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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

terça-feira, 6 de agosto de 2024

10 músicas francesas de autores não-franceses


Eles não são franceses, mas manjam dos “mon amour”. A sonoridade do idioma francês enseja à musicalidade. E que músico que não gostaria de cantar uma canção em francês? Há os que se aventuraram com muito sucesso, a se ver por Cássia Eller com "Non, je ne regrette rien", Grace Jones com “Libertango” ou Caetano Veloso em "Dans mon Ile". 

No entanto, cantar em francês é uma coisa. Agora, compor não sendo da terra de Piaf é, aí sim, tarefa para poucos. 

Poucos e bons, é possível dizer. Em época de Olimpíadas de Paris, fizemos aqui uma pequena lista de músicos não-franceses e suas composições, originais, na língua de Hugo. E é cada preciosidade, que Aznavour diria, com toda a certeza: “Oh là là”!, elogio que até quem não é da França compreende.

Semelhante ao que fizemos há 3 anos quando das Olimpíadas de Tóquio, pinçamos só coisas interessantes, desde roqueiros a jazzistas, de músicos populares a eletrônicos. Só coisa boa, só "crème de la crème". Confiram aí!

PS: Pensaram que a gente ia puxar a Gretchen cantando "Melô Do Piripipi", hein!?




“La Renaissance Africaine” – Gilberto Gil
Certa vez, nos anos 90, assistia na TV5, canal de televisão estatal francês, a uma entrevista do craque Raí, cidadão francês e ídolo por lá. Até que, de repente, quem o apresentador chama para entrar no estúdio? Gilberto Gil. Com um francês em dia, o mestre teria uma lista só sua de composições francófonas. Uma delas, destacamos aqui, talvez a mais bela de todas, originalmente de 2008 e gravada de maneira gigante em "Concerto De Cordas & Máquinas De Ritmo". Numa Olimpíadas em que grande parte dos atletas da casa são descendentes diretos de africanos, esta música se torna cada vez mais pertinente e poética.




“Dis-mois Comment” – Chico Buarque
O cara tem casa em Paris, onde, aliás, passou o seu recente aniversário de 80 anos. É outro da MPB que domina o francês talvez tanto quanto o português pelo qual é multipremiado como escritor. Tanto que é capaz de escrever canções como “Joana Francesa”, feita para a voz de Jeanne Moreau para o filme homônimo de 1973 na qual brinca com a sonoridade de um idioma e outro. Mas esta aqui, em especial, é integralmente em francês. Trata-se de ser uma das 14 joias da parceria Chico Buarque e Tom Jobim, que nada mais é do que "Eu te Amo", que o autor gravou com a cantora Cecília Leite em 2005.





“Le Petit Chevalier” – Nico
Nico iniciou a carreira musical muito bem amparada por nomes como Bob Dylan, Jackson Browne, Lou Reed e John Cale. Porém, embora o inquestionável talento dessa turma, ela ficava sempre muito dependente e, pior, subjugada a homens e relegada apenas a uma intérprete. Foi então que, em 1971, ela mesma compôs faixa a faixa aquele que é seu melhor álbum: “Desertshore”, no qual consta esta bela canção de ninar cantada em francês pela voz do pequeno francesinho Ari Boulogne, filho da musicista e modelo com o ator Alain Delon, à época com 9 anos. Uma preciosidade, ou melhor, "un bijou".






“Orléans” – David Crosby
Neil Young é amado pelos fãs de rock, mas da turma do folk rock da Costa Oeste David Crosby talvez seja o mais lendário deles. Após encabeçar projetos célebres como a The Byrds, a Crosby, Stills, Nash & Young, ele lança, em 1971, seu primeiro disco solo. Afiado melodista assim como seus parceiros de estrada, ele traz no seu maravilhoso “If I Could Only Remember My Name”  a linda “Orléans”. Tá certo: trata-se de um tema tradicional do folclore norte-americano, mas a roupagem dada pelo arranjo de Crosby justifica o crédito.





“Aéro Dynamik” – Kraftwerk
Por meio e através das máquinas, eles criaram sons universais. Nada mais natural, então, de criarem músicas não apenas no alemão, seu idioma original, mas em outros diversos como inglês, espanhol, português e até japonês. Para a língua da França, no entanto, a Kraftwerk guardou um trabalho especialmente dedicado, que é o belíssimo disco “Tour de France Soundtracks”, de 2003. Todas as músicas não instrumentais receberam letra em francês, como esta, que fala sobre um dos elementos essenciais para o ciclismo e outros esportes de velocidade: a aerodinâmica.





