco mais de 1 minuto. O que já muda bruscamente na segunda faixa – que não desavisadamente dá título ao disco – quando começa um ethnic-funk, adaptação de um tema tradicional japonês, com a timbrística com a qual Sakamoto, alinhado aos modernistas do jazz de então, coloriria a música pop a partir dali: programação eletrônica, recortes, guitarras afro-beat, vozes étnicas e um baixo marcado em slap tocado pelo baixista e produtor norte-americano Laswell. Aliás, outra marca de “Neo...” é o encontro de Sakamoto com uma turma de alquimistas arrojados como ele. Ao lado de Laswell, figura essencial para a fusão do rap na música nos anos 70/80, ele recruta tanto músicos conterrâneos, como o guitarrista Harry Kubota, a cantora Misako Koja e o DJ Hiroaki Sugawara, quanto agrega participantes de outras nacionalidades, seja da música, das artes cênicas ou do cinema.
Fazendo do estúdio o seu laboratório, Sakamoto permite-se experimentar as mais diferentes formulações, mostrando que havia valido a pena acumular conhecimentos e vivências até ali. Um dos pontos altos do disco, “Risky”, não deixa dúvida disso: um pop funkeado e sensual que conta com a voz de Iggy Pop, que empresta seu barítono, um dos mais inconfundíveis da música pop, para deixar a música ainda mais elegante. A pertinência da participação de Iguana está no cerne da própria canção, que lembra o padrão estilístico que ele e o parceiro David Bowie ajudaram a dar à música pop dos anos 80.
Se “Risky” continha toques orientais, “Free Trading” os combina com o Brasil e com os Estados Unidos. Impossível não associar o riff de teclados com a música brasileira, da mesma forma que este soa igualmente muito nipônico. Afora isso, Sakamoto, fervoroso amante de MPB e de jazz, promove neste histórico momento o encontro de dois ícones da música norte-americana: um da soul, o baixista “P-Funk” Bootsy Collins, e outro do jazz, ninguém menos que o lendário baterista Tony Williams.
Outra de elegância ímpar é a marcial “Parata”, mais uma instrumental e ao estilo de suas trilhas para cinema. Novamente, Williams empresta suas baquetas mágicas, aqui juntamente com a percussão do jamaicano Sly Dunbar. Quanta delicadeza e bom gosto! Voltando ao synth pop de origem, no entanto, Sakamoto o combina agora a diversas outras propriedades de seu conceito “Neo Ge” num tema para homenagear a histórica ilha de Okinawa. Ritmo dançante, percussões africanas e orientais, vozes sampleadas, teclados marcantes e um indefectível som de uma pipa chinesa, tocada pela instrumentista nipo-americana Lucia Hwong. Mais uma vez, fica evidente a essência sintetizadora do músico: a extração do erudito de um tema folclórico e a transformação em uma invenção moderna.
Um disco primoroso como este não poderia desfechar de forma diferente. Assim como a faixa inicial, “After All”, sua derradeira, é um breve tema instrumental em que o admirador de Beethoven, Ravel e Tom Jobim denota sua infinita sensibilidade ao reprocessar o lirismo da obra de seus ídolos e compõe algo seu, original. Enfim, nem Japão e nem lugar nenhum especificamente: sua música é do mundo todo. Talvez por isso sua influência seja tamanha nos trabalhos de artistas da música como Sinéad O’Connor, Towa Tei, Madonna, New Order, Cornelius e Deep Forest, além de Caetano Veloso, Ambitious Lovers, Jaques Morelenbaum e Marisa Monte, com quem passaria a contribuir diretamente nos anos 90. Vivo e ativo, Sakamoto prova que talento e sensibilidade estão no coração independentemente do contexto ou da cultura. Como um cientista da música, ele foi capaz de condensar todas as suas referências e trazê-las para dentro de seu núcleo afetivo, que muito bem pode ser representado por uma esfera vermelha tal qual a da bandeira do Japão.