“La Pli Tombé” – Marku Ribas
Marku Ribas é daqueles craques da música brasileira que o Brasil não conhece. Talvez até por isso, ele seja mais bem entendido por quem fala francês. Tendo morado em Paris no final dos anos 60 (atuou neste período em filmes de Robert Bresson e Jean-Marc Tibeau, no qual interpreta o líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, inclusive), este mineiro incontrolável foi parar na Martinica, onde oficialmente fala-se francês, mas não-oficialmente o crioulo. Numa mistura dessas duas fontes, Marku escreveu algumas de suas canções, como esta, baseada em um folclore tradicional martinicano, que grava em seu excepcional disco “Marku”, de 1976.





“Bonjour, Monsieur Gendarme” – Chico César
Outro talentoso músico brasileiro também se aventurou pelo bom “français”. Chico César, em seu álbum “Vestido de Amor”, de 2022, gravado em Paris e que tem, além da produção do franco-belga Jean Lamoot, toques de músicos africanos, brasileiros e franceses. Primeira composição feita por Chico em francês, foi uma das iscas para atrair os ouvintes de lá para a edição estendida do álbum. Espertinho esse Chico César.





Valse Au Beurre Blanc” – Ed Motta
O ouvido de Ed Motta capta e absorve tudo que é som do mundo. Da tão admirável Paris, não seria diferente. No seu “Dwitza”, de 2009, considerado por muitos seu melhor trabalho, ele manda ver nesta genial “chanson” – e com uma pronúncia daquelas de quem sabe o que está cantando. Mais do que isso: convida para os vocais um coro de barítono e sopranos e ao estilo Bel Canto elegantérrimo. Ah, detalhe: é ele, Ed, quem toca todos os instrumentos. “Va te faire foutre!”, é só o que posso dizer.





Le Mali Chez la Carte Invisible” – Tiganá Santana
O primeiro álbum do compositor, cantor e instrumentista baiano Tiganá Santana, "Maçalê", lançado em 2010, é nada mais, nada menos, do que o primeiro álbum na história fonográfica do Brasil em que um autor apresenta canções próprias em línguas africanas. São línguas do tronco linguístico bantu, mas onde também entra bela canção em francês inspirada em reconstruções idiomáticas de várias pessoas que habitam o solo do continente africano.




Purquá Mecê” – Os Mulheres Negras
A música saiu na gozação com o idioma francês, daquelas típicas da dupla Maurício Pereira e André Abujamra, principalmente, que faria várias dessas na sua banda Karnak anos depois com o russo, o espanhol, o esperanto e por aí vai. Além de ser um barato, a letra, que não diz coisa com coisa, explora a sonoridade do francês e tenta (sim, tenta) traduzir para o português. Clássico d'Os Mulheres Negras.




Daniel Rodrigues

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

PJ Harvey - "To Bring You my Love" (1995)

 

“Aquela garota dos olhos azuis/ Ela disse ‘nunca mais’/ Aquela garota dos olhos azuis/ Virou uma puta de olhos azuis/ Por debaixo d'água”.
da letra de “Down by the Water” 

Pode-se dizer que os anos 90 foram os anos das "minas do rock", principalmente o alternativo. Sinal de alguma evolução comportamental na indústria cultural, o século que viu o gênero nascer obscurecendo Sister Rosetta Tharpe para evidenciar apenas roqueiros homens guardou para a sua última década um bom bocado de talentosas cantoras e compositoras senhoras de seus narizes. Afora as band girls The Breeders, Baby's in Toyland e L7 ou as líderes de bandas Dolores O'Riordan (The Cranberries), Shirley Manson (Garbage) e Courtney Love (Hole), pelo menos três dessas vozes transformaram a cena rock injetando-lhe um novo sopro de fúria e beleza, mas claro, carregado de feminilidade: Liz Phair, Björk e Fiona Apple. Ninguém, no entanto, foi tão a fundo neste empoderamento feito de riffs e vociferações como a britânica Polly Jean Harvey.

Nascida na mesma Dorset da King Crimson, região sudoeste da Inglaterra, PJ Harvey surgiu como um furacão em 1992 com o corrosivo “Dry”. Como os ícones que carregam em si todos os atributos de sua arte e seu tempo, PJ provava de pronto ser dessas figuras, fosse na forma quanto no conteúdo: postura feminista, ótima cantora, compositora ímpar, domínio de vários instrumentos e dona de uma imagem sensual e dasafiadora ao mesmo tempo. A cara da nova mulher do rock.

“Rido of Me”, de 1993, avança nesta proposta, mas o desaguar vem completo, como um orgasmo desinibido, em “To Bring You my Love”, de dois anos depois. Questões feministas são trazidas com graça e força, seja nas letras como nas sonoridades. A capa, assim como no clipe da música de trabalho, "Down by the Water", sintetiza este conceito: uma sereia moderna, trajando um decotado vestido de uma lascivo vermelho-sangue sob águas revoltas e bastante simbólicas. Uterina e genital. O som, sobre um riff grave e intenso, o canto carregado e por vezes sensualmente cochichado, as frases pontuais das cordas, a letra confessional: tudo respira sexo e dor. “Oh ajude-me, Jesus/ Venha por entre essa tempestade/ Eu tive de perdê-la/ Para machucá-la/ Eu a ouvi gritar/ Eu a ouvi gemer/ Minha linda filha/ Eu a levei pra casa”, diz referindo-se à menina inocente que deixou de ser.

Construído narrativamente, “To Bring...” explora com perfeição os detalhes de sons e os andamentos, como no repertório sabiamente encadeado. Cada faixa é um universo, mas PJ faz, no todo, que não destoem uma da outra. O tema-título começa o álbum numa lentidão quase fúnebre. A música é forjada sobre um riff de guitarra contínuo, marcado, repetido, marcial, incompleto, num blues dissonante e circunspecto. A voz rasga os alto-falantes em exasperação, assim como a pronúncia dramática, que abre os fonemas e altera pronúncias. "To bring you my 'lova'" (“Para trazer-te meu amor”), suplica. Coisa genial – e quem ouvir aqui Lady Gaga cantando não está errado.

Sobe o ritmo: rockasso tribal, “Meet Ze Monsta” exagera propositalmente na distorção da guitarra, mas mais para sujar o arranjo do que fazer barulho. PJ, selvagem, surge da mata do inconsciente feminino e puxa do instinto primário a voz para dizer que não tem essa de "sexo frágil": “Veja-o vir/ em minha cabeça/ Não estou correndo/ Não estou com medo [...] Eu não estou tremendo/ Eu não vou me esconder/ Sim, estou pronta [...] Que monstro/ Que noite/ Que amante/ Que briga”.

De um modo ou de outro, tudo fala sobre a mulher, emancipada e questionadora de sua existência. “Working for the Man”, retraz a temática sobre uma arquitetura sonora de garage band estilizada: som abafado e em volume reduzido, predominância dos graves e protagonismo da bateria e do baixo – este último, aliás, quase estourando o woofer das caixas de som. A voz de PJ, em overdub, é invariavelmente sussurrada, o que contrabalanceia o clima selvagem imediatamente anterior.

Pausa na crueza, mas não na dramaticidade. Balada sangrenta, “C’mon Billy” convida o homem a voltar para casa para viver com ela e o filho. “Venha Billy/ Vem para mim/ Você sabe que eu estou te esperando/ Eu te amo infinitamente”. Poxa, Billy, vai amarelar com essa baita mulher?! Canto fenomenal, carregado, cheio de sentimento, o qual é intensificado pela linda linha de cordas arranjada por Pete Thomas. Perfect pop como poucos sabem fazer, dos mais perfeitas (sic) dos anos 90. “Teclo” , por sua vez, volta à aparente simplicidade na reelaboração do núcleo blueser num tema misto de Nico e Captain Beefheart. Mas simplicidade, que nada: síntese e atonalismo. PJ, então, não faz concessões e manda de novo um rock intenso: “Long Snake Moon”, a seu melhor estilo, com sua pegada pós-punk. Sem, contudo, perder o drama e a ira. Já  "I Think I'm a Mother", tribal como “Meet...”, convoca a tribo para um alucinado pogo no meio da aldeia.

Tudo em “To Bring...” é detalhadamente pensado, o que faz com que os arranjos nunca sejam simples mesmo no mais aparentemente seminal rock 'n' roll. Uma das principais qualidades do álbum, aliás, tem a ver com isso: a produção, assinada pela própria PJ junto com o parceiro Joe Parish e Flood, este último, um dos grandes produtores da música pop. A expertise de Flood com o manejo das texturas sonoras, o qual ele empregara com maestria junto a bandas como Depeche Mode, Nine Inch Nails, Nitzer Ebb e Smashing Pumpkins, são somadas à concepção harmônico-melódica criativa de PJ, resultando nesta sonoridade peculiar. Impossível dissociar a melodia de seu invólucro, tamanha a unidade de ideias. 