FAIXAS:
1. “Before Long” - 1:20
2. “Neo Geo” - 5:05
3. “Risky” – com Iggy Pop (Bill Laswell, Iggy Pop/ Ruychi Sakamoto) - 5:25
4. “Free Trading” (Y. Hagiwara, Y. Nomi) - 5:25
5. “Shogunade” (Laswell/ Sakamoto) - 4:33
6. “Parata” - 4:18
7. “Okinawa Song” - Chin Nuku Juushii (H. As/ S. Mita) - 5:15
8. “After All” – 3:08
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Veja o clipe de "Risky", com Ryuichi Sakamoto e Iggy Pop
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Música da Cabeça - Programa #203
Ações da Petrobrás lá embaixo? Fica tranqs, que aqui no MDC a gente dá um jeito de manter todas as ações em alta! E atividade musical é o que não nos falta com muita coisa diferente e legal pra hoje. Sente só: The Ambitious Lovers, Teenage Funclub, Walter Franco, The Beatles, Beck e Banda Black Rio estão nessa verdadeira bolsa de valores que vamos ofertar hoje. Agindo do jeito que tem que ser, o pregão de hoje abre as 21h, na sempre elevada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e papeis valiosos: Daniel Rodrigues. (pra não perder o costume: #ForaBolsonaro)
http://www.radioeletrica.com/
sexta-feira, 24 de julho de 2020
Caetano Veloso - Teatro da Ospa - Porto Alegre (1992)
O conhecimento que adquiri sobre cultura é, hoje, para um adulto de 42 anos, bem mais assimilável diante dos olhos alheios do que quando eu era jovem. Naquela época, meu gosto e entendimento por cinema e música causavam espanto, visto que não correspondiam com o de muito adulto, quanto menos ao de outros jovens da minha idade. Como um guri de 13 anos, negro e de classe média é capaz de gostar (e entender!) daquilo que somente a classe média alta (e branca) detém? Enfim, não se escapa ileso disso no Brasil. Considerando a devida bagagem adquirida de lá para cá, posso dizer que, na juventude, já me mostrava interessado e conhecedor de muita coisa – principalmente, em comparação a pessoas então da minha idade, muito mais preocupados em ter grana para gastar na balada do fim de semana. Eu, um ET entre meus pares, queria saber mesmo era de filmes e de música. Meus gastos se voltavam a locadoras, discos e a conhecer coisas.
Caso de Caetano Veloso, a quem havia descoberto fazia alguns anos mas que, naquele 1992, completando 50 anos de vida, se revelava fortemente a mim através do seu então novo disco, “Circuladô”. Pela MTV, via seguidamente o ótimo clipe da música de trabalho “Fora da Ordem”. Mas, principalmente, minha curiosidade se despertava por causa da antenada Rádio Ipanema. Pela rádio, minha escola musical-cultural, ouvia não apenas esta música, mas também outras joias daquele disco, como a pedrada crítico-social “O Cu do Mundo”. Fui atrás do disco, óbvio. Adquiri-o em K7, trabalho que se tornou, até hoje, um dos meus preferidos de Caetano e sobre o qual já falei aqui no blog. Assim. quando o baiano anunciou que vinha a Porto Alegre para a turnê do álbum, não pestanejei. Sem ninguém tão empolgado quanto eu para ir ao show, fui sozinho.
Seria o primeiro sem a companhia de ninguém, nem pais, nem irmão, nem amigo. Só eu. Era comum ir às sessões especiais de cinema sozinho, mas a um show, que acabaria tarde da noite, nunca. E longe de onde era minha casa, na zona Sudeste de Porto Alegre. De ônibus, por cerca de 1 hora, me desloquei até o alto do Bom Fim/Independência em direção ao antigo e hoje desativado Teatro da Ospa, onde ocorreria o show. Com a devida preocupação de minha mãe, fui. Lembro que tinha fila Av. Independência afora, passando pela frente da casa da Cruz Vermelha, uma novidade para mim, que não frequentava aquelas imediações. Já ali, minha figura impressionava aqueles que assistiriam junto comigo dali a algumas horas o memorável show de Caetano. Lembro-me claramente que um senhor de meia-idade, de óculos e provavelmente fã do músico desde quando era adolescente, perguntou a mim com admiração que idade eu tinha.