Surpreendente mais uma vez, Miss PJ traz outra de suas obras-primas para encaminhar o final: puxada num violão de nylon de toque amplo e dedilhado, numa toada flamenca, "Send His Love to Me", andaluza, é não menos dramática do que todo o restante. Outro show dela aos vocais, outra vez a orquestração intensa, outra vez a produção irretocável. Poderia acabar aqui tranquilamente, mas como é comum ao roteiro de grandes álbuns, ainda há um gran finale. “The Dancer”, arrastada, melancólica, sofrida. E o que são aqueles gritinhos ao final, meu Deus?! Gemidos de prazer repetidos, seis deles, que parecem que vão levá-la ao êxtase, mas que, quando quase chegam ao clímax, resolvem-se em forma de canto. Dona Polly Jean, assim você mata seus ouvintes! Um êxtase tanto quanto.

O que faz uma mulher mignon, magra e de rosto assimétrico se transformar num mulherão radiante e cheio de sex appeal? PJ Harvey é a mais bem acabada resposta. Símbolo da mulher moderna, ele é a união da “pre-millenium tension” com a consciência da emancipação feminina que passaria a vigorar com maior afirmação a partir de então no showbiz e na sociedade ocidental. Em “To Bring...” ela mostra que é possível ser dama e puta, santa e profana, fada e bruxa, carnal e existencial, sensível e intensa, feminina e masculina. Desvencilhada das amarras que por séculos prenderam as mulheres no mundo da arte, PJ, parafraseando uma de suas próprias letras, foi abandonada pelo paraíso, amaldiçoou Deus e dormiu com o diabo para cunhar uma obra rock tão autoral e verdadeira. Respeita a mina.

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A versão de luxo traz B Sides tão bons que renderiam um outro disco.

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FAIXAS:
1. "To Bring You My Love" - 5:32
2. "Meet Ze Monsta" - 3:29
3. "Working for the Man" - 4:45
4. "C'mon Billy" - 2:47
5. "Teclo" - 4:57
6. "Long Snake Moan" - 5:17
7. "Down by the Water" - 3:14
8. "I Think I'm a Mother" - 4:00
9. "Send His Love to Me" - 4:20
10. “The Dancer" - 4:06


Faixas B-Sides da versão limitada em CD:
1. "Reeling" (demo version) - 3:00
2. "Daddy" - 3:16
3. "Lying In The Sun" - 4:30
4. "Somebody's Down, Somebody's Name" - 3:40
5. "Darling Be There" - 3:46
6. "Maniac" - 4:01
7. "One Time Too Many" - 2:52
8. "Harder” - 2:05
9. "Goodnight" - 4:17
Todas as músicas de autoria de PJ Harvey

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Daniel Rodrigues

sábado, 21 de março de 2020

Exposição “Território Oscilante”, de José Bechara - Fundação Iberê Camargo - Porto Alegre (RS)




Bechara e suas formas básicas
reelaboradas
Aproveitando uma ensolarada tarde de férias, Leocádia e eu fomos visitar, após assombrosos 4 anos de ausência nossa, a Fundação Iberê Camargo. Motivos houve. Além da indisponibilidade de ambos por vários motivos, o Iberê, um dos carões-postais de Porto Alegre, teve, neste meio tempo sem que o víssemos, altos e baixos, a ponto de quase fechar as portas. Mas agora, retomada sua evidente importância para a cena cultural da cidade de uns 2 anos para cá, vem trazendo, como sempre se propôs, boas programações e, principalmente, exposições interessantes. Uma delas é a do artista visual carioca José Bechara, cujas obras tomam o 1º piso e o térreo do espaço, intitulada “Território Oscilante”.

Bechara, a quem havíamos tido a boa surpresa de ver de perto seu trabalho em uma exposição menor mas semelhantes no MON, em Curitiba, em 2014, tem uma obra bastante moderna em proposta, que lida diretamente com o espaço, o equilíbrio e a forma. Desta feita, com curadoria de Luiz Camillo Osório, são cerca de 30 obras, que retratam o universo estético e ideológico do artista. As formas geométricas usadas com agudez – ora o quadrado, ora o círculo – são base para toda uma construção pictórica, que visa ir ao princípio das coisas. Mesmo quando deformadas, as formas básicas estão lá. Assim são desde suas instalações (“Ok, Ok, Let’s Talk”, madeira, 2008) como os quadros “Díptico Macio” (da série Criaturas do Dia e da Noite, acrílica, oxidação de emulsões cúprica e ferrosa sobre lona usada de caminhão, 2018).

Opressão e incomunicabilidade na instalação “Ok, Ok, Let’s Talk”:
ironia que traduz tempos de autoritarismo

Como artista visual sintonizado com a modernidade, a superfície a qual materializa suas ideias é, a se ver pelos exemplos mencionados acima, bastante variável. Ele recorre desde a fotografia, a instalação com materiais diversos à pintura e até o uso de matérias-primas vulgares, como vidro, plástico e lâmpadas fluorescentes (“Nuvem para Meia Altura”, 2015-2019).
Diversidade de técnicas na obra de Bechara

Conforme o curador, a “atenção aos elementos materiais do mundo, a experiência do tempo e suas formas de inscrição na superfície das coisas, constituíram um modo de operação poética que teve a apropriação como método e a precisão como régua”.

A mostra ainda guarda um rápido mas interessante paralelo entre a obra do artista convidado, Bechara, com a do que nomeia o espaço, Iberê Camargo. Admirador da obra do artista gaúcho, Bechara - que o compara a Byron e Augusto dos Anjos pela originalidade ("gênios que possuem substâncias mentais semelhantes àquelas que deram origem ao mundo") - busca na brutalidade poética e sombria dos territórios estranhos em que este se embrenhou artisticamente para, modestamente, fazer um paralelo de suas obsessivas formas geométrica com os obsessiva composição do autor dos carretéis.

Vejam, então, algumas das obras da exposição:

Detalhe de quadro: técnica que usa oxidação e lona de caminhão
O interessante “Nuvem para Meia Altura”
Instalação "Sobre Amarelos", composta por acrílica, madeira e vidros (2019)



A tela gigante da série "Criaturas do Dia e da Noite"

Outra lindeza da mostra, "Preta com Verde": Acrílica e oxidação de
ferro sobre madeira, de 2012

Uma das esculturas que dialoga com dois quadros de Iberê

A outra escultura de Bechara que conversa conceitualmente com o artista anfitrião

Dois clássicos de Iberê escolhidos para estabelecer paralelo,
ambos da série "Desdobramentos", dos anos 70

As belas formas geométricas que tomam o térreo do centro cultural, proposta que já
havíamos conhecido em 2014


por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de março de 2017

ARQUIVO DE VIAGEM – Caminho Niemeyer - Niterói/RJ – 04/01/2017




“Não foi difícil projetar para Niterói, porque esta é uma cidade de orla tão bela que possibilita a criação a céu aberto, como um itinerário cultural e religioso.” 
Oscar Niemeyer

Já havia ido duas vezes a Niterói por conta, obviamente, do Museu de Arte Contemporânea, o MAC, aquele monumento que a cidade carioca abriga. Entretanto, sempre tivemos curiosidade de conhecer também o Caminho Niemeyer, altamente recomendado por concentrar o segundo maior conjunto arquitetônico assinado por esse genial brasileiro depois de Brasília, e também por estes serem alguns de seus últimos projetos construídos. Aliás, Oscar Niemeyer nos é um dos fatores turísticos mais instigantes sempre que viajamos, e isso em várias partes do mundo. Embora conheçamos pessoalmente apenas algumas delas e apenas brasileiras, todo local que conte com construções suas, seja São Paulo, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Milão ou Nova York, são, se não pelo óbvio, destinos turísticos interessantes também por conterem obras do arquiteto em suas paisagens.

Pois é a paisagem litorânea de Niterói, beirada à Baía de Guanabara e a qual se contempla a cidade do Rio de Janeiro ao fundo, que faz cenário para o Caminho Niemeyer, que finalmente visitamos Leocádia, Carolina e Iara em nossa estada no Rio em dezembro. Ao todo, ali na Praça Popular de Niterói, são 3 prédios – sem contar com o administrativo, simples mas bonito: a Fundação Oscar Niemeyer, o Memorial Roberto Silveira e o Teatro Popular de Niterói. Mas ao longo da orla da cidade há também outros edifícios espalhados: o Terminal de Barcas de Charitas, o Centro Petrobras de Cinema e a Praça JK. Da catedral da cidade, que deve ser erguida, vimos o lindo projeto: um alto prédio que remete a um galero religioso.

O exuberante teatro com formar que
lembram o corpo feminino
Embora não tenhamos conseguido entrar em nenhum deles, visto que fomos num horário da manhã que não havia nenhum funcionamento, admirar os prédios e integrar-se com eles já vale a visita à Praça. O Teatro Popular é um desbunde. Com traços artísticos que lembram o curvilíneo corpo feminino, dialoga com outras de suas últimas obras, como o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba. É o prédio que mais interage com a natureza da Baía entre todos dali, até pela proximidade com o mar. Isso se percebe tanto no foyer inferior, com pilotis espaçados que lhe conferem profundidade e amplitude, quanto no andar de cima, entre o mural com a marcha do MST e a entrada para o teatro. O desenho da bailarina, o mesmo do MON, está lá em impressão feita sobre os ladrilhos. Por falar no traço de Niemeyer, o espetacular mural, propositadamente incompleto, traz a ideia das transformações sociais ainda em curso em que o povo virá a protagonizar na ideia sonhadora do comunista Niemeyer. O Teatro traz ainda os vidros escuros que abrem “olhos” na arquitetura, mesmo material usado nos outros prédios, dando unidade ao complexo.