Caetano e a grande banda comandada por Jaques Morelenbaum |
Não lembro bem onde entrava no show “Fora da Ordem”, mas com certeza era na primeira metade em se tratando de música de trabalho do disco novo. O fato é que, logo em seguida, emenda-se outra sequência incrível e inesperada: a linda “Um Índio” – em uma versão melhor que a original dos Doces Bárbaros –, a novelística "Queixa" e uma assombrosa "Mano a Mano", clássico tango de Carlos Gardel com Morelenbaum ao cello e Caetano apavorando no vocal. Mas não terminava aí: só na voz e violão, vêm uma trinca com a assertividade dissonante de "Chega de Saudade"; uma surpreendente versão de "Disseram que eu Voltei Americanizada", do repertório de Carmen Miranda; e “Quando eu Penso na Bahia", em que Caetano torna Ary Barroso muito caymmiano.
A bela arte da capa do disco ao vivo, que fazia cenário para o show visto na Ospa |
Para mim, que conhecia de cabo a rabo “Circuladô”, ficou claro por que, de todas, tanto“Ela Ela”, arranjada e tocada em estúdio com Arto Lindsay, como “Lindeza”, com Ryuichi Sakamoto aos teclados, igualmente sui generis, cada qual com suas particulares performances irreproduzíveis à altura sem esses músicos específicos, não se executaram. Além de compreensíveis ausências, ambas nem de longe fizeram falta ao show, que, antes de tudo, foi um show de repertório. Tão marcante foi tal apresentação, que se tornou o primeiro de uma série de discos ao vivo de Caetano, o CD duplo “Circuladô Vivo”, algo que passou a acontecer com regularidade a partir de então após cada disco de estúdio lançado. A qualidade técnica da gravação, que se tornava disponível à época no Brasil pós-Collor, certamente colaborou para isso. Porém, antes de qualquer coisa, o tratamento dado pela também iniciante parceria entre Caetano com Jaques Morelenbaum é crucial para o sucesso do álbum ao vivo, um dos mais celebrados da carreira de Caetano. Se no estúdio os Ambitious Lovers Arto e Peter Scherer vinham numa ótima tabelinha com o baiano desde “O Estrangeiro”, de 1989, o que se adensaria em “Circuladô”, no palco, era a mão versátil do maestro líder da Banda Nova de Tom Jobim que ditava a musicalidade. Por influência dele, "Terra" (que ficou de fora do CD, assim como outra clássica, "Baby"), talvez a melhor melodia de Caetano, ganhou no show a talvez sua melhor versão das várias que o autor já registrara ao longo da carreira.
Não tenho idade para ter ido a shows célebres de Caetano em Porto Alegre, como o da turnê do disco “Cinema Transcendental”, em 1979, ou o de 1972, no Araújo Vianna, de onde, após encantar a plateia, partiu com figurino e tudo rumo ao histórico e único encontro que teve com Lupicínio Rodrigues, no Se Acaso Você Chegasse, na Cidade Baixa. Mas a ver pela repercussão que este show de 1992 teve, tanto com o lançamento e sucesso do CD ao vivo como também de um especial para a TV Manchete e um documentário dirigidos por Walter Salles Jr. e José Henrique Fonseca – à época, em VHS –, era impossível Caetano não conquistar de vez aquele pré-adolescente da periferia porto-alegrense, que, encantado com o que vira, nem se abalou por andar sozinho tarde da noite de volta para casa. Aliás, ele nem lembra como e quando chegou em casa. Mas que chegou, chegou – para alívio de sua mãe. Se não, ele não estaria aqui agora, redigindo este texto recordado da grande noite em que viu Caetano Veloso pela primeira vez ao vivo.
sexta-feira, 12 de julho de 2019
Quando o rock encontrou a bossa nova
A semana é de rock, cujo alucinante e revolucionário ritmo é comemorado dia 13, mas o que marcou mesmo esses últimos dias foi a perda da maior referência da bossa nova, João Gilberto, no último dia 6. De modo a contemplar os dois, então, o rock'n'roll e a bossa nova, trago aqui um cruzamento de algo que de muito me instiga: o samba no rock. Como bem classificou Rita Lee: "bossa 'n' roll".
Não é de hoje que os estrangeiros, seja dos Estados Unidos, Europa ou Ásia, morrem de amores por nossa música, especialmente pelo samba – e não tem estilo mais representativo deste ritmo e da música brasileira que a bossa nova, nosso maior produto-exportação depois do futebol. Mas uma coisa é certa: gringo não sabe fazer samba. Não adianta. Eles se esforçam, admiram, veneram, imitam mas não sai igual. Falta ginga, falta sol tropical na moleira, falta melanina, falta pobreza. Sei lá o que, mas falta. E um dos maiores segredos é, justamente, a batida do violão de João. Se muito brasileiro não entende, imagina eles.