O Memorial Roberto Silveira lembra bastante a Oca do Ibirapuera, em São Paulo, e o Museu Nacional da República Honestino Guimarães, de Brasília, mas num formato menor, como uma pequena nave espacial branca ali assentada. Já o da Fundação Oscar Niemeyer – cujo conteúdo original fora transferido para a sede da mesma em Brasília, estando atualmente funcionando uma sessão administrativa da prefeitura de Niterói – foi possível subir a rampa curva e admirar o olho d'água logo abaixo, que dialoga com a Baía de Guanabara  (assim como, mais adiante mas dentro do mesmo complexo de obras, o MAC o faz novamente, porém espelhando do alto do morro a água do mar).

Não deu pra tirar mais fotos, que o sol começou a ficar castigante a certa altura, mas esses registros aqui dão noção do quão deslumbrante é.

Espaço amplo do foyer com vista para a cidade do Rio

Leocádia integrando-se à arquitetura do Teatro do Povo

Eu em frente ao belíssimo painel desenhado por Niemeyer em homenagem à luta no campo

Caminhando em direção à Oca

Na entrada do Memorial Roberto Silveira 

Mais um detalhe do fabuloso Teatro, as bailarinas, as mesmas vistas no MON, em Curitiba

Na rampa de acesso ao prédio da Fundação Niemeyer


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa, Carolina Costa e Daniel Rodrigues

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Cinema Marginal #6 - "Copacabana Mon Amour", de Rogério Sganzerla (1970)



Vamos lá, isso mesmo, mais uma vez Sganzerla e mais uma vez uma grande obra. Atenção, família tradicional brasileira, tome muito cuidado ao assistir a "Copacabana Mon Amour".
Sônia Silk (Helena Ignez) circula por Copacabana, no Rio de Janeiro, com o grande sonho de ser cantora da Rádio Nacional. Silk é irmã de Vidimar, empregado apaixonado pelo patrão, o Dr. Grilo.
Se chegamos desavisados, o filme é  uma grande bagunça, uma história difícil de entender, muitos gritos, mas muitos mesmo, na verdade a obra e praticamente toda gritada. Agora já temos cores, a qualidade da imagem melhora bastante em relação a alguns filmes anteriores de Sganzerla mas o som continua sendo um problema. Devido ao fato de muitas cenas terem sido filmadas na rua e os microfones da produção não serem grande coisa, nem a técnica de som da época era tão avançada, o diretor mais uma vez escolhe dublar todas as falas do longa e elas dessincronizam em todo o filme (falas dubladas pelos próprios atores).
O estranho relacionamento entre os dois irmãos.
Os diálogos das obras desse diretor são sempre um destaque assim como a maneira que ele pega coisas totalmente deixadas de lado ou muitas vezes vistas com olhar preconceituoso e coloca como grande destaque dos seus filmes. Helena Ignez, sempre muito sensual, (Nossa, essa mulher era a sensualidade em pessoa!), tem atuação hipnotizante. Logo na primeira cena temos uma narração em off relatando quem são os “deuses”, divindades, orixás, da cultura do candomblé, e a partir daí o candomblé segue fazendo parte do enredo até o final do filme. Temos até uma cena onde um dos personagens está fazendo um “trabalho”, temos cenas de “possessão”, e batuques de tambor também são bem frequentes. A trilha sonora foi composta por Gilberto Gil e tem um destaque bastante grande dentro do filme entrando sempre em momentos oportunos, isso sem falar na sua incrível originalidade, conseguindo ser uma daquelas obras que une com perfeição a tropicália e o cinema.
As cenas deste filme são de uma força, de um impacto fortíssimo. Como disse ele é gritado, mas é GRITADO em todos os sentidos: as cenas de violência física são constantes por parte do patrão com seu empregado, mas as falas, sempre duras, chegam muitas vezes a serem mais fortes que agressões fisicas. Uma dominação completa. As cenas de sexo também têm sua selvageria e misturam-se com o candomblé, numa combinação que Rogério Sganzerla faz como ninguém.
Mais um achado do cinema nacional, "Copacabana, Mon Amour" pode parecer confuso, pode parecer meramente provocador, e pra falar a verdade realmente é, mas também é um pouco mais que isso: pega a cultura que foi jogada lá em baixo, crenças que foram jogadas lá em baixo e pessoas que são jogadas completamente à margem, e as colocas no ponto alto, as valorizando e humanizando. Parabéns, Mister Sganzerla.
Um pouco do muito de candomblé que o filme tem.




quinta-feira, 14 de abril de 2016

Exposição "Frida Kahlo - Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México" - Centro Cultural Caixa/Rio de Janeiro (17/03/2016)









A arte emancipadora de Frida Kahlo

Cartaz da exposição.
Havia lamentado profundamente não ter tido condições de ver a exposição de Frida Kahlo em São Paulo, no Tomie Ohtake, no final do ano passado. Passado o mês de novembro, quando havia me programado junto com Leocádia para tal, não houve mais oportunidade e a temporada paulista da mostra se encerrara. Mas por essas coincidências da vida, voltamos ao Rio de Janeiro em março e que estava lá? A mesma exposição, desta vez na Caixa Cultural. Mesmo curta a viagem, não só foi programação certa como foi a primeira assim que pusemos os pés na Cidade Maravilhosa novamente.
E as expectativas se cumpriram todas. Lá estávamos nós dois acompanhados de Cly Reis, numa ocasião rara e especial. Além de expor obras significativas da carreira de Frida, também criou um contexto de diálogo entre as várias outras artistas mexicanas contemporâneas a ela e, mais que isso, suas seguidoras. Muito bem montada, a exposição intercalou obras dela e de suas parceiras de estrada com temas e recortes bastante específicos, fazendo com que, mesmo não sendo grande o número de obras da própria Frida, estas se conjugassem tão bem com o restante que ficou bem distribuído. Esse cuidado da curadoria se fez evidente, pois ficou nítido o trato com os temas (“Corpo Feminino”, “Romance, Maternidade e Família”, “Territórios da Criação”, “Reinos Mágicos”, “Fascinação”, “Identidade Encenada”), bem como seus aprofundamentos. Superou em muito outra exposição sobre Frida Kahlo que vimos em 2014 no MON, em Curitiba, o qual trazia apenas fotos da coleção particular dela. Embora tenha cumprido o importante papel de ser a primeira mostra da artista no Brasil, abrindo portas para uma como esta recente, sua concepção e proposta deixaram bastante a desejar, um pouco pela simplificação dos recortes temáticos, um pouco pela carência de material produzido por ela, mesmo que somente em fotografia como se propunha.
Destaco, entre outras coisas, o surrealismo de tons quiméricos de Leonora Carrington e Lola Álvarez Bravo, a luz densa de Maria Izquierdo e o clima esfíngico de Bridget Tichenor. Afora, obviamente, a comovente e forte obra da própria Frida. É impressionante ver ao vivo a arte de artistas ícones da história, e a mexicana está entre esse seleto time. Acima de tudo, para além da pincelada rigorosa e consciente, conclusa e introspectiva, incisiva, remete ao traço dos mestres surrealistas Dalí, De Chirico e Chagal, principalmente pelo trato especial da luz, marcada e demarcada pelo inconsciente.
Entretanto, acima de tudo, gera-se um desconforto intransponível. Isso porque a apreciação de sua obra (vide o óleo sobre tela “A noiva que se espanta ao ver a vida aberta”, 1943, o óleo sobre masonite “Frutos da terra”, 1938, e os impressionantes autorretratos) se depreendem um sentimento de irresolução, haja vista a conjunção perturbadora de elementos simbólicos e do íntimo de Frida. Ela os põe a nu – mas, igualmente, desnuda-se a sua forma. A sexualidade e o entendimento desta, que passa pelo prazer carnal – e a dialética proibição/liberdade –, pelo milagre da concepção – fator exclusivo da liberdade feminina ao qual Frida fora “proibida” devido aos problemas de saúde – e, num espectro maior, a liberdade de existência, mesmo que esta seja além da realidade, privada à maioria das mulheres e enfrentada através da arte.

Mais do que a confirmação de uma grande artista, ficou evidente e se faz conhecido mais um dos papeis importantes de Frida Kahlo: o de servir de espelho para um grupo de talentosas mulheres, as quais, em maioria, descobriram em si justamente este talento por conta desse movimento emancipador. Além de representar a mulher no fechado meio da arte, de abrir portas para a arte latino-americana no mundo (foi a primeira latina a expor nos Estados Unidos), acima de tudo, Frida tipificou a mulher moderna, se menos que isso, ao menos o desejo tácito e genuíno da identidade.