O que não quer dizer, entretanto, que não saia legal o que eles fazem. Essas assimilações culturais e troca de percepções me agradam, ainda mais considerando um mundo cada vez mais conectado e de acesso fácil a conteúdos antes apenas nichados.
Mas mesmo assim – e aí que está a graça – um samba feito por alguém de fora tem uma cara diferente. Não raro, sai um troço quadrado, sem molho ou, pior, confundido com rumba ou salsa caribenhas. Tem, contudo, resultados muito legais, inovadores, globalizados. Visto pelo ângulo deles, os de fora, são contribuições do olhar do estrangeiro, a forma como eles entendem nossa cultura.
Por isso, separei aqui 13 (afinal, trata-se também de rock ‘n’ roll) sambas criados e cantados por quem não nasceu no Brasil e nem se criou aqui. Não sai nada igual ao que João fez, eles mesmos sabem. Mas tentaram e não se saíram mal.
Beastie Boys - “I Don’t Know”
Os Beastie Boys são aqueles caras que evoluíram pra caramba disco após disco, e em “Hello, Nasty”, de 1998, permitiram-se arriscar com esta bossa-nova, que ficou bem bonita. O violão, entretanto, não deixa mentir: tocado com palheta e não dedilhado tal como os mestres do instrumento no Brasil. Yuka Honda, figura claramente importante neste cenário (como boa japa admiradora de MPB que é), participa cantando. A rapaziada se saiu bem.
OUÇA
Beck – “Tropicalia”
Se tem alguém que chegou bem perto de fazer igual aos brasileiros, esse cara se chama Beck. Admirador da MPB, “rato” de loja de disco e, mais do que isso, músico de bom ouvido, em 1998 mandou ver nessa homenagem ao Tropicalismo que tem, até pelas inclusões de funk e elementos modernos, a maior cara do que Caetano, Gil e Cia. Propuseram. A batida do violão, calcanhar de Aquiles pra quem não é daqui, em “Tropicalia” soa perfeito. Podia ser até um Baden ou Macalé tocando.
OUÇA
Tá bem que Towa Tei é parceiro costumeiro de Bebel Gilberto, que certamente lhe deu umas aulinhas de ziriguidum. Mas o resultado da leitura do samba deste músico japonês é recorrentemente admirável e pessoal. Sob a ótica de um DJ calcado nos beats dançantes, o ex-Deee-Lite tem joias como esta do disco "Last Century Modern", de 1999,, em que nem a batida eletrônica é capaz de excluir o repique típico do samba. Linda canção que muito brasileiro jamais seria capaz de compor.
Pode não parecer samba, mas os próprios Stones disseram que a compuseram inspirados no que presenciaram numa vinda ao Brasil. Tá na cara que eles confundiram samba com candomblé, música de ponto, mas não importa se foi numa sessão de batuque ou numa quadra de escola de samba - e sabe-se lá em que estado se encontravam. O importante é que saiu essa pérola, um hino do rock que abre o clássico "Beggars Banquet", de 1969.
Sabe-se lá o que esses malucos da cena proto-punk de Londres ouviram de samba, mas o que saiu foi algo instigante e transgressor como um bom rock deve ser. A música encerra o baita disco "Ptooff!", primeiro deles, de 1967. Nunca o samba soou tão psicodélico e garage band.
Jay Kay e sua turma são talhados em tudo que se refere ao jazz soul dos anos 70, inclusive a brasileira Azimuth. São eles a maior inspiração da Jamiroquai para esta música do celebrado "Travelling Without Moving", de 1996. Sopros e vocal perfeitos, além da percussão bem latina. Mas, convenhamos, também não é samba.
A célebre "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, foi o primeiro grande cartão de visitas da música brasileira pré-bossa nova, e por isso vários músicos daqui e de fora dela se apropriaram. Um deles, Keigo Oyamada, o Cornelius (mais um japonês!), compôs, em 2002, no disco "Point", essa reverência chamada, claro, de "Brazil". Indie eletronic de alta qualidade com a sua cara e, detalhe: domínio do violão como poucos, muito próximo à batida da bossa nova.
Mais um japa, mas não qualquer um, pois estamos falando do genial Ryuichi Sakamoto. O universal músico, conhecedor de perto da MPB e sabedor do que estava fazendo, compôs "Free Trading" em seu discaço "Neo Geo", de 1888. Bossa com toques orientais. Afinal, quem e que disse que samba não pode ter também esse sotaque?
Imagina Paul McCartney ou Brian Wilson caindo no samba? Ia dar em coisa boa certamente. Pois quem fez isso foi Ray Davies, da Kinks – o que significa praticamente a mesma coisa em termos de grandeza. Esta joia chamada “No Return”, do espetacular "Something Else" (1967) - grata lembrança do meu amigo Lucio Brancato -, é bossa nova no melhor estilo, e sem deixar a dever em nada o toque do violão. Os versos são em inglês, mas o som é brasileiríssimo.
Ok, ok, eu sei que é meio “migué” por a Ambitious Lovers nessa lista sendo o Arto Lindsay tão brasileiro quanto norte-americano. Mas considerando que Peter Scherer é inteiramente de lá e que a banda formou-se em Nova York, vale esse “jeitinho brasileiro”. “King”, essa joia do primeiro disco da dupla, “Greed”, de 1988, tempera na medida certa o rock underground e o ritmo das escolas de samba. Coisa de brasileiro - mas americano também.
A visão world music de Brian Eno não o deixaria fazer um samba convencional tal e qual o que ele ouviu aqui pelo Brasil. Ele até saberia, mas iria de fato resultar em algo reprocessado e personificado. Melhor exemplo é “Kurt's Rejoinder”, essa “samba de plástico” do brilhante álbum “Before and After Science”, de 1977.
Gabriel Yared - "Chili con Carne"
Para fechar, outros que há muito se rendem à música brasileira são os franceses. Na trilha sonora clássica do cult movie dos anos 80 "Betty Blue" o compositor Gabriel Yared versou a canção-tema, entre outros ritmos, também para a bossa nova. C'était magnifique!
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segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
Caetano Veloso - "Caetano Veloso" (1986)
Dentre esses variados projetos, faltava investir mais fortemente em um: a projeção internacional. Se no seu quintal estava tudo dominado, agora eram os gringos que precisava atingir para expandir seu trabalho naturalmente universal. Conhecido na Europa desde que vivera na Inglaterra, no período da Ditadura Militar, Caetano mantinha frequência de shows internacionais em diversos países, como Suíça, Portugal, França, Itália, Israel, entre outros. Mas faltava o coração da indústria fonográfica: os Estados Unidos. Surge, então, a oportunidade de gravar em Nova York um disco especialmente para o mercado norte-americano, algo que Gil já o fizera, em 1979, no ótimo “Nightingale”. Porém, ao contrário do parceiro de Tropicalismo, que optara por versar para inglês clássicos de seu repertório, os quais ganharam novos arranjos para banda, Caetano escolhe a simplicidade do acústico. É o que se revela no cristalino “Caetano Veloso”, de 1986.
Formato que já vinha sendo lapidado pelo artista há alguns anos em shows – incluindo “Totalmente Demais”, disco coirmão gravado no Brasil naquele mesmo ano –, o som voz/violão/percussão ganha no “Disco Americano”, como é apelidado, a sua mais alta qualidade. Com um repertório escolhido a dedo, Caetano traça um histórico de seu gênio compositivo ao longo das então mais de três décadas de carreira. Composições antigas, como “Coração Vagabundo”, de seu primeiro disco (“Domingo”, de 1967), e “Saudosismo”, de 1968, se aliam a temas mais recentes, como “Luz do Sol”, escrita para a trilha do filme “Índia, a Filha do Sol”, de 1982, e duas de “Velô”, de 1983. Além disso, puxam-se clássicos do cancioneiro caetaneano como “O Leãozinho”, “Terra” e “Trilhos Urbanos”, esta última, a que tem a primazia de abrir os caminhos, ditando o clima que se seguirá nas 13 faixas do álbum. Tudo sob um arranjo simples e sofisticado ao mesmo tempo, com o violão do próprio Caetano fazendo toda a base bossa-novística, as percussões de Mestre Marçal e Marcelo Costa contribuindo com texturas e leves ritmações e o violão solo de Toni Costa completando a arquitetura sonora.