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A Trama Feminina da Arte
Cly Reis


Os "cabeças" do ClyBlog encontrando-se na exposição no Rio de Janeiro.
Praticamente a "cúpula" do ClyBlog esteve presente na exposição "Frida Kahlo - Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México". Em recente visita de meu irmão e co-editor do ClyBlogDaniel Rodrigues, e minha cunhada e também colaboradora do blog, Leocádia Costa, tivemos a oportunidade de pegar um dos últimos dias da exposição no Centro Cultural da Caixa. E que sorte que tivemos de ver uma exposição rica e significativa da artista e de sua linguagem proposta, além da oportunidade de conhecer outras contemporâneas de Frida Kahlo, tão qualificadas e expressivas quanto ela e que muito raramente chegam ao nosso conhecimento. A mostra traz obras de alto grau de complexidade surreal da artista em destaque, suas frequentes referências e homenagens ao marido, também artista plástico, Diego Rivera, instigantes naturezas-mortas (ou naturezas vivas como elas chamavam), colagens e explorações anatômicas abordando em alguns casos sua frustração pela perda de um bebê que esperava e seus tradicionais e altamente expressivos autorretratos sempre altamente impactantes pelo cenário, pela indumentária, pela cor ou pela sugestão surrealista e invariavelmente de um apuro técnico admirável.
Ao contrário de algumas exposições onde o 'complemento' ao destaque principal é mais um enchimento para disfarçar a pobreza ou escassez de material do grande nome, do chamariz do evento, neste caso as obras das outras artistas apresentadas eram de valor quase tão grande quanto o de Frida e muitas mesmo chegaram a me impressionar bastante como Bridget Ticenor com sua versatilidade, e o surrealismo vivo e perturbador de Leonora Carrington. Já no trecho final da exposição é interessantíssima, reforçando essa rede de amigas artistas e mútuas colaboradoras, uma pequena seção apresentando fotos de cada uma destas personagens sendo algumas delas fotografadas pelas próprias colegas apresentando assim não somente a face retratada mas também o olhar de quem a captou em relação a outra artista.
Em uma época de justa  e necessária reafirmação de valores femininos, nada melhor do que uma exposição com essa qualidade e esse valor para reforçar, ressaltar, não deixar esquecer o valor da mulher em todos os âmbitos da sociedade e neste caso, especialmente no artístico, não deixando dúvidas sobre suas incomensurável capacidade, sensibilidade e força criativa.
Por aqui a exposição já foi embora e agora é Brasília que, desde ontem recebe os trabalhos dessa riquíssima trama de relações artísticas entre mulheres que, sem dúvida, já mostravam-se à frente de seu tempo.

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exposição "Frida Kahlo - Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México"
Centro Cultural Caixa /Rio de Janeiro




Abaixo algumas imagens da exposição:


Autorretrato, marca registrada de Frida,
um dos muitos que integram a coleção.

Outro autorretrato, desta vez com tranças. 

No detalhe de "Autorrretrato com tranças", o apuro técnico e
o perfeccionismo da pintura de Frida Kahlo.

Macacos compondo o cenário surreal de
outro autorretrato de Frida.

"Diego em meu pensamento" é apenas uma das inúmeras
menções ao marido em sua obra.

A "Natureza Viva" de Maria Izquierdo.

A  natureza morte de Frida "A  noiva que se espenata ao ver a vida aberta"
cheia de simbologias e interpretações.

Nova referência ao marido Diego Rivera

Retratos dela e do marido, Diego, pela própria Frida.

Aqui é Frida na visão de Diego.

O trauma pela perda do bebê retratado
em "Frida e o aborto".

Trabalho de Frida com colagem 

Os irmãos blogueiros discutindo sobre uma das obras da exposicção.

Detalhe da obra em discussão, "Três mulheres com corvos"
de Leonora Carrington

Outro trabalho de Leonora Carrington

O perturbador e inquietante trabalho
"Os encarcerados", de Bridget Tichenor

"Orplied" de  Leonora Carrington, de 1955

"O quarto de mistérios" de Bridget Tichenor

"Piedade para Judas", óleo sobre tela de Alice Rahon

Mais um de Tchenor: "Líderes".

Reproduções das indumentárias utilizadas
por Frida nos autorretratos.

Detalhe do manequim

Na seção de fotos, Frida captada por
Nicolas Murray em Nova York.


Foto extremamente plástica e inspirada
de Lola álvarez Bravo, "O rapto".


Maria Izquierdo fotografada por Lola Álavarez Bravo.

E a própria Lola registrando sua própria imagem

Selfie na exposição.
(da esq. para a dir.) Cly, Leo e Daniel, com Frida ao fundo.



textos:Cly Reis e Daniel Rodrigues