Assim como “Trilhos...”, ainda melhor do que sua original nessa versão, ocorre o mesmo com “O Homem Velho”, que, somente voz/violão, faz revelar a real essência da canção. Escrita para o pai de Caetano quando de seu falecimento, tem uma de suas mais tocantes letras, com versos como: “A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol/ As linhas do destino nas mãos a mão apagou/ Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll/ As coisas migram e ele serve de farol”. Caetano está cantando lindamente, dando às interpretações a medida certa de emotividade. É o que se nota em “Eu Sei que Vou te Amar”, numa das mais belas versões do clássico de Tom e Vinícius – à altura das interpretações de Elizeth Cardoso, João Gilberto e do próprio Tom Jobim.
Outras imortais de Caê, como “O Leãozinho”, bastante afeita ao acústico, também são levadas apenas por seu intérprete ao violão, límpidas. Mesmo caso de “Odara”, originalmente uma disco music que, desta maneira, soa como se sempre tivesse sido tocada na sutiliza do acústico. Aliás, a musicalidade de Caetano é tamanha que ele consegue dar tal roupagem a duas melodias totalmente distintas dos ritmos brasileiros: “Get Out of Town”, standart do cancioneiro norte-americano, de Cole Porter, e “Billie Dean”, o pop dançante de Michael Jackson. Tal como ousara nos anos 70 em “Qualquer Coisa”, de 1975, quando pôs Beatles dentro do som mais brasileiro de todos: o samba. E são duas das mais belas canções do disco: “Get Out...”, superelegante, que conta com um solo de violão arrasador de Toni Costa, e “Billie...”, em que aproveita a radiosa melodia original para transformá-la, inclusive mesclando-a em pout-pourri com o samba de gafieira “Nega Maluca” e a sinfônica “Eleanor Rigby”, que o faz voltar a Lennon e McCartney, inclusive pela marcante participação de Toni Costa relembrando a guitarra de Perinho Albuquerque em "Eleanor...";
“Cá-Já”, do álbum “Muito”, de 1978, ganha arranjo mais encorpado com as percussões e o violão de Toni Costa. Daquele mesmo disco, “Terra”, talvez a mais brilhante composição de Caetano, encerra repetindo a sonoridade de pequena banda e, mais uma vez, superando a primeira gravação. Versos inesquecíveis como: “De onde nem tempo, nem espaço/ Que a força mande coragem/ Prá gente te dar carinho/ Durante toda a viagem/ Que realizas no nada/ Através do qual carregas/ O nome da tua carne...”, se redimensionam em beleza na discrição exata em que cabe a canção. Caetano faz menos ser muito mais.
Naquela mesma década de 80, logo em seguida viria uma nova fase na carreira musical de Caetano quando, junto aos “Ambitious Lovers” Peter Scherer e Arto Lindsay, incorpora elementos do pós-jazz e da ethnic fusion à sua abundante musicalidade e poética tropicalista. Mais uma faceta que Caetano apresentava. Porém, a versatilidade de usar de formas variadas seu talento naqueles anos ganha no “Disco Americano” certa redenção. Todos sabem (mesmo que alguns façam de conta do contrário) de suas qualidades artísticas, mas o seu âmago está, de fato, no ensinamento permanente e na profunda reverência à batida e ao canto de João. O resto é quase perfumaria – e se não é, o disco feito para os Estados Unidos faz passar essa sensação ao ouvi-lo. Tudo cabe ali: o samba, o jazz, o rock, o pop. O moderno e o passado. Só voz, violão e canção: basta isso para Caetano ser totalmente demais.
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FAIXAS:
1. Trilhos urbanos
2. O homem velho
3. Luz do sol
4. Cá-já
5. Dindi (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira)/ Eu sei que vou te amar (Tom/Vinicius de Moraes)/
6. Nega maluca(Fernando Lobo, Evaldo Ruy)/ Billie Jean (Michael Jackson)/ Eleanor Rigby (Lennon-McCartney)
7. O leãozinho
8. Coração vagabundo
9. Pulsar (Augusto de Campos/Caetano Veloso)
10. Get out of town (Cole Porter)
11. Saudosismo
12. Odara
13. Terra
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
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OUÇA O DISCO:
"Caetano Veloso" - Caetano Veloso (1986)